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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 20-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e0220056 

DOSSIÊ: EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E ATUALIDADE

Processos educativos populares na/da alimentação: a prática do saber e o saber da prática

Popular educational processes in/of food: practice of knowledge and knowledge of practice

Everton Luiz Simon1 

Cheron Zanini Moretti2 

Hosana Hoelz Ploia3 

1Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul. Tem pesquisado sobre a relação trabalho-educação, educação popular, saberes populares, educação do/no campo e alimentação

2Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul.

3Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul.


Resumo

O presente artigo tem por objetivo compreender os processos educativos que emergem na/da relação entre trabalho e alimentação. Metodologicamente, resulta da análise qualitativa de dados produzidos em entrevistas semiestruturadas, anotações em diários de campo e narrativas com mulheres da região do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Desse modo, selecionamos onze registros de mulheres de diferentes municípios da região, analisados a partir da codificação e da decodificação das narrativas de memória, valorizando a perspectiva crítica que é própria da Educação Popular na/da leitura de mundo. A categoria conceitual de memória é relevante para a compreensão da relação trabalho-educação-alimentação. A memória, como objeto de estudo epistemológico, torna-se vetor de uma vivência de pertencimento coletivo e popular, revela tradições, costumes e experiências dos grupos sociais bem como manifesta a organização das comunidades por seu trabalho, saberes e processos educativos que emergem no tempo e no espaço vividos. Em um primeiro momento identificamos como processos educativos emergentes: a relação entre comida e saberes; a produção e a manifestação de memórias partilhadas entre as mulheres; e o fortalecimento e a (re)existência de práticas alimentares. Destacamos, por conseguinte, o desvelar de práticas e saberes que se diferem em: 1) conservas, salgadas e aciduladas; 2) doces cremosos, compotas cristalizadas ou secas; e 3) derivados dos laticínios. Portanto, neste artigo, foi possível observar que experiências, saberes e práticas de alimentação estão relacionados ao trabalho. Consequentemente, entendemos que as mulheres ressignificam suas memórias. Logo, “ser mulher” implica partilha e reciprocidade bem como pertencimento pela consciência de saberes e práticas populares.

Palavras-chave Trabalho-Educação; Relação; Memória; Mulheres; Educação Popular

Abstract

This article aims to understand the educational processes that emerge in the relation between work and food. Methodologically, it results from the qualitative analysis of data produced in semi-structured interviews, notes in field diaries with women from the Vale do Rio Pardo region, in Rio Grande do Sul. Thus, we selected eleven registers of women from different cities in this region, analyzed from the codification and decoding of memory narratives, valuing the critical perspective that is proper of popular education in reading the world. The conceptual categories of memory and identity are relevant to the understanding of the relation between work and food. Memory, as an object of an epistemological study, becomes a vector of an experience of collective and popular belonging, reveals traditions, customs, and experiences of social groups, as well as manifests the organization of communities through their work, knowledge, and educational processes that emerge in time and space. In the first moment, we identify some emerging educational processes: the relation between food and knowledge; the production and manifestation of shared memories among women; and the strengthening and (re)existence of food practices. We highlight, in this way, the unveiling of practices and knowledge that differ in: 1) preserves, salted and acidulated; 2) creamy sweets, candied or dried jams; and, 3) dairy products derivatives. Therefore, in this article, it was possible to observe that the experiences, knowledge, and practices of food are related to work. With this, we understand that women re-signify their memories, so that “being a woman” implies sharing and reciprocity, as well as belonging through the awareness of popular knowledge and practices.

Keywords Work-Education; Relation; Memory; Women; Popular education

Introdução

Neste texto apresentamos resultados parciais de uma pesquisa em andamento4 que se propõe a compreender os processos educativos que emergem na/da relação entre trabalho e alimentação. Para tanto, partimos da experiência de produção de alimentos por mulheres na região do Vale do Rio Pardo,5 localizada na área centro-oriental do estado do Rio Grande do Sul. É nesse amplo espaço territorial e mediante interlocuções teórico-metodológicas que fundamentamos nosso trabalho de pesquisa, na perspectiva da Educação Popular em diálogo com narrativas autobiográficas, que se tornam fundamentais ao permitirem a compreensão de diálogos e conversações, nas quais se entrecruzam categorias como memória, experiência e identidade (LUZ; ALMEIDA; SILVEIRA, 2021).

