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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022005 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

Letramento literário dentro e fora da escola: a recepção de O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós

Hércules Tolêdo Corrêa1 
http://orcid.org/0000-0001-7368-5635

Rosângela Márcia Magalhães2 

1Doutor em Educação pela UFMG. Mestre em Letras: Estudos Linguísticos pela UFMG. Graduado em Letras pela UFMG. Professor Associado da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: herculest@uol.com.br

2Doutoranda em Educação na UFOP. Mestra em Educação pela UFOP. Graduada em Letras pela UFOP. Professora da educação básica em Minas Gerais. E-mail: rosangelamagalhaes@uol.com.br


Resumo

Este artigo apresenta reflexões sobre o letramento literário a partir da recepção da obra O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós (2004), por meio da análise de depoimentos de leitores comuns (a literatura no cotidiano dos indivíduos) – e de trechos de artigos científicos sobre a obra (a literatura no campo acadêmico). Apresentamos também uma sequência didática desenvolvida com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Itabirito, interior de Minas Gerais, a partir da recepção do livro. Para a realização da prática pedagógica, usamos a proposta sugerida e experienciada por Rildo Cosson (2012) para o letramento literário, denominada pelo pesquisador como sequência básica, composta por quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação. Dessa forma, procuramos compreender a literatura, a leitura literária e o letramento literário na vida social e na escola, pois cabe a essa instituição proporcionar aos alunos experiências que desenvolvam essa competência para o letramento literário, a se perpetuar pela vida adulta. O principal objetivo desse processo no contexto escolar é formar um leitor que aprecie significações estéticas, capaz de se inserir em uma comunidade que faça suas próprias escolhas literárias, que saiba manipular seus instrumentos culturais e possa construir com eles um sentido para si e para o mundo em que vive. Dessa forma, é necessário reconhecer a importância de atividades que abarquem diferentes tipos de materiais escritos, mas que não sejam negligenciados os textos literários, multiplicando, dessa forma, os espaços de leitura e constituindo comunidades de leitores na escola e fora dela.

Palavras-chave Letramento literário; Recepção literária; Projeto de leitura literária

Abstract

This article presents reflections on literary literacy from the reception of the work O olho de vidro do meu avô, by Bartolomeu Campos de Queirós (2004), through the analysis of testimonies of ordinary readers – literature in the daily lives of individuals – and excerpts from scientific articles on the work – literature in the academic field. We also present a didactic sequence developed with 6th grade students from a public school in Itabirito, in Minas Gerais. To carry out the pedagogical practice, we use the proposal suggested and experienced by Rildo Cosson (2012) for literary literacy, called by the researcher as basic sequence, composed of four stages: motivation, introduction, reading and interpretation. Thus, we seek to understand literature, literary reading and literary literacy in social life and at school, as it is up to this institution to provide students with experiences that develop this competence for literary literacy, to be perpetuated through adult life. The main objective of this process in the school context is to train a reader who appreciates aesthetic meanings, able to insert himself into a community that makes its own literary choices, who knows how to manipulate its cultural instruments and can build a sense with them for itself and for the world where you live. Thus, it is necessary to recognize the importance of activities that encompass different types of written material, but that literary texts are not neglected, thus multiplying reading spaces and constituting communities of readers at school and beyond.

Keywords Literary literacy; Literary reception; Literary reading project

A escola só cumpre sua finalidade e se torna permanente na vida do aluno quando forma leitores. O sujeito sai e continua se educando vida afora.

(QUEIRÓS, 2012)

Nas duas últimas décadas do século passado, parece que a literatura perdeu um espaço significativo na escola. Entretanto, no início do século XXI, a despeito de muito se dizer que as tecnologias digitais concorrem sobremaneira com a leitura, literária ou não, a literatura vem retomando o seu lugar na instituição escolar. Com relação à vida social, parece que não se percebeu essa diminuição da importância da literatura e a sua retomada, a despeito dos mesmos comentários tão propalados de que mídias sociais, tecnologias móveis e outros atrativos mais modernos vêm substituindo os livros literários, até porque essas ferramentas e espaços também permitem a leitura de textos literários.

Neste artigo, tratamos da recepção do livro O olho de vidro do meu avô3 por parte do público comum e de especialistas em literatura (principalmente para jovens) – a recepção da obra literária no cotidiano dos indivíduos e no campo acadêmico. Apresentamos, também, um trabalho de leitura literária com uma turma de 6º ano de uma escola pública no interior de Minas Gerais.

