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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e0220052 

DOSSIÊ: EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E ATUALIDADE

Educação popular como proposta políticopedagógica para a edução de jovens e adultos em Macapá/AP

Popular education as a pedagogical policy proposal for the education of young people and adults in Macapá/AP

Elivaldo Serrão Custódio1 
http://orcid.org/0000-0002-2947-5347

Antonia de Moraes Guedes2 
http://orcid.org/0000-0002-1636-316X

1Doutor em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS. Pós-doutor em Educação pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Professor Substituto pela Universidade Estadual do Amapá - UEAP. Professor coorientador no Doutorado em Educação da Amazônia (EDUCANORTE). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Educação, Interculturalidade e Relações Étnico-Raciais (UNIFAP/CNPq). E-mail: elivaldo.pa@hotmail.com

2Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Autônoma de Assunção, Paraguai. E-mail: antoniamoraes.guedes@bol.com.br


Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar a proposta política e pedagógica da Escola Estadual de Educação Popular Professor Paulo Freire (EEEPPPF), localizada na cidade de Macapá, estado do Amapá, à luz de indicadores de uma Educação Popular na escola pública, intencionando com isso um confronto entre teoria e prática para se verificar em que medida a proposta implementada afina-se ou distancia-se do modelo educacional de Educação Popular, numa tentativa de apontar avanços, limites e possibilidades. Trata-se de uma pesquisa qualitativa (pesquisa-ação) que se utilizou da pesquisa bibliográfica e documental, da observação direta, do questionário e da entrevista semiestruturada como forma de investigação. A metodologia adotada priorizou o contato direto com os diversos segmentos que constituem a comunidade escolar, como diretor, coordenação pedagógica, professores, funcionários e alunos. Os resultados apontam a implantação da EEEPPPF em Macapá/ AP foi um processo-piloto inovador. Sua criação, contudo, careceu em grande parte de uma ação política mais rigorosa pela Secretaria de Estado da Educação do Amapá (SEED) para efetivá-la com o êxito, pois na época muitos profissionais da SEED desconheciam a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na atualidade um agravante para limitação da referida proposta pedagógica é o desconhecimento de grande parte de seu quadro de pessoal, especialmente no que se refere ao setor técnicopedagógico, da filosofia/teoria/prática da Educação Popular no âmbito da escola pública e, ainda, dos preceitos da Educação Libertadora. Contudo, há méritos para alguns poucos e incansáveis educadores da escola que, por meio de sua prática pedagógica, lutam pela efetivação e materialização de uma Educação de qualidade baseada nos ensinamentos de Paulo Freire.

Palavras-chave Educação Popular; Proposta Política Pedagógica; EJA; Amapá

Abstract

This article aims to analyze the political and pedagogical proposal of the Escola Estadual de Educação Popular Professor Paulo Freire (EEEPPPF) located in the city of Macapá, state of Amapá, in the light of indicators of popular education in public schools, with the intention of confrontation between theory and practice to verify to what extent the implemented proposal is in line with or distances itself from the educational model of popular education, in an attempt to point out advances, limits and possibilities. This is a qualitative research (action research), which used bibliographic and documental research, direct observation, questionnaire and semi-structured interview as a form of investigation. The methodology adopted prioritized direct contact with the various segments that make up the school community, such as: principal, pedagogical coordination, teachers, employees and students. The results show that the implementation of EEEPPPF in Macapá/AP was a pilot and innovative process. Its creation, however, largely lacked a more rigorous political action by SEED to make it successful, because at the time, many SEED professionals were unaware of the EJA modality. Currently, an aggravating factor for the limitation of this pedagogical proposal is the lack of knowledge of a large part of its staff, especially with regard to the technical-pedagogical sector, the philosophy/theory/ practice of Popular Education within the public school and also, the precepts of Liberating Education. However, there are merits for a few, tireless school educators who, through their pedagogical practice, fight for the effectiveness and materialization of a quality education based on the teachings of Paulo Freire.

Keywords Popular Education; Pedagogical Policy Proposal; EJA; Amapá

1 Introdução

Nas últimas décadas inúmeros debates e reflexões acerca do quadro educacional brasileiro vêm ocorrendo no campo da ciência, da pesquisa e da prática educacional. Constata-se, com isso, que a Educação passou e ainda passa por processo de mudança social e, considerando que o Amapá não foge à regra, face às transformações históricas, políticas, econômicas e sociais, sentiu-se a necessidade de um estudo mais detalhado cientificamente para verificar até que ponto a Educação é compromisso das políticas governamentais, em especial no estado do Amapá.

O tema para estudo escolhido foi Educação Popular, concentrando-se, para que este estudo não se tornasse demasiadamente extenso, o que poderia comprometer a sua cientificidade, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), especificamente na Escola Estadual de Educação Popular Professor Paulo Freire (EEEPPPF), localizada em Macapá/AP, até porque esta é, até o momento, a primeira e única experiência institucional desse tipo de Educação no estado, implantada como estratégia educacional para viabilizar e estimular o acesso e a permanência do trabalhador na escola. Esclarece-se que o interesse pela temática partiu de nosso compromisso com a pesquisa científica voltada para a área da Educação como forma de tentar buscar novos subsídios teóricos que possam sustentar, no futuro, a prática educativa que se consolida no estado do Amapá a partir de novos paradigmas de transição sociocultural.

Nesse sentido, o presente artigo propõe-se a analisar a EJA, numa linha filosófica, progressista e libertadora, considerando-a um constante processo alternativo para desprender-se definitivamente do tradicionalismo educacional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa (pesquisa-ação) que se utilizou ainda da pesquisa bibliográfica e documental, da observação direta, do questionário e da entrevista semiestruturada como forma de investigação. O aporte teórico está baseado nos estudos de Freire (2000a, 2000b, 2004, 2006, 2008a, 2008b), dentre outros autores. A metodologia adotada priorizou o contato direto com os diversos segmentos que constituem a comunidade escolar, como diretor, coordenação pedagógica, professores, funcionários e alunos.

Aprofundar a discussão por meio de estudos científicos sobre a Educação Popular na perspectiva de uma Educação crítica, democrática e facilitadora da inclusão social tem sua importância, na medida em que buscou-se refletir sobre conceitos e modelos que há muitos anos vêm sendo debatidos no sistema educacional brasileiro como base de sustentação da busca e da garantia da Educação pública de qualidade. Diante desse contexto, estudar a Educação Popular como elemento essencial para consolidar a equidade social, a integração escola-comunidade e a emancipação tornam-se relevantes para os educadores e os gestores escolares compreenderem e colaborarem na realidade que atuam.