Trata-se de um exercício de reflexão e análise de fontes produzidas ao longo dos últimos anos no Grupo de Pesquisa “Educação Popular, metodologias participativas e estudos decoloniais” (CNPq)6 e no Observatório da Educação no Campo do Vale do Rio Pardo (VRP). Entre 2020 e 2021 constituímos um banco de dados por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio e transcritas. Além disso, apoiamo-nos nas anotações de diários de campo e práticas de trabalho em diferentes famílias no interior da região. Considerando a importância das questões éticas envolvidas em pesquisas no campo da Educação, levamos em conta, portanto, os princípios, os cuidados, os procedimentos e o compromisso assumido pelos/as pesquisadores/as com as participantes. Ao entender e tratar de informações e reflexões delas, buscou-se evitar possíveis exposições que pudessem causar constrangimento a partir da leitura e da assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). Por conseguinte, explicitaram-se todos os objetivos, os cuidados e as consequências da participação na pesquisa, incluindo a autorização de seu nome próprio como forma de visibilizar não apenas os saberes inerentes ao trabalho, mas também o lócus de enunciação das experiências dessas mulheres. Esse acervo tem nos permitido compreender uma série de características de sua organização no meio rural assim como a diversidade de processos educativos que emergem na relação entre trabalho e alimentação. Desse modo, selecionamos onze registros de mulheres, agricultoras, de variadas idades e diferentes municípios do Vale do Rio Pardo, território de abrangência dos referidos projetos, analisados a partir da codificação e da decodificação das narrativas de memória, valorizando a perspectiva crítica que é própria da Educação Popular na/da leitura de mundo (FREIRE, 1971; 2011).

O presente texto está organizado em quatro partes, a contar desta introdução. Na parte que segue, inspiramo-nos em Paulo Freire para apresentar a indissociabilidade entre teoria e prática bem como em sua perspectiva sobre história para relacionar as três categorias: memória, alimentação e trabalho. Na continuidade, ainda sob inspiração freiriana, em diálogo entre educação, trabalho e alimentação, aprofundamos as relações acerca do quanto a alimentação está permeada de saberes e fazeres construídos em processos educativos no contexto do trabalho e das relações sociais no mundo popular. No último tópico, por meio das vozes das agricultoras, adentramos nos espaços de relações trabalhoeducação-alimentação, revelando mosaicos de saberes populares e ressignificações, possibilitando-nos interpretações privilegiadas das culturas e das identidades sociais coletivas nos processos educativos que vão emergindo de tais relações.

Memória, alimentação e trabalho: contexto concreto-teórico para leitura e análise da realidade

Anteriormente, trouxemos alguns elementos a respeito do contexto concreto da pesquisa e da região como território de práticas e saberes. De acordo com Freire (1997, p. 68), “a importância da relação em tudo o que fazemos na nossa experiência existencial enquanto experiência social histórica” é dada pela vinculação entre sujeitos que conhecem objetos que são conhecidos em diferentes tempos-espaços. Assim, nossa consciência sobre a prática foi o que a promoveu como uma categoria e permitiu que se gerasse o saber sobre ela: “a consciência da prática implica a ciência da prática embutida, anunciada nela” (FREIRE, 1997, p. 68). Essa seria, portanto, uma das formas de apreendermos como a memória, a alimentação e o trabalho interrelacionam-se e tornam-se categorias teórico-práticas importantes para a compreensão dos saberes como resultado de histórias individuais, singulares e coletivas.

Consideramos que a categoria memória é relevante para a compreensão da relação entre trabalho e alimentação, pois revela tradições, costumes e experiências dos grupos sociais bem como manifesta a organização das comunidades por seu trabalho, saberes e processos educativos que emergem no tempo e no espaço vividos (TEDESCO, 2014). Portanto, é vetor de uma vivência de pertencimento coletivo e popular compartilhada entre gerações.

A partir da memória, as práticas e os seus respectivos saberes são evocados, os quais possibilitam análises sobre formas autônomas de trabalho e educação que, diante das inovações, em especial tecnológicas, são passíveis de mudança e esquecimento. A memória, como dispositivo de enunciação das identidades das comunidades, não restrita ao passado, atua no presente para a preservação de um conjunto de processos, práticas e saberes relacionados à culinária e à alimentação (BRANDÃO; BORGES, 2014). Ademais, a memória concerne à (inter)subjetividade e está ligada às lembranças que são vistas pelas lentes do tempo presente. Considerando o “trabalho coletivo de socialização da natureza” bem como os laços afetivos, os seres humanos criam vínculos de pertencimento a determinado grupo (BRANDÃO; BORGES, 2014, p. 10; TEDESCO, 2014). Memória e pertencimento, assim, traduzem as identidades – das comunidades e dos sujeitos –, entendidas como os sentidos atribuídos ao viver em um espaço-tempo compartilhado e histórico.

A alimentação pode ser entendida como um conjunto de práticas de trabalho e transformação humana no ambiente em que se vive. Sobre o ato de alimentar-se, este é “o que nutre, o que traz ao homem [sic] os elementos que o dispêndio da vida lhe fez perder” (POULAIN, 2004, p. 258). Ademais, o comer, como símbolo, constitui-se por meio das relações sociais, culturais e identitárias; está intimamente associado aos valores sociais, aos “usos, costumes, protocolos, condutas e situações” vividos e construídos pelos sujeitos nas comunidades, conforme bem observado por Santos (2005, p. 12). A relação entre alimento, cozinha e comida, imbricada pela ação do trabalho, é intermediada por saberes, práticas, experiências, atitudes de colaboração, solidariedade e reciprocidade que comunicam e representam saberes populares e tradicionais, em particular os das mulheres. Além de ser uma categoria histórica, a alimentação consiste no trabalho, entendido aqui como “o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades humanas” (SAVIANI, 2007, p. 154). Conforme Saviani (2007, p. 154), é por meio do trabalho como essência humana que homens e mulheres se tornam seres humanos, desenvolvem-se e educamse: “os homens [sic] apropriavam-se coletivamente dos meios de produção da existência e nesse processo educavam-se e educavam as novas gerações”.

