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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 30-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e0220058 

DOSSIÊ: EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E ATUALIDADE

A questão política da Educação Popular: o que pode um livro 40 anos depois?

The political question of Popular Education: what can a book do 40 years later?

La cuestión política de la Educación Popular: ¿qué puede hacer un libro 40 años después?

Maria Tereza Goudard Tavares1 

1Professora Associada da Faculdade de Formação de Profesores da UERJ, do Departamento de Educação. Pòs-Doutora em Educação pela FE/UNICAMP, Docente do programa de Pós-Graduação em EducaçãoProcessos formativos e Desigualdades Sociais -PPGedu/UERJ/FFP, Procientista da UERJ, participante ad-hoc do GT 06 de Educação Popular da ANPED.


Resumo

Nos percursos dos 40 anos da Educação Popular no Brasil aprendemos que o que fundamenta e dá sentido à universalidade da vida social é o sentimento de pertencimento e o direito à memória. Todos e todas devem ter o direito à memória. E esse é o singelo objetivo do presente artigo, tecido e urdido na dor do luto de pessoas próximas e dos inumeráveis que, no Brasil, já contabilizam mais de 667 mil óbitos, enlutando famílias do Oiapoque ao Chuí. O direito à memória é pensado aqui como um direito que se constitui na contramão de uma sociedade que se nutre de apagamentos e silenciamentos cotidianos, nos quais a memória dos vencidos não serve de dispositivos de contramemória e lembranças das lutas travadas em torno da democracia, da liberdade, dos enfrentamentos das desigualdades sociais e das lutas por justiça no campo e na cidade. E para reconstruir essa relação com a vida, em especial nesse contexto pandêmico, de tantas perdas e lutos, trago à memória um livro seminal, clássico, que há mais de 40 anos vem atravessando com sua potência epistêmica e política o campo da Educação Popular brasileira e latino-americana. Trata-se da obra A questão Política da Educação Popular (BRANDÃO, 1980), cujos impacto e reverberação ainda merecem ser discutidos e ampliados entre nós, principalmente por conta dos desafios que se (re)atualizam no campo da Educação Popular brasileira.

Palavras-chave Educação Popular; Direito à memória; Questão Política; Pandemia da Covid-19; Lutas e resistências

Abstract

In the course of 40 years of Popular Education in Brazil, we have learned that what grounds and gives meaning to the universality of social life is the feeling of belonging and the right to memory. Everyone should have the right to the memory. And this is the simple objective of the present article, woven and woven in the pain of mourning of people close to us and of the innumerable people who, in Brazil, already account for more than 667,000 deaths, bereaving families from Oiapoque to Chuí. The right to memory is thought of here as a right that is constituted at the counterpoint of a society that is nourished by daily erasure and silencing, in which the memory of the vanquished does not serve as a counter-memory device, and memories of the struggles fought for democracy, freedom, the confrontations of social inequalities, and the struggles for justice in the countryside and in the city. And to reconstruct this relationship with life, especially in this pandemic context, of so many losses and mourning, I bring to memory a seminal book, a classic book, which for over 40 years has been crossing, with its epistemic and political power, the field of Brazilian and Latin American Popular Education. It is the work The Political Question of Popular Education (BRANDÃO, 1980), whose impact and reverberation still deserve to be discussed and expanded among us, especially because of the challenges that (re) actualize themselves in the field of Brazilian popular education.

Keywords Popular Education; Right to Memory; Political Issue; Covid-19 Pandemic; Struggles and Resistance

Introdução

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Ítalo Calvino, 1993.

Escrevo este artigo, tecido e urdido num momento de refluxo da pandemia da Covid-19, em maio de 2022. O contexto, porém, ainda é de expansão do número de casos de infecção em quase todos os estados brasileiros, mas queda do número de óbitos por conta da vacinação, especialmente na cidade na qual vivo, o Rio de Janeiro. Porém é impossível não pensar na Covid-19 e nos seus impactos na vida das pessoas, sobretudo quando, ao invés de ampliar o combate à pandemia, assistimos ao total afrouxamento dos protocolos de cuidado e proteção nas grandes metrópoles. Tempos muito duros, nos quais − ao contrário do que diz o ditado popular − a morte não iguala todos e todas. A epidemia do Coronavírus vem explicitando que a morte, como a vida, distingue. E para nós, como professores e professoras, fortemente vinculados ao campo educativo que se denominou nos últimos 60 anos como Educação Popular, uma questão fundamental que viemos acompanhando dessa experiência é o crescimento da luta coletiva contra a pandemia, configurando um afeto político de gestos multiplicados de solidariedade.