I – BREVES REFLEXÕES SOBRE LETRAMENTO LITERÁRIO E OUTROS CONCEITOS

Leitura de literatura e leitura literária. Para o senso comum essas duas expressões são entendidas como sinônimas, podendo uma ser usada em lugar da outra, sem qualquer alteração de sentido. Para os estudiosos da área, no entanto, existe uma diferença de concepção no uso de uma ou outra expressão. Enquanto por leitura de literatura entende-se um ato cognitivo de decifrar o código linguístico de um texto dito literário – podendo ter com isso objetivos diversos, tais como encontrar informações sobre quaisquer conteúdos no texto, aprender sobre determinado assunto ou até mesmo passar o tempo que se tem de ócio –, entendemos por leitura literária um tipo específico de leitura que se faz de um texto dito literário, com objetivo de fruí-lo esteticamente. Por fruição estética entendemos a experiência de leitura e interação com a obra literária que nos permite apreciá-la cognitiva e emocionalmente, uma forma de interação do leitor com a obra que desperta sensações, sentimentos, emoções. Acreditamos que seja preciso desenvolver mais que o hábito de leitura, é preciso desenvolver o gosto pela leitura; dessa maneira, o processo de fruição da obra literária permanecerá com os alunos pela vida afora, sem as imposições típicas do universo escolar.

A partir da concepção de leitura literária acima exposta, associada ao conceito de letramento, que teve ampla repercussão e desenvolvimento nas últimas décadas nas áreas acadêmica e escolar, surgiu e se desenvolveu o conceito de letramento literário. Ainda no final dos anos 1990 e início do terceiro milênio, o grupo de pesquisa em literatura infantil do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) passou a denominar-se Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (GPELL). Esse grupo foi um dos maiores responsáveis pela difusão da expressão letramento literário no meio acadêmico, principalmente por meio do evento Jogo do Livro, que tem reunido, a cada biênio, pesquisadores, professores, escritores, editores, bibliotecários e tantos outros profissionais interessados na discussão das relações entre literatura e escola.

No Glossário CEALE: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores (2014), Cosson define o letramento literário como “o processo de apropriação da literatura enquanto linguagem” (COSSON, 2014, on-line). O pesquisador também complementa:

Para entendermos melhor essa definição sintética, é preciso que tenhamos bem claros os seus termos. Primeiro, o processo, que é a ideia de ato contínuo, de algo que está em movimento, que não se fecha. Com isso, precisamos entender que o letramento literário começa com as cantigas de ninar e continua por toda nossa vida a cada romance lido, a cada novela ou filme assistido. Depois, que é um processo de apropriação, ou seja, refere-se ao ato de tomar algo para si, de fazer alguma coisa se tornar própria, de fazê-la pertencer à pessoa, de internalizar ao ponto daquela coisa ser sua. É isso que sentimos quando lemos um poema e ele nos dá palavras para dizer o que não conseguíamos expressar antes.

(COSSON, 2014, on-line).

Dessa maneira, entendemos que o letramento literário constitui um processo que se desenvolve tanto na escola quanto na vida como um todo. À escola cabe, portanto, proporcionar aos alunos experiências que desenvolvam essa competência para letramento literário, que se ampliará pelo resto da vida. Antonio Candido (1988, p. 169-191) já tratava do direito à literatura. Para o importante sociólogo e crítico literário brasileiro,

(...) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.

(CANDIDO, 1988, p. 186).

Hoje, reafirmamos o direito à leitura literária na escola e, mais ainda, o direito ao letramento literário, para que a leitura literária não se torne apenas uma atividade pontual, um exercício pedagógico, mas uma prática cultural cotidiana contínua, para além dos muros da escola.

II – A OBRA O OLHO DE VIDRO DO MEU AVÔ, DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS (2004) 4: TEXTO E CONTEXTO

O livro, narrado em primeira pessoa, apresenta ao leitor a história de um menino que ficava imaginando os mistérios escondidos atrás do olho de vidro de seu avô Sebastião. O neto percorre com o leitor os caminhos de Bom Destino, cidade ficcional pequena e muito sossegada. O avô reina misterioso: “É que ele tinha um olhar frio e outro quente. Tinha um olho que via e outro que só desejava. Sempre achei que meu avô enxergava mais com o olho da mentira do que com o olho da verdade” (QUEIRÓS, 2004, p. 37). Para o menino, curioso e imaginativo, o olho de vidro provocava atração e receio.

