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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 05-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022034 

ARTIGOS

As opiniões reputadas (endoxa) no contexto atual

The reputed opinions (endoxa) in the actual context

Idalgo J. Sangalli1 

1Doutor em Filosofia e professor do curso de Filosofia e do PPGFIL/UCS.


Resumo

A proposta deste ensaio é somente indicar a presença e a possível contribuição da noção de endoxa de Aristóteles no debate ético-político contemporâneo. A definição de endoxa dada no início dos Tópicos permite compreender a natureza, a função e o seu valor na argumentação dialética, que é diferente da demonstração científica do silogismo teórico, e identificar as diferenças entre as meras opiniões (doxa) e as opiniões reputadas (endoxa). As endoxa funcionam como um primeiro princípio da demonstração e têm valor elevado de verdade, ainda que não sejam sempre verdadeiras, e se distinguem dos paradoxos. A concepção de endoxa em Tópicos I parece ser suficiente para perceber que Aristóteles fornece subsídios conceituais para melhor compreendermos os tipos de discurso e argumentos que podem contribuir para melhor orientar o debate e a tomada de decisão ético-política também em nosso contexto atual.

Palavras-chave Aristóteles; Argumentos Dialéticos; Endoxa; Verdade; Debate Ético-Político

Abstract

The purpose of this essay is only to indicate the presence and possible contribution of Aristotle’s notion of endoxa in the contemporary ethical-political debate. The definition of endoxa given in the beginning of the Topics provides the understanding of nature, function and value of endoxa in dialetical argumentation, which is different from scientific demonstrations of the theoretical syllogism, as well as the identification of the difference between mere opinions (doxa) and endoxa. Endoxa work as a first principle of demonstration and have a high truth value, even though they are not always true, and are different from paradoxes. The conception of endoxa in Topics I might suffice to say that Aristotle provides ideas which are helpful in the understanding of kinds of discourse and arguments that might contribute to better guide debates and decision making in the ethical-political field.

Keywords Aristotle; Dialectical Arguments; Endoxa; Truth; EthicalPolitical Debate

Considerações iniciais

Opiniões, verdades e conhecimentos eram o cardápio intelectual dos encontros na praça pública (ágora) e nas escolas (como a Academia e o Liceu) na Grécia Antiga. Diferentemente do tempo de Platão e Aristóteles, vivemos em sociedades pluralistas, globalizadas e multiculturais, com vidas e relações potencializadas pela tecnociência e por seus meios tecnológicos de comunicação de alto fluxo de informações, mudanças rápidas e liquidez dos valores, das ideias e do próprio conhecimento estabelecido. A liquidez dos produtos e das mercadorias descartadas também virou uma característica das nossas relações humanas (especialmente via mídias), nossa dimensão dos afetos, como amizades, relacionamentos amorosos e profissionais, como alertaram Lipovetsky (1989) e Bauman (2001), entre outros.

Outra característica de nossa época é como se constitui a opinião pública da “sociedade do espetáculo”, tematizada por Debord (2007), que sustenta que a alienação é o resultado da forma capitalista de organização social, não apenas uma descrição de emoções e aspectos psicológicos de cada indivíduo. Particularmente nas regiões mais desenvolvidas do planeta e por dispor de acesso rápido aos meios de comunicação, a opinião pública geral e a especializada, chamada de científica, se formam mais rapidamente do que em outros lugares e em outras épocas, e não poucas vezes o consenso ocorre sobre discursos nada inocentes e espontâneos, guiado por interesses corporativos e de organizações financeiras ou de certos movimentos ideológicos e religiosos. Nem sempre o que é publicizado, como relatos e relatórios, é confiável e fidedigno, e o mesmo ocorre com o que é noticiado pelos meios de comunicação de massas, normalmente e muitas vezes interesseiramente patrocinados por corporações ou governos com a presença, também, de conteúdos enganosos do tipo fake news, pós-verdade, manipulações falaciosas de textos e imagens, etc.

Por mais que seja desejada, exaltada e defendida a liberdade de expressão e de opinião, a mentira não pode ser admitida e universalizada, mesmo para quem discorda da posição categórica de Kant. Quando a liberdade de expressão não vem acompanhada de responsabilidade e de racionalidade ética é eminente o perigo de manipulação da opinião e da consciência das pessoas, independentemente do grau de formação delas. A consequência imediata entre a maioria das pessoas é que afeta o grau de credibilidade das informações ou das opiniões expressadas, levando às atitudes emocionais de polarização e extremismos. As opiniões e desinformações dessa retórica nada inocente podem ser e são facilmente tomadas como verdadeiras por muitas pessoas, compartilhadas e até replicadas exponencialmente pelas mídias sociais com a ajuda de inteligência artificial. Isso provoca um tipo de confusão e de dificuldade nos diálogos ou debates em termos de avaliação da veracidade dos conteúdos recebidos, acabando por considerarem-se tais informações como confiáveis, porque aceitas por muitos, quase sempre por estarem simplesmente alinhadas às suas preferências e expectativas emocionais. Por último, evidentemente existem aquelas pessoas que, com atitude de dúvida e de capacidade crítica, conseguem filtrar as informações e, assim, identificar racionalmente aquelas opiniões que merecem consideração e podem ser aceitas, evitando ou refutando aquelas falsas e enganosas.

Do ponto de vista do compartilhamento social, crenças, algumas absurdas, muitas vezes são aceitas e reconhecidas apressadamente como “verdades” ou verossímeis, potencializadas pelo uso das mídias sociais e assim, numa comunhão coletiva, são rapidamente assumidas e compartilhadas como referências e modelos a serem seguidos na tomada de decisões. Justamente a facilidade de publicização de opiniões em nosso tempo é que motivou a certeira crítica de Umberto Eco:

As redes sociais dão o direito de falar às legiões de idiotas que antes só falavam no bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Imediatamente eram reprovados e calados, enquanto agora eles têm o mesmo direito de falar que um ganhador do Nobel. É a invasão dos imbecis.