Tem sido assim nas favelas cariocas, nos assentamentos rurais espalhados pelo país, nas moradias coletivas nas grandes metrópoles brasileiras, nas diferentes mobilizações feitas por associações de moradores, sindicatos, igrejas, diferentes grupos da sociedade civil brasileira, distribuindo cestas básicas, quentinhas, materiais de higiene corporal aos moradores de favelas, periferias urbanas e áreas rurais. É esse afeto político fundamental chamado solidariedade que atravessa o meu texto, convidando-me a pensar que, no Brasil contemporâneo, apesar de termos uma estrutura societal fundamentada na necropolítica (MBEMBE, 2016), que se acostumou com a gestão dos mortos oriundos de uma sociedade historicamente genocida e escravocrata, na qual indígenas, negros e negras, homens e mulheres favelados são considerados coisas e não pessoas, a solidariedade social ainda se faz presente, ocupando o vazio da ausência de posicionamentos oficiais e governamentais.

Diante dessa catástrofe anunciada ao vivo e em cores pelos veículos de comunicação de massa, como TVs, rádios, revistas e jornais, sendo contínua e solenemente ignorada pelo presidente da República e seus asseclas, que contradizem autoridades médicas e sanitárias do Brasil e do mundo, desafiando o Coronavírus e a sua letalidade, faz-se necessário e urgente pensar e arguir esse “estado de exceção” (BENJAMIN, 2013) no qual, como um pesadelo, todos e todas (sobre)vivemos. Em tempos de quarentena e distanciamento social, instaura-se um outro tempo, um tempo de incertezas frente à complexa crise na qual todos estamos enredados: uma crise da própria medicina (os debates em torno de como tratar a pandemia em si), uma crise econômica (que afeta todo o sistema produtivo e cujos impactos não sabemos antever) e uma crise pessoal, de nossas próprias condições mentais, de como cada um/uma está vivendo esse período de (pós-)pandemia, sendo que os impactos subjetivos não podem ser subestimados – principalmente pelo elevado número de óbitos que já nos colocam como o segundo país do mundo com mais perdas de vida pela Covid-19.

Do ponto de vista das mortes, somente em maio de 2022 já contabilizamos um total de 666.319 mortos. E se as pessoas morrem e não têm direito ao luto, não têm direito à expressão coletiva de dor, não têm mobilização social, antevemos o que pode acontecer. Essa questão sempre esteve presente na sociedade brasileira. Dependendo de quem morre, é um número, não é uma pessoa, não é uma história. Sabemos, desde a Antiguidade Clássica, desde os gregos, que uma sociedade se autodefine a partir da maneira como ela lida com os seus mortos. O cuidado com a vida e o cuidado com os mortos seriam os fundamentos da vida social. Os gregos sabiam, desde Antígona de Sófocles, que a sociedade que nega e interdita os rituais de memória de seus mortos potencializa a dificuldade de sua sobrevivência histórica e política bem como dificulta a sua sobrevivência social, independentemente de quem sejam os seus mortos.

Em Muniz Sodré (2005), aprendemos que o que fundamenta e dá sentido à universalidade da vida social são o sentimento de pertencimento e o direito à memória. E esse é o singelo objetivo de nosso texto, tecido e urdido na dor do luto de pessoas próximas e dos inumeráveis que, no Brasil, já contabilizam mais de 667 mil óbitos, enlutando famílias do Oiapoque ao Chuí. O direito à memória é pensado aqui como um direito que se constitui na contramão de uma sociedade que se nutre de apagamentos e silenciamentos cotidianos, nos quais a memória dos vencidos não serve de dispositivos de contramemória e lembranças das lutas travadas em torno da democracia, da liberdade, dos enfrentamentos das desigualdades sociais e das lutas por justiça no campo e na cidade. E para reconstruir essa relação com a vida, em especial nesse contexto de tantas perdas e lutos, trago à memória um livro seminal, um clássico, que há mais de 40 anos vem atravessando, com sua potência epistêmica e política, o campo da Educação Popular brasileira e latino-americana. Trata-se da obra A questão Política da Educação Popular (BRANDÃO, 1980), cujos impacto e reverberação ainda merecem ser discutidos e ampliados entre nós, principalmente por conta dos desafios que se (re)atualizam no campo da Educação Popular brasileira.