Essa narrativa poética de Bartolomeu Campos de Queirós constitui uma das obras do escritor que traz para a sua literatura elementos de sua vida real, ao lado das antecessoras Indez (1985), Por parte de pai (1995) e Ler, escrever e fazer conta de cabeça (1996), e das sucessoras Antes do depois (2006) e Vermelho amargo (2011).5 Por mais de uma vez, a produção literária de Bartolomeu Campos de Queirós foi caracterizada como uma “literatura sem fronteiras”: no limite entre a prosa e a poesia; no limite entre a literatura para crianças, jovens e adultos (na verdade, sem limites); entre a literatura e as especulações filosóficas.6 Fiuza destaca que “mais do que um livro de memórias [...] percebemos no texto O olho de vidro do meu avô um forte teor metalinguístico” (2019, p. 65), observando que, “ao discorrer sobre a forma peculiar com que o avô percebia o mundo, o narrador também percorre os caminhos da filosofia ontológica e da própria literatura” (FIUZA, 2019, p. 65).

Os limites entre ficção e realidade também são bastante tênues na obra de Bartolomeu Campos de Queirós, característica prevalente de muitas obras contemporâneas, que têm sido denominadas de autoficção. Autor, narrador e personagem se mesclam nesse tipo de literatura. O termo autoficção foi usado pela primeira vez na quarta capa do romance de Serge Doubrovsky intitulado Fils, de 1977, ainda sem tradução brasileira, e veio somar-se a outras denominações tais como memórias, autobiografia e narrativas de si. Em outros momentos, já usamos as expressões literatura de traços autobiográficos e literatura memorialística para caracterizar essas narrativas poéticas de Bartolomeu Campos de Queirós.7

Enfim, podemos afirmar que O olho de vidro do meu avô, bem como outras obras de Bartolomeu Campos de Queirós, se inscreve neste campo fronteiriço que mescla “experiência, memória, sinceridade e verdade poética” (HIDALGO, 2013, p. 220).

Recepção da obra

No site <https://www.skoob.com.br/livro/resenhas/8816/edicao:10086> (acesso em 21 de novembro de 2019), encontramos alguns comentários de leitores comuns postados em diferentes momentos. Como não há referências de que se trata de comentários publicados como tarefa escolar nem há localização espacial dos leitores, apenas a data de postagem, pressupomos que foram divulgados espontaneamente. Esses comentários, acreditamos, ilustram certas formas de apropriação da leitura literária e/ou de letramento literário:

O texto mistura realidade e fantasia, pois o avô buscava lugares que o olhar não enxergava. A imaginação do avô ia longe. O que ele não via inventava.

(Henrique Marcial, 2019).

Com um olhar atento e cheio de poesia, ele vai mostrar o que não pode ser esquecido – a história daquele ser cativante, que guardava muitos mistérios, – seu avô – que via o mundo com um olho só. O outro olho, o olho esquerdo, era de vidro e foi comprado na cidade de São Paulo. [...] O autor-narrador tenta, mas não consegue contar tudo aos leitores. Há muita coisa escrita nas entrelinhas. É o leitor que deverá preencher as “lacunas” que encontrar durante a leitura. (Cristina Sá, 2014).

Trechos como “mistura realidade e fantasia” e “autor-narrador” demonstram que o pacto autobiográfico (ou pacto autoficcional, para juntar a teorização de Lejeune com o neologismo atribuído a Doubrovsky) foi estabelecido. O pacto autobiográfico constitui, como teorizado por Lejeune (2008), uma forma de contrato do leitor com o texto no qual se estabelece uma relação que permite a leitura literária diferente da leitura de um romance totalmente ficcional ou de uma notícia de jornal, por exemplo.

O depoimento abaixo nos permite identificar sentimentos e sensações envolvidos na leitura da obra, por meio de expressões como “saltar sem medo pros domínios das letras que são como música ao ouvido da mente”, “leveza das palavras que, mesmo retratando experiências duras e amargas, não perdem o brilho e a suavidade do que é poético”; “é como açoitar com uma pluma”:

Ler O olho de vidro do meu avô é saltar sem medo pros (sic) domínios das letras que são como música ao ouvido da mente. Sinto-me contagiado pela leveza das palavras que, mesmo retratando experiências duras e amargas, não perdem o brilho e a suavidade do que é poético. É como açoitar com uma pluma e nem por isso deixar de doer.

