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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e0220061 

DOSSIÊ: EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E ATUALIDADE

Ação dialógica para formação crítica: pedagogias cidadãs e resistências democráticas ao eurocentrismo

Dialogical action for critical formation: civic pedagogy and democratic resistance against Eurocentrism

Aristeu Mazuroski Jr

Miguel Agustinho Calgaro


Resumo

Este artigo propõe uma discussão a respeito do pensamento ocidental eurocêntrico como o principal irradiador do conhecimento universal disseminado em escolas e espaços educacionais. Observa-se que o eurocentrismo constitui um projeto hegemônico que mantém os países tradicionalmente designados como “em desenvolvimento” presos a certas formas de pensar e fazer que convergem para um sistema capitalista predatório, direcionador de práticas pedagógicas que se distanciam do que constituiria o maior interesse da Educação nesses países: a formação crítica de cidadãos. Nesse sentido, propõe-se a ação dialógica de Paulo Freire como uma forma de combate à colonialização cultural, política e econômica. O artigo é constituído por uma revisão inicial sobre o imperativo eurocêntrico e o estabelecimento de um conhecimento hegemônico, engendrado não apenas nos conteúdos que são disseminados no modelo educacional vigente e nos currículos, mas também nas formas de aprender a pensar e nas maneiras de construção de novos conhecimentos. Propõe-se que a universalidade do conhecimento deveria ser, na verdade, uma pluriversalidade, dando conta de diferenças e riquezas regionais distribuídas pelas diversas nações não europeias. Em seguida, apresenta-se a decolonialização do conhecimento como forma de resistência à hegemonia e componente essencial para a construção de sociedades democráticas, diminuindo desigualdades e atenuando o poder colonizador. Por fim, apresentase o conceito da ação dialógica na perspectiva de Paulo Freire, expondo os pressupostos e as ações que compõem o diálogo como forma de interação e colaboração para a libertação. Conclui-se, com a discussão realizada, que a decolonialização possui, no mínimo, uma vertente cultural e uma epistêmica, alvos evidentes das práticas pedagógicas e educacionais que buscam contribuir para a formação crítica e democrática de cidadãos bem como para a formação da identidade latino-americana independente.

Palavras-chave Ação Dialógica; Decolonialização; Eurocentrismo; Paulo Freire; Pedagogia

Abstract

This article proposes a discussion about the Western Eurocentric thinking as the main source of universal knowledge disseminated in schools and educational spaces. It is observed that Eurocentrism constitutes a hegemonic project that keeps countries traditionally designated as “developing” stuck to certain ways of thinking and doing that converge to a predatory capitalist system, guiding pedagogical practices that distance themselves from what would constitute the main interest of education in these countries: the critical formation of citizens. In this sense, Paulo Freire’s dialogical action is proposed as a way to combat cultural, political and economic colonialization. The article consists of an initial review on the Eurocentric imperative and the establishment of hegemonic knowledge, embodied not only in the contents that are disseminated in the current educational model and curricula, but also in the ways of learning to think and in the manners of constructing new knowledge. It is proposed that the universality of knowledge should actually be a pluriversality, taking into account regional differences distributed among the various non-European nations. Subsequently, the decolonialisation of knowledge is presented as a form of resistance to hegemony and as an essential component for the construction of democratic societies, reducing inequalities and mitigating colonising power. Finally, the concept of dialogical action is presented from Paulo Freire’s perspective, exposing the assumptions and actions that make up dialogue as a form of interaction and collaboration for freedom. We conclude with the discussion carried out, that decolonialization has, at least, a cultural and an epistemic aspect, which are clear targets of pedagogical and educational practices that seek to contribute to the critical and democratic formation of citizens, as well as to the formation of an independent Latin American identity.

Keywords Decolonialization; Dialogical Action; Eurocentrism; Paulo Freire; Pedagogy

1 Introdução

Neste artigo procuramos compreender o pensamento ocidental, no sentido de revelar como ele pode ser excludente no campo educacional e pedagógico. Consideramos que a ideia de “conhecimento universal” parece estar atrelada, principalmente, a concepções eurocêntricas, já que, enquanto a Europa presenciava o desenvolvimento da Teoria Crítica – liderada pelos filósofos da escola de Frankfurt (AVELINO; RAPOZO, 2020), que realizavam uma crítica da sociedade partindo das contribuições de Marx –, o pensamento latino-americano não estava expressivamente representado na comunidade filosófica internacional, que tratava de dar visibilidade ao caos crescente nas relações humanas proveniente dos prejuízos deixados pelas grandes guerras mundiais do século XX.