A premissa deste artigo é que a Educação Popular e suas pedagogias de luta recebem especial tratamento e discussão no livro A questão Política da Educação Popular, sendo seus artigos fundamentais para pensar processos formativos a contrapelo (TAVARES, 2019). Processos formativos que, no meu entendimento, nutrem-se de luta, esperança e desejo de ser mais, como nos ensina Paulo Freire (1997). E por isso mesmo, em um momento tão dramático como o atual, torna-se relevante e inadiável pensar o papel da Educação Popular nos processos de formação humana de crianças, jovens e adultos no país, tomando cada escola, cada movimento social, cada contexto educativo no país como um território de potência e resistência à barbárie em curso.

A questão política da Educação Popular: pensando outras gramáticas formativas em tempos de pandemia e enfrentamento das desigualdades sociais

Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Italo Calvino (1993)

Inspirada por Calvino, em seu livro Por que ler os clássicos (1993), arrisco-me a escrever algumas palavras a respeito do livro A questão política da Educação Popular, acima referenciado. Uma obra que se tornou seminal, porque, além do número cabalístico dos seus sete artigos de sete autores e autoras, os seus prefácio e posfácio, (trans)escrito por Carlos Rodrigues Brandão, apresentam, de forma dialógica e contundente, a fala do lavrador do sul de Minas Gerais, Antônio Cícero de Sousa, o Ciço, em resposta à pergunta: “Ciço, como é que o povo daqui aprende?” (BRANDÃO, 1980, p. 198).

Essa questão, além de outras problematizadas pelos autores e pelas autoras em seus artigos, 40 anos depois ainda reverbera e ecoa de tal forma que nos convoca a pensá-la na urgência do tempo que vivemos,

[...] quando pela primeira vez, entre muitos tropeços e atropelos, mas sem meias verdades, procurava-se pensar a educação às avessas e associá-la de fato a um tipo de prática descaradamente política, a que se acostumou chamar de lá para agora, de libertação popular

(BRANDÃO, 1980, p. 11).

Em linhas gerais, há um fio condutor que amalgama o percurso biográfico e textual na biografia dos autores e das autoras do livro. Todos são da mesma geração que, por volta dos anos 60 do século XX, começou a trabalhar com Educação Popular, participando diretamente de “experiências de base”, isto é, trabalhando diretamente na assessoria a grupos e movimentos de educadores e educadoras populares por meio da pesquisa e/ou dos trabalhos em universidades ou centros de documentação e apoio popular vinculados à Igreja Católica, principalmente à Teologia da Libertação (LOWY, 2016).

Contendo 198 páginas, a coletânea conta com a colaboração de Carlos Rodrigues Brandão, que, além de apresentar a obra e dialogar com o lavrador Antônio Cícero de Sousa (Ciço), em seu prefácio e posfácio, contribui com um artigo (“A cultura do povo e a Educação Popular: sete canções de militância pedagógica”), Aída Bezerra (“As atividades em educação popular”), Silvia Maria Manfredi (“A educação popular no Brasil: uma releitura a partir de Antônio Gramsci”), Luiz Eduardo W. Wanderley (“Educação popular e processo de democratização”), Vanilda P. Paiva (“Estado e educação Popular; recolocando o problema”), Pedro Benjamim Garcia (“Educação Popular: algumas questões em torno da questão do saber”) e Paulo Freire (“Quatro Cartas aos animadores de Círculos de Cultura de São Tomé e Príncipe”). É importante registrar que a publicação do livro coincidia com o retorno de Paulo Freire ao Brasil, depois de mais de 15 anos de exílio e atuação em vários países das Américas, da Europa e da África.

A partir desses breves traços comuns elencados de suas biografias, depreende-se que os autores e as autoras da coletânea constituem um grupo geracional que viveu, trabalhou e sonhou utopias de mundos melhores em diálogo com Paulo Freire, mesmo que em diferentes regiões do país, trabalhando e militando pelo “fascínio histórico de elaboração de um projeto global alternativo de mudança social para o Brasil” (WANDERLEY, 1984, p. 12) durante parte da década de 1960, antes do golpe cívico-militar no Brasil.

