Introdução
O presente trabalho se insere no campo dos estudos sobre Educação e pesquisa na América Latina, no contexto das investigações sobre as fontes da Educação Popular na região. O objetivo é apresentar e discutir a práxis pedagógica de José Carlos Mariátegui (1894-1930) como uma das fontes da Educação Popular latino-americana, por meio das análises das experiências educativas nas Universidades Populares González Prada (1923-1927).
Mariátegui foi um autodidata e é um dos intelectuais peruanos mais influentes do século XX. Em sua curta existência produziu uma extensa obra (escrita, editorial e política), como segue: a revista Nuestra Época (1918), o jornal La Razón (1919), a revista Amauta (1926-1930), o jornal Labor (1929), além de ter sido diretor da revista Claridad (1923-1924). Sua obra escrita está publicada em 20 tomos, sendo o livro Sete ensaios de interpretação da realidade peruana o mais editado. O intelectual peruano também fundou o Partido Socialista Peruano, em 1928, e a Confederação Geral de Trabalhadores do Peru (CGTP), em 1929, local em que organizou e implantou as Oficinas de Autoeducação para a classe trabalhadora e campesina.
A obra de Mariátegui tem sido estudada em diferentes campos do saber e seu pensamento vem contribuindo para fomentar reflexões e debates em torno de temáticas como o feminismo (GUARDIA, 2017), o anticolonialismo (PACHECO CHÁVEZ, 2019), a dimensão religiosa (LÖWY, 2005), o conceito de nação (LOZADA ILLESCAS, 2014), a ideia de raça (QUIJANO, 2005), a concepção de marxismo (LÖWY, 2019), a questão indígena (KAPSOLI, 2019), o debate sobre a cultura (VELARDE, 2012), e a Educação (CANO MENONI, 2012), entre outras. Todavia a Educação ainda é um campo com baixa incidência de estudos na obra mariateguiana (SANTOS, 2020), principalmente no que tange às investigações sobre a Educação Popular na América Latina.
Visando mapear e discutir o que vem sendo produzido sobre o pensamento de Mariátegui no campo da Educação Popular na América Latina, foi realizado um levantamento acerca dos trabalhos apresentados no GT6 (Grupo de Trabalho Educação Popular) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) referentes ao período entre 2000 e 2021, os quais encontram-se disponíveis na página dessa associação. O levantamento não identificou trabalhos que relacionassem a Educação Popular ao intelectual peruano.
Assim, considerando as contribuições teóricas e práticas de Mariátegui para o pensamento crítico social latino-americano2 e a baixa incidência na produção do conhecimento acerca das reflexões desse pensador para a Educação Popular na América Latina, reivindicamos Mariátegui como educador popular devido às ações educativas que desenvolveu, especificamente, para a formação intelectual e social da classe trabalhadora da região, compreendendo que suas atividades políticas e pedagógicas podem favorecer a sistematização da Educação Popular latino-americana e, assim, ampliar as fronteiras do conhecimento.
Metodologicamente este estudo valeu-se das técnicas das pesquisas documental e bibliográfica para identificar e analisar a práxis pedagógica popular de Mariátegui nas Universidades Populares González Prada por meio de fontes diretas e indiretas em torno das obras completas do intelectual peruano.
O artigo apresenta apontamentos históricos sobre a Educação Popular na América Latina. Em seguida, descreve e analisa as experiências educativas de Mariátegui, seguidas da análise da práxis pedagógica mariateguiana nas Universidades Populares González Prada. Por fim, traz as considerações gerais.
Apontamentos históricos da Educação Popular na América Latina
Estudos mostram que a Educação Popular na América Latina já se fazia presente desde o período colonial, como aponta Puiggrós (1991, p. 13): “Desde la época colonial existió en América Latina una acepción de educación popular, dirigida a las clases y sectores dominados, por parte de las clases dominantes”. No entanto, foi usada como um elemento decisivo para governar consensualmente e garantir a reprodução social. Puiggrós (2016) aponta que, a partir da Reforma Universitária (1918)3 estendendo-se até o fim da década de 1940, produziram-se rupturas fundamentais no discurso da instrução pública, momento em que a Educação passou a incorporar demandas populares.