No campo da Educação, o antropólogo e educador Brandão (1988) apresenta abordagem semelhante a Montanari (2013) e Contreras e Gracia (2011), ao apontar que os saberes e as práticas relacionados à alimentação configuram-se como práticas educativas, isto é, o trabalho é entendido como princípio e meio educativo. Em um estudo sobre o campesinato goiano, Brandão (1981, p. 106) assume a comida como “um sistema de trocas diretas e de efeitos recíprocos”. Para ele, “as categorias do alimento são reconhecidas pelos seus valores de relação/efeito com/sobre o corpo”, primeiro porque “o alimento é produzido e/ou transformado pela ação do homem [sic] em modalidades de comida ou comestível, e é comido”, segundo porque “o homem [sic] sofre mudanças em seu corpo e em seu equilíbrio de saúde segundo a comida que consome” (BRANDÃO, 1981, p. 106).

O homem [sic] e a natureza mantêm entre si trocas permanentes regidas pelas convicções de que o homem come (a inclusão de porção da natureza no espaço do corpo) produz efeitos definidos sobre esferas pessoais de equilíbrio; enquanto o que o homem [sic] faz para comer (a inclusão do corpo do homem [sic] em espaços da natureza) produz efeitos definidos sobre o equilíbrio de seu habitat natural

(BRANDÃO, 1981, p. 148).

Assim, como lugar de encontros e relações sociais e culturais, a cozinha e os espaços relacionados à alimentação funcionam como mediadores culturais importantes de construção e partilha de saberes populares. Com base nesses diálogos concreto-teóricos, no próximo tópico buscamos compreender a relação entre trabalho e alimentação manifestada nos processos educativos percebidos e refletidos nas práticas alimentares em destaque neste artigo.

(Com)partilhar práticas e saberes: a relação entre trabalho e alimentação

Como foi possível observar, a maneira dialética como Brandão concebe a comida aproxima-se do conceito de trabalho em Saviani, o que denota tratar-se de duas categorias inseparáveis e, ao mesmo tempo, intercambiáveis, na medida em que aquilo que se concebe como comida advém do trabalho. Desse modo, se os homens e as mulheres se educam no e pelo trabalho, é possível afirmar que há saberes e práticas educativas nos diferentes sistemas e culturas alimentares, que, como tais, produzem características próprias em determinados tempos e espaços.

A coletividade, portanto, pode ser ressignificada por meio da narração, da partilha e da valorização de todas as vivências privadas e dinâmicas que a constituem. Conforme Tedesco (2014, p. 38), “para continuar a recordar, é necessário que cada geração transmita o fato passado para que possa se inserir em uma tradição comum”. O pertencimento identitário coletivo permite (re)conhecer histórias, recordar processos vividos, organizar as relações internas e (re) fortalecer o sentido de comunidade reproduzido (TEDESCO, 2014). Histórias e lembranças ao longo da vida, de cada época, tornam-se processos de conservação e/ou transformação de práticas e experiências que permitem lembrar o “que se perdeu, de histórias, tradições, o reviver dos que partiram e participam então de nossas conversas e esperanças” (BOSI, 2004, p. 74); é o passado refletido no presente, em cada maneira de pensar, sentir, falar e reproduzir resquícios de outras épocas.

Nesse sentido, as mulheres do Vale do Rio Pardo podem ser consideradas as guardiãs das relações entre trabalho e alimentação, que revelam saberes e práticas populares, conservadas e/ou transformadas em seu cotidiano. Como apontou Freire (1996, p. 12), o ato de cozinhar “supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibrar para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio”. Não seria assim com a prática do saber da prática? Esse questionamento foi aberto às mulheres.

As práticas alimentares, conforme Poulain (2004), abarcam um conjunto de procedimentos relacionados desde a seleção, a preparação, a produção e o consumo de alimentos. Esse aspecto pode ser observado na lida diária no campo e nos fazeres domésticos e de cuidados realizados por cada uma das mulheres participantes da pesquisa. Assim, na vida ordinária, o produzir a comida manifesta significados, sentimentos, visões sociais de mundo, identidades e novos saberes. Assim, os ritos entre cultivar, processar, cozinhar e comer revelam-se como espaços não apenas de sociabilidade, reciprocidade, encontros e trocas entre homens e mulheres, mas também de múltiplos processos educativos por meio do diálogo (FREIRE, 2011). Na perspectiva de Freire (2011), na relação entre trabalho, saberes e práticas alimentares o diálogo constitui e é constituído por meio de dimensões comunicativas – sejam individuais ou coletivas, formais ou não formais, orais, textuais e/ou gestuais –, resultado de processos de criação e recriação da realidade humano-social. Tem-se, assim, “como consequência, a práxis produtiva como objetivação do agir laborioso dos seres humanos, os quais, como parte da natureza, modificam sua própria natureza”, em ação e reflexão (TIRIBA; PICANÇO, 2004, p. 20).

