Introdução
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois.
Walter Benjamin
A relevância de rememorar a criação de Grupos de Trabalho da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), como é o caso dos 40 anos do Grupo de Trabalho de Educação Popular (GT 06) e dos 20 anos do Grupo de Trabalho de Educação de Pessoas Jovens e Adultas (GT 18), reside em revisitar percursos palmilhados por desafios e possibilidades que se modificam com a realidade dos contextos histórico-sociais, mudando, também, suas próprias rotas em direção a outras travessias.
A rememoração do percurso do GT 06, desde a sua criação em 1981, encontra-se documentada nos trabalhos apresentados ao longo dos seus 40 anos. O diálogo estabelecido entre Costa e Fleuri (2001), ao ressaltarem o movimento de “travessia” dos pesquisadores do campo da Educação Popular (EP), também nos auxilia a voltar para estas quatro décadas, ressignificando práticas e experiências de Educação Popular junto aos grupos subalternizados3.
A problemática que orienta este artigo foi construída ao identificarmos movimentos realizados por pesquisadores dedicados aos estudos sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) que atuavam, até 1998, principalmente no GT 06 e no GT 03 (Movimentos Sociais). A partir desse período, pesquisadores buscaram construir um espaço próprio na estrutura organizativa da Anped para discutir questões específicas relacionadas às temáticas da Educação de Jovens e Adultos. Nesse contexto, observamos tratarem-se de movimentos simultâneos entre pesquisadores de um campo de pesquisa consolidado e de outro a se consolidar, que possuem enlaces com um passado de lutas enraizadas na perspectiva emancipatória.
Consoante à problemática anunciada, o objetivo deste artigo é abordar os entrelaçamentos entre o Grupo de Trabalho de Educação Popular (GT 06) e o Grupo de Trabalho de Educação de Pessoas Jovens e Adultas (GT 18), acentuando as condições que fizeram com que pesquisadores dedicados aos estudos da Educação de Jovens e Adultos postulassem um lugar de debates para discussões de pesquisas de interesses específicos na estrutura organizativa da Anped.
Encaminhado por esse objetivo, o artigo, com o caráter bibliográfico e alguns subsídios da empiria, aborda os 40 anos da criação do GT de Educação Popular e os acontecimentos que principiam o reposicionamento de pesquisadores para a definição de um campo de pesquisas sobre Educação de Jovens e Adultos por meio do GT 18.
Na presença de vestígios que nos chegam quando rememorados, ancoramo-nos na teoria crítica formulada por Walter Benjamin (2005) sobre o conceito materialista-dialético de história escovada a “contrapelo”, tendo em vista o compromisso com a perspectiva das experiências dos vencidos e dos oprimidos,como diria mais tarde Paulo Freire (1987).
Walter Benjamin em uma leitura sobre os GTs de Educação Popular e Educação de Pessoas Jovens e Adultas
Ao interpelar a rigidez da racionalidade técnica, por não ceder aos sonhos e às paixões humanas, Benjamin (1971, p.111) defende que “Todo conhecimento filosófico tem sua única expressão na linguagem e não em fórmulas e números”. No contexto de rememoração, lembramos o trabalho encomendado a Alceu Ferraro (2005, p. 47), um dos primeiros coordenadores da fundação da Anped,quem observa que,
Como o próprio nome o diz, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) mantém vínculos com dois campos de interesse bem distintos, embora estreitamente relacionados entre si: a pós-graduação em educação e a produção e disseminação do conhecimento nessa mesma área.
Ao identificar dois campos de interesses interrelacionados, ou seja, o político e o científico, Ferraro (2005) nos apresenta duas opções políticas da Anped, as quais convergem no sentido de contribuir para a definição de políticas públicas ao mesmo tempo que aprofundam e disseminam conhecimentos com vistas à consolidação da Pós-Graduação.
Vemos que esse olhar sobre a Anped nos oferece rica expressão sobre o pressuposto de interpelar o conhecimento a partir de perspectivas acionadas por interesses que circulam e tensionam uma área de conhecimento.
Nessa perspectiva, compreendemos com Benjamin que a produção de conhecimento é social e coletiva, pois nos mostra que a experiência da produção e do compartilhamento de conhecimento radica-se na experiência que não se concentra no indivíduo, mas no coletivo que dá sentidos e força ao conhecimento humano.
