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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 20-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022006 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

A leitura literária como prática social na contemporaneidade: além do espaço escolar

Literary reading as social practice in contemporaneity: beyond school space

Renata Junqueira de Souza1 

Andréia de Oliveira Alencar Iguma2 

Grazielli Alves de Lima3 

1Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) e livre-docente pela mesma instituição (2012) no conjunto das disciplinas Conteúdos, Metodologia e Prática de Ensino de Língua Portuguesa I e II e Leitura, Literatura e Interpretação de Textos no Processo de Formação de Professores. Atualmente é professor visitante da Universidade do Minho e professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino-Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: leitura, formação de leitores, literatura infantil, literatura e formação de professores, estratégias de leitura. E-mail: recellij@gmail.com

2Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU; Mestre em Letras (Literatura e Práticas Culturais) pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD (2012); Graduada em Letras também pela UFGD (2007). Professora no Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN. Atua principalmente nos seguintes temas: críticas literárias, literatura e ensino, vertentes do insólito e literatura infantil e juvenil. E-mail: dheia_oliveira@hotmail.com

3Mestre em Letras – Literatura e Práticas Culturais – UFGD. E-mail: grazi_alveslima@hotmail.com


Resumo

Este artigo apresenta reflexões sobre o letramento literário a partir da recepção da obra O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós (2004), por meio da análise de depoimentos de leitores comuns (a literatura no cotidiano dos indivíduos) – e de trechos de artigos científicos sobre a obra (a literatura no campo acadêmico). Apresentamos também uma sequência didática desenvolvida com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Itabirito, interior de Minas Gerais, a partir da recepção do livro. Para a realização da prática pedagógica, usamos a proposta sugerida e experienciada por Rildo Cosson (2012) para o letramento literário, denominada pelo pesquisador como sequência básica, composta por quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação. Dessa forma, procuramos compreender a literatura, a leitura literária e o letramento literário na vida social e na escola, pois cabe a essa instituição proporcionar aos alunos experiências que desenvolvam essa competência para o letramento literário, a se perpetuar pela vida adulta. O principal objetivo desse processo no contexto escolar é formar um leitor que aprecie significações estéticas, capaz de se inserir em uma comunidade que faça suas próprias escolhas literárias, que saiba manipular seus instrumentos culturais e possa construir com eles um sentido para si e para o mundo em que vive. Dessa forma, é necessário reconhecer a importância de atividades que abarquem diferentes tipos de materiais escritos, mas que não sejam negligenciados os textos literários, multiplicando, dessa forma, os espaços de leitura e constituindo comunidades de leitores na escola e fora dela.

Palavras-chave Letramento literário; Recepção literária; Projeto de leitura literária

Abstract

This article presents reflections on literary literacy from the reception of the work O olho de vidro do meu avô, by Bartolomeu Campos de Queirós (2004), through the analysis of testimonies of ordinary readers – literature in the daily lives of individuals – and excerpts from scientific articles on the work – literature in the academic field. We also present a didactic sequence developed with 6th grade students from a public school in Itabirito, in Minas Gerais. To carry out the pedagogical practice, we use the proposal suggested and experienced by Rildo Cosson (2012) for literary literacy, called by the researcher as basic sequence, composed of four stages: motivation, introduction, reading and interpretation. Thus, we seek to understand literature, literary reading and literary literacy in social life and at school, as it is up to this institution to provide students with experiences that develop this competence for literary literacy, to be perpetuated through adult life. The main objective of this process in the school context is to train a reader who appreciates aesthetic meanings, able to insert himself into a community that makes its own literary choices, who knows how to manipulate its cultural instruments and can build a sense with them for itself and for the world where you live. Thus, it is necessary to recognize the importance of activities that encompass different types of written material, but that literary texts are not neglected, thus multiplying reading spaces and constituting communities of readers at school and beyond.

Keywords Literary literacy; Literary reception; Literary reading project

Introdução

A prática da leitura literária é iniciada, majoritariamente, na escola, uma vez que, infelizmente, em nosso país há ainda uma expressiva parcela da sociedade que não têm acesso a livros. Desse modo, é só quando a criança atinge a idade escolar que provavelmente terá contato com as primeiras leituras, aquelas ainda lidas pela professora, bem como o acesso aos livros, por meio das bibliotecas escolares e/ou os cantinhos da leitura. Esses primeiros passos para a construção de um possível leitor literário acontecem ali, em conjunto com os demais colegas, com o ouvido atento à percepção do outro e de si mesmo. A iniciação à experiência literária, portanto, não ocorre de maneira solitária. O ato de ler, logo no início, também acontece por meio de diálogos, ou seja, do coletivo.

Nesse prisma, defendemos que ao longo de toda a formação escolar do indivíduo é fundamental que os livros e a leitura sejam priorizados em diversos cenários de ensino/aprendizagem, a fim de que a leitura literária possa ocupar lugar de destaque na construção dessas crianças e adolescentes. E, para isso, orienta-se que o ambiente de ensino tenha professores/mediadores leitores, conscientes da importância de suas ações no que se refere à formação desses indivíduos. Além disso, as escolas devem buscar um acervo significativo para que todos tenham acesso a diferentes gêneros, de épocas variadas, para que a experiência de leitura seja ampla e profícua, afinal, como escreveu Michèle Petit (2013, p. 48) “é impossível prever quais serão os livros aptos a ajudar alguém a se descobrir ou a se construir”.