(Wemerson, 2014).

Por fim, encontramos uma leitora que se identifica com a obra porque compartilha com o autor-narrador-personagem o fato de ter tido “um avô que também tinha um olho de vidro” e, assim, pode se “reencontrar no passado, com o encanto, a poesia em prosa que Bartolomeu tão ricamente nos dispõe”. A autora da postagem ainda relembra uma passagem daquelas que “vão com a gente”, aquilo que toca o leitor e que o segue pela vida afora, e que está ligado exatamente a um aspecto importante da narrativa poética: “a memória é como cobra, morde e assopra”.

Volta à infância. Em primeiro momento o que me atraiu foi o nome do livro, compartilhar com o título um avô que também tinha um olho de vidro. Lendo as primeiras páginas, depois de me reencontrar no passado, com o encanto, a poesia em prosa que Bartolomeu tão ricamente nos dispõe. É pontilhado por muitas frases q (sic) vão com a gente, mas tem uma em especial que ficou mais: A memória é como cobra: morde e assopra. Recomendo! Traz um tanto de nostalgia, um tanto de lúdico, de amor, de saudade, de tristeza, de humano. Muito bom pra (sic) ser passado adiante.

(Cris, 2014).

O depoimento anterior ainda aponta para vários sentimentos manifestos por meio da leitura literária, da experiência estética de que tratamos na primeira seção deste artigo: “nostalgia”, “amor”, “saudade”, “tristeza”, lembrando também do aspecto “lúdico” e “humano” da obra.

Consideramos, portanto, que todos os depoimentos acima transcritos representam realizações de experiências estéticas bem-sucedidas com o livro O olho de vidro do meu avô, servindo como ilustração da recepção literária pelo leitor comum.

Especialistas em literatura e, mais especificamente, em literatura para crianças e jovens, também apresentam suas análises e apreciações da obra. Feba (2009) termina o seu artigo sobre a leitura e o leitor do livro O olho de vidro do meu avô com as seguintes palavras:

O livro é composto por um arranjo semântico requintado e, por meio dele, o leitor conhece a despedida, a mudança, o recomeço, a saudade, a alegria. Esse resgate de lembranças do passado exposto pelo menino propicia um aflorar das sensações vividas pelo leitor, fazendo com que identifique temas como a valorização da experiência, da pessoa mais velha, do ensinamento passado de pai para filho, da cultura, do respeito ao ser humano e da vida. Com a intenção de analisar os elementos constitutivos do texto literário e observar o modo como fora construído, nossa apreciação revela a narrativa de Bartolomeu Campos de Queirós como um espaço determinante de interação entre texto e leitor, marcado também pela polissemia, suscetível a novas interpretações e possíveis desdobramentos.

(FEBA, 2009, on-line).

No excerto acima, pode-se perceber também a multiplicidade de sensações atribuídas ao leitor no momento da leitura da obra. O trecho também aponta para as várias possibilidades interpretativas da percepção de um texto lacunar, que permite ao leitor preencher os seus vazios, com sua imaginação, movimentos próprios da experiência literária.

Já as pesquisadoras Navas e Ferreira (2017) buscam “investigar como, por meio de um discurso em que infância e idade adulta confluem, configura-se a construção identitária dos protagonistas” (NAVAS; FERREIRA, 2017, p. 262). As autoras concluem que não há um “desejo de resgate de uma hipotética totalidade perdida, por meio da representação de subjetividades em contínuo processo de formação” (NAVAS; FERREIRA, 2017, p. 262).

Fiuza (2019) toma emprestada a metáfora de Queirós (2004), e argumenta que para ler o texto literário é preciso ter apenas um olho bom, para encontrar a palavra, e um olho de vidro, para perdê-la no território da experiência estética, onde prevalecem as sensações (FIUZA, 2019, p. 75).