Na condição de educadores da rede pública do estado do Amapá, com possibilidades reais de contribuir para o fortalecimento da Educação Popular, um fato nos chamou a atenção, provocando alguns questionamentos e inquietações: a proposta político-pedagógica da EEEPPPF. Pois somente a referida escola foi escolhida entre as demais do sistema de ensino estadual que trabalham com EJA para desenvolver uma experiência-piloto, que, dependendo dos resultados na sua implementação, pudesse se transformar em novas políticas e ações para a EJA.

É pertinente destacar que até o presente momento – referente à escola pesquisada – não existe trabalho científico publicado que aponte problemas, benefícios, avanços, e/ou limites alcançados com a Educação Popular. Nesse sentido, percebeu-se a importância deste trabalho investigativo e científico como instrumento que muito contribuirá para o aperfeiçoamento e a melhoria da qualidade da Educação pública amapaense.

Diante desse contexto, o presente trabalho está dividido em duas seções. Na primeira versa-se sobre os procedimentos metodológicos utilizados na referida pesquisa, ressaltando-se o universo do estudo, a amostragem, os instrumentos de coleta de dados, o método de pesquisa e o tratamento dos dados. Na segunda seção analisa-se a experiência da EEEPPPF como proposta de Educação Popular no contexto educacional amapaense. Por fim, trazem-se as considerações finais.

2 Caminho metodológico da pesquisa

A princípio foi identificado o referencial teórico que deu suporte e subsídios necessários à investigação. Para isso foi feita uma pesquisa bibliográfica de trabalhos recentes bem como de autores e autoras mais influentes nas áreas de Educação Popular e EJA, analisando-se e comparando-se ideias. Utilizou-se uma pesquisa-ação desenvolvida por meio da metodologia qualitativa, posto que os pesquisadores foram envolvidos no fenômeno social concreto, estando em contato direto com o ambiente pesquisado, como propõem Lüdke e André (2013), buscando-se compreender de forma minuciosa os significados e as características da realidade apresentada pelos entrevistados.

O universo pesquisado foi a EEEPPPF, localizada na cidade de Macapá/AP, no bairro do Trem, que atende um público estudantil de 240 alunos da EJA. O seu horário de funcionamento acontece em três turnos: manhã, tarde e noite. Possui em seu quadro funcional um diretor, um secretário administrativo, uma secretária escolar, trinta professores, seis funcionários de apoio e seis serventes. Na esfera administrativa está contemplada a gestão direta de recursos financeiros por meio do Caixa Escolar, em que o diretor e o secretário administrativo exercem a função de gerenciadores dos recursos financeiros destinados à manutenção e ao pagamento do pessoal de apoio.

A seleção da escola partiu do fato de ela ter sido escolhida pela Secretaria de Estado da Educação do Amapá (SEED) para trabalhar uma proposta pedagógica voltada para a EJA. Visando frisar a população estudada, a amostra foi constituída com base em técnicas de amostragem estratificadas, assim sendo: um diretor, três coordenadores pedagógicos, uma secretária escolar, um secretário administrativo, doze funcionários de apoio/serviços em geral, quinze professores – o que correspondeu a 50% dos que estão em efetivo exercício de regência de classe – e cento e vinte alunos – o que correspondeu a 50% dos alunos que estudam na referida escola.

A definição do quantitativo participante por categoria foi em função da facilidade de acesso a esse tipo de sujeito e da necessidade de conhecer de forma precisa os benefícios, os avanços e os limites da Educação Popular bem como a sua contribuição para o fortalecimento da Educação pública de qualidade da EEEPPPF. A coleta de dados ocorreu também por meio da observação direta, de acordo com Moroz e Gianfaldoni (2006, p. 65), quando expressam que esta é uma atividade “que ocorre diariamente; no entanto, para que possa ser considerado um instrumento metodológico, é necessário que seja planejado, registrado adequadamente e submetido a controle de precisão”. Portanto essa observação facilitou

o conhecimento da realidade do dia a dia quando nos proporcionou observar a rotina da escola com o objetivo de conhecer as histórias que perpassam nas suas estruturas sociais dentro das relações administrativas e pedagógicas da Educação Popular.

Outros instrumentos utilizados foram o questionário e a entrevista semiestruturada, que valorizou a presença do investigado, ofertando perspectivas para que o entrevistado alcançasse a liberdade e a espontaneidade necessária. Destaca-se que a pesquisa de campo bem como a coletas de dados seguiram todos os procedimentos éticos para a realização de pesquisas acadêmicas envolvendo seres humanos, conforme postula a Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sobre as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Ressalta-se ainda que durante o processo de análise das informações assegurou-se o anonimato de todos os participantes com o intuito de manter-se a sua integridade.

Por ocasião da análise dos dados, destaca-se que além do questionário e da entrevista semiestrutura lançou-se mão de um conjunto de materiais e documentos existentes na escola, como: regimento interno, Projeto Político-Pedagógico (PPP), regimentos dos conselhos de classe, regimento do grêmio estudantil, atas de reuniões pedagógicas, estatísticas e indicadores dos resultados do rendimento escolar dos educandos, censo escolar, Plano de Desenvolvimento de Ensino (PDE), propostas de trabalho, demonstrativo estatístico, dentre outros programas e projetos desenvolvidos. Desse modo, foi feita uma análise das informações coletadas e a conexão nas relações estabelecidas entre elas.

3 Discussão e análise dos resultados da pesquisa

A EEEPPPF vem trabalhando como uma experiência-piloto no contexto das políticas públicas implementadas pelo Governo do Estado do Amapá, por meio da SEED e do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (NIEJA), direcionadas para o campo educacional, especificamente para a modalidade ora citada. Ressalta-se, ainda, que a referida proposta se apresenta com uma inovação no ato de conceber e atuar na EJA no estado, baseada em princípios democráticos, populares (no sentido de inclusão qualificativa) e de exercício da cidadania, sendo estruturada sobre uma nova ética que visa à formação para a participação consciente na sociedade, levando em consideração a produção e a socialização do conhecimento, compromisso com a sociedade.

A Educação, nesse sentido, constitui-se em um dos pilares necessários para se institucionalizar aquilo que está no terreno da intencionalidade. Isto, porque no âmbito acadêmico já se sabe que a escola é o aparelho ideológico que tem servido historicamente para massificar a ideologia dominante de exploração, acomodação e segregação social. Não obstante, um projeto social equitativo também pode servir-se desse meio para tornar-se cultura ou mesmo ideologia, contudo isso pode ser um risco, na medida em que seus subprojetos não evidenciem, tanto na teoria quanto na prática, o combate à exclusão social por meio de políticas conscientes, capazes de atacar o “mal pela raiz”, não servindo apenas de curativos para abrandar o grito dos excluídos, que não são só pobres, mas todo e qualquer cidadão cujo direito de ser, estar e participar tem sido historicamente negado.