(ECO, 2015)2

O próprio debate público, a retórica político-partidária, ideológica ou não, e seus argumentos de justificação parecem indicar a presença de um tipo de racionalidade meramente opinativa (senso comum, popular ou, melhor, populista) ao invés de um discurso exigente e de rígida demonstração lógico-científica ao menos no domínio das ciências. Para assuntos de filosofia prática a demonstração não deve ser tão rígida, mas razoável, como ensina a argumentação dialética naqueles assuntos humanos, conforme a distinção introduzida pela tradição filosófica desde os diálogos socrático-platônicos e as definições produzidas por Aristóteles. A questão gira em torno de aceitar ou não as opiniões gerais aceitas pela maioria das pessoas, ou por uma grande parte da população com a anuência ou não de certos especialistas, como ponto de partida ou princípio para construir uma linha de argumentação confiável e justificável como verdadeira, ou como se fosse verdadeira, com a finalidade de orientação não só durante os diálogos, mas principalmente nas escolhas e nas ações humanas.

No âmbito da História da Filosofia, se houve hesitações entre os comentadores em reconhecer o status de cientificidade do discurso dialético, também ao longo da tradição filosófica teve, além da importância dada por Platão, o devido reconhecimento do próprio Aristóteles, embora considerando seu método diferente do de seu mestre, por exemplo, quando respondeu sobre a utilidade da dialética no Livro I dos Tópicos 2 101a, ao destacar: a) o treinamento intelectual ao exercitar o intelecto; b) o ato de capacitar para se sair bem nas relações com o outro; c) o caráter filosófico de discernir o verdadeiro do falso nos mais variados problemas; e, mais adiante no texto, d) a dialética como processo que permite a apreensão dos princípios, isto é, ocupar-se dos primeiros princípios próprios de cada ciência com a função de investigar, examinar as dificuldades para melhor discernir o verdadeiro do falso.

Convém lembrar que a retomada de argumentos da filosofia prática aristotélica, desencadeada pela publicação do artigo de Anscombe (1958), Modern Moral Philosophy, iniciou a reabilitação da ética das virtudes, encontrando solo fértil nas discussões éticas contemporâneas. Não nos parece exagerado, então, retornar às reflexões e ao modo de argumentar empreendidos por Aristóteles, especialmente em torno do silogismo prático, para melhor compreender certas argumentações e seu status epistemológico na comparação com as argumentações meramente opinativas, muitas sem fundamento, utilizadas e facilmente divulgadas pelos meios virtuais em nosso tempo. Mas entre essas opiniões existem aquelas que são consideradas inquestionáveis ou simplesmente aceitas como verdadeiras e compartilhadas por multidões e utilizadas nos diálogos e debates informais e formais.

O intento será, portanto, apenas caracterizar e identificar traços das funções das chamadas endoxa no silogismo prático ou dialético apresentado por Aristóteles a partir da versão básica, ainda que parcial, de sua concepção de endoxalidade, não só porque restrita à posição expressa na sua obra Tópicos e acrescida de uma rápida menção a um frequentado passo da Ética Nicomaquéia, mas também por não podermos cotejar aqui com os argumentos de outra obra aristotélica, especialmente no caso da Retórica. Sem pretender entrar, portanto, no debate da concepção integral de endoxalidade manifesta no conjunto das obras aristotélicas e da própria distinção entre argumento dialético e silogismo prático, tarefas demasiadamente amplas para serem tratadas neste trabalho, o objetivo será tentar compreender alguns aspectos da concepção de endoxa, apontar a presença desse tipo de opinião utilizada nos debates, vislumbrar possíveis aproximações e até possíveis contribuições com as reflexões de Aristóteles e assim poder voltar o olhar para nosso contexto contemporâneo, particularmente para avaliar aquelas afirmações (opiniões, informações, conhecimentos) de certas personalidades mediáticas, autoridades públicas ou mesmo formadores de opinião e os tais influenciadores digitais (influencers), numa perspectiva também filosófica.

O ponto de partida

Cabe situar a questão em causa e em sua origem. Se no conhecimento científico (episteme, que utiliza o método do silogismo demonstrativo) o ponto de partida são os primeiros princípios e as premissas primeiras, necessárias e indemonstráveis para conhecer as causas, então isso também pode valer para o âmbito do conhecimento prático, daquilo que não é necessário e universal, porque variável e contingente? Aristóteles responde, por exemplo, na Ética Nicomaquéia I 3 1094b, que nos assuntos de ética, economia e política o método não pode ser o mesmo das ciências exatas. Ele propõe que nos assuntos das “coisas humanas” deve-se usar o método dialético, entendido como uma técnica de argumentar cujo ponto de partida é certo tipo de afirmação opinativa chamada de endoxa. Ele é o primeiro a explicar a natureza, o uso e a função do termo, mas provavelmente este já era presente nos debates dialéticos de seu tempo, segundo Berti (2017).

Todos os estudiosos de ética sabem que o método dialético aristotélico utiliza como premissas as endoxa, que não são afirmações necessariamente verdadeiras, mas aceitas como prováveis. Porém, como ponto de partida do silogismo prático, elas (endoxa) podem conduzir a conclusões que também não são necessariamente verdadeiras e, portanto, isso difere da demonstração necessária do silogismo científico que visa ao conhecimento verdadeiro da episteme em sua condição de causalidade e necessidade. Nos assuntos “das coisas humanas”, do contingente, do acidental e do variável, Aristóteles utiliza a categoria “no mais das vezes”, não somente “o sempre” do universal e o necessário da episteme. A diferença básica estaria, então, no valor das premissas, conforme Aristóteles em Segundos Analíticos I 2 71b e em Tópicos I 1 100a.