Embora a obra O olho de vidro do meu avô apresente uma configuração editorial que aponta para uma classificação como livro para jovens leitores (a sua ficha catalográfica também é clara ao classificar a obra como “literatura infantojuvenil”), sabemos que o próprio escritor fazia questão de frisar que não escrevia pensando num público específico por idade:

Quando escrevo procuro exercer o melhor de mim. Procuro uma linguagem direta, clara, frases curtas, o que não impede o texto de suportar uma análise literária. Exploro as metáforas, não apenas como figura de estilo, mas a metáfora permite vários níveis de entendimentos. Não seleciono o assunto, não gosto de literatura com destinatário, dividindo o mundo como se existisse um mundo para criança e outro para os adultos. A existência é um fio único que começa no nascimento e encerra com a morte. Tento construir um texto sem fronteiras. Cada leitor se inscreve nele a partir de suas experiências. Todos vivemos num mesmo mundo e somos portadores da fantasia, que nos permite dialogar com o universo.

(QUEIRÓS, 2012, s/p).

Ao pensarmos nas palavras de De Certeau, que define o cotidiano como “aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha)”, podemos pensar no quão importante pode ser a literatura (e, por conseguinte, o letramento literário) para que possamos nos libertar um pouco daquilo que “nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente” (DE CERTEAU et al., 1998, p. 31). Mais uma vez, lembramos as palavras de Antonio Candido, da literatura como um direito humano, já apontadas neste artigo (CANDIDO, 1988).

III – PROJETO DE LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA

Retomando a discussão inicial deste artigo, citamos Paulino e Cosson (2009), que definem o letramento literário como “[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). Baseados nessa concepção de letramento literário e com o intuito de contribuir para a formação de leitores literários na escola, apresentamos uma sequência didática a partir do livro O olho de vidro do meu avô aplicada em uma turma de 6° ano do Ensino Fundamental II em uma escola pública da cidade de Itabirito/MG. Os alunos dessa turma tinham, à época do desenvolvimento do projeto, de 11 a 13 anos, faixa etária considerada como adolescência. Na revista Adolescência & Saúde, Eisenstein (2005) apresenta a Adolescência como o período de transição entre a infância e a vida adulta, “caracterizado pelos impulsos do desenvolvimento físico, mental, emocional, sexual e social” (EISENSTEIN, 2005, p. 6).

O objetivo desta sequência é contribuir para a formação de leitores autônomos e críticos, contemplando os multiletramentos, a partir da utilização de diferentes linguagens. Segundo Rojo (2012), uma proposta didática sustentada em critérios de análise crítica é “de grande interesse imediato e condiz com os princípios de pluralidade cultural e de diversidade de linguagens envolvidas no conceito de multiletramentos” (ROJO, 2012, p. 300).

Utilizamos como metodologia a proposta sugerida e experienciada por Rildo Cosson (2012) para o letramento literário denominado pelo pesquisador como sequência básica, composta por quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação.

A motivação consiste na preparação dos alunos para o contato com o texto literário, feita por meio de dinâmicas psicomotoras relacionadas à temática e à estrutura do texto. A introdução refere-se à apresentação física da obra, o suporte livro ao qual o texto pertence. Já a terceira etapa é a de leitura, momento em que se conhece o enredo da história. O quarto momento é a interpretação, tida como o entretecimento dos enunciados para a construção dos sentidos.

Além desses quatro passos propostos por Cosson (2012), acrescentamos mais duas etapas: uma produção literária e uma exposição dos trabalhos.

Desenvolvimento da sequência didática

1ª Etapa: Motivação

A professora convidou os alunos para se sentarem em roda e colocou no centro dela um pequeno baú, solicitando que um aluno o abrisse. Dentro dele havia várias perguntas escritas em tiras de papel coloridas com o objetivo de criar expectativas e promover uma aprendizagem mais significativa. A professora foi pedindo para que cada aluno retirasse uma pergunta e a lesse para a turma, conforme os exemplos seguintes: Você gosta de relembrar fatos do passado? Você tem lembranças marcantes de sua infância? Você gosta de ouvir de seus familiares (pais, tios, avós) histórias de família? De que forma podemos registrar acontecimentos importantes de nossa vida? Alguma vez já escreveu texto em que falou de fatos acontecidos com você? Você sabe o que são memórias literárias? Já leu algum livro de memórias? Qual? Em sua opinião, existem acontecimentos marcantes em sua infância que mereçam ficar registrados na memória?

Tais perguntas aguçaram a curiosidade dos discentes, ajudando-os a gerar as previsões e antecipando possíveis significados para a obra a ser explorada. Organizar o espaço da sala de aula, propor objetivos de leitura e fazer perguntas que facilitem o processo interpretativo são formas de atuar positivamente, contribuindo para o “processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67).