A Educação Popular direcionada para jovens e adultos quase sempre foi tratada como medida compensatória e assistencialista, visando apenas combater o analfabetismo, de acordo com a conveniência do sistema produtivo, sem atentar para uma formação consistente ao exercício da cidadania; e embora experiências isoladas tenham se apresentado como alternativas de um modelo educacional de inclusão desse contingente no nível extragovernamental, quando sistematizadas perderam seu caráter democrático e participativo, tornando-se massa de manobra política para ratificar os interesses dominantes – exceção seja feita às resistências encontradas no interior das instituições, levadas a cabo pelos diversos níveis de governo (federal, estadual ou municipal). Esse modelo, como se sabe, mostra-se incapaz de resolver o problema do analfabetismo ou mesmo garantir a permanência das poucas pessoas dos segmentos populares que conseguiram ingressar na pirâmide educacional, uma vez que esta, se invertida, torna-se um grande funil, cujo bico é tão fino que só passam os “privilegiados”.

No Amapá esse quadro não foi diferente, haja vista que a institucionalização da EJA também se deu nesses mesmos moldes. O Centro de Ensino Supletivo Emilio Médici (CESEM), ao ser criado em 1975, transformou-se em um grande balcão de exames de massa, desconsiderando a própria determinação da Lei nº 5692/1971, que apontava não só para o caráter de suplência desse ensino como também para os de aprendizagem, qualificação e suprimento, que deveriam garantir desde o ensino de ler e escrever até a formação profissional.

Mais tarde o CESEM assume moldes de ensino regular, com a diferença de ser administrado por etapas, cuja clientela já não mais se identificava com aquela inicial, uma vez que tornara-se muito heterogênea, resultado das mazelas do ensino regular, que não conseguia manter sua clientela sistematicamente. Isso contribuiu para o ingresso de muitos adolescentes egressos desse sistema, várias vezes repetentes, fato que contribui para subtrair o número de vagas disponível à maioria da população, em especial os trabalhadores jovens e adultos alijados do sistema, acirrando cada vez mais o quadro de exclusão dessa clientela.

Paiva (2003) afirma que essa política universalizante estava estruturada ainda nos moldes convencionais e corroborava a iniciativa de colocar a maioria dessa clientela na escola, mas não apontava mecanismos de manutenção, aproximando-se do preceito neoliberal de “Educação para todos”, que também apregoa a universalização de caráter assistencialista e quase sempre leva à exclusão, por estabelecer um sistema de “competência” que seleciona “os melhores” e discrimina “os piores”. Consequentemente, leva-se ao triunfo daqueles em detrimento destes, o que se justifica, pelo seu projeto educacional, como uma saída hegemônica para a crise do capitalismo, que promete mais mercado, quando de fato é nessa política mercantilista que se escamoteiam as raízes da exclusão e da desigualdade.

Para isso, a Educação excludente presente nos moldes convencionais não serve, principalmente para modalidade de jovens e adultos, em que há urgência de reformulação à luz de novas concepções e metodologias realmente comprometidas com os interesses populares e a construção desse conhecimento necessário ao novo modelo de desenvolvimento incitado pela sociedade. Entretanto as condições organizacionais e administrativas da SEED, ao que parece, não favorecem a implementação de qualquer política educacional em caráter progressista e popular, pois sua hierarquia quase absolutista antagoniza as medidas que ponham seu poder de comando sob ameaça e por isso mesmo encobre seus desmandos sob uma névoa de burocracia, ocupando salas e salas “inchadas” de servidores ociosos.

Foi então que, numa iniciativa de impacto, como resultado das constantes reflexões de um grupo de educadores, surgiu a ideia de se projetar uma escola que pudesse marcar política e ideologicamente o compromisso com os excluídos e ao mesmo tempo redefinir a posição da SEED como gestora dessa nova política, que apontava para uma inversão nas estruturas educacionais, colocando a SEED a serviço das unidades escolares e não o contrário, como costumeiramente acontecia. Não obstante, o espaço escolhido para funcionamento dessa pretensa escola não poderia ser mais simbólico: as dependências do complexo administrativo da SEED. A partir daí nomeia-se uma equipe responsável pela elaboração do projeto da escola-piloto. Uma vez elaborado o projeto, uma comissão foi nomeada. A justificativa do projeto afirmava:

A proposta política pedagógica da organização curricular da Escola Estadual de Educação Popular Paulo Freire, para Jovens e Adultos será uma experiência pedagógica piloto [...] vinculada ao Núcleo de Educação de Jovens e Adultos para que dependendo dos resultados na sua implementação poderá se transformar em Políticas de Educação de Jovens e Adultos

(AMAPÁ, 1996, p. 02).

Essa “clientela-alvo” estava inicialmente composta por funcionários da própria secretaria (serventes, merendeiras, vigias) e de outras escolas bem como jovens assistidos pela Assessoria da Juventude, composta por membros de gangues e grupos de grafitagem. Por essa composição, a escola visava ser um laboratório de experiência para atender, por meio de metodologia e filosofia específicas, essa clientela que é uma das maiores demandas do estado, resultante do processo de exclusão social e educacional. Todavia a questão era emergencial, face à necessidade de viabilizar uma reorientação ao processo educativo para essa massa, com certa qualidade e eficiência, sem perder de vista os objetivos de inclusão social nem se configurar em simples “pacotes” de EJA. Também por ser institucionalizado pela SEED, precisava de um quadro de profissionais comprometidos com a proposta.

A seleção desses professores, a priori, em alguns casos deu-se pela identificação com a proposta; em outros, pela urgência de pessoal, devido à necessidade imediata em virtude das matrículas e do início das aulas, sendo que parte deles pertencia ao contrato administrativo. Os professores selecionados tiveram apenas alguns dias para se adequarem à proposta que norteava a EEEPPPF. Por ocasião da véspera de sua inauguração, foram realizadas formações, por meio de oficinas pedagógicas e palestras, para sensibilizar a comunidade escolar sobre a metodologia e a filosofia da proposta. Em janeiro de 1997 a escola foi inaugurada.

