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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022002 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

O discurso fotográfico entre a doxa e o paradoxo

The photographic discourse between the doxa and the paradox

Maria do Carmo Serén1 
http://orcid.org/0000-0002-5062-9283

1Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2002) e doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2007). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. E-mail: mc.seren@sapo.pt


Resumo

Surgindo em 1839 como um processo técnico de representação da imagem, em meio amador e iluminista, a fotografia irá produzir um discurso popular que será exclusivo durante quase três décadas: a imagem fotográfica é bela como perfeita quando exata na imitação da realidade, clara e com informação formal do seu espaço e tempo. Este discurso popular pode incluir uma breve informação histórica sobre a autoria das invenções técnicas decisivas na fixação e reprodução da imagem. No último quartel desse século, vai-se definindo nas imagens dos amadores fotográficos uma aspiração artística, em vista da crescente industrialização dos seus meios, e surge uma teoria, o Pictorialismo, que sobrevaloriza o sujeito criativo do fotógrafo, coincidindo com novas formas do pensamento e da arte. Esgotada no geral a teoria após o fim da Primeira Guerra e, a partir de um novo olhar que incluiu a capacidade de a câmara imitar efeitos plásticos do cinema, o olhar subjetivo não mais abandonará a prática fotográfica, enquanto se multiplica a literatura fotográfica, suscitando o interesse de filósofos, pensadores, cineastas, psicólogos e psiquiatras desde o desenvolvimento da sociedade de massas. No último quartel do século XX, com inspiração pós-moderna, surge o padrão de uma história da fotografia como uma história de arte, com estilos e artistas-autores, que se tornará internacional com a difusão do ensino oficial da fotografia e com o seu discurso erudito. O objetivo deste trabalho é distinguir a leitura popular da erudita da imagem até o período da atual crise conjuntural e de passagem das técnicas da fotografia analógica para a digital (numérica), sem que fosse criada uma aprendizagem coincidente com essa alteração que exige a produção de algoritmos criativos.

Palavras-chave Discurso e leitura popular e erudita; Pluralidade da Fotografia; História da Fotografia

Resumé

Émergeant en 1838 comme um processus technique de representation de l’image, en milieu amateur et des Lumières, la Photographie produirá un discours populaire qui sera unique pendant près de trois décennies: l’image photographique est belle si parfaite quand elle est precise dans l’imitation de la réalité et elle est Claire avec une information formel de l’espace e du temps. Ce discours Populaire peut integrer une information historique sur la paternité des inventions techniques décisives pour la fixation et la revelation de l’image. Dans le dernier quart du XIXème siècle les amateurs photographiques développent dans leurs images une aspiration artistique, confrontation au industrialisme que facilite les travaux photographiques, produisant la première theorie photographique, le Pictorialisme qui esta aussi une valorisation du sujet, produteur de l’artistique photographique.. Cette theorie est épuisée vers la fin de la Guerre 14/18 et, dans l’esprit du Modernisme évolue un regard nouveau d’influence cinematographique. Le regard subjetif ira subsister à jamais dans la pratique photographique, pendant que se multiplie une litteratrure photographique que suscite l’interès des philosophes, penseurs, cineastes, psicologues et psyquiatres dés le devélollopment de la société de masses. Dans le dernier quart du XXème siècle, avec inspiration pós-moderne émerge le modèle d’ume histoire de la Photographie dans les cadres d’une histoire de l’Art, des styles and autheurs avec une rapidité international dans la diffusion de l’enseignement publique de la Photographie et que se mantient jusqu’ à nos jours. L’objectif de ce travail est de distinguer le discours et le lecture Populaire et savant d’unne image jusqu«à la période actuelle de crise de passage de la photographie analogique au numérique sans créer un apprentissage coincident avec le changement des moyens de production qui continuent à suivre les stgratégies de la photographie analogique et non la creation d’algorithmes créatifs.

Mots-clés Lecture populaire/ erudite; Pluralité/Histoires de la photographie

Resumen

El discurso fotográfico entre la doxa y el paradojo Aparecido en el 1839 como um procedimiento ténico de representación del imagen, en ambiente aficionado y iluminista, la Fotografia va producir un discurso de lectura popular que será exclusivo y durable durante tres décadas: la imagen fotográfica es bella, lo mismo que perfecta, cuando es precisa en la imitación de las realidad, clara y com información formal en su espacio y tiempo. Este discurso y lectura popular puede incluir una pequeña información histórica de la autoria de las invenciones técnicas terminantes en la fijación y circulación del image. En el último cuartel del siglo XIX se va definir en los medios aficionados una aspiración artistica en sus imagenes a razón del industrialismo que se vuelve teoria, el pictorialismo, sobrevalorisando el sujecto creativo del fotógrafo y coincidiendo com nuevas formas del pensamiento y del arte. Agotada, en la generalidad la teoria por fines de la 1ª Guerra y por razón de uma nueva mirada relevante de la capacidad de la cámara imitar los efectos del cine, la mirada subjetiva no más abandonará la percepción fotográfica, mientras se multiplica la literatura fotográfica, suscitando el interés de filosofos, pensadores, cineastas, psicologos y psiquiatras a partir del desenvolvimiento de la sociedade de massos. En el ultimo cuartel del siglo XX, com inspiración pos-moderna emerge el patrón de una narrativa histórica de la Fotografia como una Historia del Arte, com estilos y autores que se vuelve internacional com la difusión dela enseñanza publica de la Fotografia y que todavia permanece.

El objetivo deste trabajo es distinguir la lectura popular de la imagen de la erudita desde el origen hasta el actual periodo de confronto entre lo analójico y el digital numérico, sin que sea creado un aprendizaje coherente con este cambio en los medios de produción, pues los fotógrafos continuan siguiendo estrategias de la fotografia analójica y no la creación de algoritmos creativos.