Após essa roda de conversa, a professora solicitou aos alunos que trouxessem na próxima aula, dentro de uma caixa, fotos ou objetos que os fizessem recordar acontecimentos importantes de suas vidas.

2ª Etapa: Introdução

Neste segundo momento, a professora iniciou a aula novamente com os alunos em círculo e perguntou quem havia levado um objeto que representasse um momento especial da vida deles. Grande parte da turma atendeu ao que foi solicitado e os alunos foram descrevendo e relatando para a turma qual era o significado em sua vida e/ou na vida de sua família daquelas fotos, dos brinquedos, das roupas, dentre outros objetos, conforme fotografia abaixo:

Fonte: Arquivo dos autores

Figura 1 Caixas que os alunos levaram com as lembranças da infância 

Em seguida, a professora também explicou que havia levado algo muito importante e de grande valor para a vida dela e apresentou o livro O olho de vidro do meu avô.

Fonte: Arquivo dos autores

Figura 2 Livro utilizado para o desenvolvimento do trabalho com a turma do 6° ano 

A docente iniciou a análise da obra pelos chamados paratextos: capa, quarta capa, data de publicação, dedicatória, e realizou também pequenas reflexões sobre a epígrafe, inserindo assim o aluno no contexto da obra. Dessa maneira, a professora mediou a construção de significados para que seus alunos compreendessem melhor a história. A partir dessa introdução, a professora convidou os alunos para irem ao laboratório de informática para pesquisarem sobre a biografia de Bartolomeu Campos de Queirós.

3ª Etapa: Leitura da obra

A leitura de textos literários é um momento importante e instigante (por vezes mágico) na prática pedagógica, pois o professor estabelece com o aluno um clima de cumplicidade. Para que isso ocorra, é necessário um ambiente propício e a preparação da história pelo professor antecipadamente. Na terceira etapa, os alunos se dividiram em grupos para realizar a leitura da obra, pois havia apenas seis exemplares na biblioteca da escola. Neste momento, a professora explicou que o livro seria lido em três etapas e deixou que os alunos o folheassem para estabelecer um primeiro diálogo com o texto e experimentar as emoções desencadeadas pela leitura. Em seguida, a professora fez uma leitura em voz alta da primeira parte com entonação e expressividade, com o propósito de dar mais ênfase à narrativa e ajudar os alunos a perceberem que, ao ler para o outro, um terceiro sujeito (o ouvinte) se instaura no processo de leitura, efetivando assim a leitura significativa.

4ª Etapa: Interpretação

Posteriormente à leitura da obra, a professora discutiu o enredo com os alunos e fez questionamentos com o propósito de contribuir para uma interação significativa entre leitor e texto, pois a compreensão de uma obra supõe possíveis diálogos. Após as discussões, os alunos foram capazes de produzir inferências, de posicionar-se, emitindo opiniões e apreciações. Além disso, a docente garantiu, após a leitura e discussão do enredo, um momento para sanar as dúvidas relacionadas ao vocabulário, propiciando a análise das palavras no contexto da obra, contribuindo para a compreensão efetiva da história. De acordo com Paulino e Cosson (2009, p. 74), é importante o “estabelecimento de uma comunidade de leitores na qual se respeitem a circulação dos textos e as possíveis dificuldades de respostas à leitura deles”. Essa medida é simples, porém importante, já que “assegura a participação ativa do aluno na vida literária e, por meio dela, a sua condição de sujeito” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 74).

5ª Etapa: A produção literária

A obra O olho de vidro do meu avô apresenta aos leitores as recordações de um neto fascinado pelo olho de vidro do seu avô, que “via o mundo pela metade” (QUEIRÓS, 2004, p. 05). Tais lembranças não estão organizadas de modo cronológico, mas dispostas no livro em formato de flashes de memória, e assim o narrador vai costurando suas lembranças. Nessa história, são resgatados os valores das memórias que fazem parte da constituição da identidade de cada um. Por isso, a professora, juntamente com seus alunos, construiu o macroglossário de valores relacionados à obra, conforme as fotografias abaixo:

Fonte: Arquivo dos autores

Figuras 3 e 4 Macroglossário dos valores 

A professora retomou o enredo da obra e explicou as características do gênero memórias literárias, sua funcionalidade e o tipo de linguagem utilizada. Além disso, discutiu com os alunos as seguintes questões: Como você se sentiu ao ler esta história? As lembranças do narrador se assemelham com algo ocorrido em sua infância? Para você, o que mais chamou atenção nesta história? Como você imaginou a infância do narrador? Mas, afinal, o que é um texto de memórias? Em sua opinião, existem acontecimentos marcantes em sua infância que merecem ficar registrados na memória?