Para entender o movimento dialético utilizado por Aristóteles, Stefani nos fornece uma adequada explicação:

À dialética cabe um tipo determinado de debate intelectual, e o tipo de argumento utilizado é aquele que se desenvolve através de perguntas e se dirige a outra pessoa. O debate é aberto com a formulação de uma questão, um problema, que admite duas possibilidades opostas de respostas. Tal questão deve ser respondida com uma afirmação ou com uma negação e tem por base alternativas opostas em torno de definições como: “Animal pedestre bípede é a definição de homem ou não é?” (Tópicos 101b30). A sequência do debate requer a resposta do interlocutor, que poderá ou ser afirmativa (por exemplo, que “animal pedestre bípede é a definição de homem”) ou negativa. Dependendo da resposta, o debate seguirá com a tentativa, pelo primeiro contendente, de fazer seu interlocutor cair em contradição ou de mostrar que a definição está incorreta, por exemplo.

(STEFANI, 2018, p. 96)

Por ser um diálogo, não um monólogo do tipo retórico, no próprio processo de troca de opiniões, argumentos e respostas ocorrem mudanças e desdobramentos que podem ganhar rumos diferentes. Os conteúdos das premissas dialéticas são considerados verossímeis, admitidos como críveis por todos, pela maioria ou pelos especialistas no assunto. O raciocínio dialético não pressupõe premissas necessariamente verdadeiras como no silogismo científico com suas premissas demonstrativas. No âmbito da dialética é preciso que suas premissas sejam aceitas desde o começo da discussão, pois “[...] quanto maior for a aceitação e quanto mais familiar parecerem as premissas, mais acertadamente é conduzida a argumentação” (STEFANI, 2018, p. 97).

Esse tipo de premissas tomadas como ponto de partida do silogismo dialético tem seu valor baseado em que fundamento? O que são e quais são as funções das endoxa em Aristóteles? As endoxa são distintas das opiniões gerais ou são um tipo de opiniões gerais? Mesmo sem podermos analisar e comparar para além da definição dada no início dos Tópicos, far-se-á algumas referências de possíveis passagens também de outras obras do estagirita, para facilitar-se a identificação de quais seriam as possíveis endoxa nos discursos atuais, apesar de todas as diferenças culturais e estruturais que temos em relação às do Mundo Antigo. Mas é bom lembrar que opiniões e argumentos são uma construção humana, especialmente em processos dialogais, e mesmo mudando as épocas os problemas tratados na reflexão discursiva humana se repetem em muitos aspectos. Por isso as distinções entre uma simples opinião sem fundamento (doxa) que pode expressar um conteúdo não verdadeiro, uma opinião reputada (endoxa) ou com aparência de ser uma endoxa e, mais ainda, uma opinião fundamentada cientificamente (episteme) permanecem válidas como critério lógico-discursivo, independentemente da época e da cultura.

Sem pretender, aqui, uma historiografia das interpretações, convém fazerem-se cinco breves considerações preliminares. A primeira consideração diz respeito à caracterização das endoxa, assumidas largamente pela tradição, como será visto abaixo. Essa caracterização partiu da obra Tópicos e ainda persiste, embora, quando se considera sob outra perspectiva e outras obras de Aristóteles, surjam dúvidas e as endoxa não pareçam ter uma caracterização definitiva, adequada ou mesmo suficiente para dar conta de forma completa da extensão desse conceito. A definição aristotélica dos Tópicos constituiria apenas uma parte, embora básica, das proposições consideradas endoxa. E essa parte seria chamada, segundo Seminara (2002, p. 275), de “endoxa de fato”, por tratarem-se de opiniões efetivamente aceitas e compartilhadas e pertencentes de fato a uma asserção, tendo em vista que a endossalidade não se identificaria somente com o compartilhamento de fato, mas também em outro tipo de asserção nominada de “endoxa de direito”.

A segunda consideração refere-se à interpretação do método dialético. Mesmo com o olhar focado na questão do método nos estudos aristotélicos das últimas décadas, isto é, na revalorização da dialética aristotélica nos estudos, sobretudo da filosofia prática, o método dialético foi tomado, por alguns filósofos e estudiosos, negativamente como “uma lógica da aparência” (como fez Kant) e menos negativamente como “verossimilhança”, ou como lógica do “provável”. Essa interpretação mais negativa pode ter partido da leitura de uma passagem do próprio texto da Metafísica, em que Aristóteles diz que

[...] os dialéticos e os sofistas exteriormente têm o mesmo aspecto do filósofo [...], e discutem essas noções, evidentemente, porque elas são o objeto próprio da filosofia. A dialética e a sofística se dirigem ao mesmo gênero de objetos aos quais se dirige a filosofia; mas a filosofia difere da primeira pelo modo de especular e da segunda pela finalidade da especulação. A dialética move-se às cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente; a sofística é conhecimento aparente, mas não real.

(Metafísica Γ, 2, 1004b)

Independentemente, por um lado, dessa tentadora interpretação negativa, de sua aceitação e, por outro lado, da devida reavaliação do papel da dialética nas obras de Aristóteles feitas nas últimas décadas, ainda assim parece que foi pouco o interesse pontual na noção das endoxa, pois quando tratada ficou restrita como uma matéria da dialética. Essa concepção negativista da dialética foi assumida, por exemplo, por estudiosos como Zeller (obra Die Philosophie der Griechen)3, Hamelin (obra Le système d’ Aristote)4, Robin (obra Aristote)5, Ross (obra com tradução em português Aristóteles)6 e Reale (Introduzione ad Aristotele)7, e foi na década de 60, com estudos como os de Owen (artigo Tithenai ta phainomena)8, Wieland (obra Die aristotelische Physik)9 e Aubenque (artigo Science, culture et dialectique chez Aristote)10, que se consolidou a percepção de que Aristóteles não fazia uso do método descrito nos Analíticos em seus tratados, isto é, o silogismo teórico, mas utilizava a dialética e seus instrumentos de investigação, inclusive em seus tratados de filosofia prática.