No contexto latino-americano podem ser citados como referência originária da Educação Popular as experiências desenvolvidas por Simón Rodríguez, os primeiros debates educativos do anarco-sindicalismo e do socialismo bem como a Pedagogia Nacional e Popular de José Martí; e como desenvolvimento dessas práticas ao longo dos anos, as experiências implementadas por muitos educadores populares, de Simón Rodríguez a Paulo Freire (PUIGGRÓS, 2005).
Nesse contexto histórico, Jara (1990a) menciona: as atividades de Educação Popular relacionadas às origens do proletariado industrial latino-americano; o aporte da Educação Conscientizadora de Paulo Freire; a abordagem renovadora da Teologia da Libertação; e as atividades de Educação Política das massas desenvolvidas pela Frente Sandinista de Liberação Nacional.
Ainda de acordo com Jara (1990a), algumas das raízes da Educação Popular no Peru estão ligadas às origens do proletariado industrial, no seio do qual surgiram escolas sindicais, universidades populares, variados movimentos culturais e artísticos bem como atividades de propaganda classista.
Ainda nesse processo histórico podem ser incluídas as ações de Augusto Mateu Cueva e Gamaliel Blanco, as quais impulsionaram a formação da Sociedade Pro-Cultura Nacional, que tinha como objetivo desenvolver projetos educativos com os trabalhadores mineiros da zona central peruana, os quais, sob orientação de Mariátegui, organizaram os Centros Escolares Obreros de Morococha4.
É nesse contexto histórico que se inseriu a práxis pedagógica popular de Mariátegui. Portanto, o presente exercício investigativo buscou evidenciar as possíveis contribuições para o processo de sistematização das fontes da Educação Popular latino-americana.
As experiências educativas de Mariátegui nas Universidades Populares González Prada
Entre os anos de 1903 e 1914 foram realizadas mobilizações de estudantes em resposta a uma crise universitária na região, destacando-se os três Congressos Internacionais de Estudantes Americanos, respectivamente, em Montevidéu, no ano de 1908, em Bueno Aires, em 1910, e em Lima, no ano de 1912. Esses congressos apresentaram pautas relevantes, como a criação de uma liga de estudantes americanos e as discussões sobre ensino livre, avaliação, docência, autonomia, extensão universitária, papel do Estado diante da responsabilidade da oferta educativa, entre outras (BIAGINI, 1997).
Esse contexto favoreceu o desenvolvimento da Reforma Universitária de Córdoba (1918), que buscou romper com a ordem oligárquica que dominava a universidade, lutando a favor da democratização do governo universitário, da ampliação do acesso ao Ensino Superior, da participação da universidade na construção dos Estados democráticos e da formação de sujeitos críticos capazes de participar na vida pública (TÜNNERMANN BERNHEIM, 1998).
A inspiração na Reforma Universitária de Córdoba ofereceu a alternativa para formar a classe trabalhadora e campesina composta por sujeitos políticos por meio das Universidades Populares, as quais foram criadas em vários países da América Latina.
No contexto peruano, essas universidades foram criadas durante o Primeiro Congresso Nacional de Estudantes, o qual foi realizado na cidade de Cusco entre os dias 11 e 20 de março de 1920, como evidencia este excerto textual: “El primer Congreso Nacional de Estudiantes, acuerda: la creación inmediata de la Universidad Popular bajo la dirección de la federación de los Estudiantes del Perú” (FEDERACIÓN DE ESTUDIANTES DEL PERÚ. 1920, p. 24).
A primeira Universidade Popular foi inaugurada na cidade de Lima no dia 22 de janeiro de 1921, recebendo oficialmente o nome de Universidad Popular González Prada em homenagem ao intelectual peruano Manoel González Prada. Posteriormente foram inauguradas, com o mesmo programa, as Universidades Populares de Vitarte, Trujillo, Salaverry, Barranco, Arequipa e Cuzco, que tinham como objetivo, entre outros, trabalhar:
[...] por la formación de una cultura proletaria, excenta de las supersticiones y de las limitaciones de la cultura burguesa. Quiere que el pueblo adquiera, junto con una cada vez más perfecta conciencia de clase, un concepto más iluminado de su propio destino y de su propria ruta. [...] La Universidad Popular González Prada rechaza todo dogmatismo. Su acción y su propaganda miran a la realización de una obra de justicia social.