No Brasil, especialmente nas últimas décadas, várias foram as pautas que tiveram por objetivo a formação de leitores literários por meio das Políticas Públicas de Leitura. Entretanto, há uma expressiva ruptura em muitos desses programas, o que vem acontecendo gradativamente e de forma significativa, diminuindo o acesso às obras literárias dentro das escolas e, consequentemente, deslegitimando a importância da formação de leitores literários.

Enquanto a literatura sofre constantes ataques nos meios escolares – inclusive perdendo status de disciplina – assistimos a um movimento que a insere em diferentes ambientes dentro e fora dos muros escolares. Diversos grupos conhecidos como clubes de leitura têm se organizado e promovido discussões literárias em bares, cafés, livrarias, parques, nos centros e nas periferias de diferentes cantos do nosso país.

Os clubes de leitura têm crescido de maneira exponencial. Estão a todo momento sendo anunciados em nossas redes sociais e atendem a variados gostos: desde clubes voltados para a leitura de obras escritas por mulheres até aqueles que selecionam para discussão apenas obras de ficção científica; promovem encontros presenciais ou on-line, com frequências que variam de semanais a mensais.

Essas associações literárias têm ainda alavancado o mercado editorial, que, de olho nesses movimentos, promove experiências de assinaturas, nomeadas por clube do livro, oferecendo a possibilidade de o livro chegar à casa do assinante sem muitos esforços. Coincidentemente ou não, essa forma de venda do mercado editorial ganhou força no mesmo período em que o governo promoveu cortes dos programas que abasteciam as escolas – e aqueles livros que eram adquiridos por meio de editais não foram mais vendidos, logo, muitas editoras tiveram que procurar alternativas para sobreviver.

Não se trata de afirmar que a literatura tem perdido espaço na escola e ganhado fora dela outros leitores, sem pensar de forma crítica nesses dois pontos. Tal como iniciamos essas primeiras palavras acerca do tema, a grande maioria da população só tem contato com uma obra literária no ambiente escolar. Por isso, a literatura deve, sim, estar na escola, de forma qualitativa e ao longo de todo o período de vida escolar do indivíduo. Entretanto, contrariando muitas previsões de que estaria morta na contemporaneidade, a literatura segue sua travessia, para além muros, promovendo o diálogo entre leitores de todas as idades e de todos os cantos.

Dado o exposto, o presente artigo pretende promover uma reflexão sobre a leitura na contemporaneidade, dentro e fora das instituições escolares. Para tanto, se faz necessário pensar um percurso recente acerca das políticas públicas e os documentos oficiais que ditam as diretrizes do ensino, de modo a vislumbrar o quanto a literatura tem perdido importância na vida escolar dos discentes. Em um segundo momento, iremos explanar sobre a literatura fora da escola e sobre como os movimentos dos clubes de leitura têm ganhado cada vez mais adeptos.

A descontinuidade nas Políticas Públicas de Leitura no Brasil: e agora como se lê?

O que esses operários faziam era reivindicar para eles e para seus filhos os saberes inúteis (a filosofia, a história, a política, a sociologia, a literatura, a economia), uns saberes que eles consideram como “realmente úteis”, visto que são os que podem esclarecer as causas da exploração e como começar a subvertê-la. [...] A emancipação intelectual, que também é emancipação política, não é senão a afirmação, por parte de cada um, igual a todos.

(LARROSA, 2017, p. 362-363).

A epígrafe que inaugura este subitem integra o livro Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas, de Jorge Larrosa (2017). O filósofo resgata por meio de sua escrita a vivência de um operário que frequentava a biblioteca da fábrica em que trabalhava e, como consequência desta nova prática, passou a ter acesso a livros variados que o levaram à compreensão das “coisas inúteis”. A partir de então, começou a entender sobre o processo do opressor versus oprimido ao vivenciar uma emancipação acerca dos controles vigentes em sua vida e compartilhar os “perigos” que a prática da leitura, em especial a literária, pode propiciar a uma pessoa ou grupo.

A leitura é uma prática cultural e social (CHARTIER, 2009). Seu exercício se faz presente em inúmeras atividades que realizamos no decorrer de nossas vidas, pois integramos uma sociedade grafocêntrica. Todavia, uma vez que sua prática é, muitas vezes, emancipatória, seu exercício se limita a uma aprendizagem mecânica e desestimulante. Desse modo, continua sendo pauta de diversos pesquisadores, professores, mediadores, bibliotecários, entre outros, sujeitos que lutam para que a prática da leitura não seja reduzida à decodificação, mas que, por meio dela toda a sociedade possa exercer seu direito à construção do senso crítico.

Nesse entender, a pauta deste subitem é assegurar o lugar da leitura literária em uma sociedade hodierna, averiguando o espaço que ocupa dentre os documentos oficiais e programas de incentivo à leitura em vigência, ou já suspensos, nas instituições de ensino.

Dentre os documentos oficiais, trazemos à baila os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997), que perdem sua obrigatoriedade com a inserção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e passa a ser apenas uma opção de instrumento de orientação. Todavia, é importante compreender a sua construção, pois ele foi o ponto de partida para os planejamentos escolares dos professores da rede pública de ensino durante mais de duas décadas e, indubitavelmente, suas orientações ainda ressoam em muitas práticas docentes. No referido documento, o uso da leitura é relacionado à formação de leitores competentes, que contribui na constituição de bons escritores, apresentando uma relação necessária entre o binômio ler e escrever.