Frigotto e Ciavatta (2012, p. 751) argumentam que, “historicamente, o ser humano se utiliza dos bens da natureza pelo trabalho e, assim, produz meios de sobrevivência e conhecimento”, ou seja, leva-se em consideração que homens e mulheres ajustam a natureza à sua realidade, (re)produzindo sua existência, da qual a alimentação é peça fundamental (SAVIANI, 2007). Dessa maneira, pela transformação dos recursos da natureza por intermédio do trabalho, o produzir e o consumir comidas são um produto cultural humano, ao qual a consciência imprime múltiplos significados (FREIRE, 2011; BRANDÃO, 1988; FRIGOTTO; CIAVATTA, 2012). É nesse encontro entre natureza e cultura, em sua respectiva transformação, que a alimentação se constitui como fenômeno e objeto de análise, pois é tanto social quanto histórica.

Essa atuação sobre o meio, que permite a manutenção da vida humana, também exercita práticas educativas dos seres humanos entre si. Brandão (1988, p. 14) descreve que

[...] o homem [sic] que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situações sociais de aprender-ensinar-e-aprender: em educação.

Conforme Saviani (2007, p. 154), o trabalho e a educação possuem uma “relação de identidade” entre si, pela qual a vida/ existência humana é criada e recriada em sociedade. A partir da produção dos meios de viver, o trabalho gera também conhecimento e formas simbólicas e sociais de convivência entre humanos (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2012), as quais se aliam às relações sociais (sexuais e de gênero) apreendidas em seu processo educativo-laboral na/da vida ordinária.

Portanto, as memórias e as narrativas das mulheres tornam-se fundamentais na compreensão do caráter educativo do trabalho na relação com a alimentação. Consideramos, por essa razão, os espaços de cultivo, criação e culinária como lugares em que os alimentos são produzidos, classificados e transformados em comida por meio de seleções e combinações, logo, saberes populares compreendidos na/pela cotidianidade. O ato de transformar o alimento bruto em comida é tanto transmissão quanto construção de saberes. É também, negociavelmente, tomada de posição. Nessas tramas, identificamos alguns processos educativos que emergem na/da relação entre trabalho e alimentação: a relação entre comida e saberes como experiência social e histórica (FREIRE, 1997); a produção e a manifestação de memórias partilhadas entre as mulheres; e o fortalecimento e a (re)existência de práticas alimentares são alguns desses processos pelos quais as mulheres “atingem uma inteligência maior de propor atitudes coletivas, buscando futuro que a esperança deseja” (FREIRE; NOGUEIRA, 2014, p. 36).

As práticas e as experiências (com)partilhadas dessas mulheres, na relação trabalho-educação-alimentação, revelam modos diferentes de conhecer o mundo, por meio das práticas de estar no mundo, mexendo nele, trabalhando nele. Interessa-nos esses conhecimentos imbricados aos fazeres cotidianos. Portanto, no próximo tópico, apresentamos os processos educativos de práticas alimentares da região do Vale do Rio Pardo para, em seguida, compreendê-los.

Processos educativos na/da alimentação: a prática do saber e o saber da prática

As práticas alimentares, observadas nas áreas de produção e cultivo ou no espaço doméstico, são importantes representações dos modos de vida de uma comunidade, pois revelam mosaicos de saberes populares e ressignificações, possibilitando-nos interpretações privilegiadas das culturas e das identidades sociais coletivas.

As práticas, os saberes e os modos de fazer a comida também demonstram diferentes formas de ressignificação e permanência de tradições e processos educativos populares perante as transformações nos sistemas de produção alimentar, a partir do desenvolvimento de tecnologias de conservação, nos contextos do impacto da industrialização da alimentação e da crescente influência do consumo de alimentos processados e ultraprocessados. Essas transformações, impulsionadas pela globalização, constituem-se em fases avançadas do processo de mundialização do capitalismo. Para Santos (2002, p. 130), tal processo promoveu o desaparecimento de muitas manifestações ou produções de caráter local e regional, “desde as variedades vegetais, animais, línguas, tecnologias e qualquer tipo de costumes e de instituições socioculturais. Enquanto umas desaparecem, outras se expandem e se generalizam”. É nesse contexto que nos deparamos com as experiências, os saberes e as práticas alimentares por meio do trabalho.

