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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022038 

ARTIGOS

Do cristão moralista ao budista niilista: reflexões sobre a moral contemporânea a partir da Genealogia da Moral de Nietzsche

From the moralist christian to the nihilist buddhist: reflections on contemporary morals based on Nietzsche’s Genealogy of Morals

Daniel Bittencourt Portugal1 

Marcos Namba Beccari2 

1Professor da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ. Doutor em Comunicação pela UFRJ.

2Professor do Setor de Artes, Comunicação e Design da UFPR e do PPGDesign da UFPR. Doutor em Educação pela USP.


Resumo

Este artigo visa refletir sobre a moral contemporânea a partir da ética de Nietzsche, tendo como foco principal a sua Genealogia da Moral e, como contraponto a ser problematizado, o livro The weariness of the self, do sociólogo francês Alain Ehrenberg. De início, para analisar alguns tipos morais relevantes na primeira obra, revisamos o itinerário genealógico entre a “vontade de verdade” cristã e o niilismo budista (ou “ceticismo em matéria de moral”), destacando ainda alguns comentários de Nietzsche em torno de Kant e o utilitarismo inglês. A autocrítica kantiana do conhecimento, afinal, manteve intacta a valoração negativa (cristã) da vida ao não questionar o valor em si da verdade. Por sua vez, ao arrogar o Bem definitivo à felicidade, o utilitarismo inglês tornou a compaixão cristã compatível com o “ceticismo em matéria de moral”. A partir disso, argumentamos que a nova figura moralmente exemplar – não sendo mais a do cristão, alvo principal da genealogia nietzschiana – é a do budista, uma vez que este adere integralmente ao niilismo. Em um segundo momento deste estudo, problematizamos a tese de Ehrenberg, segundo a qual a figura do “indivíduo soberano” teria, hoje, se tornado hegemônica sob a égide da categoria da depressão. Não sendo concebível, sob o prisma nietzschiano, tal “indivíduo soberano” deprimido descrito por Ehrenberg, observamos, por fim, que é o niilismo que efetivamente se prolifera hoje: a partir da ilusão de superação total da moralidade, a moral contemporânea cultiva a fraqueza e o cansaço fisiológico por meio de um programa de combate irrestrito ao sofrimento.

Palavras-chave Nietzsche; Genealogia da Moral; Niilismo; Indivíduo soberano

Abstract

This paper aims to reflect on contemporary morals from the point of view of Nietzsche's ethics, especially its development in On the Genealogy of Morals, and, as a counterpoint to be discussed, from the book The weariness of the self by the French sociologist Alain Ehrenberg. Initially, to analyze some relevant moral types in the first work, we review the genealogical itinerary between the Christian “will to truth” and Buddhist nihilism (or “skepticism regarding moral”), highlighting some comments by Nietzsche about Kant and English utilitarianism. Kant's self-criticism of knowledge, after all, kept the negative (Christian) valuation of life intact by not questioning the value of truth itself. English utilitarianism, in turn, by arrogating the ultimate good to happiness, made Christian compassion compatible with the “skepticism regarding moral”. From this, we argue that the new morally exemplary figure – no longer being the Christian, the main target of Nietzsche’s Genealogy – is the Buddhist, since it fully adheres to nihilism. In a second moment of this study, we problematize Ehrenberg’s thesis according to which the figure of the “sovereign individual” would have today become hegemonic under the aegis of the category of depression. Since such a depressed “sovereign individual” described by Ehrenberg is not conceivable under the Nietzschean prism, we argue, finally, that it is nihilism that effectively proliferates today. Basing itself on the illusion of the complete overcoming of morality, contemporary morals cultivate weakness and physiologically exhaustion through an unrestricted program for eliminating suffering.

Keywords Nietzsche; On The Genealogy of Morals; Buddhist; Nihilism; Sovereign individual

Introdução

O sociólogo francês Alain Ehrenberg (2010) sugere, em seu livro La Fatigue d'être soi [A fadiga do eu], que o indivíduo soberano imaginado por Nietzsche na Genealogia da moral se tornou uma realidade hoje. Por meio de um questionamento dessa afirmação, o propósito deste artigo é refletir sobre a pertinência da ética nietzschiana para se pensar a moral contemporânea. Em contraposição à tese de Ehrenberg, sustentaremos que a figura que melhor descreve, na obra de Nietzsche, o tipo exemplar da moral contemporânea é a do budista.

Para sustentar o argumento em questão, realizaremos, a seguir, um estudo atento do que identificamos como duas das principais figuras de negatividade ética na filosofia de Nietzsche (e, mais particularmente, na Genealogia da moral): o cristão e o budista. Em seguida, procuraremos mostrar que se houve, ao longo do último século, uma ruptura com a moral tradicional no ocidente, trata-se da passagem de uma moral que pode ser representada pela primeira figura para uma moral que pode ser representada pela segunda. E, claro, não é mera coincidência que justamente o budismo ganhe cada vez mais força em nossa cultura...