A perspectiva teórico-epistemológica benjaminiana está calcada no caráter histórico-social do conhecimento também presente na dialética materialista de Marx e Engels. Tal como o filósofo alemão, Benjamin recorre a várias metáforas, imagens e alegorias para expressar que o conhecimento não se detém a um sistema fechado, determinista, sendo algo aberto que acolhe o inacabado. Neste artigo, trazemos a metáfora da “travessia”evocada por Costa e Fleuri (2001) nos diálogos sobre o percurso realizado pelo GT 06 entre os anos de 1992 e 1998, que representa um momento de experiência coletiva para um “salto lógico” na pesquisa em Educação Popular.
Ao percorrer a trajetória no interior do GT 06 e o movimento instituinte que, posteriormente, levará à frente a institucionalização do GT 18, somos convidados a aproximar a metáfora da “travessia” e o conceito de “passagem” em Walter Benjamin. Ou seja, passagens são ocorrências de mudanças que se perfazem por fatos, acontecimentos, artefatos e sujeitos que se imbricam na relação com tempos e vão demarcando (re)posicionamentos epistemológicos, éticos, estéticos, políticos. Desse modo, os enlaces e os aparentes desenlaces institucionais entre os grupos de Educação Popular e, agora, Educação de Pessoas Jovens e Adultas palmilham percursos tensionados que se revelam não em travessias solitárias, mas dialógicas.
Pelo olhar histórico da travessia com a intenção de dar o “salto lógico”, o referencial benjaminiano indica não a descrição de um passado, mas um fazer histórico que se materializa pela suspensão de Cronos (tempo linear) do progresso por Kairós ou Jetzeit(momento oportuno).
O passado constitui uma relação pela qual caminham relações de tensão e oportunidades criadas para momentos de salto escritos pelo que trazemos e pelas condições históricas que impulsionam ao salto “como a ação revolucionária de ruptura”, que torna possível aos sujeitos históricos perceber e aproveitar oportunidades favoráveis à escolha de sua própria liberdade no momento.
Pode-se dizer que os 40 anos do GT Educação Popular se fizeram possíveis como ação do tempo de Kairós benjaminiano, embora este não possa ser completamente apreendido, pois são quatro décadas que não se conformam a uma direção única no campo da Educação. Assume várias direções, incluindo o GT 18, que dele emerge e, no curso de seus 20 anos, também percorre direções distintas pelos sujeitos que o constituem e chegam dos respectivos grupos.
Trazemos essa perspectiva dos 40 anos por meio da imagem do “salto lógico” e do “salto do tigre” sobre o passado, essa última imagem consagrada por Benjamin (2005; 2008) ao contrapor o Kairós, tempo de interrupções, ao Cronos, tempo linear.
Em finais dos anos 90, Souza (1998) se dedicou a perceber o momento do salto ao realizar a reconstrução de três processos que se verificaram simultâneos, no contexto conjuntural na década de 1990. Para o autor,esses processos contribuíram, conforme documentos analisados, na “Refundamentação da Educação Popular”. Sobre esse momento, o autor argumenta que:
Esses processos se conectam com um ciclo histórico de EP que vem se desenvolvendo, a partir das experiências e reflexões de Paulo Freire no Nordeste brasileiro e, em seguida, no mundo, e se vêem hoje, desafiados por novas tarefas colocando-nos diante de realidades diferentes, de outros sujeitos e de cenários emergentes.
(SOUZA, 1998, p. 13).
A conjuntura do qual emergiram leituras sobre a ideia de “refundamentação” sobre os modos de fazer/pensar o GT de Educação Popular volta-se para o passado que faz apelo ao presente. Assim, a partir da ideia de que a tradição como um “ocorrido é sempre simultaneamente” (BENJAMIN, 2018, p. 770), o ocorrido é provocador de tensões de e entre tempos. As experiências dos movimentos de Educação Popular constituem situações de oportunidades abertas para se fazer a Educação de Jovens e Adultos na perspectiva da Educação Popular.
Ressalta-se que em 2000, um ano antes da conformação do GT 18, e ainda com pesquisadores ligados ao GT de Educação Popular, Haddad coordenou pesquisa sobre o estado da arte da Educação de Jovens e Adultos no Brasil em produções discentes dos Programas de Pós-Graduação no período de 1986 a 1998.