No documento, a leitura é entendida como:

um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua. [...] Não se trata simplesmente de extrair informação da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão na qual os sentidos começam a ser construídos antes da leitura propriamente dita.

(BRASIL, 1997, p. 40-41).

E o que é um leitor competente? De acordo com os próprios PCNs, leitor competente é aquele que consegue conceder sentido nas lacunas do texto lido e que ainda articula a leitura realizada no momento com outras anteriores. Ressaltam que “um leitor competente só pode constituir-se mediante uma prática constante de leitura de textos de fato, a partir de um trabalho que deve se organizar em torno da diversidade de textos que circulam socialmente” (BRASIL, 1997, p. 41), e orientam que cabe à escola oferecer “materiais de qualidade, modelos de leitores proficientes e práticas de leituras eficazes, [...] é preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do mundo” (BRASIL, 1997, p. 42).

Se um leitor só se constitui diante do acesso a livros variados, como um brasileiro se tornará leitor se não há bibliotecas públicas em todas as cidades? Se o maior programa de distribuição de obras literárias está suspenso e o seu sucessor ainda não foi efetivado na prática? Há, realmente, um interesse em formar leitores? A lei 12.244, promulgada em 24 de maio de 2010, que “dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país”, decretada e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda não foi cumprida em sua totalidade e não há uma organização da sociedade para cobrá-la.

A distribuição dos referidos “materiais de qualidade” foi garantida por meio do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Infelizmente, com a sua suspensão, houve um rompimento com uma política de Estado que estava abastecendo as bibliotecas escolares do nosso país desde 1997, tendo sua última compra no ano de 2014. Para Oliveira-Iguma e Arteman (2020, s.p.):

No que concerne a descontinuidade do PNBE, ratificamos que seja um atraso a formação de leitores, porque ao invés de amenizar as falhas e investir na implementação de ações que favoreçam uma política ampla e eficaz, vamos precisar investir o nosso tempo aprendendo sobre uma nova política que já nasce com sérias lacunas.

Na edição Retratos da Leitura no Brasil em bibliotecas escolares (2019), há logo no início do texto uma possível justificativa sobre a suspensão do PNBE:

A interrupção no programa de distribuição de livros (PNBE), em 2015

Argumento: os livros não são lidos ou ficam guardados na escola (em caixas ou trancados em alguma sala).

Sabemos que – não basta distribuir livros se não forem garantidas outras condições para o pleno funcionamento das bibliotecas escolares/espaços de leitura integrados ao currículo escolar4

(2019, p. 10, grifos do texto).

Contra-arumentamos a justificativa exposta no excerto, considerando o que é defendido no livro Literatura fora da caixa: o PNBE na escola – Distribuição, circulação e leitura (2016), organizado pela professora Aparecida Paiva, que mapeou diversos problemas e sinalizou várias possibilidades de fazer com o que o programa crescesse em qualidade e avançasse para uma etapa além da distribuição, como sinalizou Ligia Cademartori no prefácio. Em hipótese alguma, anular toda a construção de um programa que entre erros e acertos vinha se mantendo como a possibilidade de acesso a livros de leitura literária com qualidade é o melhor caminho a seguir.

No ano de 2017, foi instituído o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD Literário, desenvolvido pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tem entre os seus objetivos a compra de obras literárias para a rede pública de ensino brasileira:

O Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, unificou as ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários, anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Com nova nomenclatura, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD também teve seu escopo ampliado com a possibilidade de inclusão de outros materiais de apoio à prática educativa para além das obras didáticas e literárias: obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros.5

Políticas públicas de leitura como o PNLD e o PNBE têm particularidades diferentes e não podem simplesmente ser congregadas a uma única ação. Os dois programas estavam exercendo sua função, a de ofertar material de leitura às escolas e bibliotecas escolares. No entanto, com as mudanças governamentais, percebe-se uma descontinuidade, que atrasa os objetivos educacionais – ou seja, formar leitores – e instaura um retrocesso, visto que não basta colocar o livro na estante da biblioteca, mas formar professores e bibliotecários para mediar a leitura e incentivar o aluno para cada vez mais querer descobrir as histórias das personagens guardadas nos livros e estantes.

O Congresso Nacional decretou a lei de nº 10.753, “I – assegurar ao cidadão o pleno exercício do direito de acesso e uso do livro” – inciso I – de 30 de outubro de 2003, que visa à Política Nacional do Livro, sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, em exercício na data. Para operacionalizá-la, o governo contou com alguns planos, dos quais destacamos o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), que tem por objetivo contribuir em prol da capacidade leitora brasileira, ao possibilitar que a leitura esteja inserida no cotidiano de toda a sociedade.

O PNLL afirma que aspecto mecanicista da leitura pretende reduzir o ato de ler à simples reprodução do que está no texto. De acordo com o documento, isso tem dificultado o desenvolvimento da leitura e da escrita, pois “a leitura configura um ato criativo de construção de sentidos, realizado pelos leitores a partir de um texto criado por outro(s) sujeito(s)” (BRASIL, 2010, p. 21). Assim, o plano orienta que o exercício de ler deve ultrapassar o código da escrita alfabética.