Começa, assim, com esses estudos, uma consideração menos negativa, mais técnica e útil da dialética como a arte de argumentar em direção à verdade, aplicada ao âmbito da ética, mas sem destronar a ciência apodítica. Então a dialética deixa de ser uma lógica do provável e da verossimilhança e se torna uma técnica para exame de teses propostas, teses divulgadas e correntes a serem examinadas, ou seja, as endoxa. É o que sugere, por exemplo, Eric Weil (1990), em “La place de la logique dans la pensée aristotélicienne” (publicado na Revue de Métaphysique et de Morale, em 1951), com a pretensão de ter devolvido às endoxa a sua identidade e recuperado a sua função. Assim, a atenção dos estudiosos volta-se para dois aspectos da dialética, ou seja, como forma (arte de argumentar) e como fim (sua utilidade para chegar ou ao verdadeiro ou ao falso também nos assuntos de filosofia prática).

No entanto, embora tenha dominado nas últimas seis décadas essa interpretação de buscar nos Tópicos a base metodológica também a respeito da ética aristotélica, outras interpretações surgiram a partir de considerações que enfatizam e se apoiam no próprio texto da Ética Nicomaquéia. A partir do texto de Owen (Tithenai ta phainomena), que evidencia a passagem metodológica de EN VII 1 1145b, permite-se progredir os estudos que vão dar maior consideração a esse passo da ética e menos atenção ou relação ao texto dos Tópicos, embora a interpretação predominante continue sendo a de um método dialético, como encontrado nos Tópicos.11

O importante aqui, e esta é a terceira consideração, não é propriamente o interesse na dialética enquanto método, mas entender alguns dos aspectos do que é e qual é a função das endoxa, mesmo que aqui fiquemos demasiadamente dependentes da concepção dos Tópicos I. Como foi traduzido o termo endoxon? Inicialmente, segundo Seminara (2002, p. 20), como “opiniões gerais, da maioria” e “opiniões prováveis”; depois como “opiniões notáveis” (ZADRO, 1974); como “opiniões reputadas” (BARNES, 1980) e, ainda, como “opiniões dignas de estima” (BERTI, 1995). Pereira (2001, p. 80, nota 5) sugere traduzir o termo por proposição “aceita”, rejeitando traduzir por “provável”, “verossímil”, etc. Independentemente da opção de tradução assumida, o termo endoxa é um adjetivo substantivado plural do singular “endoxos”, este traduzido como célebre, glorioso. Além da tradução, uma diferenciação entre doxa, endoxa e paradoxo parece ser também interessante. Sob o ponto de vista etimológico, o termo grego paradoxos é composto pelo prefixo para (ao lado de, além de, ou contrário a, oposto de) e pelo sufixo doxa (juízo não fundamentado, opinião de senso comum). Cícero afirmava que a palavra latina paradoxum era empregada pelos gregos em referência ao que os romanos consideravam assombroso, raro, ou que chocava o senso comum. Um paradoxo, segundo Sainsbury (1996, p. 1), “pode ser definido como uma conclusão inaceitável, derivada de um raciocínio aparentemente aceitável e a partir de premissas aparentemente aceitáveis”. Paradoxo, então, é o oposto do que alguém pensa ser a verdade, ou o contrário a uma opinião admitida como válida, ou também a ausência de nexo e coerência lógica. É uma afirmação ou proposição contrária à opinião comum, a mera doxa.

Diferentemente de Platão, parece que Aristóteles não considera problemático ou mesmo um obstáculo para chegar ao conhecimento científico quando se adota a postura metodológica de admitir que nem todas as opiniões são fundamentadas; da mesma forma assume que algumas dessas opiniões podem e merecem ser consideradas como válidas no plano cognoscitivo, enquanto outras devem ser rejeitadas. Mas isso não quer dizer que qualquer opinião pode ser aceita e menos ainda justificada, como ocorre em geral nas nossas mídias sociais, em que certos argumentos são do tipo falacioso se examinados à luz da ciência, como: “Fulano e beltrano tomaram ivermectina e cloroquina e não contraíram o COVID-19, portanto tomar tais medicamentos é uma eficiente proteção contra o vírus”; “Todos os políticos são corruptos e só visam seus próprios interesses”. Opiniões como essas são tomadas como se fossem premissas verdadeiras por multidões de pessoas, ademais se proferidas por alguém famoso ou que goza de certa autoridade, e não poucas vezes são utilizadas para seduzir multidões e ganhar o debate, geralmente respaldadas apenas por exemplos particulares de um simplório indutivismo ingênuo ou com intenção de enganar e ganhar o debate, conquistando a adesão das pessoas.

Sabemos que Aristóteles reconhece o valor no processo cognoscitivo das opiniões (doxa) para além de Platão, mas também sabemos que as endoxa têm mais valor de verdade e confiabilidade do que qualquer opinião, na medida em que atendem aos critérios da racionalidade lógica e da argumentação dialética. Outro aspecto merece ser destacado, nesta quarta consideração: Aristóteles recorre às posições dos filósofos precedentes, ao patrimônio da tradição, como podemos perceber, por exemplo, ao lermos a Metafísica, a Física, o De anima e a Ética Nicomaquéia. Uma questão surgiu entre os intérpretes: essas retomadas e discussões das doutrinas dos filósofos precedentes, realizadas por Aristóteles, são um confronto com as endoxa? É correto interpretar desse modo? Será que Aristóteles realmente considera tais opiniões como sendo endoxa? Ou apenas algumas dessas opiniões são endoxa? Uma das características dessas premissas é ser compartilhadas por reconhecidos famosos, como ele indica nos Tópicos I 1 100a. É bom lembrar que o termo deriva de doxa, que também pode significar “fama” e, nesse sentido, facilmente pode se tornar algo popular. Mas outra característica é que não podem ser contrárias às opiniões da maioria, como indica também nos Tópicos I 10 103b, porque não podem ser opiniões paradoxais. Talvez as opiniões de Empédocles e de Platão sobre os quatro elementos do mundo sublunar sejam exemplos de endoxa. Mas parece razoável afirmar que não seria adequado considerar todas as opiniões que Aristóteles discute, compara, exclui em parte ou no todo por não lhe parecerem consistentes racionalmente também como premissas endoxais.