Palabras-llave Lectura popular/erudita; Pluralidad/Histórias de la Fotografia

Abstract

Photographic discourse between doxa and paradoxe Appearing in 1839 as a technical process of representation of the image, in the amateur and enlightenment middle, Photography will produce a popular speech that will be exclusive for almost three decades: the photographic image is beautiful more perfect it is as an imitation of the reality. Clear and with formal information about time and space. This popular speech includes a short historical information about some authors of technical inventions that improved fixation and circulation image. In the last quarter of that century, as a sensibleness against Industrial making, amateur photographs define an artistic and creative sight supported with a photographic theory, the Pictorialism, that overvalues the creative subject coinciding with new forms of Thought and Art. When Pictorialism is exhausted after the 1st G. War, a new sight which includes the ability of the new camera to mimic cinema effects, the subjective sight will no longer abandon the photographic practice while the photographic literature multiplies itself with the interest of philosophers, thinkers, film makers, psychologists and psychiatrists since the developing of the mass society. In the last quarter of the XX century, with post-modern inspiration, it appears as an international pattern a new History of Photography treated as History of Art, with styles and authors, that still remains.

The objective of this work is to distinguish popular and scholarly photographic reading from its origins to the technological revolution that provokes a real crisis through the analysis of its greatest analysts. Taking into consideration our time, a period of numeric change, facing the new computational technology, that work with algoritms, image reading must change, but photographs and analysts repeat analog concept and strategies.

Keywords Erudite lecture/popular Reading; Plural objects/history of photography

Introdução

A leitura de uma imagem fotográfica exige um discurso e uma aprendizagem. Quando um livreiro aprecia um lote de fotografias, em álbum ou numa caixa de sapatos – a tradicional caixa de cartão para onde vão, no sótão ou nos arrumos, as imagens soltas já sem memória ou interesse –, classifica-as identificando apenas o seu suporte: álbum de família ou de viagens, de estereoscopia, de postais ou, nas imagens da caixa, carte-visite, cabinet, imagens estereoscópicas, Kodak, negativos em chapa de vidro ou celuloide… Se conhece um pouco do discurso técnico, pode separar as albuminas das sais de prata. Tentará ainda saber com um cliente amigo e conhecedor de fotografia quais as casas fotográficas reconhecidamente importantes que fazem parte do lote. Os suportes fotográficos, nomeadamente os do século XIX e inícios do XX, como os postais ou os quadrinhos encaixilhados do pictorialismo, interessam a colecionadores, tal como a fotografia documental e doméstica interessa aos historiadores.

Naturalmente, este discurso de classificação do suporte técnico ou mesmo artístico, muitos dos álbuns também o são – não é uma leitura fotográfica. Se esse livreiro comprou imagens ou álbuns de uma família com notoriedade que inclui imagens de lançamento de edifícios, instituições ou caminhos de ferro, no país ou nas antigas colónias, será tentado a falar com um conhecedor do discurso fotográfico que habitualmente está dentro não apenas da história da fotografia, mas ainda do seu contexto, já que a imagem fotográfica é um objeto social. É apenas assim que a fotografia fala, pois é um objeto contingente, que exige uma doxa que lhe é extrínseca.

Desde meados do século XX há uma ontologia da fotografia, com André Bazin (de 1945), onde a foto se diz um espelho datado de memória, mas de génese automática e, com Rudolf Arnheim, é consagrada com uma natureza inquiridora sobre a informação do tempo e do lugar que representa. O papel do sujeito sobrevalorizado levaria a excessos, como bem representa Minor White, admitindo que a imagem fotográfica representa apenas a vida interior do fotógrafo. Em breve, com a leitura que faz das suas imagens inovadoras o fotógrafo suíço Robert Frank, a imagem fotográfica que, desde o Positivismo e até os inícios do século XX era considerada como prova científica mesmo para os tribunais, passa a ser vista como ilegível em si mesma. Grande admirador dessas imagens opacas ao nosso sistema de entendimento, o ensaísta Régis Durand refere que a fotografia seria, simplesmente, uma investigação sobre a radicalidade das aparências, pois havia renúncia do saber, do enquadrar a foto num antes e num depois. Frank insistia em mostrar que a imagem fotográfica nada nos diz sobre o acontecer, o que o levaria a prosseguir no cinema. Estava-se no tempo da legitimação pela epistemologia, um fenomenologista como Merleau-Ponty atribuía ao sujeito de percepção uma dimensão histórica, sendo que cada período tecia uma rede de intencionalidades que o sujeito seguia na sua relação com os estímulos do mundo.

A crítica e o comentário fotográfico fizeram realçar a força do subjetivismo na leitura da imagem técnica e, naturalmente, da sua contingência, apesar da conhecida afirmação propalada pelo fotojornalismo de que vale mais uma imagem do que 1.000 palavras. A literatura ensaística da fotografia fala do ato fotográfico, da capacidade da imagem fotográfica ao suspender o instante da toma, contrariar as leis físicas do continuum do tempo. O tempo diverso suscitado pela foto (o seu pretérito intrínseco e seu futuro no observador), o tempo psicológico e a possibilidade de cura em diversas doenças neuropsíquicas através do seu visionamento, atraem uma doxa que vive essencialmente no discurso erudito, dos seus paradoxos explicados por conceitos obtidos do pensamento e da ciência e da sua evolução: a fotografia explica-se hoje pela Física Quântica, deixou Freud e segue Lacan, fez-se vanguarda do neoliberalismo com o pós-modernismo, recusou a História e as grandes narrativas, tornou-se eficaz.

