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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022009 

DOSSIÊ: A LEITURA PELO OLHAR DO COTIDIANO

Modos e práticas leitoras, desafios do digital

Reading modes and practices, digital challenges

1Historiador da Educac?ão e Professor Catedra?tico do Instituto de Educac?ão da Universidade de Lisboa. E-mail: justinomagalhaes@ie.ulisboa.pt


Resumo

Cultura escrita, alfabetização e escolarização assinalam a longa Modernidade de mais de quatro séculos na História do Mundo Ocidental. A cultura escrita congrega informação, conhecimento, pensamento, acção. A aculturação escrita constituiu condição e factor de conhecimento, cidadania e humanitude. Desde finais da Idade Média, com a difusão do papel e a mecanização da tipografia, o mundo da leitura alterou-se, em reflexo da maior divulgação do livro impresso. Na transição do Antigo Regime, a leitura e a escrita eram práticas usuais na esfera do Estado e da administração pública, e tornavam-se condição de cidadania. A escola tornou a leitura obrigatória. No decurso de Oitocentos, a progressiva universalização da alfabetização escolar e a constituição da esfera pública beneficiaram de avanços técnicos no mundo editorial, na vulgarização do livro, na disseminação de periódicos, na criação de bibliotecas. No século XX, a cultura de massas através do livro, do áudio e do cinema trouxe a omnipresença da leitura, cujos índices cresceram até final do século. Mas desde a década de oitenta que o digital e os novos modos de ler só em parte vêm suprindo a desvalorização das formas tradicionais de cultura e leitura.

Combinando a evolução da cultura escrita, do livro e dos modos de ler, estrutura-se uma sequência de quadros históricos: i) ciclo centrado no impresso e no livro, que se acentuou com a Ilustração – ordem do livro, falar como um livro, aprender pelo livro; ii) ciclo caracterizado por novos modos de ler e novos leitores – o leitor escolar e “nações a ler”; iii) ciclo que se acentuou na segunda metade de Oitocentos, de aculturação de massas centrada no impresso, no livro, no periódico e nas bibliotecas; iv) ciclo que se prolongou até à viragem do século XX, de universalização de leitura do impresso e do audiovisual, com relevo para a rádio, o cinema e a televisão – esta em espaços domésticos, caracterizado pela cultura de massas e pela globalização; v) o ciclo actual, de universalização do digital com novos modos de aculturação e comunicação. Traçarei uma panorâmica histórica da aculturação e sociabilidade pela leitura e pela escrita, tendo como referência estes ciclos.

Palavras-chave Digital reading; Modos e práticas leitoras; Livro; Biblioteca; Leitura digital

Summary

Written culture, literacy and schooling mark a long Modernity of more than four centuries in the History of the Western World. Written culture brings together information, knowledge, thought, action. Written acculturation was a condition and factor for knowledge, citizenship and humanity. Since the end of the Middle Ages, with the spread of paper and the mechanization of typography, the world of reading has changed, as a result of the greater dissemination of the printed book. In the transition from the Old Regime, reading and writing were usual practices in the sphere of the State and public administration, and became a condition of citizenship. School made reading mandatory. During the 1800s, the progressive universalization of school literacy and the constitution of the public sphere benefited from new technical advances in the publishing world, in the popularization of books, in the dissemination of periodicals, in the creation of libraries. In the course of the 20th century, mass culture through books, audio and cinema brought the omnipresence of reading. Reading rates grew until the end of the century, but since the 1980s the digital and the new modes to read have only partially made up for the devaluation of traditional forms of culture and reading.

Combining the evolution of written culture, books and ways of reading, a sequence of historical frameworks is structured: i) a cycle centered on the print and the book, which was accentuated with Illustration – book order, speaking like a book, learn from the book; ii) a cycle characterized by new ways of reading and new readers – the school reader and “reading nations”; iii) a cycle that was accentuated in the second half of the 19th century, of mass acculturation centered on the press, books, periodicals and libraries; iv) a cycle that lasted until the turn of the 20th century, of universal reading of print and audiovisual, with emphasis on radio, cinema and television, this in domestic spaces, characterized by mass culture and globalization; v) the current cycle of digital universalization with new modes of acculturation and communication. I will draw an overview of these four centuries of acculturation and sociability through reading and writing, with reference to these cycles.