“Se aproveitava tudo”, “tudo se aproveita” e “a gente aproveita tudo” são expressões que ecoaram durante os diálogos com as mulheres em seus territórios. Suas narrativas revelam um importante exercício de memória, uma vez desafiadas a se apoderarem do que está sendo oralmente contado (FREIRE; NOGUEIRA, 2014). Além disso, materializam não apenas o aproveitamento integral do que resulta do trabalho produtivo na propriedade familiar, mas também as formas de preservar histórias e lembranças de seus antepassados pelos modos de fazer e conservar alimentos e comidas, que por elas são consideradas típicas.

Cumpre destacar que são as mulheres, com sua força de trabalho, as responsáveis por todas as atividades de cuidado e fazer no âmbito doméstico e nos espaços de cultivo e criação de animais de corte, ou seja, na mantença da vida realizada cotidianamente. Sobre esse aspecto, é importante destacar que nas famílias, nos diferentes municípios da região, o espaço doméstico permanece como uma responsabilidade feminina exclusiva, “como se fossem naturais do ser mulher, biologicamente constituídas para estes trabalhos a partir de uma perspectiva determinista”, evidencia Vergütz (2021) em seus estudos. Essas responsabilidades de trabalho tornam-se reveladoras de manifestações de relações sociais de gêneros desiguais no âmbito privado, pois “não se pode discutir a divisão social e sexual do trabalho entre homens e mulheres sem associar essa divisão à repartição do saber e do poder entre os sexos na sociedade e na família” (HIRATA, 2010, p. 4).

“As verduras e os legumes que consumo é tudo o que produzo aqui na horta” (Ana, 2020); “os legumes e as verduras são quase todos da horta” (Eli, 2020); “legumes, como eu tenho uma estufa, é tudo o que eu cultivo mesmo” (Nadir, 2020). Como podemos observar, são pelas vozes e pelas mãos femininas que nesses territórios se entrecruzam saberes e práticas de diversos cultivos de legumes, hortaliças, tubérculos, cereais, ervas aromáticas e frutas, que compõem um seleto cardápio compartilhado na família: “Quem prepara a comida sou eu, minha sogra e minha filha. Aprendi a cozinhar com a minha mãe. A gordura que usamos é a de porco – banha. O azeite de oliva, sim, na salada, só azeite de oliva. A bebida que produzimos é vinho e suco, vinagre também caseiro” (Virgínia, 2020); “as frutas que temos no pomar ou eu faço schimier ou eu faço doce em calda, quando não consumida crua né. Não se perde nada” (Nadir, 2020). Assim, em seu fazer cotidiano, são detentoras de diversos saberes sobre períodos e processos de cultivo, adubação, doenças, colheita e poda, conhecimentos passados por gerações de mulheres por meio da oralidade e da observação, ressignificando processos e experiências educativas.

Quanto à produção de alimentos, um conjunto de modos de fazer é partilhado, integrando a relação entre educação e trabalho bem como configurando a prática reflexiva do “saber de experiência feito”, presente nas relações estabelecidas a partir da existência, da criticidade e da curiosidade epistemológica, conforme Freire (2011). São saberes cotidianos, na/da vida de todos os dias, nas conexões essenciais que, conforme Certeau (2009, p. 41), coloca-se “em jogo uma ratio popular, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar”. “Eu aprendi a cozinhar com a minha mãe. Eles tinham que trabalhar e a gente tinha que cozinhar, a gente era entre oito irmãos, então a gente tinha que se virar” (Nadir, 2020); “Aprendi a cozinhar com a minha mãe e a vó, ela adorava fazer cucas, doces, bolachinhas” (Lissi, 2020). É por meio das interações, das observações e das práticas que os saberes populares da experiência vão sendo compartilhados entre elas.

Esse compartilhamento de saberes e modos de fazer nas famílias bem como nas comunidades é percebido para além dos processos agrícolas, sendo aqui destacadas as técnicas de conservação de alimentos.7 Trata-se de uma prática tradicional nas famílias participantes da pesquisa. Em suas cozinhas, os diversos saberes e práticas tradicionais demonstram a manutenção dos aspectos culturais em resistência à padronização da alimentação pela indústria. Assim, para a continuação do consumo de legumes e frutas, não apenas frescos, por meio de diferentes técnicas de conservação, garante-se seu consumo ao longo do ano, mediante a conservação. Tais técnicas diferem-se em: 1) conservas, salgadas e aciduladas; 2) doces cremosos, compotas cristalizadas ou secas, aplicadas às frutas, com açúcar; e 3) derivados dos laticínios.

As mulheres, por meio de suas narrativas, visibilizam a continuidade do uso de técnicas de conservação de alimentos, pois seguem sendo uma prática recorrente nas famílias na região do Vale do Rio Pardo. Pepinos, cebolas, chuchus, beterrabas, cenouras e repolhos são alguns exemplos de alimentos preservados por meio da conserva em salmoura. Apesar das transformações nas práticas alimentares e da crescente disponibilidade de produtos nos supermercados, “eu fico olhando minhas conservas [...] isso dava um trabalhão e, hoje em dia, se acha isso tudo no mercado”, acrescenta Nadir (2020). Mesmo ao indicar a complexidade da produção, “eu prefiro fazer as minhas”, complementa, pois não há a utilização de aditivos conservantes. Essas narrativas são reflexões importantes que tensionam “resistências populares contra a opressão e a alienação de uma cultura dominante sobre a cultura popular” (OLIVEIRA, 2003, p. 64), que implica a padronização no/do consumo de alimentos e, consequentemente, o esquecimento de práticas e saberes populares.