Do tipo cristão ao tipo budista

O cristão e o budista interessam a Nietzsche na Genealogia da moral principalmente enquanto tipos de indivíduos, ou figuras representativas de certos estados fisiológicos. O termo fisiológico indicando, aqui, não um sistema corporal encarado de modo mecanicista ou cientificista, mas os impulsos (ou forças, ou vontades de potência) em conflito que são o indivíduo.3 Isso exclui de imediato a ideia de um indivíduo sempre igual a si mesmo. É como efeito do conflito de forças que uma consciência precária e mutável se desenvolve, a qual inevitavelmente olha para si e para o mundo a partir de determinados valores.4

Certos estados fisiológicos estimulam a adesão a certos valores, na medida em que esses valores promovem, fortalecem ou se harmonizam com tal estado. Assim, os valores a que um tipo de indivíduo adere aparecem como pistas importantes para se investigar sua fisiologia. Como Nietzsche (2006, V, § 1) propõe no Crepúsculo dos ídolos, os valores devem ser encarados como sintomas. Mas, assim como ocorre na semiologia médica, um sintoma pode indicar diferentes estados, motivo pelo qual é preciso não apenas analisar os próprios valores, mas também seu significado para certo tipo de indivíduo – o termo significado indicando, aqui, o porquê (inconsciente, na maior parte das vezes) da adesão a certos valores ou ideais.

É por isso que, na Genealogia da moral, após uma minuciosa análise da moral – ou, mais precisamente, de uma moral, a moral ascética, que, porém, pretende-se única, afirmando sempre, tacitamente: “eu sou a moral mesma, e nada além é moral!” (NIETZSCHE, 2005, § 202) –, o filósofo sente necessidade de colocar a pergunta: “o que significam ideais ascéticos”? Essa questão, encarada genericamente, já se encontra respondida nas dissertações anteriores5. Na terceira dissertação – que a pergunta em questão intitula – o intuito do filósofo é elencar significados diversos para tipos diversos, ou seja, motivos de adesão diversos a tal moral. Interessa-nos aqui a significação dos ideais ascéticos que Nietzsche propõe para os filósofos, para os sacerdotes, para os santos e para os fracos – os “fisiologicamente deformados e desgraçados” (NIETZSCHE, 2009, III, § 1).

Para os filósofos, os ideais ascéticos significam “algo como instinto e faro para as condições propícias a uma elevada espiritualidade”; para os sacerdotes, “seu melhor instrumento de poder”; para os santos, “um pretexto para a hibernação” ou para “seu descanso no nada”; para os fracos, “uma tentativa de ver-se como ‘bons demais’ para este mundo, [...] sua grande arma no combate à longa dor e ao tédio” (ibidem).

Essa questão da significação dos ideais nos leva a refletir então sobre o escopo de categorias como cristão e budista, que são também utilizadas por Nietzsche como tipos. Se o cristão e o budista são também tipos, não designando apenas uma adesão explícita aos preceitos cristãos e budistas, qual a relação deles com o sacerdote, o filósofo, o santo, o fraco etc.? Sem dúvida, o cristianismo e o budismo significam coisas diferentes para cada um desses tipos, mas Nietzsche também se utiliza do cristianismo e do budismo – e das figuras do cristão e do budista – para pensar em diferentes formas assumidas pelos ideais ascéticos (ou ideais da abnegação e da compaixão, já que os ideais budistas não seriam propriamente ascéticos).

Como observa Nietzsche (2007, § 20) em O anticristo, cristianismo e budismo “se equiparam enquanto religiões niilistas – são religiões de décadence –, mas divergem do modo mais notável”. Nesse trecho, Nietzsche classifica tanto o cristianismo quanto o budismo como niilistas, mas veremos que é somente esse último que pode ser classificado como propriamente niilista, pois se as duas doutrinas são formas de lidar com niilismo, apenas o budismo o abraça, concebendo uma prática (uma dietética, como prefere Nietzsche) a ele adequada. O cristianismo busca se afastar do niilismo recorrendo à força da vontade de vingança para estimular o apego a um Bem imaginário e a uma interpretação moral do mundo.

Lancemos, então, um olhar mais atento às propostas de Nietzsche na Genealogia da moral. Como as referências ao cristianismo são incontáveis, vejamos como o budismo ou o budismo e o cristianismo em conjunto aparecem em alguns dos aforismos. Logo no prólogo, ao questionar o valor da compaixão e da abnegação, Nietzsche escreve:

[...] eu compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura europeia; como seu caminho sinuoso em direção a um novo budismo? A um budismo europeu? A um – niilismo?

(NIETZSCHE, 2009, Prólogo, § 5).

O espraiamento e a “evolução” da moral da compaixão estariam levando a cultura europeia na direção de um budismo, aqui equacionado ao niilismo. Diagnóstico semelhante é apresentado no fragmento póstumo de 1885-1886, que se tornou o primeiro aforismo do polêmico Vontade de poder. Para a chegada do niilismo, escreve Nietzsche (2008, I, § 1): “Ceticismo em matéria de moral é o decisivo. A derrocada da interpretação moral de mundo, que não tem mais nenhuma sanção depois de ter tentado refugiar-se no além: termina em niilismo. ‘Nada tem sentido algum’ [...], traço budista, nostalgia e ânsia pelo nada”.