Keywords Written culture; Reading modes and practices; Book; Library; Digital reading

Introdução

A cultura letrada e a aculturação escrita, designadamente como leitura e informação e, na sequência, a alfabetização e a escolarização assinalam uma longa Modernidade de mais de quatro séculos na História do Mundo Ocidental e beneficiaram de acentuada evolução. A história da leitura registra avanços técnicos, linguísticos e socioculturais, como documentam e aprofundam os estudos de Roger Chartier (1996; 1997). Desde finais da Idade Média, com a difusão do papel e posteriormente com a mecanização da tipografia, o mundo da leitura alterou-se, em reflexo da maior divulgação do livro impresso.

No decurso da Idade Moderna, o fomento da leitura pelo livro ficou associado à produção e circulação de ideias e conhecimentos, e a estratégias ideológicas, políticas, métodos e instâncias de formação e vulgarização. Emergiu um mercado editorial e de circulação do impresso. Mas foi aquém de Setecentos que o crescimento da alfabetização sequente a novos usos da aculturação escrita em vernáculo e a novos formatos do livro tornaram efectiva uma aprendizagem pela leitura e pelo livro: ordem do livro, falar como um livro, aprender pelo livro (cf. WAQUET, 2003). Com a expansão do universo leitor ao longo de Oitocentos, foram implementados meios e suportes de leitura cada vez mais acessíveis, nomeadamente os periódicos. A leitura tornou-se sinónimo de informação. Colecções editoriais e bibliotecas orientavam e tornavam acessível a leitura. As novas rotativas tipográficas, ao tempo em que faziam baixar o preço do livro, tornavam possível a inclusão da gravura e da fotografia. O impresso adaptava-se às distintas matérias de investigação, informação, conhecimento, nos domínios da ciência, da técnica, das artes. A expansão do livro na segunda metade do século XIX, conjuntamente com o periódico, dando origem a uma massificação cultural pelo impresso, está bem documentada nos estudos e publicações organizados por Jean-Yves Mollier. O livro escolar foi uma das modalidades que mais fez crescer o mercado editorial, nomeadamente em França, podendo referir-se que, entre 1872 e 1889, a editora Armand Colin comercializou mais de 50 milhões de livros destinados à infância (MOLLIER, 2001, p. 58).

Foi no século XX que o audiovisual, com relevo para a rádio, o cinema e a televisão, esta com entrada nos espaços domésticos, emergiram como meios de cultura de massas, em contraponto ao livro (MOLLIER, SIRINELLI, VALLOTTON, 2006). Aquém da década de oitenta do século XX, o mundo da leitura em impresso foi abalado pelo impacto de novas tecnologias assentes no digital e no algoritmo. A internet e as redes sociais trouxeram uma nova realidade ao campo da leitura (EVANS, 2011; CARDOSO, 2015). De acesso selectivo, a leitura havia-se tornado imprescindível e universal, mas a omnipresença da leitura não significa uma uniformidade leitora. A sociabilidade e as práticas leitoras desenvolveram-se como reflexo das diversidades culturais e sociais. Ao trazer outros modos e práticas de ler, o digital não só não tem assegurado a uniformidade sociocultural, como tem estado associado a regressões leitoras, havendo mesmo quem pergunte se se está face a um novo leitor ou a um não leitor. A regressão dos modos tradicionais de leitura tem sido acompanhada pela desvalorização das formas culturais, literárias e artísticas.

Longa modernidade e cultura escrita

A cultura escrita congrega informação, conhecimento, pensamento, acção. A aculturação escrita constituiu e é condição e factor de cidadania e de humanitude. Beneficiando de avanços técnicos, linguísticos e socioculturais, desde finais da Idade Média que o fomento da leitura ficou associado a estratégias ideológicas, políticas de aculturação, métodos e instâncias de formação e vulgarização. Os últimos dois séculos foram de transformação acelerada, tanto sob o lema de “nações a ler”, expressão utilizada por William St. Clair (2007) para traduzir a universalização da leitura propugnada pelos românticos, quanto de uma cidadania e de uma universalização letradas. A leitura tornou-se obrigatória e modelada, através da escola, como lembra Anne-Marie Chartier (2007): “on va à l’école pour apprendre à lire. Et apprendre à lire est obligatoire, donc, aller à l’école est obligatoire” (p. 17). E para cumprir a escola é obrigatório ler. Tornada obrigatória e modelada pela escola, também para o grande público a leitura foi orientada e estimulada como meio de igualdade e de afirmação do humano. Uma linha de evolução da cultura escolar foi a universalização do ensino das línguas maternas, assegurando a educação básica e a progressão leitora e escrevente, através do domínio do cânone literário e da maturação psicolinguística. Mas o direito de participação e o reconhecimento de pessoa humana também foram consequência da cultura e da creditação escolares.