Diante do exposto, no final do ano de 2010, os responsáveis pelo PNLL fizeram um balanço de suas ações. No documento gerado,6 João Luis Silva Ferreira (o Ministro de Estado da Cultura, à época), argumentou que a leitura é de vital importância tanto para a “plena realização de nossa condição humana” quanto para “nossa capacidade de entender o mundo” (2010). Ressaltou, ainda, que em uma sociedade em que seus integrantes sejam leitores, as possibilidades de lidar com conflitos comuns ao ser humano se estendem, pois,

[...] a leitura não só qualifica a relação com outras áreas da cultura como também qualifica a relação do indivíduo com a saúde, com o mundo do trabalho, com o trânsito e a cidade, com o ambiente natural e social, possibilitando a superação de limitações físicas e simbólicas.

(BRASIL, 2010, p. 9).

Assim, ao lermos o documento, é notório que o plano em questão reconhece a singularidade em trabalhar com textos literários, e enfatiza que a literatura merece atenção especial:

[...] dada a enorme contribuição que pode trazer para uma formação vertical do leitor consideradas suas três funções essenciais, como tão bem as caracterizou Antonio Candido: a) a capacidade que a literatura tem de atender à nossa imensa necessidade de ficção e fantasia; b) sua natureza essencialmente formativa, que afeta o consciente e o inconsciente dos leitores de maneira bastante complexa e dialética, como a própria vida, em oposição ao caráter pedagógico e doutrinador de outros textos; c) seu potencial de oferecer ao leitor um conhecimento profundo do mundo, tal como faz, por outro caminho, a ciência.

(BRASIL, 2010, p. 46).

Célia Regina Delácio Fernandes dialoga com as três funções essenciais caracterizadas por Antonio Candido na escrita do artigo Leitura Literária na Escola (2010), ao justificar a necessidade de ensinar literatura no contexto escolar. De fato, a escola e a literatura contribuem no processo reflexivo do discente, assim, ambas podem transformar-se; transformar-se “a realidade num mundo mais humano, solidário e democrático” (FERNANDES, 2010 p. 4). Uma vez que a literatura vai ao encontro de peculiaridades comuns aos seres humanos, pelo caráter de fabulação, ao trabalhar com temas universais o leitor poderá se enxergar, ver o outro, se conhecer melhor, bem como ampliar seus conhecimentos de mundo e de si mesmo.

No cenário dos que almejam um Brasil leitor, destaca-se também o Programa Nacional de Incentivo à leitura (PROLER), instituído em 13 de maio de 1992 pelo Decreto nº. 519, vinculado à Fundação Biblioteca Nacional (FBN), que visa a colaborar com o direito à leitura, fomentando condições de acesso às práticas de leitura e de escrita críticas e inventivas. Ao ler Proler: concepções e diretrizes, com o cuidado em observar a concepção de leitura presente no documento, foi possível averiguar que o programa entende a leitura e a escrita como práticas socioculturais necessárias para viver nas sociedades hodiernas. Ressalta-se a diferença entre saber ler e efetuar a prática da leitura:

[...] se o aprendizado da leitura atende a necessidades pragmáticas, como deslocar-se de um ponto a outro no espaço das cidades, trocar correspondências, fazer compras e realizar outras tarefas cotidianas, é a prática da leitura que possibilita aos indivíduos participar de maneira ativa da vida em sociedade. [...] a leitura é uma atividade intelectual relativa à linguagem, que se caracteriza pela compreensão de discursos, organizados segundo regras próprias e sistemas específicos de referências diferentes da oralidade.

(BRASIL, 2009, p. 8).

No entanto, ao acompanharmos o PROLER por mais de uma década, verificamos que muitos polos em municípios brasileiros fecharam por falta de incentivo, outrora viabilizado pelo governo federal. Atualmente, alguns polos se mantêm por iniciativas de universidades, organizações sem fins lucrativos, ou até mesmo por um grupo de pessoas que, ao acreditar na leitura literária e em sua divulgação, acaba empenhando esforços para mobilizar ações anualmente, muitas vezes utilizando recursos próprios.

Seja por meio das aprendizagens do Plano Nacional do Livro e da Leitura, seja a partir das crenças disseminadas nos encontros de vários polos do PROLER, uma coisa é certa: a leitura literária é uma possibilidade de reflexão acerca da existência humana, da condição social e política, ao tornar perceptível a necessidade em conhecer outras maneiras de pensar e reconhecer a diversidade que há no contexto em que estão inseridas.

Nessa mesma esteira de pensamento, Roger Chartier (1999, p. 77) declara que ler é:

Apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor.

Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem.

Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão.

Ler é apropriar-se do inventar e produzir significados. E o ato de ler não significa repetir, traduzir, memorizar e/ou copiar ideias transmitidas pelos diferentes tipos de textos. A leitura pode propiciar ao leitor, por meio de seus diferentes gêneros, uma localização cultural, contribuindo de maneira única para a formação de um leitor crítico e competente ao articular o mundo das palavras com o seu eu mais profundo e também com a comunidade onde ele, esse sujeito leitor, se insere.