Nesse trecho fica mais clara a noção de que é a derrocada da interpretação moral de mundo (cristianismo) que leva a um niilismo (budismo). Para compreendermos melhor tal passagem, vale atentar também para a comparação da passagem de um “refúgio no além” para um racionalismo, tal como Nietzsche diagnostica na Europa de seu tempo e como ela teria ocorrido na Índia, mais de dois milênios antes:

O ateísmo incondicional e reto [...] não está em oposição [ao ideal ascético ruim], como parece à primeira vista; é, isto sim, uma de suas formas finais e consequências internas – é a apavorante catástrofe de uma educação para a verdade que dura dois milênios, que por fim se proíbe a mentira de crer em Deus (O mesmo desenvolvimento na Índia, em completa independência e por isso com algum valor de prova; o mesmo ideal levando ao mesmo fim; o ponto decisivo alcançado cinco séculos antes do calendário europeu, com Buda, mais precisamente, com a filosofia Sankhya, em seguida popularizada por Buda e transformada em religião).

(NIETZSCHE, 2009, III, § 27).

A associação entre o budismo e o racionalismo científico torna mais complexa a concepção da passagem do moralismo cristão para o niilismo budista. Vale observar que, no trecho acima citado, Nietzsche aponta de maneira específica para a filosofia Sankhya6. Tal filosofia seria o análogo budista (e, antes, hinduísta) do racionalismo científico. De acordo com a Encyclopedia of Indian Philosophies (LARSON; BHATTACHARYA, 2010), a filosofia Sankhya (ou Samkhya) caracteriza-se por um dualismo radical e por seu racionalismo. O próprio termo Sankhya pode ser “relacionado a números, enumeração ou cálculo” (ibidem, p. 3)7, embora, quando indica uma corrente de pensamento, nomeie “um sistema específico de modo de filosofar dualista que procede de um método de enumeração dos conteúdos da experiência e do mundo com o objetivo de alcançar uma liberação radical da frustração e do renascimento” (ibidem). Outra característica importante de tal filosofia é a desconsideração dos deuses, que nela não desempenham papel algum.

Nietzsche encontra na filosofia Sankhya, então, uma excelente analogia para o racionalismo científico que floresce em sua época na Europa – e que continua em pleno vigor hoje. Tanto um quanto outro são sistemas racionalistas que, longe de se oporem aos ideais ascéticos, são “uma de suas formas finais e consequências internas” (NIETZSCHE, 2009, III, § 27). Neles encontramos a “vontade de verdade” sustentando-se por si mesma, sem depender de um Deus (ou qualquer outro “refúgio no além”), que antes lhe servia de base. E se, no que diz respeito ao racionalismo científico, seu caráter niilista não é tão evidente, a filosofia Sankhya aparece como uma analogia frutífera, pois nela não se disfarça o objetivo de alcançar “uma liberação radical da frustração e do renascimento” – ou seja, o objetivo de chegar ao nada.

Cabe indagar, porém, se a vontade de verdade e o “ceticismo em matéria de moral” (decisivo para o niilismo, como vimos) se harmonizam ou se opõem. Se voltarmos ao aforismo 25 da terceira dissertação da Genealogia, veremos quem Nietzsche enxerga como grande representante e impulsionador do racionalismo científico (ao menos pelo viés da ciência “inatural”, como Nietzsche se refere à autocrítica do conhecimento, em oposição às ciências naturais): Kant.

É certo que, desde Kant, os transcendentalistas de toda espécie ganharam novamente a partida – eles se emanciparam dos teólogos: que felicidade! – Kant lhes mostrou o caminho secreto através do qual podem por iniciativa própria e com o maior decoro científico, perseguir doravante “os desejos de seu coração”.

(NIETZSCHE, 2009, III, § 25)

Se Kant é a figura representativa da vontade de verdade científica (ou pelo menos de uma de suas facetas), está claro que, com tal racionalismo científico não tem lugar um ceticismo em matéria de moral. Mas será ainda este o racionalismo científico que hoje ganha força? Não seria preciso diferenciar entre a verdade científica que sustenta ainda, mesmo que disfarçadamente, “um valor em si da verdade” (ibidem, § 24, grifos do original), e a verdade científica instrumental que se afasta de qualquer valor em si, mesmo o da verdade, e se submete a um ceticismo niilista? É com o ceticismo niilista, afinal, que todos os fins parecem duvidosos e aquilo que é essencialmente um meio, o prazer, transforma-se em fim paradoxal.

A figura representativa de tal hedonismo na obra de Nietzsche é o inglês – uma referência clara ao utilitarismo. O homem imaginado pelo utilitarismo, afinal, é aquele que enxerga o grande “Bem” na felicidade – da maioria: ressonância da moral da abnegação e da compaixão que pede ainda ao agente um desinteresse. Não espanta que tal moral tenha apelo àqueles que já não conseguem interessar-se por si mesmos. Mas, seja o fim eleito a própria felicidade ou a da maioria, o ponto é que seria preciso encarar a felicidade como o grande porquê de todos os humanos, quando se trata de um porquê paradoxal a que apenas niilistas (justamente aqueles a quem falta um porquê) se apegam: “Tendo seu porquê da vida, o indivíduo tolera quase todo como – o ser humano não aspira à felicidade; somente o inglês faz isso” (NIETZSCHE, 2006, I, § 12, grifos no original).