Segundo Wanderley (1984), a maioria era oriunda da pequena burguesia urbana, militantes da Igreja Católica Progressista, com destaque para os que participavam dos movimentos da Juventude Universitária Católica ( JUC). Por exemplo, dos sete autores e autoras da coletânea, três pertenciam ao e militavam ativamente no Movimento de Educação de Base (MEB) – Aída Bezerra, Carlos Rodrigues Brandão e Luiz Eduardo W. Wanderley.

A década de 1960 foi vivida com intensidade política e paixão pedagógica por inúmeros atores: movimento estudantil, professores e professoras das universidades, Igreja Católica Progressista, sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, partidos políticos progressistas, dentre outros. Agindo juntos e/ou de forma integrada, organizavam e executavam os mesmos programas ou programas semelhantes. Apostavam em experiências inovadoras, em busca de uma “Educação conscientizadora”, que pudesse despertar no “homem e na mulher do Povo”, nos lavradores, nos camponeses do sul de Minas Gerais, do sertão da Paraíba e de Pernambuco, nos trabalhadores e nas trabalhadoras rurais do cerrado goiano bem como nos trabalhadores e trabalhadoras das favelas cariocas e demais periferias urbanas do sudeste brasileiro a experiência do “Ver, julgar e agir”, de forma autônoma e libertária, em diálogo com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que se multiplicavam no país. Multiplicavam-se, também, no período, trabalhos de caráter cultural e pedagógico, como Centros Populares de Cultura (CPCs), promovidos pela União Nacional dos Estudantes (UNE), Movimentos de Cultura Popular (CPCs), além da implementação de programas oficiais de governo, como o Programa Nacional de Alfabetização, executado pelo Ministério de Educação e Cultura, dentre outros.

É a memória e a história desse período tão rico e complexo que o livro A questão Política da Educação Popular buscava problematizar e que hoje, 40 anos depois, ainda se faz urgente e necessário arguir:

Um dia teremos que nos perguntar por que os textos e falas oficiais e ortodoxas ocultam com tanto empenho as inovações didáticas e as conversões políticas desse período em que a educação foi levada a sério, a ponto de haver sido uma das práticas sociais mais direta e impiedosamente reprimidas quando a noite escura de 1964 caiu sobre o país

(BRANDÃO, 1980, p. 12).

É nessa perspectiva, 40 anos depois que a “noite escura de 1964 caiu sobre nós” e que nesse momento parece continuar a se estender sobre o país, que pergunto: o que podemos apre(e)nder das utopias possíveis e não realizadas de um tempo ainda por vir? Em que se apegar num tempo no qual o campo dos possíveis precisa ser expandido, no qual se faz escuro, mas que é preciso continuar a cantar? (MELLO, 1965).

Nas palavras de Calvino (1993, p. 10), “dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los”. Reitero a minha compreensão da importância do referido livro, em seu sentido de “obra em aberto”, que além de estimular a multiplicidade de leituras e possibilidades de compreensão dos trabalhos de Educação Popular e cultura em diferentes regiões do Brasil, nos provoca a retomar as energias utópicas presentes nas forças das experiências narradas em seus inacabamentos. E uma das questões centrais e inspiradoras da obra encontra-se no posfácio, no qual Antônio Cícero de Sousa, o Ciço (1980, p. 198), pronuncia uma compreensão do que pode ser uma (outra?) Educação Popular:

Agora, o senhor chega e diz que até podia ser diferente, não é assim? Que não é só para ensinar aquele ensininho apressado, prá ver se velho aprende o que menino não aprendeu. Então que podia ser um tipo de educação até fora da escola, sala. Que fosse assim dum jeito misturado com o-de-todo-dia da vida da gente daqui [...] quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que é pouco mas não é, eu lhe garanto, e ensinar o nome das coisas que é preciso pronunciar pra mudar os poderes, Então era bom. Então era. O povo vinha. Vinha mesmo e havia de aprender. E esse, quem sabe? . o saber que tá faltando pro povo saber?

Considerações finais, ou já é manhã no mar

Termino este breve artigo, urdido em tempos tão paradoxais, me perguntando: qual seria o saber que tá faltando pro povo saber? O saber da escola? O saber da vida cotidiana? Da cultura comum, da cultura de massas, das culturas tecnológicas digitais? O saber das igrejas ministradas pelos profetas da fé? O saber dos políticos das bancadas “da bala, da bíblia e do boi”? O saber dos “donos do poder”, das milícias e dos grupos do poder paralelos nas favelas e nas periferias urbanas? “O saber de saber que é possível vir ao mundo outros modos de saber?” (TAVARES, 2019, p. 33 ). “Um saber que já estava lá e pedia para nascer? [...] Um saber pro povo do mundo como ele é? Esse eu queria ver explicado” (CIÇO, 1980, p. 10).