Desdobra-se uma espécie de filosofia da fotografia que assenta na singularidade da imagem fotográfica, (do cut como suspensão da dinâmica cósmica, ao seu papel de sombra e simultaneamente ideia, reconverter o Platonismo). São mais as Histórias da Fotografia que surgem nas duas últimas décadas do século XX do que as Histórias da Filosofia, tão pertinente até então. Compreendia-se que as câmaras e as imagens fotográficas eram um meio de nos apropriarmos da realidade e igualmente um meio de a tornar obsoleta, como o irá repetir Susan Sontag. As fotos não são apenas aparência, mas realidades materiais, depósitos informativos, meios poderosos para virar as coisas contra a realidade, para a transformar numa sombra: são mais reais do que se pode supor.

O discurso fotográfico foi acompanhando os sistemas ordenadores da filosofia, da psicologia, da sociologia e da psicanálise. Nos anos trinta do século passado, um filósofo como Walter Benjamin demonstra como a imagem técnica, tornando banal o conhecimento das obras de arte, lhes fez perder a aura que possuíam como ícones resguardados. Paulatinamente, a habituação à fotografia que, com a sociedade de massas, se torna sempre presente pela publicidade, pelo aproveitamento político e pela ideia de culto, faz-nos olhar a realidade tão fragmentada como é da própria natureza da imagem fotográfica. O mundo e os aconteceres tornam-se o espaço criado pelo ecrã, a janela técnica. Na História da Filosofia que François Châtelet coordena nos anos setenta do século passado, lê-se no prefácio do volume sobre a Filosofia do século XX:

O que hoje se impõe são objetos despedaçados, quebrados, discordantes ou evanescentes do ponto de vista da tradição especulativa: o inconsciente, a linguagem, a ciência, (…) a guerra; o (ao que dizem) partido, a (ao que dizem) loucura, o (ao que dizem) crime, o (ao que dizem) primitivo, a arte como atividade, como máscara e como efeito.

(CHÂTELET,1997, p. 6).

Acrescenta que este novo espírito na filosofia, que introduzia os temas menores, parciais e comuns e não os sistemas ordenadores e sistemáticos do pensamento, representava, antes de tudo, uma prática do irrespeito contra ideias feitas, e citava exemplos dos principais filósofos dos anos setenta, Foucault (contra as instituições), Althusser (contra a Filosofia da História), Canguilhem (contra a noção de normalidade), Passeron (professor académico) ou Bourdieu (sociólogo) contra as suas mesmas especialidades, Deleuze (filósofo) e Guattari (psicanalista) desarticulando o triângulo edípico, ou Noam Chomsky e toda a filosofia anglo-saxónica, introduzindo a ironia na obra científica ou filosófica.

Mas seria um linguista e semiólogo, Roland Barthes, que com a sua última obra, já não estruturalista, A câmara clara, de 1980 que, para lá de definir o noema da Fotografia (isto foi), de modo bastante substantivo também clarificou a sua leitura através de dois conceitos metodológicos, o punctum e o studium. O punctum, porque a imagem fere o observador como uma picada e, como o fere psicologicamente, tem caráter subjetivo, afirma-se como uma emoção, o que liga Barthes a uma teoria filosófica fenomenológica e da consciência. O punctum pode ser orientado pelo reconhecimento e pela estranheza do retrato de alguém muito próximo: Barthes enunciou-o ao encontrar um retrato da mãe ainda muito jovem e que desconhecia, depois de ela morrer. Mas pode ser um elemento qualquer ou uma constelação de indícios, incluindo os estéticos, que nos emocionam e fixam neles o nosso olhar e a nossa emoção. De acordo com o método fenomenológico, depois desta pré-noção, o pensamento cognitivo parte para a análise para inquirir do tempo e do lugar, situar a foto, reconhecer ou identificar o contexto do evento. É o studium que nos dá uma leitura predominantemente cognitiva.

A quase evidência do processo e a eficácia dos conceitos, em tempos de inovadores estudos neurológicos que definiam a percepção como uma súmula da emoção e da cognição, mundializou este tipo de leitura até hoje, obrigando a uma aprendizagem mais aprofundada dos contextos históricos e culturais e, ainda, os diversos ensaios sobre fotografia que se tornaram obrigatórios nos cursos superiores, mestrados e doutoramentos em Fotografia. Aderem com entusiasmo à leitura fotográfica com os conceitos de Barthes os seguidores da fenomenologia europeia e os do pós-modernismo saído do Pragmatisno anglo-saxónico e do Neoliberalismo, que encontram num ensaio posterior de Barthes, La rethorique de l’image, a eficácia de uma análise de uma imagem publicitária que esclarece e coincide com os seus propósitos de ação. O noema de Barthes e os seus inovadores conceitos complementam a leitura de uma imagem mas não ultrapassam o modelo da história da fotografia que, em qualquer país, tende a regular-se, sistematicamente e até hoje, durante quase cinquenta anos, por um catálogo de exposição fotográfica do MOMA, que desenvolvia uma história da fotografia determinada pela existência em espécies fotográficas desse museu e na coerência que se defendia para as mostras e existências de um museu de arte: apenas mostrar ou guardar obras de arte, excluindo tudo o que o não fosse. O lugar de exposição atribuía a certeza de ser arte o que era exposto. Esta e a sequente identificação e caraterização das imagens fotográficas seguia o modelo da História de Arte Contemporânea. A crítica, nos anos oitenta, que lhe faz Rosalind Kraus, mostra como a concepção do museu influenciou não só artistas como fotógrafos, mas ainda determinou os discursos de leitura das mesmas – o que facilitou a rápida internacionalização do modelo e, em consequência, a entrada da fotografia nos museus e galerias de arte.