Como quinta e última consideração, e aqui apenas como sugestão, seria oportuno verificar possível confusão em torno do significado das endoxa em comparação com doxa, com phainomena, tanto no texto de Aristóteles quanto na retomada desses passos por estudiosos posteriores. Talvez com melhor compreensão e clareza não apenas sobre esses conceitos (endoxa, doxa, phainomena), mas também na distinção entre episteme e sophia, cotejando com as discussões atuais entre ciência e filosofia, especialmente nas questões ético-políticas contemporâneas e seus critérios de demarcação entre o que é ciência e pseudociência, colher-se-ão melhores resultados. Aristóteles diferenciou a ciência (episteme) da mera opinião (doxa), e isso foi sempre explicado e compreendido ao longo da tradição filosófica, mas a distinção entre opinião (doxa) e opinião reputada (endoxa) parece que nem sempre foi adequadamente considerada pelos estudiosos, o que tem dificultado a adequada compreensão e o devido valor de verdade das próprias endoxa.

Aspectos da definição e da natureza das endoxa em Tópicos I

Em diversas obras12 Aristóteles recomenda o uso das endoxa, conforme o tipo de investigação a ser realizada, isto é, ao iniciar uma investigação deve-se estar atento a certo tipo de opiniões que parecem possuir caráter autoritativo sobre o assunto a ser analisado, considerando essas opiniões conjuntamente como ponto de partida e componentes da análise argumentativa dialética. Porém a caracterização menos problemática e que nos interessa aqui, ainda que restrita, é expressa nos Tópicos I, em que encontramos a conhecida definição, o ponto de partida e o lugar comum das análises dos estudiosos sobre o assunto.

Aristóteles, nesse sentido, afirma:

É dialético o silogismo que conclui de premissas prováveis [...]. São prováveis as opiniões que são assim reconhecidas por todos os homens, ou pela maior parte deles, ou pelos sábios, ou, entre esses últimos, seja por todos, seja pela maior parte, seja enfim pelos mais notáveis e ilustres.

(Tópicos I 1, 100a 25).

Primeiramente, premissas prováveis são premissas não necessariamente verdadeiras, podendo ser também falsas, isto é, não são premissas necessárias, como ocorre com as da ciência, que, além de ser universal, procede por meio de proposições necessárias e sua conclusão deriva dela mesma, não de outra coisa. Uma mera opinião significa que pode ser de outro modo, pois está no nível do especular, enquanto as endoxa têm certas qualidades que as distinguem das simples opiniões que podem ser falsas. Também existem as endoxa aparentes, que são falsas e integram certa modalidade de silogismo erístico, conforme explica Aristóteles (Tópicos, I 1, 100b 23-26; 101a 1) 13.

Interpretar (traduzir) e caracterizar as endoxa, no sentido de premissas/asserções (ou opiniões) prováveis, foi tarefa realizada por Boécio a partir dessa definição dos Tópicos. Percebe-se a diferença na comparação com as premissas do silogismo demonstrativo de que estas, para garantirem a verdade das conclusões, devem ser verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas, anteriores e causa das conclusões, conforme afirmado por Aristóteles em Segundos Analíticos I 2, 71b.14

Nessa definição dos Tópicos fica descartada a possibilidade de que todas as opiniões tenham os mesmos valor e grau de certeza (probabilidade e verossimilhança) e sejam consideradas per se justificadas pelo simples fato de apresentarem-se com tal pretensão de verdade. O que aparece claramente na definição, e parece ser condição, é a necessidade de consenso num duplo nível de exigência, ou mesmo como critérios de avaliação para ser uma endoxa o reconhecimento quantitativo e qualitativo expresso em três requisitos: a) a condição numérica; b) o reconhecimento da autoridade; e c) o reconhecimento da competência. No primeiro critério (a) podemos observar que o número daqueles que julgam determinada opinião como meritória de consideração deve ser muito significativo, isto é, “todos ou a maior parte” devem concordar de modo unânime ou quase unânime, pois não é suficiente uma maioria relativa, pouco expressiva e circunstancial. Para os critérios de autoridade (b) e de competência (c) o modelo são os sábios (oi sophoi), considerando também o fator numérico, pois deve ser aceita tal “opinião” por todos ou pela maioria. Mas há um acréscimo qualitativo de reconhecimento assegurado entre os sábios, aos “mais notáveis e ilustres”, pela autoridade e pela competência, provavelmente, do tipo de homem prudente e virtuoso (phronimos spoudaios), como o apresentado na ética.

Aqui, podemos interpretar em termos atuais e ler como sábios (para além dos filósofos) os cientistas, os estudiosos reconhecidos, os especialistas, não os inúmeros influencers e divulgadores de meras opiniões (doxa). Talvez possamos pensar nos resultados atuais alcançados nas ciências pelo consenso da comunidade científica como formadora de endoxa, mas certamente com menos facilidade de encontrarmos o equivalente do tipo prudente e virtuoso da ética aristotélica. Também poderíamos questionar se esses critérios são distintos ou alternativos, e mais: “por todos os homens”, quem são eles? Os “homens do povo”, a maioria popular que é a maior parte (oi polloi)? Ou parte dessa maioria? Talvez não seja a maioria popular, mas somente aqueles que eram considerados os cidadãos (oi polites)? E aqueles reconhecidos como sábios (oi sophoi) seriam menos problemáticos? Basta lembrar-se aqui de uma passagem da Ética Nicomaquéia I, 6, 1096a quando Aristóteles examina o bem universal e critica a teoria das Formas e sente a necessidade de justificar a sua atitude crítica, afirmando:

Seria melhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que se entende por isso, embora tal investigação nos seja dificultada pela amizade que nos une àqueles que introduziram as Formas. No entanto, os mais ajuizados dirão que é preferível e que é mesmo nosso dever destruir o que mais de perto nos toca a fim de salvaguardar a verdade, especialmente por sermos filósofos ou amantes da sabedoria; porque, embora ambos nos sejam caros, a piedade exige que honremos a verdade acima de nossos amigos.