Das frutas disponíveis em estação, Marguit (2020) acrescenta que “minha mãe fazia muita conserva de fruta também, se aproveitava tudo”. Esse aproveitamento total está relacionado aos momentos de escassez de alimentos e à experiência da fome, conforme mencionado nos diálogos. Nesse sentido, o açúcar é um ingrediente essencial para auxiliar no processo de conservação de frutas. Todavia o açúcar branco, refinado ou em grânulos cristalizados, conforme as narrativas das mulheres, era escasso; nem todos os armazéns disponibilizavam o insumo e, consequentemente, era caro, justificando seu uso em produtos adocicados somente em datas comemorativas. As preparações doces conservadas, principalmente em caldas, garantiam o consumo de frutas ao longo do ano. Eram elaboradas, geralmente, a partir do açúcar de coloração acastanhada, produzido na propriedade por meio de cultivo, beneficiamento, prensa da cana e cozimento do caldo até a transformação em açúcar, comumente chamado de mascavo.

A secagem era outro processo de conservação de frutas. Essas práticas, saberes e modos de fazer são evidenciados com detalhamento por Gilda (2020):

A minha mãe colhia, descascava e cortava em fatiazinhas bem finas, aí ela só punha dentro de uma água quente. É só passar numa água quente. Já passava na peneira para escorrer tudo, punha dentro de uma forma e parava no sol, ficava no sol um dia ou dois dependendo do calor. Aí estavam as frutas secas. Elas encolhem quando tu seca elas e, depois, punha dentro de uma lata para guardar.

De modo muito diverso, as atividades laborais desenvolvidas pelas mulheres não se restringiam aos cuidados dos pomares e ao cultivo em hortas, nas proximidades da residência. O trabalho de cuidado com os animais de corte – porcos, galinhas e vacas – foi identificado nos registros como atividades do cotidiano das mulheres. Desde a alimentação até a ordenha das vacas, são processos complexos, pesados, morosos e que apresentam etapas muito bem-definidas. A esse respeito, Marta (2020) relembra que “antigamente se levantava cedo, por volta das cinco horas da manhã, para tirar leite, tratar os animais e ir para a roça”. Observa-se que esses processos eram realizados cotidianamente, diante da reduzida oferta de gêneros alimentícios na comunidade. Ao rememorar, Marta (2020) destaca que nas comunidades “se produzia de tudo. Isso hoje diminuiu, eles compram mais, porque acham que é mais fácil e mais barato comprar do que produzir. Mas ainda tem gente que produz e mantém a colônia viva”.

Algumas práticas resistem às transformações da indústria alimentícia, como é percebido no relato de Otília (2020): “eu gostava de tirar leite”. Nesses momentos, durante o trabalho da ordenha, pensamentos surgiam, repletos de reflexão e planejamento dos afazeres do cotidiano, contudo “a gente vai ficando velha [...], se judia demais”, e, agora, essas atividades são executadas pela filha, evidenciando o ciclo de reprodução social. Como foi possível observar, nas famílias o trabalho com os animais de corte e leite é realizado exclusivamente pelas mulheres. Esses relatos não apenas exemplificam a complexidade do processo/ato laborativo, mas também reforçam uma divisão sexual do trabalho, que inicia logo pela manhã ao tratar, ordenhar, e só é finalizado após o armazenamento adequado do leite.

Podemos considerar que essas atividades se tornam reveladoras dos valores e dos sentidos dessa relação das mulheres com a natureza, na qual desenvolvem-se inter-relações com outros seres sociais. É a partir dos fazeres que saberes populares e da experiência são (com) partilhados e validados nas tramas relacionais e geracionais que ocorrem na práxis,8 por meio da co-labor-ação, da dialogicidade e das práticas solidárias em que homens e mulheres se (re)afirmam e (re)existem às transformações impostas, em particular, sobre/entre as próprias mulheres (FREIRE, 2011).

Após a ordenha há todo um conjunto de procedimentos que devem ser realizados para garantir um consumo seguro e adequado do leite. É nesse fazer-saber, mediado por escuta, olhar, diálogo e ação/prática, que processos educativos vão se estabelecendo por intermédio de transmissão, criação e transformação de conhecimentos (FREIRE, 2011). As narrativas evidenciam que no leite, seja para uso doméstico, comercial ou de trocas recíprocas e solidárias entre a vizinhança, diferentes técnicas de conservação podem ser/são aplicadas visando à sua transformação em natas, manteigas, queijos e queijos cremosos, ou seja, o leite transformado revela outros saberes, outros fazeres e novas significações.