Cultura escrita, alfabetização e escolarização assinalam uma longa Modernidade de mais de quatro séculos na História do Mundo Ocidental. Os Movimentos do Humanismo, da Reforma Protestante, da Reforma Tridentina ficaram associados à implementação da imprensa tipográfica e da aculturação escrita. A leitura e a escrita tornaram-se constitutivos das Congregações e agremiações religiosas e civis, dos Estados-Nação, dos organismos estatais, da modernização da sociedade, da evolução das instituições, da formação e mobilização dos indivíduos. A cultura escrita congrega informação, conhecimento, pensamento, acção. A aculturação escrita tornou-se condição e factor de cidadania e de humanitude. O privilégio de ler por ser cidadão deu lugar ao direito e ao dever de ler para ser cidadão. O direito de participação e o reconhecimento de pessoa humana ficaram dependentes da creditação escolar, pois que uma linha de evolução da cultura escolar foi a universalização do ensino das línguas maternas. A escola foi reconfigurada na transição do Antigo Regime, de modo a implementar uma alfabetização escolar que tornasse possível a comunicação e a informação entre todos os cidadãos. A escolarização deveria assegurar uma didáctica das línguas maternas que permitisse o ensino básico a colectivos de alunos e que, na progressão leitora e escrevente, consignasse o domínio do cânone literário e a maturação psicolinguística.

Com as Reformas Liberais e o Romantismo, a escola obteve e viu legitimada a representação do nacional (tradição, espírito do povo, destino pátrio, patriotismo). Datam de meados do século XIX as primeiras colecções de leitura escolar e a formação das primeiras bibliotecas populares. A leitura censurada dava lugar à leitura ensinada e à leitura orientada e pública. Os manuais enciclopédicos, elaborados para servirem as escolas, eram também a estrutura metódica e a sistemática de uma matriz editorial. Focalizando o caso português, relevam neste sentido a Enciclopédia do Povo e das Escolas (1874), e Biblioteca do Povo e das Escolas. Esta última atingiu 237 títulos, organizados em 29 séries, e foi publicada em Portugal e Brasil entre 1881 e 1913. As políticas públicas de leitura escolar e leitura pública ficaram, então, consagradas no Decreto de 2/8/1870 e no Decreto de 20/1/1871. Cresceu exponencialmente o mundo editorial escolar. Falando do movimento editorial francês, Jean-Yves Mollier (2001) refere-se ao manual como primeiro best-seller.

O movimento editorial ficou associado à criação de bibliotecas: bibliotecas eruditas, bibliotecas escolares, bibliotecas populares (cf. LERNER, 1998). Estruturantes da leitura pública, as bibliotecas escolares, em conformidade com o respectivo grau de ensino, funcionavam com poder de influência e com acesso ao exterior, como documenta a obra colectiva dirigida por Baratin e Jacob (2000). Nas últimas décadas de Oitocentos e primeiras décadas do século XX, esteve em curso uma intensificação da leitura pública, no plano editorial, no fomento de bibliotecas. Tal confluência observa-se nos Estados Unidos da América, em França, na Inglaterra, em Espanha, no Brasil.

Foi com o Republicanismo que o desígnio romântico e liberal de uma “Nação a Ler” se tornou em primado de patriotismo e mobilização social e política. Todos os estabelecimentos de ensino, associações culturais e recreativas, empresas, corpos expedicionários deveriam dispor de uma biblioteca. Em Portugal, o Decreto republicano de 18/3/1911 consignou a conversão das bibliotecas em oficinas abertas, ensinando, recriando, informando, distraindo. A intensificação da leitura reflectiu-se também na criação de Bibliotecas Móveis. Os Regimes totalitários de inspiração militar e fascista, como sucedeu em Portugal com a Ditadura Militar e o Estado Novo, procederam à integração entre a leitura escolar e a leitura pública, repondo a leitura orientada como modalidade de leitura censurada. Tal orientação resultou da implementação das Campanhas de Alfabetização e do fomento editorial de colecções e séries educativas, bem como de periódicos de grande divulgação. Nas primeiras décadas da segunda metade do século XX, coincidindo com a universalização do ensino e o fomento de políticas de lazer cultural, surgiram movimentos transversais de leitura pública, patrocinados pela UNESCO. No caso português, desde 1958 que a Fundação Calouste Gulbenkian lançou uma Rede Nacional de Bibliotecas Móveis.