Esta é a leitura erudita da fotografia, objeto social e estético, pois a estética exerce-se, hoje, como elemento fundamental da vida e está presente tanto na fotografia de autor, revivalista ou cognitivista, como nas imagens fotográficas do documentalismo, fotojornalismo, turismo e publicidade. Tenta mesmo estar nas autorrepresentações da Net ou nas selfies do cotidiano doméstico ou publicitado.

O Modernismo tinha insistido na automatização da fotografia em relação à pintura, procurando aproximar-se das técnicas cinematográficas, mas definindo o objeto fotográfico como específico da captação da luz e representativo da representação do seu tempo. Paradoxalmente, a atual história da fotografia releva do acaso de uma exposição e procura ler nas imagens fotográficas uma sequência de estilos e correntes, quase todas de cariz pictórico, excluindo assim os diversos campos onde a fotografia progride na cultura como plural, já que a imagem sempre foi apropriada pelas diversas ciências e atividades e algumas, obviamente, escapam à intenção estética, como as do raio X ou da moderna imagiologia. No período do digital, a imagem tecnológica, em diversos suportes, ganha a leitura codificada da ciência ou arte que a representa, de forma particularmente funcional e operatória. Atingiu um papel decisivo tanto em diversas análises clínicas e diagnóstico e em diversas ciências e artes, e é fundamental na observação, hipótese e confirmação de cada investigação científica, exigindo aprendizagens e literaturas específicas.

1. A leitura da cultura fotográfica

A leitura da imagem fotográfica responde a uma cultura fotográfica que passa, antes de tudo, pela História da Fotografia que se expressa pela fotografia de autor. Há disciplinas práticas que procuram acentuar a sensibilidade e a estética, mas de fato, faz-se esse levantamento através de conhecidos casos de autores famosos. Os ensaios e análises publicados são sempre acompanhados de imagens que ilustram e apontam as diversas heranças da História da Fotografia. A leitura é fundamentalmente artística, o que tem, ainda, a sua origem tanto no fato de muitos dos fotógrafos, em meados do século XIX, serem pintores ou desenhadores ou conviverem com artistas plásticos que, sabendo da desvalorização da pintura da natureza provocada pela fotografia, lhes pediam imagens técnicas de paisagem, incluindo a urbana, flores, retratos, grupos e nus.

A descoberta de imagens técnicas de grande sensibilidade ou adequadas às novas correntes do último quartel do século, Realismo, Impressionismo, Pontilhismo ou Pós-impressionismo, levou os historiadores da fotografia a incluí-las numa história fotográfica artística, como o caso de Gustave Le Gray, Adolphe Braun ou Adrien Tournachon. Tratando-se de imagens para pintores, entende-se a procurada originalidade de abordagem. O caso do fotógrafo francês Atget, apesar de paradigmático de um desconhecimento dos seus objetivos como autor, tornou-o um referente da beleza e inovação dos enquadramentos e da escolha dos temas. Atget, no final do século XIX e inícios do século XX, com uma pequena casa fotográfica, tinha encomendas da Biblioteca Nacional Francesa ou do Palais Royal para elaborar séries da iconografia da cidade – edifícios, ruas e becos tendentes a desaparecer, ou estilos e estado de portas, montras e janelas, com interesse para a municipalidade. Algumas dessas imagens, conhecidas pelos artistas surrealistas, foram reconhecidas como a representação de objetos sem importância, tal como era ditado pelo seu projeto artístico. Após a morte de Atget, a fotógrafa americana Berenice Abbott, estudando em Paris com autores modernistas, recolhe imagens suas e publica-as de regresso aos Estados Unidos. Nunca mais Atget saiu das histórias internacionais da fotografia, salientando-se a beleza dos seus enquadramentos e os seus temas criativos.

Na realidade, a aspiração artística surgiu desde cedo na prática fotográfica, que produzia temas e géneros comuns à pintura. No último quartel do século XIX, acabaria por surgir, no âmbito de amadores fotográficos britânicos, a primeira defesa teórica da fotografia como arte, que foi, de resto, a primeira teoria e corrente especificamente fotográfica, o Pictorialismo, designação atribuída por um médico e fotógrafo amador, Emerson. A nova corrente pretendia produzir pictures, encenações prévias de imagens a construir a partir de diversos negativos ou encenações deliberadas pelo criador da imagem. Negava-se o papel decisivo da fotografia mecânica, objetiva, e produzia-se um quadro devido à imaginação e valor artístico do fotógrafo.

Os pioneiros da fotografia artística assumida como tal seguem as correntes pictóricas da época, neoclassicismo com Riylander e Pierce Robinson, neorromantismo com Júlia Margaret Cameron, naturalismo com Emerson. Robinson escreve obras como Do efeito artístico em Fotografia e funda com diversos amadores sociedades que comungam esta corrente fotográfica, com exposições internacionais pictorialistas que difundem rapidamente a corrente. Em Portugal é conhecida a obra citada de Robinson, publicada em fascículos na revista Arte Photográphica (1884-1885), publicada para preparar a tendência fotográfica na 1ª Exposição internacional fotográfica ibérica, em 1886. Robinson e Emerson tinham trabalhos seus na exposição. É uma corrente promovida e seguida por fotógrafos amadores que lamentam a rápida industrialização da fotografia (em 1880 surgira mesmo a câmara Kodak, com o anúncio famoso, “Basta carregar no botão!”) e, acima de tudo, se distingue de uma fotografia técnica e banal. Sociedades amadoras e com o mesmo propósito surgem na Europa por todo o lado. É numa sociedade austríaca que o fotógrafo americano Stieglitz adere à corrente e, de regresso aos Estados Unidos, funda uma galeria e uma revista, Camera Work, que irá reunir e publicar, em destacáveis, diversas imagens fotográficas pictorialistas suas, como simbolista, mas também dos melhores autores mundiais, universalizando o Pictorialismo até a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra.