Decorrente daquele período conturbado, o pensamento latino-americano acentua seu distanciamento das ideias europeias a partir de contribuições que avançaram em elucidar e questionar a relação permanente de colonialidade e dependência eurocêntrica do conhecimento. Identifica-se, entre as ideias propagadas nessa regionalidade latino-americana, que entre os propósitos fundamentais do ato de educar deve estar o estímulo ao pensamento crítico, além do desenvolvimento da consciência de uma realidade regional que precisa ser devidamente abordada. Nesse movimento, o pensamento de Paulo Freire nos é dado como ferramenta para reflexões sobre a prática de educar e o modo como estas podem se revelar excludentes. A relevância desta reflexão reside em pensarmos para além do modelo moderno ocidental (que preserva sua colonialidade), ascendendo no sentido freiriano de aprendizado, no qual educadores e educandos se complementam na busca pelo conhecimento (FREIRE, 2005).

Conforme apontado por Ribeiro e Melo (2019, p. 43), o movimento de Educação Popular de Paulo Freire é inspirador por situar o “pedagógico como decolonial e a decolonização como pedagógica”, e é nessa vertente educacional freiriana que encontramos a construção do diálogo e do conhecimento mútuo como formas de resistência perante a sociedade opressora e as forças capitalistas. De acordo com Freire (1992), ainda que os sujeitos estejam em classes sociais distintas, cada um possui conhecimentos que devem ser considerados legítimos, reconhecendo-se as possibilidades de complementaridade entre antagonismos e diferenças (que também são legítimos e não devem sofrer apagamento). Assim, este artigo busca aproximar as contribuições de Paulo Freire para a construção da Educação decolonial partindo do diálogo como pilar do conhecimento e da sociedade democrática.

2 O imperativo eurocêntrico

A construção da Filosofia Clássica como base do pensamento científico posterior, estendido à sua configuração atual, é marcadamente branca e europeia. A gênese histórica dessa Filosofia encontra-se na Grécia Antiga, período no qual já se destacava o escanteamento intelectual de regiões geográficas não pertencentes à “civilização” dos países mais proeminentes da Europa. Autores como Lourenço, Haliski e Baptistella (2021, p. 4) evidenciam que as civilizações africanas, principalmente, foram alvo de exclusão total, pois os luminares da Filosofia Antiga consideravam que “os seres humanos africanos não possuíam epistemologias, ou que não eram relevantes (sociedades a-históricas) para a construção do conhecimento científico”. A irrelevância atribuída aos povos africanos estendeu-se também, em maiores ou menores graus, a outros povos e nações não pertencentes ao micromundo europeu. Nessa construção histórica, os gregos foram rememorados e assegurados no meio do caminho por pensadores como Kant, que admirava o predomínio da razão na Filosofia grega e aplicava-a de forma similar em seu próprio sistema filosófico.

Embora a trajetória de constituição do eurocentrismo seja complexa – pois estende-se ao longo de vários séculos e não pode ser unicamente tributada à Filosofia grega –, observa-se que as concepções daqueles pensadores originais ecoam até hoje nos países afrodiaspóricos, como o Brasil. Embora não seja o objetivo deste artigo realizar ampla revisão histórica, deve-se observar como fato relevante o apagamento cultural de populações inteiras durante todo o período das conquistas e ocupações coloniais, proporcionada pela “animalização” dos conquistados e escravizados, considerados inferiores e, portanto, ignorados como geradores de cultura e intelectualidade (LOURENÇO; HALISKI; BAPTISTELLA, 2021).

Sendo assim, há muitos séculos a universalização do conhecimento teve sua centralidade e seu ponto de irradiação no continente europeu, elevando a racionalidade branca sobre outras formas de racionalidade, reflexão e abstração. Porém, essa perspectiva recusou-se a aceitar o fato básico de que

A filosofia surge através da busca e do amor pela sabedoria, concebendo a sabedoria dentro da experiência humana. A existência da vida humana se dá por todos os continentes, e se há vida em todos os lugares, consequentemente, existem experiências humanas e filosóficas em todos os lugares.