Nas décadas de 80 e 90 do século XX, culminou um movimento inaudito de práticas culturais leitoras, beneficiando da confluência entre a busca de pedagogias escolares alternativas ao modelo de ensino-aprendizagem; a existência de segmentos de leitores que praticavam uma leitura de autoformação, científica e técnica, para fazer face às mudanças aceleradas dos modos de produção; o exponencial de leitura infantil e juvenil; a manutenção de indústrias de lazer associadas à leitura; a associação entre o impresso e o visual. Em Portugal, as duas últimas décadas do século XX ficaram assinaladas pela criação de novas bibliotecas escolares, centros de documentação, bibliotecas municipais, fomento do mercado editorial livreiro.

Todavia, o final do século XX foi o início de um novo ciclo. Os índices de leitura entraram em retracção. Esta retracção está ligada à crise do livro e do suporte papel, mas também à retracção da leitura integral de livros em suporte digital. As novas práticas de leitura, levadas a cabo por leitores mediatizados pelo digital e conectados em redes de informação e comunicação, não se têm revelado suficientes para suprir a queda dos índices de leitura. Esta crise reflecte a regressão dos modos tradicionais de leitura e veio acompanhada da desvalorização das formas culturais, literárias e artísticas como diferenciação social. Acrescem transformações da instituição escolar, como meio de legitimação e consolidação de mudanças.

Evolução dos modos de ler

No tratado Didascálicon. Da Arte da Leitura, escrito em 1127 por Hugo de São Vítor, professor da Escola de São Vítor em Paris, a Sapiência é apresentada como “forma do bem perfeito” e envolve os actos de ler, reflectir, contemplar. A leitura e a meditação são as principais vias de conhecimento. A leitura é prioritária na instrução e obedece a três regras: “primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler, ou seja, o que ler antes, o que depois; terceiro, como se deve ler” (SÃO VÍTOR, 2001, p. 45). O livro contém uma ordem e a ordem do livro dita a ordem da leitura. No livro, a ordem é ditada pela matéria ou pelo autor. A narração segue a ordem natural ditada pela disposição da matéria, ou uma artificial, criada pelo autor.

Segundo São Vítor (2001), na exposição de um texto lido, a ordem é a da inquisição e contém os níveis da frase, do sentido, do pensamento. A frase é a organização das palavras, o sentido “é o significado fácil e acessível que a frase apresenta à primeira vista. O pensamento é um entendimento mais profundo que não se descobre senão pela exposição ou pela interpretação” (p. 149). A leitura surge assim como via de sabedoria e de edificação, pois que proporciona doutrina e exemplos. Nomeadamente na leitura das Escrituras, o ciclo aprendente e de aperfeiçoamento incluía: 1) a leitura ou instrução; 2) a meditação; 3) a oração; 4) a prática (p. 227). A exposição da leitura era uma prevenção contra a subsunção do leitor pelo texto. A glosa era prática habitual na leitura dos textos religiosos e a memorização prática habitual na leitura dos textos doutrinários e de regulamentos.

Hugo de São Vítor define biblioteca como local, conjunto de livros e índice. É o local onde se conservam os livros ordenados e de que há um índice que indica a localização e orienta a leitura. A leitura em biblioteca, proporcionando leitura integral e leitura cruzada de livros, orientada por índices e guias, tornou-se comum com os humanistas. No decurso da Idade Moderna, foi habitual a elaboração de catálogos, súmulas, lugares-comuns. Tais produções escritas constituíam uma prática de sistematização e divulgação do conhecimento. Erasmo de Roterdão cultivou esta prática, com repercussão na ordem dos estudos e na transmissão do conhecimento. Também como guia de leitura, Justo Lípsio publicou, em 1602, De Bibliothecis, onde se referiu à Biblioteca de Alexandria, salientando um sentido de erudição no plano historiográfico e filosófico. Salientou a noção de local de investigação e menos a de biblioteca confessional. Deste modo, Lípsio secundarizou a noção de biblioteca pedagógica e de leitura pública. Desde a transição de Seiscentos que algumas bibliotecas alemãs eram bibliotecas públicas (NELLES, 1996, p. 200-216).