Cabe, nesse momento, tecer uma crítica a esse processo seletivo e à possível transitoriedade de seus educadores, uma vez que parte destes, pelo fato de pertencerem ao contrato administrativo, já entraram na eminência de não permanecerem por muito tempo na escola, o que, aliado à possível incompatibilidade de alguns educadores com a proposta, tendia a comprometer, como de fato comprometeu, a qualidade e o processo de ensino e aprendizagem pensados nos moldes de uma Educação Popular.

Nota-se, por informações levantadas durante a pesquisa e observações feitas in loco, que atualmente a maioria dos professores que lá atuam ingressou recentemente. No entanto acredita-se que, para se implementar com eficácia e operacionalidade uma propostapiloto como a da EEEPPPF, é preciso que se garanta primar pela não rotatividade ou por uma rotatividade mínima do seu quadro de educadores, principalmente porque isso não dispensa a constante avaliação do projeto como um todo para se ter o controle sistemático de avanços, limites e perspectivas de todo o processo educativo que está se desenvolvendo, ação que não pode ser feita por pessoas estranhas a ele.

Outro fator a ressaltar-se foi o processo de adequação e ajustamento à proposta que não se realizou de forma rigorosa, com cursos de capacitação voltados para a metodologia que exige não só “simpatia” ou poucas pinceladas de teoria, mas sim clareza política, teórica e metodológica para se trabalhar, sobretudo, com uma clientela tão específica. Por conseguinte, segundo alguns educadores entrevistados, o início foi “meio conturbado”, pois enquanto alguns professores tentavam “caminhar” progressivamente naquela linha apontada pelo PPP da escola, outros insistiram naquele modo convencional e tradicional de “dar aula”.

Acrescenta-se aqui a dificuldade de se lidar com a clientela tão diversa e o “recém-nascimento” da escola. Com isso não se está criticando ou colocando em dúvida a capacidade daqueles profissionais, mas sim informando como foi conduzido esse processo pela SEED junto à EEEPPPF, que, por tratar-se de um projeto-piloto, deveria ter esmero no recrutamento e na qualificação do gestor ao servente, dando-lhes condições mínimas para garantir um bom serviço de qualidade à comunidade escolar.

Nesse contexto, pode-se inferir os entraves externos e internos que se referem à tradição politiqueira burocrática e pedagógica. São fardos pesados que sobrecarregam o projeto de Educação Popular da escola e pode-se dizer – sem preocupação de cometer injustiças – que é a garra de alguns poucos educadores, em conjunto com uma parte do corpo administrativo da EEEPPPF que vem mantendo e impulsionando o projeto para obter certo êxito.

Com efeito, a proposta veio materializando-se “aos trancos e barrancos” nesses mais de vinte anos de funcionamento, a registrar pela realização de algumas ações, como, por exemplo: a elaboração do regimento da escola, aprovada em assembleia geral no mês de novembro de 1997; a implantação do laboratório de aprendizagem, para o acompanhamento, paralelo à sala de aula, dos alunos que apresentam alguma dificuldade de aprendizagem; o importante intercâmbio com o Instituto Paulo Freire e o Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA) de Porto Alegre/RS, que vieram somar com a sua experiência em Educação Popular; além da participação da EEEPPPF no Encontro Latino-Americano de Arte – Educadores, realizado na cidade de São Paulo em 1998.

Registra-se também o empenho crescente que os educadores vêm imprimindo para tornar o processo avaliativo da escola o menos sentenciador possível, contrapondo-se as formas convencionais de avaliação, tanto na maneira de conduzi-lo no processo diagnóstico/ dialógico quanto na de registrá-lo, fato que tem dificultado, de certa forma, o processo de regulamentação da escola junto aos órgãos técnicos, como o Núcleo de Orientação e Inspeção Escolar (NIOE) e o Conselho Estadual de Educação (CEE), pois notase que a relativa autonomia das escolas ainda está atrelada a essa questão sistêmica imposta pela legislação educacional e, por mais que se lute para implantar uma proposta educacional não aferida e classificatória, é necessário ainda “driblar” a legislação com um PPP que intermedeie dialeticamente essas imposições do sistema capitalista, revertendo-as em prol da clientela e da qualidade da Educação a ela ofertada dentro de parâmetros críticos, participativos, conscientes e solidários à luta pela democratização da sociedade.

Nesses argumentos historicizadores da EEEPPPF, cabe ainda mencionar que ela deu um salto qualitativo quanto à sua inserção social e ao resgate do papel da escola na comunidade nos últimos anos, especialmente com a realização de parceiras reciprocamente importantes. Não obstante, vem se tentando dinamizar o PPP da EEEPPPF por meio de inúmeros projetos interdisciplinares, pleiteando-se, ainda, a implantação de instâncias deliberativas, como é o caso do Conselho Escolar e do Grêmio Estudantil. Além disso, há constantes discussões em prol de novos direcionamentos para os trabalhos das coordenações diretiva e pedagógica, a fim de que se atue efetivamente numa linha de Educação Popular na escola pública em consonância com a Pedagógica Libertadora, que, antes de ser uma simples metodologia e/ou proposta pedagógica, aponta para um projeto de sociedade que deve ser viabilizado no presente, ainda que este esteja rechaçado de impedimentos estruturais e ideológicos.

Segundo Vale (2006), o jovem e o adulto assistidos nessa perspectiva tendem a ser respeitados em suas aspirações e seus direitos de cidadãos alijados do processo de ensino, não como meros objetos, mas como sujeitos ativos no processo de construção de um saber que eles ajudam a emergir, valorizando seu próprio conhecimento, mas superando toda uma relação mítica com a realidade opressora. Dessa forma, o compromisso ético-político dos educadores deve sobrepor-se a qualquer entrave colocado pelo sistema político, caso este venha a impor limites ao alcance das metas para a Educação Popular que se almeja.

Essas considerações remetem à necessidade de se fazer uma análise do PPP da EEEPPPF à luz dos indicadores de uma Educação Popular na escola pública, intencionado, com isso, um confronto/ intercâmbio entre teoria e prática para se verificar em que medida a proposta implementada afina-se com a Pedagogia Libertadora, numa tentativa de se apontar avanços, limites e possibilidade dessa empreitada.