(LOURENÇO; HALISKI; BAPTISTELLA, 2021, p. 6).

A centralização do conhecimento foi catalisadora da universalidade desse mesmo conjunto de ideias brancas e ocidentais. Entretanto, argumenta-se que, ao invés dessa universalidade, seria mais importante ter uma base científica de pluriversalidade, ou seja, considerar que o saber humano está difuso por todas as culturas, regiões e tempos. Ignorar os saberes locais diversos espalhados pelo planeta é apoiar um projeto de hegemonia filosófica e científica, com consequências sociais, econômicas e educacionais para todos os participantes do sistema (LOURENÇO; HALISKI; BAPTISTELLA, 2021).

Todo o discurso construído em torno dessas dimensões leva à afirmação eurocêntrica de que a sociedade moderno-ocidental é a última etapa de desenvolvimento humano, ideal para todos os povos e nações seguirem e a ser imposto pelo imperialismo e pela colonização [...] O eurocentrismo constituinte desse pensamento tem pretensões de universalidade, legitima o poder do capital e a sociedade moderno-ocidental, enclausurando possibilidades de pensar uma transformação para além dos ditames do capital.

(RIBEIRO; MELO, 2019, p. 43).

Se a visão eurocêntrica representa a última etapa do desenvolvimento humano, então o modelo de Educação vigente é um dos principais portadores do pensamento colonializado com viés capitalista, que não se refere apenas àquelas nações que foram colônias de outros países conquistadores, mas ao fato de que há séculos o pensamento, a Educação e a produção científica se enquadram aos ditames eurocêntricos:

Nas escolas brasileiras se aprende sobre história antiga e medieval europeia como se no restante do mundo nada mais acontecesse nesse período, ou seja, essa é a narrativa oficial contada como verdade única. O currículo e as práticas educativas espelham o eurocentrismo em cada conteúdo e modo de ensino tradicional, sobrevivendo também a algumas propostas mais críticas. Sempre que o retorno ao clássico e universal aparece no discurso, nas políticas educacionais, nas prática e teorias educacionais, há o viés eurocêntrico.

(RIBEIRO; MELO, 2019, p. 49).

É principalmente nos livros, ferramentas de ensino e aprendizagem, que estão registradas as histórias e as visões a respeito dos povos do mundo contadas pela perspectiva geopolítica do dominador, relegando as outras culturas à subalternidade. Porém, a constituição da modernidade por meio da colonialização expressa-se não apenas nos materiais educacionais e nas formas de educar na sua pedagogia específica; também emerge como força política e epistemológica, educando formas de pensar e solapando a formação crítica (WALSH; OLIVEIRA; CANDAU, 2018).

De acordo com Lourenço, Haliski e Baptistella (2021), o eurocentrismo só seria quebrado e revisado pelo diálogo constante entre os conhecimentos ancestrais locais e o pensamento universal estabelecido, forjando um novo conjunto de conhecimentos por meio da constante decolonialização. Além do diálogo perene entre saberes, as resistências culturais ao conhecimento colonizador também são importantes, representadas por movimentos sociais e grupos populares com diferentes demandas e ocupações de espaço na sociedade. A coletividade regional marca posições raciais, culturais e de gênero, dando visibilidade a grupos tradicionalmente ignorados, relegados ou esquecidos pelo poder dominador. É a posição de oprimido e marginalizado que marca o colonizado, e é desses grupos e processos coletivos que emana a decolonialização, impondo novas formas de pensar que moldam as estruturas existentes (RIBEIRO; MELO, 2019).