(Ética Nicomaquéia I 6, 1096a 11-17)

Como foi mencionado acima, a definição no começo dos Tópicos parece inicialmente ser suficiente para compreender essa noção de endoxa. Porém, quando se considera o restante da obra e o uso das endoxa nos demais tratados aristotélicos, em que aparecem características diferentes e traços que não convergem totalmente com essa definição standard dos Tópicos, surgem não poucas dúvidas e parece faltar uma definição mais adequada e detalhada. Por exemplo, nesta outra passagem dos Tópicos I 1 104a, 10-12, afirma Aristóteles: “Ora, uma proposição dialética é uma questão em consonância com a opinião (endoxon) sustentada por todos, ou pela maioria, ou pelos sábios (todos os sábios, a maioria desses, ou os mais afamados entre estes) e que não é paradoxal [...].”

A própria função das endoxa de serem premissas do silogismo dialético, como afirmado na definição, é utilizada assim nos demais tratados? Já vai tempo que se especula se o próprio método dialético é o modo de discutir as próprias endoxa. Outra questão interessante é se a dialética seria apenas uma substituta do silogismo científico ou, enquanto método, as próprias endoxa poderiam ser identificadas com as teses a serem investigadas. Mas não seria melhor questionar algo básico, isto é, por mais reputáveis que sejam as endoxa, não continuam a ser opiniões proferidas por um ser humano enquanto homem?

Uma simples opinião, mesmo sendo de uma autoridade, não é garantia de verdade, como facilmente percebemos também hoje, e isso o próprio Aristóteles menciona ao retomar as ideias de seus predecessores, como podemos ver na Ética Nicomaquéia e na Metafísica, embora na definição de endoxa nos Tópicos seja identificada com a opinião dos sábios mais ilustres. Claro que as endoxa não são qualquer opinião para Aristóteles, pois são um tipo de opinião com valor agregado, porque consensuada e reconhecida por todos, ou pela maioria, ou pelos especialistas, os sábios. O valor de uma “opinião reputada” não vem dela mesma, mas de seu reconhecimento reputacional e de seu caráter compartilhado que, de certo modo, sobreviveu primeiramente ao perscrutar espontâneo da racionalidade coletiva e depois ao confronto da argumentação dialética, sempre respeitando os princípios primeiros e as regras lógicas do pensamento.

No âmbito da filosofia prática, que delibera sobre aquilo que é variável e contingente, tais opiniões reputadas são uma alternativa epistemológica que ao menos parecem indicar o consenso em torno de um assunto prático, ou de certo modo de proceder, que seja o melhor e mais próximo do verdadeiro e pode ser aceito ou refutado. No Livro X da Ética Nicomaquéia, quando Aristóteles critica e considera um disparate a posição, provavelmente de Espêusipos, que objetava “que o fim visado por todas as coisas não é necessariamente bom”, afirma: “Porquanto nós dizemos que aquilo que todos pensam é a verdade; e o homem que atacar essa crença não terá outra coisa mais digna de crédito para sustentar em lugar dela” (Ética Nicomaquéia X 2 1173a 1-3). Entretanto a opinião vulgar da maioria também pode estar enganada, e isso não é difícil de constatar, particularmente hoje, por exemplo, ao considerarmos os avanços científicos ao longo da História.

De Platão até as investigações deste século, o valor epistemológico da doxa é sabido e reconhecido, mas qual é o valor epistemológico das endoxa? Outra questão pertinente, mas que não podemos tratar aqui, é se há distinção entre silogismo prático e argumento dialético. Embora os comentadores de Aristóteles reconheçam que a reflexão sobre filosofia prática assume quase sempre a forma de um raciocínio dialético, em que as endoxa jogam um papel central, isso não quer dizer que a dialética assuma sempre a forma de um silogismo prático. A dialética não parte necessariamente de premissas que são verdadeiras “sempre” ou “no mais das vezes”, mas para o exercício dialético é fundamental que se reúnam o consenso e a autoridade que os Tópicos reconhecem nas endoxa.

Da mesma forma que o erudito Jacques Brunschwig, ao ler os Tópicos, usou o termo “endoxal” para traduzir o adjetivo grego endoxon, Berti inventou o termo italiano “endossale” como oposto ao corriqueiro “paradossale”. Aristóteles, então, diz que a premissa endoxal é verdadeira “no mais das vezes”, ou seja, não é “sempre”, como no sentido do necessário, mas, na maior parte dos casos, quase sempre verdadeira, devido à variabilidade dos bens, como indica no Livro I da Ética Nicomaquéia. Verossimilhança não é o mesmo que verdade, mas é verdade quase sempre, provável e mesmo altamente provável, e essa é uma das características das endoxa.

O meio de refutar algo considerado verdadeiro e estabelecer o que é verdadeiro cientificamente é função do raciocínio silogístico válido, não de raciocínios erísticos e sofísticos. Os raciocínios silogísticos dialéticos não se apoiam necessariamente em premissas verdadeiras, como no silogismo científico, mas também não partem de premissas paradoxais e raciocínios erísticos. Para Aristóteles, as endoxa têm o valor elevado de verdade – na medida em que atendem aos critérios estabelecidos (as regras lógicas de pensamento e as condições dadas na definição em Tópicos I) –, ainda que não sejam sempre verdadeiras, isto é, como verdade necessária, como os primeiros princípios demonstrativos, mas gozam de status valorativo de verdade semelhante ao das ciências, porém sem ser conhecimento científico. São tidas as endoxa como princípios verdadeiros, mas não de modo hipotético, como uma pressuposição hipotética.