3.1 O Projeto Político-Pedagógico da EEEPPPF

Como se percebe, pensar e implantar um projeto educativo não é uma tarefa fácil, principalmente se, com ele, houver intenção de alguma mudança estrutural. Sem querer banalizar as relações de poder implícitas na gestação de um projeto de políticas, inferese que o PPP em estudo vem trazendo em sua justificativa essa intenção, procurando situar a EJA no contexto global e local, ainda que de maneira sintética e apontando, desde então, mudanças significativas, como a organização por ciclos e não por etapas, como vinha sendo feito. Do ponto de vista da técnica convencional de um PPP, é preciso um desmembramento dessa contextualização em “marcos” – situacional, doutrinal e operativo –, em que se pode obter maior clareza do que se tem, do que se quer e do modo como se pretende agir para alcançar essas metas. No entanto, ao que parece, não se atentou para esse fato técnico, pois a referida proposta traz isso tudo no seu conjunto.

Em parte, tal fato não fere o mérito da proposta, uma vez que esta se compõe de uma linguagem clara e objetiva, que procura explicar suas posições, face à legislação em vigor e à problemática educacional dessa modalidade de ensino, apontando como horizonte de sua intenção o combate à exclusão por meio de oportunidades educacionais e mecanismos que poderão configurar-se em fatores de acesso e permanência dessa clientela, na escola, com base numa Educação Libertadora e Popular.

Uma inovação é a visão progressista de currículo que embasa a referida proposta, cuja base curricular se apresenta com desmembramentos das disciplinas por áreas de conhecimento. Diante de exposto, o projeto aponta mecanismos de organização dessa base curricular em cada ciclo, enfatizando as formas de condução do processo educativo de maneira concatenada e sequencial, primando pela preocupação com a prática social e a possível intervenção do cidadão na realidade em que está inserido. Ressalta-se, ainda, a importância do exercício da prática interdisciplinar e chama atenção a necessidade de se abordarem temas relevantes ao contexto histórico-social da comunidade, tendo como critérios básicos a linha político-pedagógica da escola, as necessidades e aspirações da comunidade e as especificidades de cada área do conhecimento para possibilitar uma visão totalizante e integradora dos complexos, entendidos como resultantes da relação entre indivíduo e realidade contextual.

A partir daí faz-se um apanhado sobre cada momento do ato de planejamento das ações para se obter a totalidade desses complexos, partindo-se do particular, ou seja, da realidade imediata, até chegar a uma síntese do coletivo da escola e sua intervenção e inserção na realidade social. Não obstante, faz-se, em seguida, uma menção ao campo conceitual presente no complexo temático e à necessidade de se trazer conceitos já formulados para servirem de apoio ao encadeamento teórico da temática, possibilitando a construção e a organização dos conhecimentos em toda a sua complexidade, necessários ao desvelamento, à compreensão e à criticização do tema em estudo. Esclarece-se que os conceitos podem ser específicos, transversais e longitudinais, dependendo do seu grau de abrangência na construção do complexo temático.

Em seguida, traçam-se subsídios para direcionar mecanismos pertinentes ao processo de criação, transmissão e discussão do conhecimento, indicando posturas a serem adotadas dentro dos pressupostos de um planejamento participativo e uma gestão democrática na escola (VEIGA, 2006). Em última referência, trata-se da avaliação como processo diagnóstico e reflexivo, totalizante das ações, das implicações práticas e do respeito ao tempo individual de cada elemento no processo, apontando não só para o processo de ensino-aprendizagem, mas também para o projeto educacional e político da escola como um todo. Face a essas considerações e após leitura do PPP, pode-se inferir que, se existe, não se encontra contradição da Proposta Político-Pedagógica da EEEPPPF no campo da concepção, uma vez que se percebe, nesse projeto, um comprometimento teórico com a linha Progressista Libertadora em Educação que ele pressupõe.

Com relação aos demais fundamentos apontados no item anterior, não se pode assegurar isso com tanta firmeza, pois só com uma análise mais precisa, à luz dos indicadores de uma prática de Educação Popular e sobre o olhar dos vários atores envolvidos nesse processo no interior da escola, é que será possível dar respostas e indicações de possíveis limites a essa prática ou, por outro lado, confirmar seu êxito, se for esse o caso. Dessa forma, passar-se-á, em seguida, a um estudo comparativo, confrontando teoria e prática na proposta da EEEPPPF em questão.

3.2 Confronto de teoria e prática na proposta da EEEPPPF

Não há dúvida quanto à intenção de se fazer uma Educação qualidade na EEEPPPF que foge ao convencionalismo, no que se refere àque foge ao convencionalismo, no que se refere eire ando teoria x pr pontando nao a realidade imediata atreas se pretende agir modalidade de EJA. Isso está evidenciado pelos inúmeros fatores citados no decorrer deste trabalho, em que pese o interesse em caracterizá-la como uma nova matriz organizacional para a escola que atua com essa modalidade, levando-se em consideração os educandos que recebe e a comunidade em que se insere, numa atitude interacionista para atuar no contexto histórico e pedagógicopolítico, a fim de contribuir com um projeto de sociedade democratizada, nos moldes da cidadania, o que exige, conforme entende-se, sujeitos com uma formação humana e epistemológica. Não obstante a isso, a pesquisa realizada junto aos atores do processo que lá se desencadeia possibilitou as seguintes aferições quanto aos indicadores práticos da teoria que o fundamenta.

3.2.1 Quanto ao projeto político-pedagógico

Considerando a premissa de que o centro do processo educativo de uma dada unidade educacional é o seu PPP, a EEEPPPF vem tentando subsidiar sua prática sob esse prisma, pois nota-se certa preocupação em tentar estudar e elucidar da melhor forma possível propostas e alternativas para viabilizar o projeto, por meio de várias ações que vêm se encaminhando em todos os setores da instituição, em que se constatam a luta e o compromisso de muitos educadores com o apoio do seu atual dirigente. Observase, ainda, que muitos educadores, por falta de clareza teóricametodológica da linha filosófica norteadora e por uma relativa ausência de compromisso ético-político, acabam deturpando as atividades desenvolvidas ou mesmo deixando-se se envolver nelas com uma postura arrogante frente ao processo educativo, o que limita, em parte, o êxito do alcance das metas quanto à socialização e à construção do conhecimento considerado necessário no projeto. No mais, os esquemas avaliativos se encaminham balizados por essas diferentes posturas. Existe uma prática que cresce junto à eliminação de notas e conceitos classificatórios, já referendados por uma avaliação pretensamente processual e diagnóstica a se constatar pelas documentações registradoras que suscitam relatórios e acompanhamento sistemático quanto aos avanços e às dificuldades de cada educando.