3 Decolonialização do conhecimento e sociedade democrática

A estrutura colonializada intrínseca ao sistema educacional moderno imbrica-se com o próprio sistema político e suas aspirações democráticas, revestindo a “vontade do povo” – pretenso cerne da democracia – com desejos de consumo e configurando a máxima extração de lucro, expedientes do sistema capitalista moderno que transformaram a Educação em mercadoria (ALVES; GONÇALVES, 2019). Nesse sentido, a decolonialização como posição política não é exatamente algo novo, podendo ser situada em meados do século XX, a partir da Conferência de Bandung, em 1955, na qual 29 países da África e da Ásia encontraram-se para procurar um caminho de futuro que fosse independente das narrativas ocidentais estabelecidas (MIGNOLO, 2017). Os anseios da conferência também foram ecoados na obra de Fanon (1963, p. 193), que em Los Condenados de La Tierra concluía: “Compañeros, el juego europeo ha terminado definitivamente, hay que encontrar otra cosa. Podemos hacer cualquier cosa ahora a condición de no imitar a Europa, a condición de no dejarnos obsesionar por el deseo de alcanzar a Europa”.

Fanon (1963) indicava a liberdade que se apresentava frente ao término do “jogo europeu”, apontando que tudo seria possível, desde que não se quisesse apenas emular aquilo que começava a ficar pra trás. Adiciona ainda: “Pero si queremos que la humanidad avance con audacia, si queremos elevarla a un nivel distinto del que le ha impuesto Europa, entonces hay que inventar, hay que descubrir. Si queremos responder a la esperanza de nuestros pueblos, no hay que fijarse sólo en Europa” (FANON, 1963, p. 196).

O autor desenhava a necessidade de desapegar-se do que viria a ser definido como eurocentrismo e estabelecia que a humanidade deveria buscar outro modelo, que “é necessário inventar, é necessário descobrir” (FANON, 1963, p. 196, tradução nossa). Instalava-se, assim, o precedente da trajetória de abandono dos valores colonializadores.

Mignolo (2017, p. 31) destaca a opção política inerente à decolonialização, já que, mais do que ser apenas uma forma de Educação ou pedagogia, ela é “uma opção de vida, de pensar e de fazer”, que se insere como precursora de uma nova sociedade política global, uma verdadeira “terceira via” diante do sistema estabelecido. Questionar esse sistema colonializante é aprender novos conceitos, avaliando-se a sua adequação local e a pertinência na construção de um novo modelo. Assim, novos construtos surgem para repensar este sistema:

[...] diversos conceitos que vão fundamentar essa perspectiva, como: o mito de fundação da modernidade, a colonialidade, o racismo epistêmico, a diferença colonial, a transmodernidade, o pensamento liminar, o pensamento de fronteira, a interculturalidade crítica, a pedagogia decolonial, dentre outros.

(WALSH; OLIVEIRA; CANDAU, 2018, p. 3).

Requer-se, portanto, a adoção de um novo vocabulário, com novas palavras e expressões que deixam claras as práticas educacionais colonializadas, a fim de combatê-las e substituí-las. No limitado escopo deste artigo não exploraremos particularmente cada conceito (merecedores de explicações detalhadas e ilustrações que não cabem nesta breve discussão), mas urge compreender que, independentemente dos conceitos que se mostrem duradouros nesse combate epistemológico, há a necessidade real de novas práticas, com novas concepções e, portanto, novas nomenclaturas.

Não se trata apenas de trocar nomes, mas de refundar a prática pedagógica nos países não europeus, e essa reestruturação passa pela identificação do que é “nosso” – para ficarmos apenas na Educação latino-americana –, trazendo à tona os marcadores das lutas de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, povos da floresta, representantes das diversidades de raça, sexo e gênero, tradicionalmente apagados como sujeitos/agentes na sociedade e, consequentemente, nos processos educativos hegemônicos (WALSH; OLIVEIRA; CANDAU, 2018). Como apontam Loureiro e Pereira (2019), a intensidade e a necessidade de buscar novos construtos são evidenciadas pelo desligamento com o sistema eurocêntrico, ou seja, são necessários novos “nomes”, porque não seria possível realizar a crítica ao eurocentrismo utilizando os próprios conceitos arraigados por esse mesmo eurocentrismo. É necessária nova identidade epistêmica.