(MARIÁTEGUI, 1994, p. 206)5.
A organização do processo de ensino nas Universidades Populares compreendia dois ciclos: “uno de cultura general de orientación nacionalista y eminentemente educativa, y otro de especialización técnica dirigida hacia las necesidades de cada región” (FEDERACIÓN DE ESTUDIANTES DEL PERÚ, 1920, p. 24). O ensino no primeiro ciclo estaria sob a responsabilidade de uma comissão designada pela Federação Nacional de Estudantes do Peru, enquanto o no segundo ciclo estaria a cargo das comissões federadas.
Nas Universidades Populares o ensino se daria de forma ordenada e objetiva pelos estudantes da Universidade Nacional Maior de São Marcos, os quais ministrariam Aritmética, Gramática, Literatura Americana, Geografia, História (universal e indígena), Noções de Ciências Naturais, de Economia Social, Higiene, Medicina Social e Higiene Bucal. Essas temáticas seriam ministradas em aulas três vezes por semana, no turno da noite, para a classe trabalhadora e campesina.
As Universidades Populares ainda proporcionaram uma seção permanente para as pessoas adultas analfabetas de ambos os sexos. “De los cuatro millones de hombres y mujeres que en el país no saben leer ni escribir – digno legado de cien años de vida democrática – corresponde una apreciable proporción a las poblaciones en donde funcionan las universidades populares” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 32).
Ainda nesse contexto, as Universidades Populares criariam a revista Claridad, que nasceu como um projeto de cultura com o objetivo de buscar um ponto de encontro com a proposta de González Prada de formar uma “frente de trabalhadores manuais e intelectuais”. Todavia registra-se que, nesse momento, as Universidades Populares, sob a liderança de Víctor Raúl Haya de la Torre6, declaravam que “la enseñanza deverá estar exenta de todo espírito dogmático y partidarista” (FEDERACIÓN DE ESTUDIANTES DEL PERÚ, 1920, p. 24).
No que tange à experiência de Mariátegui nas Universidades Populares, sua participação aconteceu de três formas: na primeira como estudante, na segunda como educador popular e na terceira como diretor da revista Claridad.
Mariátegui havia compreendido a importância das Universidades Populares para chegar aos setores políticos da classe trabalhadora. Assim, propôs uma definição distinta da que orientava as universidades.
Las universidades populares no son institutos de agnóstica e incolora extensión universitaria. No son escuelas nocturnas para obreros. Son escuelas de cultura revolucionaria. Son escuelas de clase. Son escuelas de renovación. No viven adosadas a las academias oficiales ni alimentadas de limosnas del Estado. Viven del calor y de la savia populares. No existen para la simple digestión rudimentaria de la cultura burguesa. Existen para la elaboración y la creación de la cultura proletaria.
(MARIÁTEGUI, 1994, p. 107).
Mariátegui apontou a importância de se construírem espaços para a cultura da classe trabalhadora7, sendo essa ação vista como parte da luta política contra a burguesia, pois ele tinha consciência de que a dominação burguesa passava pelo controle do capital e da cultura. “La burguesía es fuerte y opresora no sólo porque detenta el capital sino también porque detenta la cultura. La cultura es uno de sus principales, uno de sus sustantivos instrumentos de dominio [...] la cultura es una arma eminentemente política” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 107).