Saturados das temáticas pictorialistas, que não respondem aos novos interesses modernistas e das vanguardas, muitos fotógrafos e, nomeadamente, a Escola Bauhaus e artistas do leste europeu, já com câmaras menores e permitindo fixar imagens horizontais, oblíquas e verticais, aproximam-se mais das técnicas do cinema mais comuns, com efeito de picado e contrapicado, usam linhas oblíquas na composição, aplicam colagens de negativo para cortar com a paragem de um dado momento (obviamente de diferentes espaços e tempos na composição) ou usam processos para criar a ilusão de concentração de multidões.

O Modernismo nascera como uma compensação para os sobreviventes da Grande Guerra e da Gripe Espanhola, traz um forte interesse pela vivência do dia a dia e a esperança nas novas soluções técnicas e científicas. O desejo de viver engrena com a nova sociologia de Lefèbvre sobre o valor do cotidiano e a exaltação do homem comum, claramente demonstrado na política das Frentes Populares, no regresso dos bailes de rua, no acompanhamento a acordeão ou a charamela e a guitarra, na criação musical do período, a canção urbana. Sessões de cinema, de circo ou de dança, o hábito pela frequência de cafés abertos até tarde, são mais comuns que os também novos hábitos de uma sociedade mais rica que dança o charleston em boîtes desses igualmente alegres anos vinte. Para o homem comum, na crescente classe média baixa do após guerra, e jovens artistas, trata-se antes dos tempos da doença nervosa e alegre do século XX. É isto que os fotógrafos fixam e procuram, dentro de uma ideia geral de respeito pela ideia e forma. Nas ditaduras que vão surgindo na Península Ibérica, na Argentina, no Brasil, na Itália ou na Alemanha, as sociedades pictorialistas mantêm-se, vivendo do intercâmbio de paisagens inócuas ou cenários de exaltação dos valores admitidos pelos respetivos governos que, por sua vez, se apropriam do Modernismo, ideal para o significado de grandeza, tecnicismo e austeridade que pretendem representar.

A deslocação para ocidente, nomeadamente para França e Grã-Bretanha ou Holanda de muitos artistas que viviam em países de leste, dominados pela Império turco até ser vencido na Primeira Guerra, deu origem ao Humanismo Fotográfico. Com grande sensibilidade no tratamento dos sentimentos humanos, mantém-se como tendência internacional após a Segunda Guerra Mundial e irá manter-se como tendência e olhar fotográfico em muitos grandes fotógrafos, prolongando-se o seu interesse até hoje. Henri Cartier-Bresson, que propõe o encontro do que aparece ao fotógrafo de rua como um momento decisivo, de valor artístico, é um humanista, tal como Sebastião Salgado ou George Dussaud. Mas não se trata já de seguir correntes artísticas, apenas se afirma como um olhar que vive do exorcismo das iniquidades da Segunda Guerra e/ou a crescente autodeterminação das colónias europeias. Definitivamente, a fotografia começa a ultrapassar a dependência das correntes artísticas – passou pelo surrealismo tardio, pelo espírito do gnosticismo do Modernismo, sejam alguns fotógrafos mexicanos, Pablo Ortiz Monasterio ou Flor Garduño ou o inglês Martin Parr, que tem mantido a sua obsessão de um mundo feio e desagradável. Estarão nesta linha as breves passagens pelo surrealismo tardio os momentos de Fernando Lemos ou Thomas Farkas. Este último afirmará em entrevista já no final de vida a sua explicação para a produção de uma foto: Você tem o olhar e o momento e o segredo é como juntar os dois.

Os anos cinquenta são de desenvolvimento de um fotojornalismo estético, mas há nichos de defesa da ideia que valoriza os signos e de obras sobre a ontologia da fotografia, como acentuava o crítico André Bazin; o fotógrafo americano Minor White atingiu uma quase metafísica do olhar nas suas famosas três janelas, significando a juventude, a maturidade e a velhice do homem.

Depois da tentativa do olhar conceptual dos anos sessenta (seja Boltansky com Sopa de letras ou a deriva para a sociedade do consumo e da imagem desde Warhol) e a polémica sobre a impossibilidade da fotografia escapar à não figuração, diversas propostas abordaram os problemas ecológicos, como a Land Art e a ação dos Fotógrafos Topográficos, quer pelo esforço do homem, quer pela própria geologia. Nos anos setenta, reanimando práticas do 1º Modernismo, o Pós-Moderno avançaria como um manifesto neoliberal. Especializando-se através da fotografia que fixa as instalações efémeras, é nesse meio que o pós-modernismo mais se instala. Uma base filosófica que entrelaça Nietszche e o Pragmatismo anglo-saxónico define o Pós-Modernismo como cognitivista, apelando à crítica do Modernismo e de todas as suas narrativas, históricas, filosóficas, sociológicas, e defende, com um criticismo agudo e militante, o desleixo ecológico e da poluição, o género, a definição da arte como argumento e a eficácia: é, naturalmente, uma vanguarda do neoliberalismo que quer anular todos os discursos e impor uma “verdade” provisória. Verdadeiro manifesto da eficácia neoliberal, introduz novos conceitos críticos, o processo de criação, que valoriza, minimizando o papel da obra, a citação, elemento que desestrutura de contextos artísticos anteriores slogans ou discursos do olhar, da concepção do objeto ou a sua desconstrução. De Duchamp à refotografia, a fotografia pós-moderna assenta na instalação, na montagem, na ampliação de imagens e na cor, nas observações escritas, no manifesto linear e faz surgir um discurso erudito mais elaborado do que a própria ação fotográfica. Esquecendo a emoção que é interior ao próprio ato conceptivo, acabará por ser desconsiderada desde o início do século XXI. Mas deixara já elementos decisivos, o grande formato, como nas imagens publicitárias de rua, a instalação, a importância do texto explicativo do significado: a fotografia, como qualquer arte, tem a função de incitar à reflexão.