Com relação ao campo da Educação Popular, as questões relativas à memória, à história e à vida cotidiana tornam-se visceralmente fundantes na construção de projetos contrahegemônicos em todos os espaços da vida social. Memória e história parecem ser cada vez mais o amálgama cotidiano da esperança e da busca utópica de novas subjetividades, agenciadoras de projetos potentes no mundo da vida e da escola. A hiperfragmentação do mundo contemporâneo parece ter perpassado todas as relações sociais, explodindo o imaginário democrático herdado do Iluminismo e do liberalismo eurocêntrico, que postulava a liberdade, a igualdade e a fraternidade como devir histórico do processo civilizatório contemporâneo. Chegamos às primeiras duas décadas do século XXI meio que nocauteados, anestesiados pelo frenesi das transformações cotidianas.

Ao discurso ideológico da igualdade de direitos e emancipação humana produzido no Ocidente há quase 300 anos contrapõese a barbárie cotidiana, especialmente nos países considerados periféricos na lógica do capitalismo globalizado, em que ao “Deus-mercado” é delegada a regulamentação de vida social.

Nesse contexto de pandemia e desequilíbrios ecosóficos, o surgimento de “novos focos de conflitividade” e a crise das relações sociais se fazem evidentes, fazendo explodir em todas as latitudes o individualismo desesperado. O efeito é a solidão: a solidão da exclusão, da pobreza da discriminação, dos privilégios. Sua resposta extrema é o sectarismo, o elitismo, o fanatismo e o terror. E o tema da solidão como fenômeno de massas, com profundas e complexas repercussões na vida inter e intrapessoal jamais, foi tratado pela teoria democrática e pela própria Educação Popular. O que não deixa de ser paradoxal, porque a democracia e uma Educação como prática de liberdade (FREIRE, 1997) só podem ser construídas na crítica à solidão (TAVARES, 2019).

Nessa perspectiva, história, memória e vida cotidiana nos parecem ser polos indissociáveis do aprendizado de homens, mulheres, jovens e crianças, porque a partir − e por meio − deles é que podemos nos libertar da cegueira do esquecimento, da violência da solidão, do cinismo desses tempos de narcisismos e individualismos exacerbados.

Em minhas pesquisas no campo da Educação Popular, no município de São Gonçalo, venho recorrendo às contribuições deBourdieu (1997), cujo trabalho sociológico, epistêmico, político e metodológico, em diálogo com Milton Santos (1994), toma a perspectiva do lugar como espaço por onde se engendram ações e diferentes relações de força que impulsionam e produzem dinâmicas sociais no território da vida cotidiana.

Desse modo, entendo que esta breve reflexão pode contribuir para a compreensão do conceito de formação humana como um processo aberto, que vai sendo desenhado ao longo da vida, dialogando com a condição de inacabamento de homens e mulheres, como define Paulo Freire (1997, p. 20):

A educação é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da infinitude do ser humano, de outro, da consciência que ele tem de finitude. Mas ainda pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber que vivia, mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente se fundam aí.

Conceber homens, mulheres, crianças e jovens como seres inacabados nos leva a refletir sobre os seus processos formativos como caminhos abertos e bifurcação de trajetórias trilhadas ao longo de nossas vidas, um caminhar meio nômade que é também marcado pelo contexto sócio-histórico do qual fazemos parte. Dessa maneira, os processos formativos que defendemos à luz da Educação Popular englobam muito mais do que os conteúdos curriculares e os modos de ser ou fazer pedagógicos, abrangendo também as dimensões pessoais e subjetivas tomadas por nós como produções sociais e coletivas.

Neste esforço de elaboração de uma síntese, mesmo que inconclusiva, ressalto uma questão que, longe de ser uma obviedade, configura-se como um desafio fundamental no campo educativo brasileiro, em especial no Brasil no contexto da pandemia da Covid-19: torna-se importante pensar e discutir, nos processos formativos, toda uma gramática de formação (TAVARES, 2019) em diálogo com a categoria da provisão, tomada de empréstimo aos pesquisadores e às pesquisadoras do campo da Educação Popular, em especial à antropóloga Lygia Segalla (1992) e ao historiador Victor Valla (1998).