Foi nessa perspectiva que Mariátegui desenvolveu sua práxis pedagógica divergindo dos princípios fundacionais das Universidades Populares, a qual defendia a neutralidade do ensino em relação à vida política partidária. Mariátegui iniciou seu curso (“O proletariado e a crise mundial”) em 15 de julho de 1923 e o encerrou em 26 de janeiro de 1924, totalizando dezoito encontros, de acordo com o programa que foi publicado na revista Mariátegui (1994, p. 59):
La crisis mundial y el proletariado peruano; 2. Literatura de guerra; 3. El fracaso de la segunda internacional; 4. La intervención de Italia en la guerra; 5. La revolución rusa; 6. La revolución alemana; 7. La revolución húngara; 8. La actualidad política alemana; 9. La paz de Versalles y la Sociedad de las Naciones; 10. La agitación proletaria en Europa en 1919 y 1920; 11. Los problemas económicos de la paz; 12. La crisis de la democracia; 13. La agitación revolucionaria y socialista del mundo oriental; 14. Exposición y crítica de las instituciones del régimen ruso; 15. Internacionalismo y nacionalismo; 16. La revolución mexicana; 17. Los intelectuales y la revolución; 18. Lenin.
Mariátegui defendeu a importância de se conhecer a história da crise mundial, porque as visões locais e ultranacionalistas não ajudavam a formar uma concepção integral das realidades, por isso era necessária uma leitura mais ampliada do real, como as análises das revoluções do mundo europeu. Para Mariátegui (1979a, p. 15), o diagnóstico da sociedade peruana da época em relação à temática proposta era: “En Perú falta, por desgracia, una prensa docente que siga con atención, con inteligencia y con filiación ideológica el desarrollo de esta crisis”.
O intelectual peruano destacou a importância da classe trabalhadora, cujos membros deveriam passar da posição de espectadores para a de atores, pois a construção de uma nova sociedade requeria a formação dessa classe. Para Mariátegui (1979a, p. 15), faltavam “grupos socialistas y sindicalistas, dueños de instrumentos proprios de cultura popular, y en aptitud, por tanto, de interesar al pueblo por el estudio de la crisis”.
Mariátegui também pontuou que, com a intensificação das lutas entre as classes sociais, abriu-se o caminho para uma crise nas democracias burguesas, provocando avanço das classes dominantes, o que configurou um novo tipo de colonialismo.
A práxis pedagógica de Mariátegui nas Universidades Populares González Prada
Ressaltamos a maneira como Mariátegui organizou e realizou sua práxis pedagógica nas Universidades Populares e como ele percebia o público que o acompanhava em seus encontros. Em suas próprias palavras: “Yo no olvido durante mis lecciones que este curso es, ante todo, un curso popular […]. Trato de emplear siempre un lenguaje sencillo y claro y no un lenguaje complicado y técnico” (MARIÁTEGUI, 1979a, p. 41). O autor compreendia que seu trabalho pedagógico deveria estar direcionado à classe trabalhadora, exigindo do educador popular a capacidade de inserção no mundo da vida de seus interlocutores. Entretanto, sabia que não poderia prescindir de alguns conceitos fundamentais para o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem. “Pero, con todo, al hablar de tópicos políticos, económicos, sociales no se puede prescindir de ciertos términos” (MARIÁTEGUI, 1979a, p. 41).
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A experiência de educador popular de Mariátegui nas Universidades Populares González Prada deixou implicações na clase trabalhadora, como pode ser confirmado neste excerto: “El día que llegó Mariátegui a la Universidad Popular los trabajadores lo recibieron con mucha expectativa. Haya de la Torre hizo una presentación bastante especial, muy diferente, muy cordial” (PORTOCARRERO, 1987, p. 131). Em outro fragamento textual, pode-se ler que Mariátegui “había dado conferencias sobre la crisis mundial, política y económica en el mundo. Nos había ampliado nuestra visión local, con las teorias revolucionarias que agitaban el movimiento obrero en el mundo entero” (PORTOCARRERO, 1987, p. 133).
As reflexões mariateguianas nas Universidades Populares iniciaram da seguinte maneira: “En esta conferencia – llamémosla conversación más bien que conferencia” (MARIÁTEGUI, 1979a,
p. 15). Infere-se que ele se utilizou de uma práxis pedagógica com base no diálogo, trazendo seus interlocutores para o centro do processo de ensino e aprendizagem. Na sequência do mesmo texto, Mariátegui (1979a, p. 18) fez o seguinte apontamento:
Yo no tengo la pretensión de venir a esta tribuna libre de una universidad libre a enseñarles la historia de esa crisis mundial, sino a estudiarla yo mismo con ellos. Yo no os enseño, compañeros, desde esta tribuna, la historia de la crisis mundial; yo la estudio con vosotros.