2. Entre o mundo técnico e o tecnológico: um novo discurso adiado

Não é apenas o pós-moderno que catalisa o novo olhar sobre o mundo; surgira, afinal, na década de setenta, antes da vulgarização do vídeo. E o vídeo resulta da Nova Física, onde o fóton é onda e funciona como partícula e, ainda, guarda a informação em unidades de base algorítmica (pixels). O usuário, ao ligar de novo o dispositivo, cria o objeto virtual. A fotografia, excessivamente presente no cotidiano, reflete a sua própria visão do mundo, um mundo em imagens parcelares que fixam o impossível do momento parado; a foto, diz-se, é cinza, é sombra do que foi, é essencialmente pretérita e única, resultado de uma câmara que tem de se conhecer como uma parte do fotógrafo. A partir dos anos oitenta do século XX, uma obra irá dominar as reflexões eruditas sobre fotografia, Uma filosofia da fotografia, do checo Vilém Flusser, atacando a dependência induzida pelos industriais de câmaras fotográficas, que anulam a criatividade do fotógrafo enleado nas diversas capacidades do aparelho. Afirma e tenta demonstrar como é possível ultrapassar essa dependência, fazendo colapsar as capacidades programadas do aparelho. Anunciando a tecnologia digital, embora em tempo do vídeo, permite uma série de experiências novas e, ainda, uma reflexão sobre a luta contra a máquina industrial. A sua pequena obra torna-se presença obrigatória nos cursos superiores de fotografia em todo o mundo.

Ainda em 1974, uma conferência radical de Allan Sekula que apontara para a ilusão da validade artística da fotografia, atribuída pelas galerias de arte e museus, de acordo com os seus interesses específicos, parecia anunciar a negação da História da Fotografia como arte. Sekula carateriza, então, o papel da fotografia como uma tarefa que se adapta à sua função (fixar passeios, rostos ou momentos políticos ou sociais, despertar paixões, fomentar a carreira do fotógrafo etc.). Essa tarefa, e não mais do que uma tarefa, esconde-se sob uma retórica tendenciosa de valorização da sua verdade e neutralidade que resulta numa isenção de responsabilidade. É função desse discurso tornar-se transparente, esconder os seus termos. A foto tem apenas a possibilidade de significado e usa convenções, como signos que os discursos sobre fotografia tornam retóricos, atribuindo-lhe valor artístico ou de reflexão; mas, porque a sua compreensão, indeterminada, pode variar e é polissémica, dá-se à foto um valor intrínseco que não tem, sendo-lhe atribuído extrinsecamente.

Com vaga relação com o cognitivismo fotográfico (utilização de grandes caixas de luz e temas críticos, a sua insistência de que a fotografia proporciona a experiência de uma experiência), o fotógrafo canadiano Jeff Wall acentua a ideia da não transparência da fotografia, um dos mitos apontados por Sekula – o de que, ao contrário da pintura, que esconde o processo sobre as diversas pinceladas, a fotografia era um meio tido como transparente. Jeff Wall produz uma réplica atual da pintura de Edouard Manet, Un bar aux follies Bergère, usando um grande espelho onde uma rapariga, através dele, nos olha.

Figura 1 Jeff Wall, “Retrato para mulheres”, 1979 

Na realidade, vemos como, no espaço da sala, por trás dela, que olha no espelho, a câmara que o fotógrafo manipula está montada e ela espia o momento do cut. Olhando a câmara no espelho – que ficará fora do enquadramento – ela, parecendo olhar-nos, esconde as condições de produção e a fotografia revela-se, afinal, tão opaca como a pintura. Hoje Jeff Wall pratica o que chama neodocumental, reconstruindo cenas do quotidiano, aparentemente instantâneas, a partir de complexas fotomontagens de fotos que encontra na Net. A fotomontagem é uma das práticas fotográficas da contemporaneidade, dado que o mundo está mais presente no ecrã do que no dia a dia de cada um. Um dos setores mais visitados são os sites de fotografias de quadros célebres onde a manipulação recria situações de diversão. A informação, através de sites de publicidade de fotógrafos e exposições e de um sem-número de textos de história da fotografia ou ensaios supera em facilidade a frequência de cursos oficiais que, de resto, continuam numerosos.

Mas há ainda, escapando à matriz fotográfica, a eficácia do uso totalizante da fotografia.

A inteligência artificial (I.A.) multiplica o seu uso, que, mais do que uma ajuda metodológica, complementar, se tornou o lado mais visível da investigação, dada a sua capacidade preditiva baseada na análise de grandes bases de dados, no caso de fotografias. Seja para o reconhecimento de padrões – diagnóstico da retinopatia diabética, dermatologia e muitas outras patologias – ou no suporte de qualquer decisão clínica, na arquitetura, engenharia, astronomia, biologia, demografia, enfim, na maioria das ciências duras ou humanas. A velocidade e acuidade de observação dos programas algorítmicos permite prognósticos que agregam a totalidade de dados de um contexto onde as imagens foram devidamente arquivadas, sugerindo relações que escapam aos cientistas.