Se as endoxa não são objetos de discussão, pois são premissas a partir das quais é possível discutir e argumentar sobre as teses defendidas por outros filósofos, isso não quer dizer que todas as opiniões dos filósofos precedentes sejam endoxa. Nesse caso, a famosa passagem em Ética Nicomaquéia VII 1 1145b 2-7, quando Aristóteles trata da incontinência (akrasia) e de seus contrários e refuta a tese do intelectualismo socrático, não pode ser por nós interpretada como se o estagirita estivesse revisando premissas endoxais, segundo sustenta Berti (2017). A interpretação de tentar compatibilizar a posição socrática da akrasia e os phainomena como sendo endoxa não parece ser adequada, segundo vários estudos. Sem pretender entrar no mérito dessa interpretação, tal equívoco interpretativo é precisamente explicado por Berti quando este analisa a seguinte passagem aristotélica:

A exemplo do que fizemos em todos os outros casos, passaremos em revista os fatos observados e, após discutir as dificuldades, trataremos de provar, se possível, a verdade de todas as opiniões comuns a respeito desses afetos da mente – ou, se não de todas, pelo menos do maior número e das mais autorizadas; porque, se refutarmos as objeções e deixarmos intactas as opiniões comuns, teremos provado suficientemente a tese.

(Ética Nicomaquéia VII 1, 1145b 4-8).

Argumenta, então, Berti (2017, p. 17-18):

Primeiramente, alguns estudiosos acreditaram que as “opiniões” que se deve colocar em discussão, indicadas nesta passagem pelo termo phainomena, são as endoxa e que, portanto, se deve “demonstrar” ou “comprovar” as próprias endoxa. Mas para Aristóteles as “opiniões” não são em absoluto endoxa, são simples opiniões (doxai) e as endoxa não precisam ser demonstradas, porque já valem por si mesmas, ou seja, são verdadeiras, senão sempre, certamente “no mais das vezes” e, portanto, agem como premissas, não como objetos de discussões. No mais, o verbo usado por Aristóteles nesta passagem a respeito das endoxa, isto é, deiknunai, não significa “demonstrar” (apodeiknunai), mas significa simplesmente “mostrar”, ou seja, exibir, apresentar, retomar as endoxa para avaliar à luz delas as opiniões em discussão. Claro que as conclusões alcançadas no final dessa discussão serão válidas não “sempre”, mas “no mais das vezes”, mas isso na filosofia prática deve nos satisfazer (aqui está a demonstração “suficiente”), porque mais que isso não é possível.15

A comparação visando à possível assimilação dessa noção do Livro VII da Ética Nicomaquéia, com a definição dos Tópicos, não parece, então, ser adequada nem contribuir para esclarecer a natureza das endoxa e, portanto, do próprio método dialético, segundo a perspectiva de Berti, que também está longe de ser consenso entre os estudiosos. Ainda que endoxa seja um princípio considerado e aceito por ser proveniente da autoridade de alguém reconhecido como prudente e virtuoso (phronimos spoudaios), o que interessa aqui, e é o ponto forte da concepção aristotélica dos Tópicos, são as diferenças e as semelhanças entre tipos de argumentos apresentados nos diferentes modelos e as estratégias metodológicas a serem compreendidas para poderem ser utilizadas nas investigações da ciência e nos assuntos de ética e política também em nossos dias.

Considerações finais

A importância de construir discursos científicos, ou os mais científicos possíveis, é um dos legados do pensamento grego não só para a ciência, mas também para a ética e a política, e, portanto, uma condição para a convivência e a organização da vida humana de modo mais harmonioso, justo e feliz. A questão do método, ou o modo de proceder na demonstração, ou a simples busca do melhor argumento para a boa tomada de decisão visando à boa ação moral e política, dependem diretamente do ponto de partida do raciocínio e da qualidade do debate argumentativo que implica sempre um interlocutor. Se o que é aceito como evidente não está apoiado no absoluto, então resta “o evidente para nós”, como ensinou Aristóteles. Isso exige muito mais do que meras opiniões de senso comum ou compartilhamentos nas mídias sociais e discursos retóricos sem fundamento, ou seja, é preciso do recurso de certo tipo de opinião, as “opiniões reputadas” (endoxa), e elas seriam uma alternativa razoável nas discussões das “coisas humanas”, segundo a abordagem aristotélica, quando devidamente identificadas, analisadas e aproveitadas ou não.

Além das caracterizações acima, a partir dos Tópicos, que constituem a própria definição das endoxa como primeiros princípios, outras características podem ser encontradas se consideradas as demais obras aristotélicas sobre o assunto, das quais não foi possível tratar aqui, no entanto podem ser indicadas resumidamente do seguinte modo: a) não são objetos de discussão, são dignas de estima e são reputáveis; b) são premissas a partir das quais se argumenta para discutir as teses dos outros filósofos; c) não podem ser confundidas com as opiniões dos filósofos precedentes; d) devem ser compartilhadas por todos ou pela maioria e, por isso, não podem contradizerem-se; e) a contraposição entre a opinião da maioria e a opinião de um único filósofo, por mais famoso que este possa ser, não origina uma contraposição entre endoxa, pois a opinião de um mero filósofo pode ser um endoxon somente se não for paradoxal, isto é, não contrariar a opinião da maioria.

Ao voltar o olhar para o plano discursivo atual, em debates formais ou informais altamente conectados pelo aparato tecnológico, facilmente pode-se perceber a dificuldade de utilizar a caracterização acima, embora uma das exigências parece ser facilmente atendida, a da aceitação de muitos, indicada pelo apoio da maioria. Na lógica da “sociedade da informação” e mesmo da “sociedade do conhecimento” tudo ou quase tudo é acessado, repassado, confundido e facilmente vira opinião aceita por multidões ou que parece ser a opinião de todos. Isso não é uma necessidade nem algo suficientemente discutido, dificultando a adequada comunicação que deveria ser regida pelas regras lógicas da boa argumentação dialética e, desse modo, a distinção entre o verdadeiro e o falso e a clareza de compreensão sobre o que pode ser considerado verdadeiro ou verossímil e o que é mentira ou fake news. Por isso o que é estimado e considerado digno de credibilidade e respeito, por cumprir os critérios estabelecidos para ser uma endoxa, tende rapidamente a cair no relativismo, no volátil e no efêmero, ademais quando apreciada superficialmente, sem as devidas distinções, e justificada em perspectiva excludente ou com interesses contrários aos princípios éticos e do bem-comum. Opiniões de todo tipo e matizes facilmente são “curtidas” e “compartilhadas”, independentemente se verdadeiras ou falsas, subvertendo a lógica e o bom senso. Até teorias científicas estabelecidas são questionadas ou consideradas falsas por grupos e seitas mediáticas que, facilmente, ganham os holofotes e a adesão de multidões, como no exemplo dos defensores de teorias conspiratórias, como as de terraplanistas e negacionistas.