Essa afirmação apresenta a abrangência do processo didáticopedagógico realizado, o qual partia do conhecimento do mundo da classe trabalhadora e tinha uma avaliação empírica da realidade (porque conhecia as condições de trabalho tanto na área urbana quanto no campo). Assim, considerando que as Universidades Populares foram concebidas numa perspectiva pedagógica de relação verticalizada entre educadores e estudantes, Mariátegui estabeleceu uma relação horizontal com os seus interlocutores, distinta da tradição acadêmica da época.
Com essa proposta, infere-se que Mariátegui se afastou do modelo de Educação tradicional (em que o saber está concentrado no professor e o estudante é considerado uma “folha em branco”) e propôs uma práxis pedagógica com base na conversação, numa relação horizontal. Essa Pedagogia implicava a participação ativa de ambos os atores no processo de ensino e aprendizagem, dirigindo níveis e ritmos de aprendizagens com flexibilidade, saberes produzidos pela relação, engajamento nas realidades vividas e nas situações concretas de exploração, resultados das relações sociais e econômicas do sistema capitalista em desenvolvimento naquele momento histórico.
A práxis pedagógica popular mariateguiana, baseada numa relação horizontal e no diálogo, também pode ser evidenciada neste fragmento textual:
Lo recibimos con alegría; él también mostró alegría. Siempre tenía manifestaciones de alegría. Esa era una característica propia de José Carlos. No era un elemento ensimismado, que estuviese abstraído en sus pensamientos. Nunca he tenido esa impresión de Mariátegui; más bien siempre se mostraba comunicativo, listo para percibir hasta nuestros estados de ánimo
(PORTOCARRERO, 1987, p. 135).
Ainda nessa perspectiva, Mariátegui (1994, p. 198) afirmou:
“En la Universidad Popular no he querido encontrar, en todo instante, sino estudiantes, venidos unos del taller y otros de la biblioteca o del aula”. Essas características possibilitaram que ele desenvolvesse sua Pedagogia da Práxis, articulando formas de pensar, sentir, falar e fazer próprias. A Pedagogia Popular mariateguiana não foi baseada em saberes acadêmicos da burguesia e das elites, com currículos e metodologias estanques, mas em um contexto pedagógico que proporcionava à classe trabalhadora a dominação nas escolas e nas universidades da época. Mariátegui estava convencido de que as Universidades Populares deveriam ser uma sociedade cooperativa de ideias, espaços de autoformação coletiva em que as pessoas encontrariam ambientes comuns de reflexão, estudos, análises e críticas, ou seja, uma alternativa à universidade formal que historicamente se apresentava como uma instituição tradicional com “espírito” colonial. Nas próprias palavras de Mariátegui (1994, p. 198):
En el Perú la inteligencia ha estado enfeudada a los intereses y sentimientos de la casta feudal, heredera, bajo la República, de los privilegios del Virreynato. La fundación de la Universidad Popular ha significado uno de los episodios de la revolución intelectual que actualmente se cumple.
Mariátegui (1979a, p. 15) ainda afirmou: “La única cátedra de educación popular, con espíritu revolucionario, es esta cátedra en formación de la Universidad Popular”. O intelectual peruano sugeriu que, no processo de construção de aprendizagens, os educadores assumissem um novo papel, o da aproximação, do diálogo, do fazer juntos. Ao propor estudar simultaneamente com seus interlocutores, estava desenvolvendo uma Educação Popular mediadora cujo contexto pedagógico era dialogar e refletir para gerar a contradição de saberes e, assim, criar seus próprios processos de aprendizagens.