Com o racionalismo utilitarista, então, estamos mais distantes do cristianismo e mais próximos do budismo. No racionalismo científico que Kant representava a verdade continua, mesmo sem Deus, a sustentar uma moral da abnegação que dá grande valor à dor – com efeito, o próprio Kant, ao elaborar sua perspectiva moral sustentada no imperativo categórico, reconhece que, uma vez que o agir segundo regras universais tem como consequência evidente o não agir com base nas próprias inclinações, o sentimento mais provável de acompanhar a ação moral é a dor (KANT, 2016, p. 117 [I, 3]). O Bem, portanto, está relacionado à dor e é sustentado por uma verdade. No racionalismo utilitarista a valoração se inverte.8 Contudo, mais importante do que tal inversão, para Nietzsche, é o fato de que nada mais subsiste para além do valor do prazer ou da dor.

O “predomínio do sofrimento sobre o prazer” ou o inverso (o hedonismo): ambas as doutrinas são, elas mesmas, precursoras do niilismo...

Pois aqui, em ambos os casos, não se estabelece nenhum outro sentido último senão a manifestação de prazer e dor.

Mas assim fala uma espécie de homem que não mais se atreve a estabelecer uma vontade, uma intenção, um sentido: – para toda espécie de homem saudável o valor da vida não se mede absolutamente com base nessas coisas secundárias.

(NIETZSCHE, 2008, I, § 35, grifos do original).

Assim, apesar da valorização do prazer em contraposição à valorização da dor, característica da moral da abnegação, observamos uma vez mais a proximidade das duas formas de valoração (hedonista e ascética). De resto, como Nietzsche observa no aforismo 20 da terceira dissertação da Genealogia, é preciso compreender que a moral da abnegação floresceu justamente como uma espécie de último recurso frente ao niilismo – “o homem prefere ainda querer o nada a nada querer...“. O sacerdote ascético guiou os degenerados com procedimentos que envolviam “a incompreensão voluntária do sofrer” e “a reinterpretação do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo” e, assim, venceu o perigo do niilismo, pois, então, “já não havia queixa contra a dor, ansiava-se por ela; ‘mais dor! Mais dor!’” (NIETZSCHE, 2009, III, § 20, grifos do original).

Com a derrocada dessa forma de valoração ascética que se consolidou com o cristianismo, prevalece-se, então, a falta de sentido (o niilismo budista). Mas há um processo de derrocada. O ascetismo racionalista no estilo kantiano e o hedonismo racionalista no estilo inglês podem ser encarados como fases dessa passagem que Nietzsche vê acontecendo em sua época – o primeiro como um cristianismo sem Deus, o segundo como uma variação do budismo que ainda valoriza, talvez, mais o prazer do que a fuga do sofrimento, ao menos até que o “princípio do não dano” de Stuart Mill ganhe a dianteira. No fim, podemos dizer do utilitarismo o mesmo que diz Nietzsche do budismo no Anticristo: trata-se de uma “religião positivista” que “já não diz ‘luta contra o pecado’, mas, conferindo inteiramente o direito à realidade, ‘luta contra o sofrimento’. Deixa já atrás de si – e isso distingue-o profundamente do Cristianismo – o auto-engano dos conceitos morais” (NIETZSCHE, 2007, § 20). E é razoável supor que as condições fisiológicas que impulsionam hoje o utilitarismo sejam também semelhantes às que teriam impulsionado o florescimento do budismo na Índia:

[...] primeiro, uma excitabilidade enorme da sensibilidade, que se exprime como refinada capacidade de sofrer; depois, uma hiperespiritualização, uma vida demasiado longa nos conceitos e processos lógicos, em que o instinto pessoal foi lesado em proveito do “impessoal” [...]. Em virtude destas condições fisiológicas, surge uma depressão: Buda luta contra ela [...].

(ibidem).

Considerando os diagnósticos de Nietzsche, não parece surpreendente que o budismo utilitarista que subsiste hoje esteja intimamente conectado ao espraiamento da depressão9, como veremos na próxima seção. E não se trata mais do utilitarismo de um jurista racionalista como Bentham, nem mesmo do utilitarismo mais romântico de Stuart Mill, mas de um utilitarismo sentimental no qual a figura central é, como propõe Paulo Vaz (2010), o sofredor em potencial que deve ser protegido, defendido, afastado de todo o sofrimento futuro, anestesiado de todo o sofrimento presente e recompensando por todo o sofrimento passado. Mas trata-se ainda de um utilitarismo, e um que silenciosamente criou raízes profundas. Como observa o psicanalista Charles Melman (2008, p. 31), “[...] volta-se [hoje] à filosofia inglesa sensualista do século XVIII. É divertido ver como, sem que a ela se faça referência particular, seus preceitos, hoje, se realizam”.

Adiante, ao analisar algumas propostas de Ehrenberg, voltaremos a refletir sobre a pertinência do tipo budista para caracterizar e compreender a moral contemporânea. O próprio título do livro em questão já nos fornece uma boa pista: quem, senão o tipo budista, é aquele que está fatigado com o próprio eu e dele quer se livrar?