4 Paulo Freire e a perspectiva decolonial na práxis educacional

Construir a nova identidade epistêmica faz o olhar voltar-se para dentro – neste caso, para dentro do Brasil, como componente da grande identidade latino-americana e herdeiro parcial da cultura afrodiaspórica. Retomando as questões apontadas desde o início desta discussão – a refutação do sistema capitalista, a necessidade de uma formação crítica e as considerações de diferentes grupos componentes da sociedade – voltamo-nos para Paulo Freire como ponto de convergência coerente dessas diferentes discussões:

Nessa perspectiva, assume-se a politicidade da educação como pressuposto analítico e elemento orientador de processos de transformação social. Freire realiza uma pedagogia de síntese associando perspectivas teóricas de base fenomenológica, existencialista, marxista e cristã.

Assim, seu legado epistemológico abre inúmeras (re) leituras, apresentando-se como referencial fecundo para novas possibilidades de interpretação na atualidade.

(LOUREIRO; PEREIRA, 2019, p. 2).

Freire (1992; 2005) traz a Pedagogia do Oprimido como a consequência evidente de uma reflexão marxista a respeito de um quadro de opressão e apagamento de certos grupos no Brasil. A pedagogia proposta por Freire é marcada pela humanização e pela intersubjetividade (praticadas no diálogo), dois pontos que a colonialidade procura arrefecer para promover a hegemonia. O domínio de mentes e atos daqueles que são colonializados se expressa, principalmente, na recusa de diferentes pontos de vista, impondo uma monocultura que se refletirá na “Educação Bancária” identificada por Freire, alinhada aos propósitos capitalistas. Negar a palavra individual e a chance de trocar subjetividades é pressuposto da cultura do silêncio, uma forma de negar a própria humanidade inerente a cada aprendiz (LOUREIRO; PEREIRA, 2019).

A importância do silêncio para a manutenção hegemônica está na consequência prática de que esses indivíduos silenciados não possuirão atuação cidadã e política, sendo impossibilitados de atuar sobre a realidade colonializada. Ao não se expressarem e não dialogarem, esfacelam-se as fronteiras do grupo, diminuem-se as diferenças percebidas e concretas e os indivíduos são imersos na cultura pasteurizada oferecida pelo dominador, esquecendo-se de quem são, a que região pertencem, quais são seus conhecimentos autóctones e deixando de lado sua riqueza ancestral (LOUREIRO; PEREIRA, 2019).

Assim, refundar o sistema epistêmico é trazer novamente o indivíduo à tona, para que ele “diga sua palavra” e garantir que esta seja, de fato, sua, não uma repetição da palavra hegemônica extraída do modelo educacional em voga, frequentemente atrelada à manutenção da dominação geopolítica. Olhar para mim mesmo e dizer quem eu sou, de onde vim e quem são os outros que fazem esse lugar comigo são ações decolonializadoras, pois insurgem-se contra a tentativa de normalização e apagamento das diferenças culturais, raciais, locais, de gênero, entre todas as outras diferenças que desenham a diversidade humana. No passo seguinte ao reconhecimento de si mesmo e do resgate da própria voz, o ato de dialogar é a garantia da construção coletiva e da negociação de sentidos e significados, reforçando o grupo como força e representação de um conjunto de conhecimentos a serem reconhecidos pelo dominador (FREIRE, 1992; 2005; LOUREIRO; PEREIRA, 2019).

É importante sublinhar, como apontam Loureiro e Pereira (2019), que a crítica ao sistema eurocêntrico não busca necessariamente a extinção ou a substituição dessas epistemologias. O que se evidencia da discussão é a necessidade de estabelecer novos padrões latino-americanos, coexistentes com aqueles arraigados. Afinal, o extermínio e a substituição de povos e culturas são os expedientes do colonizador, mas não compõem as aspirações daqueles que se decolonializam. O primado da ação não parte da exclusão ou da recusa total da visão eurocêntrica, mas do resgate dos valores locais, da formação de uma nova visão latino-americana que surge do diálogo, em contraponto à visão eurocêntrica, que nunca foi dialógica.

Como colocado por Ribeiro e Melo (2019), o diálogo não é apenas troca comunicativa ou ação humana impensada e natural. O diálogo, na visão de Paulo Freire, é ferramenta que transforma a realidade, pois requer o reconhecimento prévio das posições dos falantes como indivíduos conscientes, portadores de conhecimentos e saberes oriundos das suas realidades muito particulares. Há riqueza nessas diferenças, que são “parte da pluralidade e da concretude das realidades vivenciadas pelos grupos populares e movimentos sociais. Conhecimento, portanto, produzido com o corpo, com a mente, com a vida, imerso para além da dualidade sujeito e objeto” (RIBEIRO; MELO, 2019, p. 44).