No entanto, a prática da leitura compõe inúmeras agendas em diferentes esferas do poder. Por exemplo, citamos “Retratos da Leitura no Brasil”,7 que em setembro de 2020 ganhou sua quinta versão, resultado da aferição das práticas leitoras dos brasileiros investigada entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. O público-alvo para esta edição foram pessoas com mais de 5 anos de idade, sem escolarização mínima. A amostra se deu a partir de 5.012 pessoas entrevistadas, contemplando um total de 317 municípios, sem excluir nenhuma capital brasileira. Para a referida pesquisa, leitor é “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses”, e não leitor é “aquele que declarou não ter lido nenhum livro nos últimos 3 meses, mesmo que tenha lido nos últimos 12 meses”.

A revista Quatro Cinco Um (2020) ouviu na edição de setembro o professor João Luíz Ceccantini acerca da última edição da Retratos da Leitura no Brasil. Logo no início de sua análise, o especialista pontua que nos últimos quatros anos houve diferenças expressivas acerca de significativa parte dos entrevistados. Ceccantini destaca ainda a presença de um aspecto peculiar: “a presença de uma nova demanda aos respondentes, que produziu um subconjunto de dados original. Foram obtidos pela inclusão na pesquisa de um módulo de questões com o objetivo de compreender o universo específico dos leitores de literatura”.

O professor sinaliza que,

No universo geral dos sujeitos pesquisados, em que 52% dos respondentes são inseridos na categoria leitor (aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses), 28% declararam ser leitores de livros de literatura e 30% informaram que são leitores de literatura apenas em outros meios. Tomada como base a população brasileira em 2019 com cinco anos ou mais – 193 milhões de pessoas –, é, portanto, substantivo o número de leitores que se dedicam à leitura da literatura. No contexto da pesquisa, a literatura é considerada de forma bastante abrangente. São tomadas como literatura as obras que se opõem àquelas de natureza essencialmente utilitária/informativa. Ou seja, literatura, no contexto da pesquisa abarca diferentes gêneros (romance, poesia, conto, crônica etc.) e diversas modalidades (clássicos nacionais e estrangeiros, best-sellers, literatura infantil, literatura juvenil etc.) (2020).8

Outra importante reportagem sobre a quinta edição da Retratos da Leitura no Brasil foi realizada por meio do Publishnews. Na matéria, assinada por Leonardo Neto, pontua-se que “entre 2015, ano da última edição, e 2019, o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores”.9 Uma das considerações sinalizadas no texto a fim de justificar a queda expressiva de leitores no país é o uso exacerbado de redes sociais, pois o brasileiro ultrapassa a média mundial de uso do Instagram, por exemplo. Em consonância ao uso de redes sociais, nós acreditamos que essa queda expressiva esteja atrelada ainda à inexpressividade da literatura dentro do espaço escolar, tal como pontuado na introdução.

Outras investigações que mapeiam o índice de analfabetismo no Brasil são lembradas no referido livro, como, por exemplo, o Indicador de Alfabetismo Funcional – INAF/BRASIL, medido pelo Instituto Paulo Montenegro, que desde 2001 apura regularmente os índices de Alfabetismo Funcional da população brasileira entre 15 e 64 anos de idade. Na última versão, assinala que, no Brasil, entre a população que se encaixa na faixa etária citada, o país tinha 11,5 milhões de analfabetos em 2017 e não conseguiu atingir a meta de 2015 para a redução de índice de analfabetismo prevista no Plano Nacional de Educação.

Redigida em 2017, a BNCC ainda está em processo de implementação nas escolas brasileiras, ao passo que se torna o documento oficial a fim de regulamentar as estruturas curriculares e os planejamentos de ensino. Sobre a BNCC, o site oficial do MEC traz as seguintes informações:

Conforme definido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), a Base deve nortear os currículos dos sistemas e redes de ensino das Unidades Federativas, como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil.

A Base estabelece conhecimentos, competências e habilidades que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade básica. Orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a Base soma-se aos propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.10

Ao ter acesso à BNCC, uma pergunta ganha destaque em nossa leitura: Por que a literatura não está na BNCC como componente específico? A Figura 1 apresenta as competências gerais e os seus componentes, todavia, a literatura não é contemplada.

Figura 1 Competências Gerais, (BRASIL, 2017). 

A nossa leitura é a de que, com a implementação da BNCC, a literatura perde ainda mais espaço dentro das escolas brasileiras e, com isso, menos leitores críticos serão formados. Ademais, não inserir a literatura como componente específico é aniquilar as possibilidades de acesso para milhares de crianças e adolescentes ao texto literário.

Sintetizando, em nossas discussões foram expostos vários documentos publicizados nacionalmente, as definições de leitura, a maneira como evidenciam ou não leitores competentes, e demos especial atenção à leitura do texto literário. Afinal, a literatura é constantemente cerceada no âmbito escolar. Com brechas e vazios de (não) políticas públicas de leitura e formação do leitor literário, começaram a ganhar força no mercado editorial brasileiro os clubes do livro: um serviço de assinatura que envia mensalmente livros e alguns adereços para a casa do assinante. Surgidos em meados de 2011, os clubes do livro cresceram por volta de 2015 e hoje é possível encontrar uma variedade imensa de tipos de clubes, com temáticas específicas, que atendem a todos os gostos, desde as crianças até os adultos.

Esse tipo de serviço também possibilitou uma outra prática, pois não basta enviar livros aos leitores, é preciso aproximá-los. Por isso, esses clubes promovem o encontro dos leitores, seja de forma virtual, por meio de aplicativos, ou presencial. Essa prática, nada nova, mas completamente ressignificada em tempos atuais, tem levado a literatura para além dos muros escolares, propiciando experiências e trocas entre leitores de todas as idades.