A partir do debate dessas questões, os alunos escreveram algumas considerações sobre a obra trabalhada:

Fonte: Arquivo dos autores

Figura 5 Considerações feitas pelos alunos em relação à obra 

Uma das formas de registrar nossa existência é através da escrita. Todos nós já vivemos histórias para contar: sonhos, medos, travessuras, dentre tantas outras. A docente solicitou aos alunos que recordassem um fato importante ocorrido na infância, registrassem esse fato pela escrita e depois ilustrassem essa lembrança. Fundamentados na teorização bakhtiniana (BAKHTIN, 1997), os alunos foram incentivados a estudar e a refletir sobre a temática, a estrutura composicional e o estilo do gênero memórias literárias, tendo em vista o estágio de desenvolvimento cognitivo da turma.

Fonte: Arquivo dos autores

Figuras 6 e 7 Coletânea das memórias literárias 

Nota-se que, a partir do imaginário de um menino do interior, com suas referências culturais, os alunos puderam reler suas próprias vidas e produziram as memórias literárias.

6ª Etapa: A exposição

A última etapa da sequência didática consistiu em compartilhar com toda a comunidade escolar, por meio de uma exposição, os trabalhos realizados pelos alunos a partir do estudo da obra, conforme fotos já apresentadas neste texto.

A partir do desenvolvimento deste trabalho, pode-se afirmar que orientar o processo de aprendizagem e desenvolvimento das estratégias de leitura, articulando-as à literatura infanto-juvenil, enseja a formação de leitores cuja competência vai além da mera decodificação de textos, de um leitor que “se aproprie de forma autônoma das obras e do próprio processo de leitura, de um leitor literário” (COSSON, 2012, p. 120).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O principal objetivo do letramento literário no contexto escolar é formar um leitor que aprecie significações estéticas, capaz de se inserir em uma comunidade que faça suas próprias escolhas literárias, que saiba manipular seus instrumentos culturais e possa construir com eles um sentido para si e para o mundo em que vive. O projeto apresentado consiste em uma sugestão, adaptável pelo docente de acordo com sua realidade e com as características de seus alunos.

Escolhemos a leitura da obra O olho de vidro do meu avô porque nossa apreciação revela a narrativa como um espaço determinante de interação entre leitor e – texto, suscetível a novas interpretações e possíveis diálogos. O intuito do trabalho com a obra foi oferecer aos adolescentes uma experiência literária, sem deixar, no entanto, que as atividades de leitura e produção de texto “desrespeitassem” o suporte original. Segundo Rildo Cosson (2006), a experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência.

Vimos, aqui, uma amostra não exaustiva da recepção literária em termos mais amplos, pelas leituras de sujeitos comuns e pelos excertos dos artigos de especialistas – a leitura no cotidiano das pessoas, e apresentamos uma possibilidade de letramento literário na escola, por meio de atividades de leitura que ultrapassem o lugar de recreação e de deleite e apontem para a função emancipadora e humanizadora da literatura. Dessa forma, é necessário reconhecer a importância de atividades que abarquem diferentes tipos de materiais escritos, mas que não sejam negligenciados os textos literários, multiplicando, assim, os espaços de leitura e constituindo comunidades de leitores na escola e fora dela.

3A fim de tornar a leitura mais fluida, não repetiremos o nome do autor toda vez que nos referirmos à obra.

4O livro recebeu importantes prêmios, tais como o selo Altamente Recomendável e o Prêmio O Melhor Para o Jovem – Hors Concours, FNLIJ 2004, além do Prêmio Nestlé de Literatura e do Jabuti, ambos em 2005.

5Outras obras do escritor ainda trazem traços autobiográficos, mas julgamos pertinente aqui citar apenas essas obras, que têm características mais comuns com o livro O olho de vidro do meu avô.

6Ver, por exemplo, LIMA, Ebe. Literatura sem fronteiras. Uma leitura da obra de Bartolomeu Campos de Queirós. Belo Horizonte, Miguilim, 1998.

Referências

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Recebido: 30 de Outubro de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2021

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