O processo de avaliação implantado exige descrições sintéticas e minuciosas da “caminhada” dos educandos individual e coletivamente, frente aos desafios de cada complexo temático explicitados por cada área do conhecimento, que posteriormente são socializados pelos grupos de cada turma dentro dos ciclos, a fim de se obter um parecer coletivo sobre a evolução do educando. No entanto esse momento não está se dando a contento, devido ao já mencionado descompromisso de alguns educadores, o que resulta num parecer muitas vezes parcial e impreciso em detrimento do real aproveitamento do educando, comprometendo o processo que, por isso mesmo, pode recair em uma prática tradicional de aferição e classificação, amplamente combatido pelos pressupostos da Educação Libertadora.

Com efeito, isso denota uma das dificuldades de se fazer valer na prática os ensinamentos para uma Educação Popular na escola pública numa visão de possibilismo histórico em oposição ao determinismo sedimentado (FREIRE, 2008b). Seria exigir demais e até mesmo negar a dialeticidade humana não se considerar tais empecilhos na efetivação do PPP de uma escola como essa, em análise. Mas há de se ressaltar que a “impaciência histórica”, notadamente presente nessa instituição, não tem lhe permitido sucumbir ao tradicionalismo, apesar de este apresentar-se como um espectro ainda presente no quotidiano da escola.

Da mesma forma, as relações de poder caminham em uma linha participativa e democrática tanto no âmbito administrativo quanto no pedagógico, configurando-se num exercício contínuo. Mas, devido à falta de experiências democráticas nas relações interpessoais das escolas de que a maioria é fruto, não se pode afirmar que na EEEPPPF essa meta esteja sendo plenamente atingida, pois a aversão ao centralismo ainda paira na atmosfera daquela unidade educacional, não só no fato de determinadas ações serem realizadas à revelia dos educandos, mas também pelo descaso de boa parte destes para com as atividades lá desenvolvidas. Muitos, inclusive, cobram posturas mais autoritárias e condenam as democráticas, entendendo-as como “anarquistas” e adotando uma visão de não apropriação, ou seja, de negação de si como corresponsável pelo êxito do processo democrático. Há de se mencionar que essa integração vem sendo estimulada pela coordenação da EEEPPPF nos últimos anos com ações como, por exemplo, a realização de eventos como a “Semana Paulo Freire”, que mobiliza toda a comunidade escolar para uma sensibilização quanto à filosofia da escola.

3.2.2 Quanto ao currículo escolar

Com já afirmado, a compreensão do currículo da EEEPPPF parte de uma visão progressista e uma maneira inovadora de se tratar a EJA, diferente da forma corriqueira das outras escolas que atuam com essa modalidade. Não obstante, a matriz curricular que subsidia o trabalho da escola privilegia uma abrangência maior na formação cidadão por meio de disciplinas totalmente voltadas para isso, como Filosofia, Arte-Educação, Cultura Religiosa, Educação Ambiental e Formação Social, complementos importantes para uma visão holística do papel do conhecimento no contexto sociocultural.

A construção do saber necessário a uma prática social não parte de um rol preestabelecido, mas da necessidade sentida pelos educandos e educadores de conhecer os fenômenos e problemas que permeiam a sua realidade. Os alunos exercem um papel ativo na escolha dos temas a serem abordados em cada ciclo e área de estudo, os conteúdos entram não como o fim, mas como meio para se decodificar a realidade.

Nesse sentido, o processo de planejamento começa na sala de aula com o levantamento, junto com os educandos, daquilo que se deseja pesquisar e conhecer. Uma vez escolhidos os temas geradores, parte-se para o planejamento no coletivo dos educadores quanto à metodologia, conteúdos necessários para melhor esclarecer aquele tema dentro das especificidades de cada área e disciplina. Esse momento é rico, mas cheio de tensões, face à fragilidade da relação teoria e prática. A falta de uma cultura de planejamento coletivo, aliada ao isolamento intelectual de determinados professores que ainda se julgam os donos de um conhecimento que muitas vezes não dominam em sua complexidade, aumenta o fosso entre o pensar e o fazer coletivo, porque esse processo exige dedicação, abdicação e comprometimento com a democracia no sentido de se conviver com a diferença e o embate positivo que poderá resultar numa unidade dentro da diversidade, quando se consegue o encadeamento das diversas contribuições de cada área do conhecimento para se tecerem, no ato pedagógico junto aos educandos, todas as possibilidades de um tema antes conhecido de forma parcial e deturpada.

Mas observa-se que ainda é quase uma constante a fragmentação do conhecimento trabalhado. A interdisciplinaridade é um processo lento, mas está sendo constantemente exercida na EEEPPPF. As atividades diversificadas têm uma boa aceitabilidade pelos alunos e o engajamento destes na realização delas enriquece o fazer pedagógico e a compreensão da escola enquanto um espaço de trocas solidárias. É interessante verificar também que a qualidade social dos trabalhos produzidos estimula o empenho dos educadores e dos educandos para uma crescente melhoria nas atividades cotidianas.

O papel do educador aqui é fundamental, porque ele deve intermediar as discussões e os debates com muito cuidado para evitar depreciações e discriminações que tolhem a dialogicidade desse processo (FREIRE, 2008b). Mas, dadas as limitações de muitos educadores, às vezes os conflitos se acirram e os objetivos se perdem. Mesmo assim, na maioria das vezes está sendo possível viabilizar as ações no sentido de cada vez mais se primar pela qualidade do trabalho pedagógico, partindo-se do real e do concreto para se chegar a generalizações complexas e sistemáticas para atuar numa mudança qualitativa em relação ao conhecimento e à sua função político-ideológica. Conforme as palavras de uma professora da instituição:

[...] ninguém daqui da escola está preocupado em preparar o “cara” para ir pro vestibular, pro Ensino Médio [...], mas sim em preparar ele no exercício da sua cidadania, para que ele seja realmente um cidadão atuante, intervenha no mundo, na sua realidade, no seu bairro, na sua casa e que, partindo dessa transformação, ele possa se encontrar, mesmo, enquanto ser humano [...].

Por essa afirmação, infere-se que a Educação Popular que se quer realizar na EEEPPPF não é a que visa tão somente a competitividade no mercado de trabalho e acirra o individualismo. Com esses argumentos não se está negando a necessária formação para o mundo do trabalho, pois a própria lógica da sociedade atual já empurra a Educação no geral para isso, mas a EJA, nos moldes da Educação Popular, não privilegia essa competição em detrimento da formação para a cidadania e a participação; é uma questão de opção política e engajamento, porque nos dias de hoje a Educação que se tem não está fazendo uma coisa nem outra. A qualidade do ensino para a EJA não dá, nem nunca deu, garantia do prosseguimento com sucesso no ensino regular até a universidade, nem prepara para o mercado de trabalho, dado o seu caráter apenas compensatório contra o número do analfabetismo e as mazelas do ensino regular (VALE, 2006).