Também no sentido restrito da fotografia, direta ou construída, os fotógrafos usam a I.A. para arquivar em software as suas imagens que são reproduzidas sempre sem empobrecimento, já que se trata não de uma representação, mas de uma produção imediata através dos pixels armazenados de forma numérica. Podem ainda manipular reproduções das imagens obtendo imagens sem defeito de acordo com programas específicos. Hoje tornou-se mais fácil fotografar a cor nas câmaras digitais e reproduzir as fotos num preto e branco forte ou suave, ou na cor sépia das albuminas, ou recriar céus e fundos lisos que avivam os contornos da figuração. Uma das vertentes da nova criatividade é compor cenários a partir de imagens de arquivo on-line, que parecem mais reais do que as tomadas de vista realistas, como foi referido para Jeff Wall. Ou ainda, e para pura recriação, há inúmeros sites na Net que mostram a imaginativa manipulação de imagens pictóricas de autores universalmente conhecidos e respeitados, mas a maior produção fotográfica que existe na Net é coberta pelas milhões de selfies colocadas nas redes sociais, o que se liga à ideia contemporânea da morte da fotografia. Naturalmente essa concepção tem apenas a ver com a fotografia de autor, atribuindo-se-lhe, ainda e mais do que a qualidade cognitiva, uma criatividade que ultrapasse a banalidade do universo fotográfico da Globalização.

3. Como conclusão: Hoy todos somos fotógrafos, pero con una cultura visual escasa (Pedro Meyer, 2014)

É este o título de uma entrevista a Pedro Meyer por Rogelio Villarreal, em junho de 2014, amplamente visitada na Net e publicada pela ITESO, Universidade Jesuíta de Guadalajara. Aponta de modo iniludível a ideia que os eruditos fazem da atual fotografia de autor, não prevendo o seu fim, mas uma nova aprendizagem.

Pedro Meyer é um importante fotógrafo mexicano, um dos pioneiros da fotografia digital (Zone Zero, um dos primeiros sites no México) e da experimentação através dos vários suportes fotográficos. Fundou o Consejo Mexicano de Fotografia (1976), participou na criação do Centro de la Imagen (1994) e fundou o atual Fotomuseo Cuatro Caminos. Foi o produtor do primeiro CD-Rom do mundo (1990). Não lamenta as imagens que circulam na Net, mas acentua na entrevista:

Hoje todos são fotógrafos, todas as gerações, milhões de pessoas que partilham imagens e notícias com um núcleo reduzido de gente, todas autorreferenciais, selfies, dos seus filhos, mascotes, comidas, viagens… mas tudo o que publicam interessa só ao seu círculo de amigos e parentes.

E acrescenta: A fotografia tem um lugar central na cultura contemporânea, e por essa razão devemos ensinar a ler imagens.

Apesar do relativismo dos tempos atuais, sabe-se que a fotografia sempre foi manipulada, alterada e, portanto, não reflete a realidade. Mas essa consciência não lhe retira a maior ou menor aceitação de realidade. Pedro Meyer considera que a sua função não é, necessariamente, ser documento (a sua credibilidade assenta na credibilidade do seu autor e não na da câmara) e admite que necessita do cruzamento com outras fontes. Também não vê como lamentável que a fotografia analógica seja ultrapassada, pois já se tornou irrelevante no tempo do telemóvel inteligente que resolve tantos problemas do dia a dia. A aceitação da autenticidade da imagem fotográfica radicou-se hoje no espaço científico, onde o diagnóstico fotográfico domina a análise discursiva.

Em todo o caso, a fotografia, mesmo a de autor – pois é em torno dela que se avança com a sua previsível morte – não está morta e, tudo o aponta, não morrerá no campo da informação, controlo e prazer. Saber lê-la, entendê-la, neste tempo em que se publicam on-line e no quotidiano biliões de imagens diárias incluindo as fake news, torna-se capital, e essa leitura não deverá ser apenas uma erudição de alguns. E para isso há um variado conjunto de especialistas de ensaio fotográfico, mas também psicólogos, sociólogos e epistemólogos da comunicação. E os seus alertas também circulam na Net e outros meios da comunicação.

Entretanto, a maioria das imagens circulam nas diversas redes sociais e sites individuais, o grande espaço público contemporâneo que agregou a si o acontecer do espaço privado e uma nova orientação de vida: a exposição pública do privado torna-se uma obrigação pública, mais do que uma montra de si. O popular sociólogo polaco Z. Bauman entende esta exposição como normal numa sociedade regulada por estados por sua vez submetidos à finança internacional neoliberal. Cada um aprende que tem de investir em si mesmo pera se mostrar como vencedor e eficaz nem que seja através dos likes virtuais, pois muitos empregos se conseguem com perfis, fotos e confissões, já que no marketing das redes tecem-se verdadeiras relações contratuais e relacionamentos na sociedade de consumidores. O Facebook, criado em 2004, já provou que aí tudo é encontrado e para aí tudo é enviado.

A crítica radical à exposição de si, através de fotos às quais subjazem interesses de mercado, surge-me como naturalmente exagerada. Esse tipo de foto, como as selfies que pontuam os momentos considerados importantes na vida de cada um que se expõe, acumula o conhecimento sobre uma sociedade em mudança que tudo pulveriza e, muito especificamente e de modo profundo, a sua imagem do mundo que lhe é cedida como uma não geografia e um não acontecer histórico, porque instantâneos (VIRILIO). A fragmentação, a modernização obsessiva, compulsiva, a rapidez de um presente que rapidamente é pretérito esquecido (como a lógica do consumo) indiciam a fragilidade e a vulnerabilidade de cada um, mas também a sua resistência. Manter um núcleo estável de amigos (aqueles 150, máximo proposto para a capacidade humana conforme Frank Rich), quando se podem ter centenas ou milhares de seguidores, anula a humilhação de ser-se abandonado por alguns. O abandono de alguns, na rede, torna-se indiferente.