A existência do diálogo pressupõe a horizontalidade na relação, ou seja, uma relação de simetria do poder, com lados que se alternam nas suas colocações e se reconhecem como igualmente válidos por intermédio da palavra. A simetria que daí se destaca é radicalmente decolonializadora, por divergir essencialmente da desigualdade e da presunção da acumulação de riquezas e poder presentes no sistema capitalista, extensos, portanto, à Educação Bancária. O diálogo é a oportunidade de cruzamento da filosofia com a pedagogia na envolvente social:

Pensar pedagógicamente es pensar filosóficamente el cambio social desde y hacia el proceso educativo. Reflexionando críticamente desde la filosofía sobre las relaciones entre la sociedad y la educación, la pedagogía contribuye a la emergencia de otra sociedad y de otra educación para construirla.

(SILVA, 2017, p. 476).

O diálogo que consegue romper a desigualdade é a primeira forma de resistência à Educação (e ao sistema) que já não mais queremos, desfazendo as marcas coloniais e reafirmando os valores de cada lado no diálogo, incluída aí de forma muito importante a relação entre professores e alunos, já que “Todo(a) educando(a) tem o seu universo a oferecer a todo(a) educador(a), numa relação de reciprocidade de trocas culturais e intelectuais que marcam uma relação afetivo-pedagógica” (BITTAR, 2021, p. 46).

Esta, talvez, seja a visão mais desafiadora proposta por Freire (2005, p. 228): na teoria dialógica da ação é abolida a relação de dominador e dominado, substituída por lugares e oportunidades de encontros para colaboração na (re)construção do mundo, “O diálogo não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza”. Na dialogia resgata-se o oprimido e invisibilizado, trazido novamente para o centro da “conversa” para que fale com sua voz e não com a voz do outro.

Porém, entende-se que o oprimido muitas vezes está também silenciado e tomado pela ideologia do opressor. Coloca-se aí o papel fundamental da pedagogia decolonializadora, restituindo a palavra ao indivíduo e provendo-o de novo vocabulário para superar o seu silenciamento. A concepção de Freire converge com a mudança de paradigma na América Latina identificada por Lander (2005), que teria como componentes centrais das ideias articuladoras o resgate do saber popular e a concepção de comunidade, além da libertação pela práxis, promovendo a formação crítica para desnaturalizar e desfazer as formas estabelecidas de aprendizado e construção do ser no mundo.

5 Conclusão

Compreendemos, por meio desta breve reflexão, que a proposta de decolonializar a Educação e as práticas pedagógicas é componente de uma ambição mais abragente, incluída na constituição de uma nova identidade latino-americana, sendo esta uma identidade tanto epistêmica quanto cultural. Na vertente da cultura, faz-se necessário resgatar valores, conhecimentos e saberes regionais, para que componham novos conteúdos e currículos, dando base ao desenvolvimento de competências e subjetividades que correspondam a um novo mundo não eurocêntrico e de fuga ao capitalismo predatório. Na vertente epistêmica, verificamos que há necessidade, também, de rever a “caixa de ferramentas”, ou seja, revisar as próprias formas de construção do conhecimento local, que podem prescindir da visão única do racionalismo científico arraigado pela normatividade ocidental.

Em ambas as vertentes destacamos a atualidade e a pertinência do pensamento de Paulo Freire como indispensável recurso das práticas decolonializadoras. Constatamos que, empregando a ação dialógica, é possível estabelecer relações simétricas de poder que reconhecem o lugar de fala dos oprimidos e apagados pelo sistema. Por meio dos espaços de encontros e oportunidades de colaboração, as práticas pedagógicas promovem uma relação genuína e construtiva entre educadores e aprendizes, na qual a visão de transmissão do conhecimento em mão única é substituída pela troca de riquezas particulares em mão dupla, fortalecendo espaços educacionais para a formação crítica de novos cidadãos.

Referências

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Recebido: 30 de Junho de 2022; Aceito: 13 de Novembro de 2022

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