A produção e o consumo desses derivados do leite “era o que mais se fazia, se comia muito principalmente no café, seja pela manhã ou café da metade da tarde”, relembra Nadir (2020). A esse respeito, conforme as narrativas das mulheres, o consumo dos derivados do leite variava de acordo com as particularidades étnicas e culturais da família e da região, como é possível observar no registro de Gilda (2020): “quando sobrava leite, as colonas [sic] preparavam o kas-schimier”,9 um tipo de “coalhada, não é requeijão”, esclarece. Erna (2020) explica com um pouco mais de detalhes o modo de fazer o queijo cremoso. Segundo ela, “tu faz o kas-schimier assim, [o leite] fica azedo, nós tira a nata”. Durante o diálogo, da cozinha, intervém a filha no dialeto alemão: Motha, é ricota!”. “Nein! É kas-schimier”, corrige Erna (2020), e conclui: “isso é coisa boa, com bastante nata”. O diálogo reflete uma síntese cultural entre as que dialogam, mas também uma estratégia de reprodução, reafirmação e diferenciação de processos identitários por meio de expressões linguísticas e comida. Portanto, é necessário considerar não somente os contextos históricos como também as fronteiras identitárias e culturais entre alimentos produzidos e consumidos para compreendermos a relação entre trabalho e alimentação.

O saber-fazer, isto é, a ação refletida na prática da preparação do queijo cremoso, foi narrado com mais detalhes por Eli (2020) durante nosso diálogo. Segundo ela, o processo de produzir se dá da seguinte forma:

A gente fazia kas-schimier, deixava coalhar, tirava a nata de cima, deixava de um dia para o outro e daí botava a nata no potezinho. Colocava num saco de pano para pendurar, mas tudo bem limpinho! Aí ficava pendurado, ali escorrendo [apontando para um espaço, tipo despensa] e, no outro dia, podia amassar com o garfo, um pouco de sal, com leite e/ou nata.

Nesse relato é possível perceber a complexidade de cada etapa de transformação que o alimento vai sofrendo até que, pela experiência, seja considerado pronto para o consumo.

O queijo é outra comida transformada pelas mãos e pelos saberes das mulheres na região. Ivone (2020) relembra que “desde pequena nós produzíamos todos os tipos de queijos, hoje, está só eu né, aí não vale mais a pena [produzir], não faço mais”. Ela não traz detalhamentos sobre os modos de fazer, entretanto recorda que “era pequeninha [quando aprendeu] e nem sei como conseguia”, expondo os cuidados ao seguir os processos, as etapas e os saberes necessários para a produção e o armazenamento de queijos desde muito jovem, o que nos deixa (sub)entender as responsabilidades das mulheres para com o trabalho reprodutivo. O registro que segue revela um ato simultâneo de partilha dos saberes da experiência transmitidos ao longo da vida: “o queijo a gente ainda faz!”, salientando Virgínia (2020): “a gente esquenta o leite até ficar morno, coloca o coalho, daí quebra, tira o soro e coloca na forma com um pano de volta, aperta e coloca na prensa, aperta e tá feito o queijo. A gente deixa ele curar na geladeira uns dias”.

Nesse detalhamento são percebidas a recorrência da complexidade dos processos do trabalho realizado pelas mulheres e a mobilização de diversos saberes até que se considere novamente próprio para o consumo da família e/ou da comunidade.

Por outro lado, foi possível identificar que alguns processos são compartilhados pelas mulheres mais jovens da família com as mais velhas. Conforme Otília (2020): “os queijos, pra ti ver, eu aprendi a fazer com ela [apontando para a filha]. A minha filha aprendeu com a Emater. E faz muito queijo. Eu sei que ela até quer comprar mais vaca para ter mais leite”. Nesse caso, a presença de ações extensionistas da Emater qualificam o trabalho realizado por algumas mulheres no meio rural. Observa-se que, como sujeitos de sua existência, as mulheres desempenham muito mais que múltiplas atividades dentro (e fora) do lar; com seus saberes e experiências, elas contribuem significativamente para a economia local, uma vez que seu trabalho gera produtos cujo valor não é necessariamente de troca, mas de uso entre elas. A relação entre trabalho e alimentação produz relações de reciprocidade e solidariedade entre as mulheres, ou seja, confere materialidade a uma economia territorializada a partir dos processos educativos “embutidos” no saber da prática e na prática do saber. Assim, essas economias são fundamentadas

[...] pela identidade construída historicamente pelas relações cotidianas, essencial para os atores sociais do campo e da cidade [...], uma estratégia carregada de valores que expressa um modo de vida, as especificidades, os significados, algo que supera a lógica produtivista e o lucro, fundamentada na cultura, na qual o trabalho, mais do que a produtividade, representa uma vivência

(MENEZES, 2013, p. 123).