Primeiramente, quando falamos em outra gramática de formação estamos nos referindo a um conjunto de dispositivos epistêmicos, políticos e pedagógicos que designam um sentido comum, dialógico, e são interligados para a formação de docentes preocupados com processos de Educação Popular na escola pública (TAVARES, 2019). Do ponto de vista da gramática de formação necessária à formação docente que referenciamos acima, entendemos ser importante ressaltar o emprego da categoria “provisão” em tensão com a categoria “previsão”, no sentido de afirmar um modo diferente (mas não desigual) dos diversos grupos de sujeitos com os quais trabalhamos nas redes de Educação Básica do Leste Fluminense (RJ) pautarem e conduzirem suas vidas, especialmente no que tange às estruturas temporais e à construção de seus processos de profissionalidade. A categoria “provisão” nos desafia a pensar uma percepção diferenciada de tempo, tendo em vista a intensidade do tempo de agora, o que não significa e não implica deserção de projetos de futuro, de pensar a vida como possibilidade do ainda por vir, como nos provoca o filósofo alemão Ernst Bloch (2005).

Com efeito, para Bloch, desde o Espírito da Utopia (2019, a questão da esperança é fundamental em seu pensamento, gravitando em torno d’O Princípio Esperança (2005), no qual busca levar a filosofia até a esperança, nos propondo pensar que as angústias diante da vida e as maquinações do medo e seus criadores podem ser alvos da ação das pessoas que, movidas pelo afeto da espera, saem de si mesmas e, empenhadas nessa atividade, procuram no próprio mundo aquilo que ajuda o mundo a ser o que ele ainda não-não é. Em nosso exercício de pensamento, compreendemos que, ao interrogar sobre as virtualidades do lugar e os processos formativos realizados nos territórios da escola e da universidade, nos é permitido pensar a complexa dialética da formação humana nos espaços institucionais ou não institucionais nas quais ela se realiza. Assim, professores, professoras e estudantes parecem intuir sobre as virtualidades do lugar como (re)existência e, também, conjunto de oportunidades para a materialização de processos formativos indissociáveis de um projeto ético e sociocultural, isto é, de um projeto de sociedade outra, mais livre e justa.

Destarte, isto implica tomar o território da escola como texto e contexto de processos de produção de conhecimentos teóricos, práticos, políticos, éticos e estéticos a serem (re)criados a cada dia, como obras abertas (TAVARES, 2019), nas quais as dinâmicas de formação de estudantes e professores circulam e se recriam, sendo nutridas por jogos de poder e exercícios de liberdade, que, ao serem (re)apropriadas e aprofundadas pelos diferentes sujeitos em formação, constituem uma gramática de formação centrada na superação da falsa dicotomia entre teoria e prática.

Nesse sentido, para fechar − mesmo que provisoriamente − este texto-pretexto para uma conversação, reitero que o desafio de pensar a escola pública com uma lócus privilegiado da Educação Popular ancora-se na perspectiva de que uma gramática formativa pautada na categoria da provisão não se esgota apenas na produção de espaços potentes para o diálogo sobre o campo escolar – pedagógico, como propriamente dito. Compreendo ser cada vez mais auspicioso e estratégico, tanto política quanto epistemicamente, conhecer e dialogar com processos formativos produzidos pelas forças vivas nos territórios, interrogando-as, aprendendo com elas na perspectiva do enfrentamento das desigualdades sociais. Nesses tempos tão sombrios no Brasil e no mundo, entendo ser urgente produzir estudos sobre o campo da Educação Popular em sentido ampliado, revigorando nossos quefazeres em tempos de pandemia e transformações sociais profundas, principalmente em diálogo com Freire (1997, p. 33) e sua concepção de Educação Popular, compreendendo-a “como esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares, capacitação científica e técnica”.

Para finalizar, tomo por empréstimo novamente algumas palavras de Ítalo Calvino (1993, p. 11), afirmando que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Por isso, mesmo passados 40 anos, A questão política da Educação Popular (1980) continua a reverberar em nossas cabeças, alimentando questões, interrogando outras, contradizendo inúmeras, provocando-nos ao princípio esperança, descobrindo nas entranhas do agora a latência do porvir. Não seria esse um dos compromissos mais fecundos de uma “Educação como prática de liberdade”? Uma Educação Popular revigorada pelo “ainda não”? Resistir como matéria-prima de nossos sonhos diurnos?

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Recebido: 04 de Julho de 2022; Aceito: 13 de Novembro de 2022

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