As bibliotecas dos colégios norte-americanos, no período colonial, eram pequenas. No entanto, era frequente a doação de livros por parte de particulares. A biblioteca do Colégio de Harvard dispunha de um horário de frequência para os alunos. Em face da preocupação de universalidade subjacente às ideias de bibliotecas e de enciclopédia, as bibliotecas colegiais e as bibliotecas universitárias constituíam colecções organizadas, contendo uma selecção e uma ordem do conhecimento transmissível – a ordem dos estudos.

Os Colégios Jesuítas, criados a partir da segunda metade do século XVI, incluíam biblioteca. Os Colegiais deveriam ler e ouvir ler, como prática frequente, mas os livros e as leituras eram objecto de apertada vigilância por parte do bibliotecário, que deveria respeitar as orientações do Prefeito dos Estudos. Conforme estipulado no Ratio Studiorum, Capítulo III, 17: “O reitor recomende ao bibliotecário que, na distribuição dos livros, não se afaste das ordens dadas pelo prefeito de estudos” (apudMIRANDA, 2009, p. 84). Cabia também ao reitor providenciar para que a biblioteca dispusesse dos livros necessários aos estudos.

Em Portugal, os catálogos organizados pelos respectivos bibliotecários eram revistos e aprovados pelos Superiores de cada Congregação. Tais bibliotecas, colecções e índices foram tomadas em atenção na reconfiguração da Inquisição em Real Mesa Censória e na articulação entre os Planos de Estudos da Universidade e os Estudos Menores. Estes princípios e estas transformações exerceram influência na estatização de um cânone escolar e na criação de bibliotecas públicas, a partir do último quartel de Setecentos. As práticas de leitura incluíam ler em voz alta, leitura silenciosa, leitura individual e/ou em colectivo. Os livros eram censurados, as leituras orientadas e os leitores, particularmente os pequenos leitores, eram vigiados e guiados. A memorização e glosa eram as modalidades cognoscentes mais frequentes, a primeira para textos doutrinários e morais, a segunda para textos de natureza informativa, científica, técnica. A oralidade letrada replicava o livro – falar como um livro.

Com a Ilustração, tornou-se habitual a modalidade de aprender pelo livro. A ordem do livro e a ordem do saber aproximaram-se sob o estatuto e a configuração de compêndio. Este tipo de livro continha índice, disposição por lições e verificação. Surgia orientado para o mestre, mas com o decurso do tempo passaram a surgir compêndios orientados para o próprio leitor e para o aprendiz. A noção de manual tende a assumir esta especificação, cuja tónica reside no sentido prático e utilitário, seja como meio pedagógico, seja como usuário, nos domínios técnico e profissional. Cresceram também as secções bibliográficas técnicas e profissionais, ao lado dos estudos humanísticos.

Está-se, deste modo, em face de uma formação enciclopédica baseada num novo modo de pensar, a que se agregavam eixos de continuidade: a leitura e a argumentação; a escrita. A consulta regular à biblioteca complementava o novo modo de lidar com o conhecimento. No universo letrado, essa epistemologia incluía a utilização da História como meio de informação, discernimento e erudição pessoal, para contraponto ao diálogo, à fixação dos fundamentos e à disputa. As bibliotecas destinadas a eruditos e a outros leitores não incluíam apenas obras nacionais. A ordem destas bibliotecas continuou a reflectir a ordem escolar. Em Portugal, no Inquérito formalizado pelo Alvará Régio de 10 de julho de 1769, a Real Mesa Censória utilizou uma estrutura ordenada com as seguintes classes: Teologia, Jurisprudência, Filosofia, Matemática, Medicina, História e Belas Artes. Dava assim corpo a um Iluminismo descendente, como era prerrogativa do tempo, pois que esta estrutura, epistémica e cognoscente, foi utilizada na Reforma da Universidade e na Reforma dos Estudos Menores. A observação dos títulos faz ressaltar a analogia com aquela estrutura. A classe da Teologia representava mais de 50% dos títulos, vindo depois a de Jurisprudência, com cerca de 20%. Tais núcleos eram destinados à consulta e à apropriação pelos escolares (MAGALHÃES, 2018).