Por isso a qualidade da Educação Popular para Jovens e Adultos da EEEPPPF está no seu papel político de ressignificação da realidade opressora e no seu sentido pedagógico de produzir conhecimento como semente para uma prática coletiva de transformação social em prol das classes populares do Estado. Por ser uma semente, precisa ser plantada, cuidada com esmero por todos os segmentos da escola e por aqueles que possibilitaram o seu surgimento, em que pese o compromisso da comunidade escolar com o sucesso ou o fracasso dessa proposta. Por isso os mecanismos de avaliação da escola, tanto do processo ensino e aprendizagem quanto das suas atividades como um todo, devem ser acompanhados e redimensionados constantemente à luz daquilo que se propõe como horizonte do PPP.

3.2.3 Quanto à participação

Partindo do pressuposto teórico da Educação Popular de que a participação, da mesma forma que a liberdade, é uma conquista, as ações realizadas na EEEPPPF tentam se encaminhar nesse sentido. Mas isso não é tarefa fácil, porque muitas vezes, mesmo quando se estabelecem firmemente os resultados sociais desejáveis, os atores do processo acabam desfazendo, com suas ações, as intenções que proclamam. Então a escola vive essa contradição, porém vai “burilando” meios para implementar novos mecanismos que facilitem a sua transformação estrutural em prol da participação democrática de todos. A gestão democrática vem se materializando, segundo as palavras do diretor da escola em sua entrevista:

[...] o nosso relacionamento é muito de “fazer junto”, não existe, assim, uma linha de atuação de cima para baixo, é uma linha circular com que a gente clama por uma tentativa de que a direção seja mais um segmento da escola [...], então o relacionamento é horizontal.

Nesse sentido, tem-se trabalhando para garantir a participação de alunos, professores, funcionários e pais. Estes ainda participam timidamente, pois, sendo pais de alunos adolescentes advindos do ensino regular que não foram estimulados a um acompanhamento humanizador e conscientizador da função social da escola, limitavam-se a atender aos chamados burocráticos da escola pra tratar sobre fracasso e/ou comportamento de seus filhos, afastandose, consequentemente, da escola repressora. Em contrapartida, na EEEPPPF esses pais são convidados a se fazerem presentes, expressarem seus anseios e conhecerem um pouco sobre os trabalhos e as metas da escola, opinando sobre isso e, o que é mais importante, sendo chamados a assumir uma atitude corresponsável. Esses encontros com todo o coletivo da escola se dão trimestralmente. As avaliações feitas sobre o trabalho da escola ocorrem inicialmente em cada setor, para depois serem discutidas em assembleia geral de avaliações e confrontos, ou seja, no sentido de uma autoavaliação para uma avaliação totalizadora e dialógica.

Essa prática é interessante, porque quando se coloca na mesma sala pais, alunos, professores, servidores e direção é ampliada a possibilidade de se ter uma visão global dos acontecimentos, pois às vezes as aspirações do professor se chocam com as do aluno e vice-versa, em outros momentos se chocam com as da direção ou contrariamente. Nas assembleias surge a oportunidade de confronto positivo, democrático, que leva à coerência de se perceber que o problema da Educação é de todos e que a solução é coletiva, para que se possa conviver dentro das diferenças, da heterogeneidade política, cultural e ideológica que existe na escola, estabelecendo-se o mínimo de uma unidade democrática que permeie as pretensões para uma Educação Popular Libertadora. Essa unidade poderá ser dada pela elevação coletiva ao PPP da escola.

O controle e a relevância das atividades estão constantemente sendo avaliados e definidos no coletivo, mas, como já se indicou, a participação dos alunos e dos pais nas decisões administrativas, políticas e pedagógicas ainda não pode ser considerada efetiva, porque faltam instrumentos legítimos para esse intento, como é o caso do Conselho Escolar, do Grêmio Estudantil e de outras instâncias deliberativas, ainda inexistentes e num processo lento de discussão, o que é inconcebível para uma escola como a EEEPPPF, cuja filosofia pressupõe participação ativa de todos os segmentos, além de sedimentação de práticas democráticas e socializadoras do poder decisório.

Mas constatou-se que o planejamento da EEEPPPF já se caminha num sentido ascendente, e percebe-se apoio tanto da coordenação pedagógica quanto da administração da escola para que isso não venha a retroceder. O plano de trabalho da escola está se encaminhando de forma descentralizada, com cada setor tentando se organizar de forma afinada com o PPP. A maioria dos educadores está envolvida ou procurando envolver-se para cada vez mais obter como reflexo dessa organização o sucesso com um saber que se constrói caminhando, errando e acertando, porque se sabe que não há modelos para uma Educação Popular. Cada escola deve criar sua própria prática educativa com o auxílio da teoria crítica existente e a ousadia necessária para dar significado ao conhecimento que se deseja construir/re-existenciar em prol de um novo projeto social.

Outro fator relevante que limita a autonomia dessa escola é que não se criou mecanismo para a escolha democrática do seu dirigente, e o caráter provisório da direção escolar desestimula muitas ações. Se é verdade que o projeto de Educação que fez surgir a EEEPPPF é inovador, não se pode conceber que essa escola não possa ao menos sustentar a escolha da pessoa que a coordenará interna ou externamente. Da mesma forma, os recursos financeiros para ela não podem jamais ficar escassos, porque o governo ainda é a única fonte de recursos da escola; se este não repassa o dinheiro à escola, não apoia suas ações, potencializando, consequentemente, suas dificuldades físico-estruturais, que não são poucas, conforme afirma um professor da instituição, em sua entrevista:

[...] esse processo que a gente vive aqui é extremamente angustiante [...], porque a luta é muito grande. Pra você mudar, pra você revolucionar, você tem que brigar o tempo todo, porque a própria estrutura educacional emperra isso. O governo, na Secretaria de Educação, diz assim: “Olha, nós vamos fazer essa experiência aqui”. Aí você quer fazer por este lado algo que ele implantou, mas quando bate lá, ele emperra o processo. O excesso de burocracia emperra o processo [...].