A exposição de si, que leva à partilha do íntimo, de significado em significado, não é uma inovação, apenas uma multiplicação proporcionada pela comunicação global e que alarga fronteiras, inclusive na inclusão inédita dos que estão fora, dos “eles” por “nós”. Esta partilha minuciosa do quotidiano foi sempre um fato comum. Foucault, em O que é um autor?, refere a longa prática de Séneca (que era e segue sendo lido ao longo dos séculos), escrevendo minuciosas cartas aos amigos. Então já era reconhecido que escrever era mostrar-se, dar-se a ver em cartas que deviam ser em estilo simples, pois o que interessava era desvelar a alma. Essa objetivação da alma era simultaneamente um olhar e um exame, a partir da descrição minuciosa da sua vida diária. O mesmo acontecia com as cartas de Plínio ou Marco Aurélio, onde se descrevem notícias de saúde e suas sensações corpóreas e perturbações, quer no corpo, quer na alma, referências à solidão, amizade, mas também relatos de hora a hora (um pouco de treino físico, corrida com um jovem escravo, um banho em água um pouco fria, um frugal repasto de pão, uma sesta muito breve). E o essencial do dia: a meditação de um tema sugerido por uma leitura. A mesma exposição que se vê hoje, como uma necessidade de partilha de si, independentemente da atualização de valores e dos suportes de comunicação utilizados. Como as cartas romanas dos seus pensadores, na era democrática e da igualdade, as exposições nas redes sociais são legítimos documentos para as ciências sociais e humanas. E, para o senso comum menos retórico, pode ver-se como uma exigência de objetivação de si, numa sociedade que vê no ecrã o olhar do outro.

O século XXI, com a I.A., a informação virtual e a Globalização, não corta com a teoria fotográfica da segunda metade do século XX, negando o manifesto pós-moderno, mas mantendo e acrescentando-lhe autores da transição que circulam nos cursos de Fotografia, acompanhando o revivalismo das imagens e a interpretação do sentir que tentam explicar os novos tempos e, assim, o novo olhar. Vattimo e a perda da realidade, a análise psicanalista lacaniana de Tisseron, acentuando o paradoxo da presença/ausência na imagem fotográfica e ainda o seu papel clínico na Psicanálise. Ou a tónica da repetição informativa e praticada num excesso cultural que associa ao barroco ou ao enigma (momento egípcio) que permeia tanto a sociedade como a fotografia nos ensaios de Mário Perníola, ou ainda Didi-Huberman raiando o ceticismo.

Trata-se de autores teóricos que são alheios ao Pragmatismo ou ao Pós-Moderno, que estão conscientes do progresso do neoliberalismo na mentalidade da eficácia pessoal e renovam diversas leituras da Fenomenologia, regressando a Husserl, nomeadamente à sua ideia de pré-noção que Deleuze e Guattari, nos anos noventa, tinham recuperado, distinguindo sensibilidades artística e científica. É toda uma linha de recuperação da tendência psicológica na produção e na leitura das imagens, onde a emoção não se limita ao tratamento estético. É significativo que ao longo dos anos as imagens premiadas pelo World Press Photo sejam profundamente humanistas, influenciando diversos outros concursos, ou projetos de autor – as inúmeras séries de envelhecimento ou de doença final de entes próximos, de tratamento de doentes inimputáveis que são louvados ou aclamados.

De acordo com novas leituras sociais, integradas na atual pandemia da covid-19, as subjetividades individuais e sociais vão mudar. José Gil, filósofo português que integra nas suas diversas interpretações análises de imagens fotográficas, afirma que a conjuntura que misturava, de resto de forma caótica, subjetividades pré e pós-industriais, terminou com a globalização física e tecnológica desta pandemia. O imperativo do confinamento exigiu de forma muito rápida a adaptação à tecnologia eletrónica, acabando por criar novas subjetividades. Estas novas subjetividades são a aceleração inesperada, mas anunciada, de um capitalismo numérico, socialmente reterritorializado no digital, subordinando os outros grupos sociais. Serão subjetividades nómadas e transparentes num processo de sedentarização que já não os subordina ao funcionamento do mercado, mas às tarefas da economia digital, respondendo mais e mais passivamente às ordens e necessidades da vida virtual. Compreendem capacidades passivas de obediência voluntária e capacidades ativas de funcionamento programado, que, como sabemos, se apresentam sempre com imagens enganadoras sobre a realidade, que afastarão mais o homem do mundo e dos problemas que ele desencadeia. Os verdadeiros problemas do cotidiano serão a criação de algoritmos eficazes para o mundo virtual.

Em 2017, o brasileiro Carlos Fadón Vicente, conhecido fotógrafo com evolução para o digital, realizou o seu doutoramento e recebeu simultaneamente um prémio internacional pelo avanço prestado no campo da produção de fotografia digital que, de resto, analisava no seu doutoramento. Para induzir os programas a criar uma interface com o autor, tinha produzido diversos algoritmos que os alteraram e permitiram ao computador partilhar a autoria dos resultados fotográficos com o fotógrafo. A leitura fotográfica não exige apenas uma aprendizagem, mas uma revisão do seu conteúdo que estará dependente de uma cultura informática.

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Recebido: 25 de Setembro de 2020; Aceito: 21 de Setembro de 2021

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