Antes de passarmos para tal análise, porém, cabe voltar, brevemente, à questão, deixada em aberta no início desta seção, de saber como o tipo budista e o tipo cristão se relacionam com tipos como o sacerdote, o filósofo, o santo e o fisiologicamente degenerado. Embora não pareça existir uma relação bem-definida, podemos observar que os tipos cristão e budista indicam, na maior parte das vezes, os fisiologicamente degenerados, os decadentes – estes que, no caso do tipo cristão, aderem a uma moral que lhes serve como remédio (mas também como veneno, na medida em que promove sua degeneração na mesma medida em que trata seus sintomas) e, no caso budista, não aderem a moral alguma que tenha valor em si, apenas a valorizações instrumentais, compatíveis com o ceticismo em matéria de moral que caracteriza o niilismo. O tipo cristão, assim, é principalmente o homem ressentido10 como figura representativa do moralismo e o tipo budista é principalmente o homem cansado da vida e hipersensível ao sofrimento como figura representativa do niilismo.

O indivíduo soberano e o indivíduo deprimido

Ehrenberg (2010 p. 3, tradução nossa) estuda a depressão como categoria-chave para a compreensão de nossa experiência atual como indivíduos:

[...] a depressão é um estado mórbido que nos permite compreender a individualidade contemporânea e seus dilemas. Dentro da psiquiatria, a depressão é um entroncamento por excelentes razões: ontem, como hoje, os psiquiatras não sabem como defini-la e, por isso, lhe conferem uma rara plasticidade. A “escolha“ da depressão sobre outras categorias é o resultado de uma combinação de elementos internos à psiquiatria e de profundas mudanças normativas em nossos estilos de vida.

Como pode-se perceber pelo trecho, Ehrenberg não utiliza o termo “depressão” simplesmente aderindo ao sentido técnico que a psiquiatria lhe confere; antes, percebe a ligação entre esse sentido técnico/nosológico e o uso cotidiano do termo: de um lado, o sentido nosológico se espraia para o senso comum como forma legitimada de dar sentido ao sofrimento, de outro, na medida em que diferentes formas de sofrimento vão se enquadrando nesses padrões, as categorias diagnósticas também se expandem para abarcá-las. A depressão não é entendida, portanto, como signo de uma suposta entidade independente – a “doença” –, mas como indicativo de certa dinâmica social. Aqui, não estamos tão distantes da ideia nietzschiana de que o espraiamento de uma categoria valorativa como a de depressão pode revelar certa dinâmica fisiológica, pois já vimos que a noção de “fisiológico” em Nietzsche aponta também para o âmbito das “produções humanas” (ver nota 1). Isso não quer dizer, é claro, que Ehrenberg pense como Nietzsche. Ao contrário, argumentaremos adiante que, ao utilizar a figura do “indivíduo soberano” vislumbrada por Nietzsche como representativa do deprimido, Ehrenberg ignora uma dimensão fundamental da análise fisiológica nietzschiana que poderia ajudar a entender melhor o apelo atual da categoria de depressão para dar sentido a certos tipos de sofrimento.

A tese de Ehrenberg é a de que a depressão é a “patologia de uma sociedade cuja norma não está mais baseada na culpa e na disciplina, e sim na responsabilidade e na iniciativa” (ibidem, p. 8-9). A depressão aparece como um tipo de sofrimento característico do indivíduo que se constitui como sujeito frente ao imperativo da performance, da responsabilidade e da iniciativa e pensa sobre suas ações a partir das categorias do possível e do impossível. Já o pecado e a neurose – categorias-chave para a compreensão da experiência de ser um indivíduo em séculos passados – seriam tipos de sofrimento característicos do indivíduo que se constitui como sujeito frente ao imperativo da submissão a regras sociais estabelecidas e pensa (de diferentes formas nos dois casos) sobre suas ações a partir das categorias do permitido e do proibido. Como escreve Ehrenberg:

Do mesmo modo que a neurose ameaçava o indivíduo dividido por seus conflitos, dilacerado entre o permitido e o proibido, a depressão ameaça o indivíduo aparentemente livre dos tabus, mas certamente dilacerado entre o possível e o impossível.

(ibidem, p. 11).

Como pode-se perceber, portanto, Ehrenberg aponta para a passagem de um indivíduo forjado frente a fortes regras morais que ditam o certo e o errado para um outro tipo de indivíduo, cujos contornos o autor pretende analisar por meio de um estudo da história da categoria de depressão. É para dar conta desse “novo” indivíduo que Ehrenberg recorre à figura do indivíduo soberano proposta por Nietzsche. O autor faz referência a essa figura diversas vezes ao longo da obra, mas só se detém mais longamente em justificar tal referência no seguinte trecho:

Quando, em 1887, Nietzsche anunciou a chegada do indivíduo soberano, “com a ajuda da moralidade dos costumes”, ele enxergou nele um ser forte [...]. O indivíduo, livre da moralidade, criando a si mesmo por si mesmo e aspirando ao super-humano (agindo sobre sua própria natureza, superando-se, tornando-se mais que si mesmo) é agora nossa realidade. Mas, em vez de possuir a força dos Senhores, ele é frágil, cansado da sua soberania e cheio de reclamações. Ele não participa da Gaia ciência e da risada nietzschianas.

(ibidem, p. 218).