Ao longo do século XIX, foram sendo criadas bibliotecas municipais, associativas, filantrópicas para leitura pública. As instituições escolares de ensino superior, médio e secundário, liceal e técnico dispunham de bibliotecas para os estudantes e para consulta exterior. Mas a partir do último quartel do século XIX também as escolas primárias portuguesas deveriam possuir uma biblioteca que estaria aberta ao público, sob orientação e responsabilidade do professor. Este movimento era extensivo à generalidade dos países europeus. Em França, pelo decreto de 16 de junho de 1881, que retomava legislação anterior, ficou estipulado que fossem criadas bibliotecas nas escolas primárias: “il sera établi dans chaque école primaire publique une bibliothèque scolaire (article premier)” (apud MAGALHÃES, 2018). A leitura popular ficava também ela associada à leitura escolar.

No trânsito do Oitocentos, mais de metade da população adulta dos países protestantes da Europa estava habilitada para ler pequenos textos em vernáculo. Em França, com a implantação da III República, teve lugar um amplo movimento de criação de bibliotecas escolares e públicas, fomentando a leitura (MAYEUR, 1991, p. 523 e ss). Em Portugal, a associação entre leitura popular e leitura escolar foi cultivada pela República e foi retomada nas Campanhas de Alfabetização do Estado Novo.

Bibliotecas e bibliotecas escolares generalizaram-se ao longo do século XX. Por influência norte-americana, a cartografia das bibliotecas tornou-se extensiva a todos os locais culturais e educativos, com relevo para escolas, municípios e comunas. O movimento comunal foi particularmente acelerado em França, no período entre as duas guerras mundiais (POULAIN, 1992), e em Espanha, com a República. A partir de meados do século XX, a leitura pública e a leitura escolar passaram a beneficiar da acção sistemática da UNESCO. Na segunda metade do século XX, foram implementados programas nacionais de leitura de que as bibliotecas escolares faziam parte e deveriam ser fomento e referência. O leitor escolar criança e jovem deveria crescer com hábitos de leitura. A década de 80 do século XX foi de intensa transformação, cumprindo o lema de “uma escola – uma biblioteca” e de conversão das bibliotecas escolares em Centros Multimédia/Mediatecas, seguindo as orientações da UNESCO, lançadas na reunião de Genebra de 10 a 13 de junho de 1974 (cf. DELANNOY, 1976). Em novembro de 1980, foi publicado o Manifesto da Unesco sobre Mediatecas Escolares.

Em Portugal, a legislação sobre bibliotecas escolares acompanhou as sucessivas Reformas Educativas, mas a sua implementação não foi regular. A Lei n.º 19-A/87, de 3 de junho, veio repor tal obrigatoriedade: “Serão criadas bibliotecas em todos os estabelecimentos de ensino que ainda as não possuam e implementadas medidas no sentido de assegurar a permanente actualização e o enriquecimento bibliográfico das bibliotecas escolares” (Artigo 4.º, 1). Dando sequência a uma política concertada da leitura, em 29 de dezembro de 1995, os Ministros da Educação e da Cultura fizeram publicar o Despacho Conjunto n.º 43/ME/MC/95. Esse movimento assinala o período entre final da década de 80 e a década de 90.

Também para o Brasil a década de 80 ficou assinalada por novas dinâmicas nas políticas de leitura e nas bibliotecas escolares. Os diagnósticos ao tempo realizados faziam ressaltar irregularidades e assimetrias entre os estados e entre as instituições escolares. Apesar da preocupação legislativa, as orientações da UNESCO não foram cumpridas de imediato, como revela um estudo realizado em Pernambuco no ano de 1991, comprovando, entre outros aspectos, a desproporção aluno/livro (cf. CAMPELLO; CALDEIRA; ALVARENGA; SOARES, 2012). Também, designadamente em resposta à Lei Federal 12.244 de 2010, se multiplicaram as bibliotecas municipais e as bibliotecas escolares. Este movimento veio em consentâneo com o avanço do digital. Às práticas leitoras tradicionais em torno do livro impresso têm vindo a contrapor-se leituras em suporte digital e uma modalidade de leitura fragmentada. Parte dos jovens leitores procuram a biblioteca escolar e mesmo a biblioteca municipal para resolver tarefas escolares, para consultar a internet e para participar nas redes sociais.