Clubes de leitura e interação: trocas e comentários como prática de leitura contemporânea

Diferentes manifestações artísticas, como, por exemplo, pinturas e a própria literatura, apresentam cenas da leitura como um ato solitário. O leitor escolhe a obra, se acomoda da forma que mais lhe agrada, abre o livro e começa a se familiarizar com a história, conhecendo cada uma das personagens e a maneira como o narrador resolveu contar a trama. Ele vai percorrendo as páginas, ora se emocionando, ora se divertindo e aos poucos aquele livro o cativa, o impressiona, desperta a vontade de refletir acerca dos vários temas da vida. Quando fecha o livro e finaliza a leitura, são tantas e tantas questões que o rondam que o leitor, muitas vezes, sente uma profunda vontade de conversar sobre a obra. É da vontade de dialogar com outros leitores que surgem os clubes de leitura, uma vez que:

A leitura aproxima as pessoas, conclama-as ao diálogo, oferece provisões, palavras e mais palavras, instigações, sentidos novos e cambiantes, promovendo a interação. Quanto nos agrada, como leitores, falar do livro que acabamos de ler! Como nos avassala o impulso de querer que todos os amigos o leiam! [...] Por isso, com que prazer trocamos impressões sobre determinado livro com aqueles que também se renderam ao seu fascínio! Quem gosta tanto quanto nós do livro pelo qual nos apaixonamos vira amigo

(MARIA, 2016, p. 60).

Os clubes de leitura têm esse papel: o de aproximar pessoas que têm em comum a leitura enquanto prática e a vontade de compartilhar suas experiências literárias. Muitas vezes, essas conversas suscitam diferentes pontos de vista e tantas reflexões que o livro é lido e relido ali, em grupo, com cada um dos membros destacando os pontos que mais lhe chamaram a atenção. E é nesse ponto que esses grupos ganham força e potência, pois permitem que a leitura transcenda um ato solitário para se tornar uma vivência coletiva, repleta de sentidos.

Ao refletirmos sobre as práticas de leitura na contemporaneidade, quase que inevitavelmente pensamos nas propostas dos clubes, que visam a reunir pessoas com o intuito de trocar experiências acerca de uma obra e suas variadas possibilidades de leitura. Obviamente, sabemos que essa não é uma atividade recente, como afirma Michèle Petit (2010):

Fenômeno antigo, muito presente no mundo anglo-saxônico no século XIX, os clubes de leitura tiveram, durante algum tempo, uma imagem obsoleta. Interessavam pouco aos pesquisadores, com raras exceções. A partir dos anos 1990, contudo, eles se multiplicaram em vários países e havia centenas, milhares, na Inglaterra, e outros milhares nos Estados Unidos. Hoje são atores influentes com os quais as edições e o comércio do livro devem contar

(PETIT, 2010, p. 149).

Os clubes de leitura vêm ganhando cada vez mais força, dada a proliferação de grupos que se organizam para divulgar, debater e refletir sobre literatura. Há grupos que se encontram presencialmente, bem como aqueles que se restringem ao mundo virtual, especialmente em tempos de distanciamento social, tal como temos assistido no ano de 2020. Aliás, é importante ressaltar que, devido à pandemia, há um forte crescimento dos clubes de leitura on-line. É na internet, inclusive, que esses grupos têm encontrado espaço, não só para a divulgação, mas também como lugar de encontro para reflexão e trocas.

Mas afinal, o que é um clube de leitura? Sobre uma possível definição, Juan A. Núñez Cortéz, em texto intitulado “Clubes de lectura: una oportunidad para el aprendizaje permanente”, afirma:

Respecto de la definición de “club de lectura” hay que llamar la atención sobre la divergencia en las propuestas. La aparente falta de consenso viene dada por la influencia de factores que varían en función de las características que tiene el club de lectura. Así, una das definiciones se centran en el hecho de que la lectura de las obras sea fragmentada: “Um club de lectura es un grupo de personas que se reúnem para comentar un mismo libro, que todas han leído previamente. En nuestro caso, el libro se lee y se comenta por partes (...)”

(CORTÉS, 2011, p. 63).

Esta outra definição é mais ousada e diferencia um clube do livro do clube de leitura, dizendo que o último está voltado para a leitura e o primeiro para o lucro. Os autores ainda enfatizam que atualmente há três categorias de clubes:

[...] a primeira, com bases econômicas (todo mês o leitor paga um valor fixo e recebe uma determinada obra); a segunda trata-se da reserva de um espaço onde são disponibilizados livros, revistas e outros documentos para leitura e empréstimo e a terceira criação de um grupo de leitores que se reúnem para ler e discutir um determinado texto/livro

(BORTOLIN; ALMEIDA JÚNIOR, 2011, p. 7, grifo do autor).

O clube de leitura aqui discutido pertence à última categoria. Embora haja algumas divergências quanto à sua definição, conforme notamos na citação que antecede, os clubes de leitura, que também podem ser nomeados como clube de leitores, são grupos que visam a reunir-se para dialogar sobre leituras. No geral, os grupos se organizam quanto à lista de obras a serem lidas, o local para o encontro e as demais funcionalidades do clube: a forma como a discussão será conduzida, os meios de divulgação que serão utilizados para atrair ainda mais leitores que estejam motivados a fecharem o livro e compartilhar suas impressões.