Notamos, de imediato, que, apesar das constantes referências ao indivíduo soberano, Ehrenberg precisa diferenciar o indivíduo soberano que ele acredita ter se tornado realidade do indivíduo soberano imaginado por Nietzsche em pelo menos um aspecto importante: o primeiro é “frágil, cansado da sua soberania e cheio de reclamações”, enquanto o último é um “ser forte”. Cabe perguntar, contudo, se essa diferenciação não corrói as próprias bases da soberania de tal indivíduo soberano. Ou, colocando a questão de outro modo: não seria a força uma das características definidoras do indivíduo soberano, de tal modo que esse indivíduo soberano fraco descrito por Ehrenberg é justamente um indivíduo não soberano – um niilista?

Para refletir sobre essa questão será necessário determo-nos mais demoradamente no segundo aforismo da segunda dissertação da Genealogia – no qual Nietzsche apresenta a figura do indivíduo soberano. Nietzsche se propõe, aí, a tratar da história da origem da responsabilidade. Continuando um trabalho de escavação que ele havia iniciado em Aurora – somos remetidos por Nietzsche a três aforismos de tal obra11 –, o filósofo mostra que, ao longo de quase toda a história do homem, vigorou a brutalidade da “moralidade dos costumes” – ou seja, uma moral na qual o “bom” é o que é prescrito pelos costumes e tudo o que é feito com base na imprevisibilidade da vontade individual é encarado como imoral. Tal moralidade dos costumes tem como objetivo imediato tornar o homem previsível, uniforme. Porém, em uma visada mais ampla, ela pode ser encarada como uma etapa necessária da “tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas” (NIETZSCHE, 2009, II, § 2) – tarefa que se completa posteriormente com a superação da moralidade dos costumes e o decorrente florescimento do indivíduo soberano, ou seja, o indivíduo responsável, que pode “responder por si como porvir” (ibidem, II, § 1, grifos no original).

O que caracteriza o indivíduo soberano, vale destacar, é a possibilidade da responsabilidade, equacionada por Nietzsche (ibidem, II, § 2) à capacidade de dar “[...] sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo ‘contra o destino’”. Observamos, então, que a força é uma das características básicas do indivíduo soberano, de tal modo que o indivíduo soberano fraco imaginado por Ehrenberg é uma contradição em termos.

Ainda assim, conseguimos compreender a figura delineada por Ehrenberg – o indivíduo fraco e ao mesmo tempo responsável por si mesmo – devido a um deslocamento no sentido do termo “responsável”. O indivíduo atual é responsável por si na medida em que sua vontade individual não é mais aprisionada a todo custo pela moralidade dos costumes, e ele é instado pelo ambiente sociocultural no qual se insere a ser responsável por si mesmo, desde que observe alguns preceitos morais gerais, especialmente o de não causar sofrimento a outros. Estando moralmente pressuposta, essa nova responsabilidade não deve ser encarada como uma superação da moralidade dos costumes nem como um subterfúgio para salvaguardar o cerne da moralidade em uma forma enfraquecida. Nesse sentido, a “liberação” da moral dos costumes que engendra a “responsabilidade” alardeada por Ehrenberg apenas dá seguimento a um movimento que o próprio Nietzsche já havia indicado:

Em relação ao modo de vida de milênios inteiros da humanidade, nós, homens de hoje, vivemos numa época muito pouco moral: o poder do costume está espantosamente enfraquecido, e o sentimento da moralidade, tão refinado e posto nas alturas, que podemos dizer que se volatilizou.

(NIETZSCHE, 2004, I, § 9).

A questão, porém, é que se equacionarmos essa responsabilidade negativa – o ser menos pressionado pela moralidade dos costumes – à responsabilidade positiva que caracteriza o indivíduo soberano, ignoramos uma distinção crucial para a compreensão da proposta de Nietzsche. É preciso observar que o efeito da derrocada da moralidade – e, portanto, do constrangimento dos costumes sobre o indivíduo – é binário: de um lado ele intensifica a fraqueza; de outro, força-a.

Para os fracos e degenerados, a consequência é a perda do último remédio contra o niilismo. Sem os valores universais e os procedimentos sacerdotais que lhe incutiam um querer – mesmo que fosse um querer o nada –, os fracos abandonam todo porquê e se dedicam apenas a evitar o sofrimento. Assim, como vimos na seção anterior, a figura do cristão é substituída pela do budista.

Para os fortes, porém, aqueles espíritos nos quais a longa brutalidade da moralidade dos costumes finalmente deu frutos, o efeito é outro: o enfraquecimento da moralidade dos costumes atua como um tônico que os estimula a superar a forma de valoração baseada na universalidade da moral e a criar um porquê de sua própria vontade. Eles se tornam, assim, capazes de “prosseguir-querendo o já querido” (NIETZSCHE, 2009, II, § 1) sem a necessidade de submeter-se a uma moralidade que os constranja a fazê-lo. Ou seja, conseguem se manter fortes o suficiente para tornarem-se a gênese de sua própria valoração.