Pela socialização de modos de fazer dos diversos produtos conservados abordados até aqui, percebe-se que o fazer-saber continuam sendo (re)elaborados a partir de manifestações simbólicas, tradicionais e identitárias nos diversos territórios na região pesquisada.

A valorização, o aproveitamento e a realização de técnicas de conservação nos alimentos disponíveis na unidade produtiva familiar demonstram inteligência, ou seja, conhecimento, apreensão e compreensão dos processos do trabalho. As combinações entre os alimentos disponíveis e a escolha dos métodos de preparo, conservação, cocção e demais processos necessários para a preparação de cada refeição atestam que o ato de cozinhar demanda planejamento, saberes, memória e experiência. Essa organização significa a proposição de atitudes coletivas de futuro contra a escassez e a fome (FREIRE; NOGUEIRA, 2014).

Foi possível observar que experiências, saberes e práticas de alimentação possibilitam diferentes partilhas de saberes por meio do trabalho. Nesse sentido, emergiram das narrativas das mulheres processos educativos ressignificados como reciprocidade e (re) existência. Saberes que são a base da vida ordinária em comum entre as mulheres: “eu sei, é puro conservante”; “eu sei que ela fazia e nós comia”; “eu sei que ela até quer comprar mais vaca para ter mais leite”; “eu sei que ela sempre tinha o fermento feito em casa”; “eu sei que a mãe carneava um porco, deixava uma parte especial para fazer, no domingo, um assado – shwaineprada”. Portanto, ressignificar, valorar e visibilizar a relação entre trabalho-alimentação e as práticas educativas que se desvelam ao se produzirem alimentos evidenciam que “ser mulher” é saber sobre o saber da prática e a prática do saber.

Considerações finais

Ao longo do texto buscamos compreender os processos educativos que emergem na/da relação entre trabalho e alimentação a partir de diferentes mulheres, lugares e cotidianos compartilhados no Vale do Rio Pardo. Codificando e decodificando tais narrativas, identificamos a emergência de processos educativos na relação entre comida e saberes, na produção e na manifestação das memórias partilhadas sobre elas e o no fortalecimento de suas (re)existências pelas práticas alimentares.

As trajetórias de vida dessas mulheres ressignificam o que é ser mulher por estarem fundadas em experiências concretas que atravessam gerações, tempo e espaço. Um dos elementos abertos para a continuidade de pesquisa encontra-se na territorialização da economia organizada na reciprocidade vivida na cotidianidade das famílias nas comunidades. No entanto, salientam-se o reconhecimento e o sentido de pertencimento recorrentemente encontrados nas narrativas das memórias dessas mulheres. Como afirma Brandão (1988, p. 18), “o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência”. Assim, nesse sentido, quando elas afirmam “eu sei”, desvela-se a consciência dos saberes sobre a prática tanto quanto a prática dos saberes envolvidos e comunicados nos diferentes processos de conservação de alimentos nessa região.

4Na pesquisa em desenvolvimento, problematizamos novas possibilidades de compreensão a respeito dos processos educativos que emergem por meio da relação e da interlocução entre educação, trabalho e alimentação em espaços não escolares. Esse projeto obtém financiamento público da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs).

5A região do Vale do Rio Pardo é composta por vinte e três municípios, com uma população total de 440.316 habitantes, estima a Fundação de Economia e Estatística (FEE) (RIO GRANDE DO SUL, 2020), apresentando características históricas, geográficas, sociais e culturais distintas em seu processo de povoamento e colonização. Sua economia é predominantemente agrícola, dedicada à produção de tabaco, erva-mate e leite. Estima-se que 37% da população estabelece relações de existência e mantença da vida por meio da agricultura familiar praticada, em grande maioria, em pequenas propriedades rurais.

6É relevante mencionar que, a partir do mapeamento de produção científica, teses e dissertações, identificamos lacunas que versam sobre a temática tanto na região quanto no estado, principalmente vinculadas ao campo da Educação. No banco de teses e dissertações da Capes observou-se que a área de concentração das Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia) e a de Desenvolvimento Regional e Rural são as que apresentam maior número de estudos/pesquisas sobre as relações entre saberes e alimentação, contudo sem dar enfoque à produção do conhecimento inerente a essas relações.

7Muitas técnicas de conservação de alimentos, hoje, ainda são praticadas por diferentes culturas alimentares e resultados de saberes e fazeres herdados de civilizações anteriores. Desde o período paleolítico, diversas formas de conservação e preparação eram aplicadas aos alimentos, das quais destacam-se a secagem, a defumação e a fermentação, alguns exemplos que diversificavam e orientavam estratégias econômicas (PERLÈS, 1979).

8“A práxis pode ser compreendida como a estreita relação que se estabelece entre um modo de interpretar a realidade e a vida e a consequente prática que decorre dessa compreensão, levando a uma ação transformadora” (ROSSATO, 2010, p. 325).

9Um tipo de coalhada muito comum nos núcleos de colonização alemã.

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Recebido: 24 de Junho de 2022; Aceito: 13 de Novembro de 2022

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