Dado o exposto, ressaltamos que para se constituir um clube de leitura é necessário, em primeiro lugar, a abertura para o diálogo e para o gosto pela leitura. Depois disso, há que se delimitar a frequência dos encontros, o local para que os mesmos aconteçam e as obras a serem lidas. Muitos grupos se reúnem em torno de temáticas para a seleção literária do clube, como, por exemplo: um clube que irá ler/debater apenas clássicos da literatura ou obras escritas por mulheres.

Para criar um clube de leitura não há necessidade de inseri-lo em um ambiente escolar ou ser especialista em literatura. Há um movimento grande de pessoas de diferentes áreas que se propõe a formar um clube pela razão de gostar de ler ou de resgatar a leitura como uma prática necessária em sua vida. Por ser uma atividade democrática e que pode ser adequada, há diferentes perspectivas (clubes sobre livros de ficção, não ficção; encontros mensais, semanais etc.).

No que concerne ao ambiente escolar, é preciso abrir um parêntese para afirmarmos a importância e potência dessas atividades, uma vez que a literatura pode ser apresentada de uma forma diferenciada, possibilitando aos participantes de fato a leitura das obras, que, muitas vezes, são apenas mencionadas durante as aulas. Sobre isso, a professora Luzia de Maria, em sua obra O clube do livro: ser leitor, que diferença faz? (2016) explicita sua experiência com alunos da rede pública de ensino, após a criação de um clube literário escolar, na década de 1980. Em dado momento, ela traz para o seu texto a fala de uma aluna, que serve de importante reflexão.

– Professora, por que aqui no clube do livro literatura é tão legal e na sala de aula é tão chata?

– Chata, como?

– Ah! Na sala de aula, a gente não lê os livros, não discute, não fala e temos que decorar características de cada estilo de época, nomes dos autores, das obras... Aqui nós lemos os livros, ouvimos os colegas falarem dos livros que leram, e a gente fica com a maior vontade de ler também, lemos as resenhas de livros nos jornais e também ficamos com vontade de ler os livros comentados, conversamos com escritores, aqui é uma maravilha, na sala de aula é uma chatice!

(MARIA, 2016, p. 193).

Os clubes de leitura são “uma maravilha”, conforme depoimento da aluna, justamente por possibilitarem a leitura da obra e, posteriormente, o lugar de fala, que deixa de ser apenas do professor/mediador e se torna de todos. Ao falar sobre o livro e ouvir a experiência do outro, muitas vezes, nos deparamos com diferentes leituras, formas ressignificadas de enxergar o livro e a leitura. Possibilitar que a voz de todos seja ouvida é uma das máximas de um clube de leitura democrático. Nesse sentido, concordamos com a professora Luzia de Maria (2016, p. 67), quando afirma:

Penso que o primeiro acordo a ser estabelecido – entre os membros de um clube de leitura e igualmente entre professores e alunos –, assim como uma regra básica sem a qual nenhum clube de leitura ou espaço de aprendizado pode funcionar, é que seja garantido a todo o seu direito à fala.

E é nesse ponto que precisamos destacar o papel do mediador do clube de leitura. Cabe a ele muito mais do que a organização prática do grupo, como definir local, frequência, por vezes as obras a serem lidas. Ele é o condutor dos encontros, aquele que vai direcionar a discussão, que vai mediar o debate, compreendendo o tempo de fala e o tempo de escuta de todos. O mediador do clube de leitura é a figura central do clube. Isso ocorre porque os mediadores de leitura:

[...] são aquelas pessoas que estendem pontes entre os livros e os leitores, ou seja, que criam as condições para fazer com que seja possível que um livro e um leitor se encontrem. A experiência de encontrar os livros certos nos momentos certos da vida, esses livros que nos fascinam e que nos vão transformando em leitores paulatinamente, não tem uma rota única nem uma metodologia específica; por isto os mediadores de leitura não são fáceis de definir. No entanto, basta lembrar como descobrimos, nos primeiros anos da vida, esses livros que deixaram rastros em nossa infância e, talvez, aparecerão nítidas algumas figuras que foram nossos mediadores de leitura: esses adultos íntimos que deram vida às páginas de um livro, essas vozes que liam para nós, essas mãos e estes rostos que nos apresentavam os mundos possíveis e as emoções dos livros.

(REYES, sp).11

Diante do exposto, os mediadores de leitura têm surgido de todos os lugares, são pessoas de diferentes profissões, de todos os locais, do centro à periferia. O que elas têm em comum é o desejo de falar de literatura, de partilhar suas leituras, de divulgar gêneros que nem sempre são debatidos na escola. Esses mediadores têm reunido outros pares, encontrando-se em bares, praças, bibliotecas, cafés, livrarias, entre tantos outros lugares, com o objetivo de fomentar essa prática de ler.

Os clubes de leitura, compostos por esses sujeitos, que enxergam na literatura a oportunidade de senso crítico e reflexivo diante das questões do mundo, têm movimentado as estruturas de nossa sociedade, contrariando uma máxima que há tanto circula entre as assertivas populares, de que o brasileiro não lê.