Ao utilizar as categorias de “fracos” e “fortes”, vale sempre lembrar que elas não indicam uma suposta natureza ou essência de um indivíduo. Conforme destacado no início do texto, o próprio indivíduo é uma unidade precária e mutável, de modo que as noções de “força” ou “fraqueza” se aplicam somente a seu estado (não há, com efeito, sujeito permanente por trás dos estados) e pretendem indicar se os impulsos que essa unidade precária abarca estão se expandindo ou se dissipando e se estão coordenados entre si sob o predomínio de um único impulso ou se perdendo em conflitos internos. Além disso, a autonomia individual é sempre uma conquista, justamente um aumento de poder desses impulsos que, antes, encontravam-se subordinados a impulsos externos. Assim, fica claro por que o indivíduo que depende de uma força externa, a moral, para não cair em um estado de desagregação dos impulsos, pode ser categorizado, nesse sentido específico, como “fraco”. Ora, não é justamente esse o indivíduo que, uma vez enfraquecida a moral, perde a capacidade de querer – ou seja, fica deprimido?

Assim, podemos perceber que o indivíduo soberano e o indivíduo deprimido, embora possam ambos ser relacionados à derrocada da moralidade dos costumes, são, em aspectos importantes, tipos antagônicos. Não se pode dizer, portanto, como faz Ehrenberg, que o próprio indivíduo soberano é “frágil, cansado da sua soberania e cheio de reclamações”. O que ocorre é que a derrocada da moral dos costumes estimula o florescimento tanto do indivíduo soberano quanto do indivíduo deprimido, este, sim, frágil e cheio de reclamações.

Dos dois, o indivíduo deprimido é, sem dúvida, o tipo que mais prolifera-se. A depressão pode ser vista como categoria-guia da nova moral do rebanho, uma que, perdendo o sustentáculo dos costumes, pretende, paradoxalmente, sustentar-se na técnica. Nesse sentido, Ehrenberg tem razão em dizer que a dicotomia moral do certo e do errado é substituída pela do possível e do impossível. Enquanto a antiga fé dos sofredores lhes permitia crer que a moral os levaria na direção do certo e, consequentemente, à felicidade, a nova fé é mais direta (inclinação budista): ela faz crer que a técnica eliminará o sofrimento, tornando o impossível (a vida sem sofrimento), possível. Ora, a categoria de depressão, pensada – por meio do registro da psiquiatria – como uma doença, indica justamente a possibilidade de cura por meio das técnicas médicas e dos medicamentos por elas criados. Vista como um mal em si – já desvinculada das categorias do permitido e do proibido, portanto –, a depressão aparece atrelada à possibilidade de um tratamento que atue diretamente na regulação química de um cérebro que se encontra, supostamente, em “desequilíbrio”. A psiquiatria contemporânea (bem como as “ciências cognitivas” e as “neurociências” com as quais ela se mistura) exerce, portanto, função semelhante à das técnicas de meditação (e outras) budistas: extirpar o sofrimento. Olhando por esse viés, compreende-se melhor o grande interesse de tais “cientistas” em investigar o efeito da meditação sobre cérebro: em breve poderemos meditar por meio de pílulas – budismo biomédico do século XXI.

Observamos de que modo o indivíduo deprimido é, em aspectos importantes, o oposto do indivíduo soberano: sentindo-se sempre mal consigo, com o mundo, com a vida, o indivíduo deprimido não é capaz de, em termos nietzschianos, tornar-se responsável por si. E não pensamos, aqui, somente na depressão como embotamento radical dos afetos e do querer, mas também como categoria que permite ao sujeito pensar em si como, antes de tudo, um deprimido em potencial, um indivíduo frágil, vulnerável. Bodes expiatórios para explicar seu sofrimento, com efeito, não faltam, mas subsiste a esperança de que, seja por meio dos remédios, de uma “elevação da consciência” de inclinação budista ou mesmo do já abatido “progresso”, a felicidade reinará no futuro. Desse modo, podemos pensar no “deprimido” (ou seja, aquele que sofre de tal maneira a ser enquadrado/enquadrar-se na categoria de deprimido) como uma versão alternativa do tipo budista.

A filosofia de Nietzsche permite, assim, não apenas compreendermos esse indivíduo deprimido que hoje prolifera-se, mas, principalmente, ajuda-nos a perceber que a oposição crucial para um melhor entendimento da moral contemporânea não está entre o indivíduo feliz e o indivíduo deprimido. Este seria apenas uma fase posterior daquele, já que o indivíduo feliz é quase um niilista – aquele que precisa idolatrar um meio, o prazer, porque lhe falta um fim. A oposição crucial, observamos, se dá entre o indivíduo deprimido (tipo budista) e o indivíduo soberano, que supera a moral sem perder a força da vontade.

Considerações finais

Com o propósito de refletir sobre a moral contemporânea a partir da ética nietzschiana, sustentamos que a nova figura moralmente exemplar – não sendo mais a do cristão, alvo principal da Genealogia nietzschiana – é a do budista. Em um primeiro momento vimos que, sendo cristianismo e budismo considerados duas formas de lidar com niilismo, é o budismo que aderiu integralmente ao niilismo.

Para elucidar o itinerário genealógico entre a “vontade de verdade” cristã e o niilismo budista – “ceticismo em matéria de moral” –, recorremos a outras duas figuras que aparecem na Genealogia nietzschiana: Kant (ciência antinatural) e o utilitarismo inglês. A autocrítica kantiana do conhecimento, em primeiro lugar, manteve intacta a valoração negativa (cristã) da vida ao não questionar o valor em si da verdade. Por sua vez, ao arrogar o Bem definitivo à felicidade, o utilitarismo inglês torna a compaixão cristã compatível com o “ceticismo em matéria de moral”.