Essa falta de apoio da SEED é sentida por muitos outros educadores e funcionários entrevistados, até mesmo por alunos que sentem diretamente o reflexo disso. Então, se por um lado a participação vem sendo estimulada, por outro ainda carece de legitimação e clareza quanto à sua necessidade para o processo democrático popular por parte dos educandos e dos pais. Ressaltase que o respeito pela caminhada das pessoas nesse sentido está sendo considerado e que os rumos e as normas da escola vêm sendo construídos com a “paciência histórica” necessária bem como a intolerância mobilizadora pertinente a esse processo. Mas isso não pode minimizar os objetivos que se propõem a serem atingidos, pois a Educação, por si só, já é um processo complexo, mesmo atrelada ao autoritarismo, que se torna mais complexo ainda quando redimensionado na perspectiva das classes excluídas, porque pressupõe atenção redobrada e mobilização constante para garantir a dialética do processo de negação do real em prol de um ideal da escola.

Por se estar considerando, neste trabalho, a EEEPPPF não só como ponto de análise para crítica, mas também como um foco de resistência a todo um projeto de Educação sedimentado oficial e historicamente no estado do Amapá e, por conseguinte, no Brasil, como fruto de políticas assistencialistas, há de se considerarem as dificuldades e as limitações com que essa proposta educacional vem se defrontando, apesar de teoricamente estar respaldada na política de educação libertadora. Passa-se, então, a destacar algumas dessas dificuldades e limites percebidos no seu quotidiano.

3.2.4 Dificuldades presentes na EEEPPPF: algumas considerações

A EEEPPPF, tanto quanto o plano de governo que a implementou, esbarra em diversos obstáculos, até porque se trata de um projeto-piloto. Tais obstáculos, tanto interna quanto externamente, comprometem significativamente o seu êxito. Internamente, pode-se citar a falta de compromisso de alguns educadores que insistem no tradicionalismo e, quando muito, realizam uma prática em sala de aula apenas metodologicamente diferente, ou seja, para dar suas aulas utilizam recursos variados que não implicam avanços na consciência do educando rumo à superação do senso comum. Esse compromisso ausente é percebido até mesmo pelo desinteresse desses educadores em não conhecer e/ ou assimilar a filosofia que embasa o PPP da escola. Muitos, inclusive, não participam dos encontros para estudos acerca dos assuntos relacionados à escola. Consequentemente, essa “não adaptação” ocasiona muitas substituições de professores, implicando, assim, um estagnamento do processo de ensino e aprendizagem, pois a maioria dos professores designados para trabalhar na escola desconhece as teorias e as práticas de Paulo Freire, ou seja, não compreende a proposta de Educação Popular numa perspectiva libertadora.

Outro fator existente diz respeito ao espaço físico da escola, uma vez que esta foi instalada em um prédio inadequado para as suas atividades, não possuindo espaço para oficinas diversas, algo proposto no seu PPP. Como alternativa, a escola está sempre expandindo suas atividades para fora da sala de aula por meio das parcerias e dos projetos que cada área possui.

Externamente, como já foi explicitado, o relacionamento com a SEED tem sido uma grande barreira, pois esta não compreende e não dá apoio à proposta diferenciada que a escola tem. A exemplo disso pode-se citar a não aceitação da sistemática de avaliação que a escola vem fazendo por meio de relatórios individuais em oposição à menção de notas e conceitos.

Considerações finais

Ao término desta pesquisa, acredita-se que as apreensões e as análises feitas aqui estão passíveis de reformulações, dada a provisoriedade do processo de conhecimento que, por ser dialético, não cessa de ser reelaborado. Por conseguinte, as conclusões expressas encontram-se abertas a questionamentos e pretendem, mais do que concluir, suscitar novas inquietações que venham a acirrar o debate em torno da temática estudada, contribuindo para o avanço da proposta educacional aqui referendada bem como o despertar de uma postura crítica sobre o contexto paradigmático em que se insere a experiência de que se tratou neste trabalho.

A Educação numa visão de inclusão só pode ser uma: a Educação Popular, por esta abarcar os interesses das populações historicamente excluídas e já fazer parte da luta contra a exclusão, como parte imprescindível da utopia latino-americana em relação ao processo de expropriação cultural. Gestada nas últimas décadas, a Educação Popular apresenta avanços significativos na forma de conceber e praticar a Educação junto às classes populares.

Os dados revelam que, na medida em que se lê o PPP da EEEPPPF, constata-se a vontade política nele expressa, com a carga de ideologia e utopia necessárias a quem queria colocar em prática um projeto inovador num contexto impregnado de forças contrárias. Enfatiza-se o projeto da SEED em instituir uma escola voltada para um segmento dos mais excluídos da população, jovens e adultos, e criar mecanismos com uma metodologia específica, de avaliação não sentenciadora, não medindo esforços para o crescimento dessa clientela no processo de ensino e aprendizagem como sujeitos ativos e participantes de todo o processo educacional.

Contudo, não se pode deixar de frisar que essa investida careceu, em grande parte, de uma mais rigorosa ação política da SEED para efetivá-la, pois constatou-se que os atropelos verificados nesse processo devem-se ao relativo descaso com que essa experiência-piloto foi tratada por vários setores da SEED na figura de muitos técnicos e chefes de governo, que, por desconhecerem a modalidade de EJA, negavam-se a dar apoio necessário ao projetopiloto da EEEPPPF, fato que se reflete na estrutura organizacional da escola.

Outro agravante para a limitação da referida proposta pedagógica é o desconhecimento de grande parte de seu quadro de pessoal, especialmente no que se refere ao setor técnicopedagógico, da filosofia/teoria/prática da Educação Popular no âmbito da escola pública. É imprescindível que se viva a Educação Popular no âmbito da escola pública, porém na prática, mais do que no discurso, é imprescindível que se viva a Educação Popular no coletivo da instituição e se dominem os preceitos da Educação Libertadora.

Contudo não se pode deixar de mencionar nesta conclusão, sob pena de se estar recaindo em injustiça, o mérito de alguns poucos e incansáveis educadores que apaixonadamente encampam a luta pela efetivação e pela materialização de uma Educação Popular de qualidade baseada nos ensinamentos de Paulo Freire por meio de projetos e ações educativas. Lembramos que a possibilidade de um mundo melhor precisa ser assumida pela geração atual, e esta precisa assumi-la sobre uma nova ética.

Se é verdade que se quer uma transformação em proveito de todos, que promova igualdade, fraternidade, esperança e justiça, será necessário mudar as estruturas sobre as quais se tem poder, compreendendo a humanidade como um conjunto humano que carece de um novo projeto civilizatório, em que não haja lugar para exclusão e degradação do homem pelo homem e se possa ter na natureza um bem precioso para a garantia da vida na Terra.

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Recebido: 30 de Junho de 2022; Aceito: 13 de Novembro de 2022

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