É nessa perspectiva que ressaltamos a afirmação de Flores Galindo (1980, p. 25): “Mariátegui nunca asumió la figura del intelectual que lleva la luz y la ciencia a la clase revolucionaria; por el contrario, se trató de una relación igualitaria, que siempre transcurrió en el mismo plano: un diálogo, un intercambio de opiniones y de experiencias”.
A Pedagogia de Mariátegui apontava para um educador capaz de desenvolver em seus estudantes a prática da contradição cognitiva. A horizontalidade proposta estava relacionada com a ideia de formação integral - a união do trabalho manual com o intelectual, sem a sobreposição de um pelo outro (enfoque herdado das tradições anarco-sindicalistas) -, a qual seria capaz de relacionar as experiências internacionais com as realidades nacionais e, a partir dessa relação, gerar aprendizagens por meio da contradição de saberes.
Mariátegui concebeu que as Universidades Populares deveriam ser meios de vinculação da ciência, da cultura, do conhecimento geral, ou seja, um espaço de investigação e construção do campo teórico, em que se pudesse desenvolver uma luta de ideias, com uma proposta política, para ampliar o horizonte intelectual da classe trabalhadora. Dessa forma, inferimos que Mariátegui, desde suas próprias experiências educativas, iniciou e propôs uma práxis pedagógica popular, favorecendo a descolonização dos processos de ensino e aprendizagem e dos métodos de construir conhecimentos, indicando caminhos para epistemologias alternativas.
Ainda sobre os trabalhos educativos na Universidade Popular, Mariátegui assumiu a direção da Claridad, em que publicizou o novo enfoque da revista (organizar os diferentes setores da classe trabalhadora) e provocou uma transformação nos próprios objetivos das Universidades Populares: “Son escuelas de cultura revolucionaria. Son escuelas de clase. Son escuelas de renovación” (MARIÁTEGUI, 1994, p. 107), além de criar a Sociedad Editorial Obrera Claridad, cujos objetivos foram “publicar un diario, fundar una librería obrera y editar libros, folletos y revistas necesarias para la propaganda y la cultura obrera” (PORTOCARRERO GRADOS, 1995, p. 408).
A ação pedagógica de Mariátegui em Claridad marcou uma importante aliança de solidariedade entre a classe operária e o movimento estudantil, pois estes defenderam um programa fundamental de justiça social pela democratização efetiva de uma Educação Pública e Popular.
Ressalta-se, ainda, que foram nos espaços das Universidades Populares que se originaram o Partido Socialista do Peru e o Partido Nacionalista Peruano. Deles saíram os principais quadros políticos que estabeleceram relações com a classe trabalhadora de várias áreas, formando uma base social durante décadas (PORTOCARRERO GRADOS, 1995).
Em 1927, por ocasião do sexto aniversário de fundação das Universidades Populares, Mariátegui (1994, p. 158) indicou que “la Universidad Popular está obligada a hacer un balance de su propria labor, con un criterio riguroso y, hasta donde sea posible. Creo que los fines de su primera etapa están ya superados”. O autor falou sobre a tendência de os cursos nas Universidades Populares se constituírem somente como aulas noturnas de extensão universitária, portanto precisariam assumir o compromisso revolucionário de compreensão, junto com a classe trabalhadora e campesina, da verdadeira realidade peruana.
No entanto, o aprofundamento dos trabalhos das Universidades Populares junto à classe trabalhadora, o que caracterizaria uma possível segunda etapa de atividades, não se concretizou, pois, como resultado da ação repressiva do governo de Augusto Leguía, em junho de 1927 as Universidades Populares foram fechadas.
Assim, considera-se que a práxis pedagógica de Mariátegui como educador popular nas Universidades Populares González Prada representa um marco no processo educativo peruano, como fica evidenciado neste fragmento textual: “nunca un docente universitario en la historia de la educación superior de nuestro país, había llegado a mostrar un panorama tan amplio e esclarecido del mundo contemporâneo” (YOVERA BALLONA, 2015, pp. 119120). De acordo com Yovera Ballona (2015, p. 120), nunca um professor peruano havia sido um mestre que mostrasse o mundo aos seus estudantes, e por essa razão Mariátegui foi considerado o “maestro de maestros. A casi un siglo de esa experiencia sigue haciendo docencia, sigue haciendo Cátedra”.