Uma vez traçado tal percurso genealógico, analisamos algumas propostas de Ehrenberg (2010), com o intuito de problematizar os contornos niilistas que há no “indivíduo soberano” que o autor acredita ter, hoje, se tornado realidade: livre da moralidade, mas cansado da sua soberania e hipersensível ao sofrimento. Tal indivíduo, defende Ehrenberg, seria ao mesmo tempo fraco e responsável por si mesmo: uma vez atenuado o constrangimento dos costumes sobre os indivíduos, o constante esforço na construção de si mesmo acabaria levando também a um enfraquecimento do querer – uma fadiga do eu que a categoria de “depressão” permite dar conta. Sob o prisma da proposta nietzschiana, contudo, a derrocada da moralidade não tem consequências unilaterais, de sorte que Ehrenberg estaria vendo a moral contemporânea com um olho só.

Em outros termos, o sociólogo francês equaliza num mesmo quadro o indivíduo soberano e o niilista, tipos antagônicos e inconciliáveis para Nietzsche. Com base na Genealogia, pois, a derrocada da moralidade dos costumes pode estimular o florescimento tanto do indivíduo soberano quanto do indivíduo deprimido, este, sim, niilista. Ocorre que, mediante o espraiamento cada vez mais amplo da depressão, é o niilismo que de fato parece proliferar-se na esteira de um utilitarismo moral – ou seja, a “nova reponsabilidade” descrita por Ehrenberg.

Se o indivíduo atual é socialmente solicitado a ser responsável por si mesmo – portanto “dono de si” e de suas vontades, sempre de acordo com preceitos morais gerais –, o recurso mais difundido para dar conta do sofrimento (não mais associado a um valor em si, mas sempre a bodes expiatórios e a esperanças diversas) reside na fé na técnica, seja a dos cuidados médicos, seja a de uma espécie de meditação despida de sua conexão com o transcendente (ou seja, a terapêutica). Tal fé na técnica não torna o indivíduo mais responsável por si mesmo. Pelo contrário, todo “querer por si próprio” é instrumentalizado em função do sofrimento em potencial, contra o qual é preciso proteger-se de maneira preventiva.

É esse movimento que explica, finalmente, a possibilidade da ascensão do tipo budista. Ao acreditar em uma moral supostamente independente dos ideais morais já abatidos, o indivíduo deprimido procura justamente isentar-se de todo sofrimento e, assim, entrega-se de peito aberto aos sacerdotes – sejam os de jaleco ou os de trajes orientais – que distribuem as novas cartas do jogo moral. Consolida-se, assim, o novo indivíduo budista: o que carrega em si a convicção niilista de superação da moralidade enquanto cultiva o cansaço em um programa permanente de combate irrestrito ao sofrimento.

3““Há um uso da palavra ‘fisiologia’ que é propriamente nietzschiano e ocorre no contexto da doutrina de vontade de potência [...]: processos fisiológicos enquanto luta de quanta de potência (impulsos ou forças) por crescimento. Assim, Nietzsche passa a considerar fisiológico não apenas corpos vivos, mas também o âmbito inorgânico e o âmbito das produções humanas, tais como Estado, Religião, arte, filosofia, ciência”“ (GEN, 2016, p. 237).

4Tal noção de “estado fisiológico” aparece, em Nietzsche, como uma recusa de se tomar os valores como um dado em si e, ao mesmo tempo, como um modo de remeter a um nível mais elementar: o próprio valor desses valores, as condições históricas de seu nascimento, desenvolvimento e transformação. Ver, a esse respeito: Bittencourt (2011); Machado (2017, p. 83-106).

5Cumpre observar que, dentre os problematizados em sua Genealogia, Nietzsche destaca os ideais de cunho cristão, como a compaixão, e democrático, como a igualdade entre os homens. O denominador comum de tais valores é o ressentimento.

6Em O anticristo, Nietzsche (2007, § 20, grifo do original) volta a propor conexão semelhante, apontando mais diretamente para o budismo, que figura, então, como “a única religião verdadeiramente positivista”.

7Esse e os demais trechos retirados de obras estrangeiras foram traduzidos pelos autores deste artigo.

8Sobre a crítica nietzschiana a Kant e aos utilitaristas, ver: Marton (1990, p. 95-160).

9Aqui, a noção de “depressão” é adotada no sentido de uma possível situação psicofisiológica, na esteira da Genealogia de Nietzsche. Não estamos usando ““depressão”“ no sentido psiquiátrico ou no de senso comum. Embora, justamente, o interessante seja observar como esses usos psiquiátricos e do senso comum se vinculam a certos estados fisiológicos. Para uma análise desse tipo, ver: Portugal (2019).

10O ressentimento é uma característica definidora do cristão, pois é por via do ressentimento que ele adere à moral. Uma discussão detalhada da noção de ressentimento em Nietzsche, que fugiria do escopo deste artigo, pode ser encontrada em: Paschoal (2014).

Referências

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Recebido: 30 de Julho de 2022; Aceito: 21 de Setembro de 2022

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