Da omnipresença do ler e da crise da leitura

Vive-se hoje sob a omnipresença do ler. E esta universalidade leitora tem sido acompanhada pelo desígnio de uma biblioteca universal associada à mudança de suportes e à afirmação da era digital. Como adverte Roger Chartier (2011):

El sueño de la biblioteca universal parece hoy más próximo a hacer-se realidad que nunca antes, incluso más que la Alexandria de los ptolomeos. La conversión digital de las colecciones existentes promete la constitución de una biblioteca sin muros. […] Pero conduce a un interrogante sobre lo que implica esta violencia ejercida sobre los textos, dados a leer bajo formas que no son más aquellas donde figuraban para sus lectores del pasado.

(p. 22)

Crise de leitura? Leitores ou não leitores? Desde Oitocentos que a leitura era a base da informação e núcleo da educação. A escolarização assegurava uma (in)formação de base e a leitura constituía uma espécie de cultura geral através dos jornais e dos livros. Associadas à leitura mantinham-se as práticas autográficas de uma escrita pessoal e oficiosa. A cultura audiovisual retirou exclusividade à leitura, mas nem substituiu a leitura em impresso, nem as práticas de escrita. O mundo editorial do livro cresceu até ao terceiro quartel do século, e domínios específicos como o do livro infantil e juvenil e a indústria editorial e livreira de determinado tipo de best-sellers continuaram a crescer nas últimas décadas.

Nunca a humanidade passou tanto tempo mergulhada num ambiente de informação e emissão de mensagens e textos. Mas que tipo de leitura e que capacidade de escrita? O leitor escolar havia-se formado através de um percurso acompanhado e orientado, com vista à realização da cultura escolar e à continuidade leitora ao longo da vida. A ordem do livro e as bibliotecas deram continuidade a essas práticas. Este leitor tinha sido preparado para leituras integrais, e para leituras fragmentadas de consulta e busca de informação. Tinha sido preparado para a elaboração de textos descritivos e narrativos, e de textos epistolares, argumentativos, tratados. Esse percurso e esse modelo letrado estão hoje comprometidos, pois que a instituição escolar se ressente de uma crise de credibilidade e de uma incapacidade de resposta a contextos e públicos multiculturais. Sobretudo, tem dificuldade em aceder a públicos refractários e menos sensíveis à relevância de práticas culturais aprofundadas de que faz parte a leitura integral de livros. E isto quando estudos recentes revelam “que a leitura de livros de ficção (romances, narrativas, contos) confere aos jovens habilidades de leitura significativamente mais fortes do que a leitura de outros textos” (MAGALHÃES, 2020).

Esta crise da leitura escolar é tanto mais notória quanto tradicionalmente foi a partir da escola em que, como se viu ao longo do texto, emergiram novos leitores e novos universos socioculturais. Com efeito, estudos recentes continuam a comprovar que os bons leitores, são-no independentemente de lerem em impresso ou digital. Estudos associados ao PISA (Programme for International Student Assessement) comprovam “que os leitores on-line proficientes coincidem com os estudantes que regularmente leem uma diversidade de material impresso” (CAMEIRA, 2015, p. 155). Nas últimas décadas, a desvalorização das formas culturais, literárias e artísticas como promoção social tem sido acompanhada de um descrédito da instituição escolar como meio de legitimação e consolidação de mudanças. E, paradoxalmente, foi reinterpretando, recriando o passado, reconstruindo e potenciando o presente, que o institucional e a cultura escolares idearam e souberam preparar o futuro.

A leitura de pequenos textos, fragmentada e orientada a partir do exterior (para dar resposta a curiosidades e necessidades de quotidiano), mesmo que exercida quase de forma ininterrupta por parte de jovens e adultos actuais, não refaz uma leitura culturalmente rica e antropologicamente gratificante. Os índices de leitura do livro continuam a baixar e o livro digital não só continua a ser pouco procurado por parte de pequenos e médios leitores, quanto não substituiu o livro impresso enquanto bem cultural e material.

A leitura como prática cultural, reflexiva, individual é uma experiência simbólica de encontro, viagem e regresso a si. Mas as novas práticas de leitura e os novos leitores, mediatizados pelo digital e conectados em redes de informação e comunicação, não praticam uma leitura de fruição e de descoberta. Está-se perante uma outra etologia leitora. Estes novos modos de ler e esta nova etologia leitora não são espontâneos, nem se resolvem apenas com a acessibilidade proporcionada pelas novas tecnologias e a disseminação de textos em digital. Impõe-se um diálogo fecundo entre educação e leitura.

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Recebido: 10 de Dezembro de 2020; Aceito: 23 de Setembro de 2021

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