Portanto, infere-se que a práxis pedagógica de Mariátegui nas Universidades Populares González Prada pode ser uma potente fonte para a Educação Popular latino-americana, como apontou Jara (1990b, p. 22): “José Carlos Mariátegui logra asentar los pilares de una nueva educación, de una cultura, de la Educación Popular y de la Cultura Popular en el Perú”, ou como indicou Puiggrós (2016), ao dizer que as influências dos discursos educativos de Mariátegui ultrapassaram as fronteiras do Peru, servindo-se de base para novas experiências na América Latina:
En 1931 el socialista Elizardo Pérez, ex-inspector de escuelas, y el maestro rural indígena Avelino Siñani iniciaron una experiencia de educación popular que duró hasta 1940, en Bolívia. Esta experiencia vinculó ideas de Franz Tamayo con criterios que, aunque no existen pruebas fehacientes al respecto, parecen provenir del discurso de Mariátegui
(PUIGGRÓS, 2016, p. 225).
Considerações Finais
O exercício investigativo e analítico deste estudo evidenciou a práxis pedagógica de José Carlos Mariátegui nas Universidades Populares González Prada como uma das fontes da Educação Popular latino-americana e material de estudo sobre um educador popular revolucionário que impulsionou espaços de autoformação, sistematização, aprendizagem coletiva e diálogos de saberes.
Constatou-se que a Pedagogia mariateguiana pode ser uma fonte para a classe popular, na perspectiva de uma Educação para a conscientização política, social e revolucionária. A Educação Popular de Mariátegui apontou um potente processo formativo baseado na relação horizontal entre sujeitos que aprendem por meio das trocas de saberes, considerando as circunstâncias reais em que essas pessoas vivem. Uma práxis pedagógica ancorada no diálogo e na reflexão, para gerar contradições de saberes e desenvolver novos conhecimentos, potencializando a construção de espaços formativos coletivos e práticas libertadoras, impulsionando, assim, uma Educação Popular alternativa aos modelos hegemônicos, crítica do colonialismo, das lógicas eurocentradas e dos processos burocratizadores.
A práxis pedagógica mariateguiana revelou a importância de um projeto de Educação Popular integral que considere a autonomia e a formação da identidade cultural, dinamizando os espaços de encontros e autoformação coletiva voltados para a classe trabalhadora, gerando processos educativos de formação, autoformação e conscientização, numa perspectiva da organização e da luta política. Assim, considera-se que o ponto-chave da práxis pedagógica popular mariateguiana é a formação da consciência e da autoconsciência das massas, que é uma questão primariamente pedagógica e política, ou seja, a necessidade de se pensar os movimentos populares como educadores dos processos emancipatórios e do protagonismo da classe trabalhadora na construção de seus próprios espaços alternativos de formação.
A práxis pedagógica popular mariateguiana ainda apresenta a perspectiva da internacionalização, traduzindo e aclimatando experiências formativas de outras latitudes, reinterpretando-as sob as características de nossa América, pelas quais se pensa e se faz a Educação Popular de acordo com as realidades próprias dos territórios latino-americanos.
O exercício de evidenciar as contribuições do pensamento de Mariátegui para o campo da Educação Popular está relacionado com os estudos de sistematização das fontes pedagógicas do pensamento latino-americano. Assim, recuperar as contribuições históricas, trazê-las ao presente bem como pensar e aprender com elas podem ser ações que se configuram em um movimento necessário para que se desenvolvam as alternativas de enfrentamento das realidades contemporâneas e sejam localizadas outras possibilidades de processos emancipatórios para a América Latina.
Todavia, não se trata de sacralizar Mariátegui ou outras fontes do pensamento crítico, mas de realizar o exercício de entrelaçamento de suas contribuições e construir diálogos com outras abordagens emancipatórias, tecendo novas possibilidades de estudos.
Enfim, espera-se que este trabalho possa colaborar para o fortalecimento e a ampliação dos processos de sistematização das fontes históricas da Educação Popular latino-americana.