Esse movimento literário, de busca por clubes de leitura, tem sido observado, principalmente, nos meios digitais, e tem se acentuado nesse ano, provavelmente devido às medidas de prevenção, postas à sociedade em decorrência da covid-19. Com mais tempo em casa, muitas pessoas passaram a buscar nas diversas expressões artísticas um respiro diante dos percalços impostos pela pandemia. Isso se nota pelo número expressivo de clubes de leitura on-line.12

Validando as diferentes plataformas e redes sociais, produtores de conteúdo voltados para a literatura, professores e leitores apaixonados têm buscado encontrar neste vasto mundo da internet outras pessoas que dividem os mesmos gostos literários. É a partir desta ânsia, também acentuada pelo isolamento, que grupos têm se reunido em frente a telas para debater literatura, que compreende desde as obras clássicas, latino-americanas ou contemporâneas, do conforto de suas casas, acompanhados de sua bebida preferida.

O fato é que a literatura, tantas vezes negada e silenciada nos muros escolares, tem ganhado, cada vez mais, espaço fora do âmbito de ensino. Ela tem sido partilhada e discutida, por diferentes grupos, em diversificados meios. Segue possibilitando encontros, proporcionando o surgimento de grandes amizades, de modo que, ao levantar a cabeça durante a leitura de um bom livro, o leitor encontre outro olhar, também imerso nas palavras que acabou de ler. É o ciclo da leitura que se encerra e se inicia, de forma a renovar e revalidar a importância da leitura e dos encontros, inclusive aqueles literários.

A esse respeito, estamos de acordo com a assertiva que segue:

Leemos para ser y sentir que estamos siendo, leemos siempre libres pues nadie – si queremos – piensa por nosostros y, por último, leemos solos y com los demás [...]. Asimismo, la actividad de puesta em común y comentario que se realiza em los clubes de lectura favorece el conocimiento; constituye um aprendizaje que se conforma no sólo com el saber sino com el pensar. Además, los clubes de lectura son un claro ejercicio de democracia puesto que pese a la posible ausencia de consenso, el dialogo y el respeto son imprescindibles para llevar la atividade a cabo. En una época en la que la reflexión brilla por su ausencia, el club de lectura se convierte en un instrumento capaz de favorecer el espíritu crítico de la sociedade a través de atividades como la comparación y el análisis

(CORTÉS, 2011, p.72).

Considerações finais

A escrita deste artigo evidenciou a importância da continuidade nas políticas públicas de leitura, uma vez que essa acentuada descontinuidade, conforme apresentada no corpo do nosso texto, é um desserviço à formação de uma sociedade leitora, em especial a brasileira, ainda tão frágil. Nesse prisma, retomamos a ideia de Larrosa, que serviu como epígrafe no primeiro subitem, ao compactuar com a ideia do estudioso no que concerne os “saberes inúteis”:

Porque é um saber que não fixa as pessoas em seu lugar, porque não é o tipo de saber do qual as pessoas necessitam em função de sua condição, de sua identidade e de sua capacidade, mas que, exatamente por isso, permite às pessoas irem mais além de sua condição, de sua identidade e de sua capacidade. E segundo, porque é o saber que contém as possibilidades de analisar e subverter as lógicas da submissão, essas que fazem com que cada um esteja em seu lugar, que coincida com seu lugar, ou seja, que se identifique com sua condição, com sua identidade e com a sua capacidade.

(LARROSA, 2017, p. 363).

A literatura, entre suas funções, possui a capacidade de nos desautomatizar, por isso, para tantos, ela é compreendida como perigosa, afinal, é muito mais fácil controlar uma sociedade acrítica e que não questione as ordens que nos vigiam e nos punem. Ademais, propiciar o alcance à literatura é contribuir com pessoas que se apropriem dos seus direitos enquanto cidadãs. A prática da leitura literária auxilia no processo de compreender a multiplicidade de sujeitos que integram a nossa sociedade, o que vai no processo contrário de discursos polarizados e moralizantes.

A ideia da escrita de Larrosa transitar entre nossas reflexões se justifica no que concerne a que esse grupo de operários tiveram acesso à literatura além do espaço escolarizado, ou seja, a literatura rompeu com o asfalto e nasceu nos lugares improváveis, tal como a flor e a náusea de Drummond. Obviamente, não deixaremos de lutar para que a leitura literária ocupe lugar de prestígio dentro dos documentos oficiais, para que as políticas públicas de leitura sejam contínuas e aperfeiçoadas; todavia, também olharemos para o que se tem feito para que ela continue resistindo além do controle dos que detêm o poder.

Assim, quando pensamos em leitura literária na contemporaneidade, pensamos em clubes de livros e, em especial em clubes de leitura, uma vez que a forma democratizada dos clubes de leitura, que permitem o constante diálogo entres seus membros e a construção de uma compreensão literária em conjunto, tem possibilitado uma renovada experiência de leitura. Talvez muito próxima daquela que víamos com o encantamento infantil, ainda na escola, quando todos ouvíamos a história e depois todos eram convidados a falar sobre ela.

6Esta edição traz atualizações nas pesquisas da área de educação e leitura e também as contribuições feitas na Pré-conferência Setorial do Livro e Leitura realizada em março de 2010.

7A primeira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pela CBL, Snel e Abrelivros, com apoio da Bracelpa, foi realizada em 2000/2001 pelo instituto A. Franceschini Análise de Mercado, de São Paulo. Seu objetivo básico era identificar a penetração da leitura de livros no país e o acesso a eles.

10Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 12 out. 2010.

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Recebido: 30 de Outubro de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2021

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