Mesmo nesse cenário globalizado e de sociedades pluralistas, impregnado de argumentos falaciosos, de “pós-verdade”, de fake news, em que toda e qualquer opinião é tomada como valorosa, muitas vezes desconsiderando-se as próprias regras lógicas de pensamento, parece ser possível indicar a existência de endoxa. Por exemplo, nos Estados democráticos, com suas Constituições escritas, existem premissas que foram aprovadas pela maioria dos cidadãos, direta ou indiretamente. Talvez princípios como os direitos à vida, à saúde, à educação, ao trabalho, à alimentação, à propriedade, à liberdade de expressão e outros possam ser considerados endoxa do modo como definiu Aristóteles. Pode-se pensar também nos princípios dos direitos humanos acordados e compartilhados pela maioria dos povos e países, como os expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O sistema normativo de cada país, suas leis consideradas válidas e assumidas por todos, também parece cumprir os requisitos da definição de endoxa. A necessidade de dispormos de tais “opiniões reputadas” em nossos discursos e nossas deliberações não parece ser de pouca importância e poderia contribuir para melhorar a análise e a identificação dos meros discursos retóricos falaciosos e muitas vezes nada éticos do tipo “bandido bom é bandido morto”. Mas para isso é preciso no mínimo estar familiarizado ou dominar o processo dialético aristotélico, e ainda assim talvez não seja suficiente, pois para deliberar bem e agir virtuosamente no bem e na justiça é necessário ter uma boa formação do caráter e, portanto, possuir sabedoria prática (phronesis).

2“I social media danno diritto di parola a legioni di imbecilli che prima parlavano solo al bar dopo un bicchiere di vino, senza danneggiare la collettività. Venivano subito messi a tacere, mentre ora hanno lo stesso diritto di parola di un Premio Nobel. È l'invasione degli imbecilli” (ECO, 2015, tradução nossa).

3ZELLER, E. Philosophie der Griechen. Leipzig: O. R. Reisland, 1920-23. 3 v

4HAMELIN, O. Systeme d’Aristote. Paris: Librarie Félix Alcan, 1920.

5ROBIN, L. Aristote. Paris: Presses Universitaires De France (1944).

6ROSS, Sir David. Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987.

7REALE, G. Introduzione ad Aristotele. Bari: Laterza, 1974.

8OWEN, G. E. L. Tithenai ta phainomena. In: NUSSBAUM, M. C. (Ed.). Logic, Science and Dialectic. New York: Cornell University Press, 1986. p. 239–251.

9WIELAND, W. Die aristotelische Physik. Untersuchungen über die Grundlegung der Naturwissenchaft und die sprachlischen Bedingungen der Prinzipienforschung bei Aristoteles. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1992.

10AUBENQUE, P. “Science, culture et dialectique chez Aristote”, Congrès de Lyon : Actes du Congrès de l’Asso-ciation Guillaume Budé, Paris, 1960, pp. 144–149.

11Uma interessante análise sobre as interpretações que existem há várias décadas tem sido predominante a respeito do método da ética aristotélica e pode ser encontrada no artigo “Dialética e o Método da Ética em Aristóteles”, de Raphael Zillig (2018, p. 168), em que o autor tenta mostrar que “as origens dessa linha de interpretação estão assentadas na proposta de buscar nos Tópicos o marco metodológico para a ética de Aristóteles. No entanto, ao menos a partir da publicação do texto de Owen, é a passagem metodológica de EN VII 1 que passa a ocupar o foco dessa interpretação”.

12As endoxa podem ser identificadas nas seguintes passagens: na Ética a Eudemo I 3, 1214b, 30; I 6, 1216b, 26-35 e VII 1, 1235a, 30-32; na Ética Nicomaquéia I 5,1095a, 27-29 e VII 1, 1145b, 5; e na Retórica I 2, 1356b, 30-34.

13Apenas como sugestão, uma melhor apreciação implicaria analisar a posição aristotélica também na obra Elencos Sofísticos.

14Um excelente estudo analítico sobre a distinção e as proximidades entre a ciência (cujo método é a demonstração) e a dialética (com o método de investigação) pode ser encontrado na obra O conhecimento em Aristóteles, de Jaqueline Stefani (2018), inclusive mostrando as proximidades entre dialética e retórica e sua tese acerca da aquisição dos primeiros princípios.

15“Alcuni studiosi anzitutto hanno creduto che i «pareri» che si devono mettere in discussione, indicati in questo passo con il termine phainomena, siano gli endoxa e che si debbano quindi «dimostrare» o «comprovare» gli stessi endoxa. Ma per Aristotele i «pareri» non sono affatto endoxa, sono semplici opinioni (doxai) e gli endoxa non hanno bisogno di essere dimostrati, perché valgono già di per se stessi, cioè sono veri, se non sempre, certo «per lo più», e quindi fungono da premesse, non da oggetto, delle discussioni. Del resto il verbo usato da Aristotele in questo passo a proposito degli endoxa, cioè deiknunai, non significa «dimostrare» (apodeiknunai), ma significa semplicemente «mostrare», cioè esibire, presentare, richiamare gli endoxa, per valutare alla luce di essi i pareri in discussione. Certo, le conclusioni a cui si perverrà al termine di questa discussione saranno valide non «sempre», ma «per lo più», ma di questo in filosofia pratica ci si deve accontentare (ecco la dimostrazione «sufficiente»), perché fare di più non è possibile” (BERTI, 2017, p. 17-18, tradução nossa).

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Recebido: 27 de Agosto de 2021; Aceito: 31 de Maio de 2022

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