Haddad (2000) destaca que os temas relacionados à Educação de Jovens e Adultos envolveram, majoritariamente, processos de Educação de Jovens e Adultos em sistemas escolares. Por sua vez, os temas em conexão entre EP e EJA eram os que menos estavam presentes entre as produções levantadas.
No estudo referido foi destacado que a ocorrência da mobilização da sociedade civil, em especial a partir da criação dos fóruns de EJA, também se evidenciou no âmbito acadêmico, fornecendo condições para a composição e o momento do “salto do tigre” que fez eclodir o GT 18.
Haddad (2011, p. 10) defende um espaço próprio para discutir a Educação de Jovens e Adultos, em face ao fato de que muitos trabalhos “realizados no âmbito da sociedade civil, denominados por ‘educação popular’, não tomavam em consideração a demanda por escolarização”, o que levou movimentos de vários setores da sociedade civil a pressionarem o Poder Público para atender “a demanda adequada para esse setor da população”.
As autoras deste artigo consideram o argumento de Haddad um momento de ruptura de tempo de possibilidades que orientou a posição defendida por pesquisadores, corroborando a definição da Educação de Jovens e Adultos como um campo de pesquisa. Nesse sentido, vale convocar Bourdieu e Wacquant (2014, p.131), quando argumentam que o termo “campo” deve ser pensado “relacionalmente”. Os autores partem da formulação de Hegel de que “lo real es lo relacional” e chegam a Marx para concluir que não se trata de interações entre agentes ou laços intersubjetivos entre indivíduos, senão relações objetivas que existem independentemente da consciência ou da vontade individual. Os autores refletem que “en términos analíticos, un campo puede ser definido como una confuguración de relaciones objetivas entre posiciones”.
Vemos que esse movimento de rever o passado se mostrou oportuno para uma posição tomada por pesquisadores dedicados aos estudos sobre Educação de Jovens e Adultos que apresentavam trabalhos no GT 06. Isso expressa uma dimensão de origem do GT 18 que não se constituiu fora de uma relação com a Educação Popular e os Movimentos Sociais. Ou seja, a partir da perspectiva de Benjamin (2011, p. 34), o termo “origem” não é regulado por um tempo definido por um antes e um depois, já que, por um lado, “o originário quer ser reconhecido como restauração e reconstituição e, por outro, exatamente por isso, como algo incompleto e inacabado”.
Pela leitura benjaminiana, pode-se compreender esse movimento sobre acontecimentos que fermentaram um “salto” com os resíduos do passado para a conformação de um campo de pesquisa na área da Educação.
Ao interpelarmos sobre quais são as especificidades da EJA, também nos provocamos a interpelar as condições da produção da vida dos sujeitos que buscam conciliar trabalho e escola e, também, terem o “direito ao delírio”, como exalta Eduardo Galeano (2022, p.237), ao defender que “embora não possamos adivinhar como será o mundo, temos ao menos direito de imaginar com gostaríamos que fosse”. Nesse sentido, compreender essas condições da produção da vida é compreender o caráter da Educação Popular na perspectiva dos seus sujeitos que buscam a escola como delírio.
É o que nos dizem os estudos de caráter de estado da arte das produções do GT 18 ao mostrarem o quanto tem sido evidenciada a especificidade da trajetória dos sujeitos subalternizados. Vale dizer, “os condenados à sobrevivência que buscam o horizontes de liberdade e emancipação no trabalho e na educação” (ARROYO, 2006, p. 19).
As referências à EP nos trabalhos do GT 18 sugerem cumprir um papel de que não se pode perder a memória sobre os sentidos das experiências emancipatórias da Educação Popular quando conformamos a EJA a uma modalidade na estrutura e na organização da Educação Básica. Pierro, Joia e Ribeiro (2001) chamam atenção para um caráter “fronteiriço” da EJA que vai além do sentido estrito da escolarização. Essa marca de possibilidades de que a EJA vai além da escolarização nos remete às possibilidades abertas para as abordagens de práticas pedagógicas da Educação Popular presentes nos trabalhos apresentados no GT 18. Mais recentemente, ao acessarem os trabalhos do GT 18 no recorte temporal de 2009 a 2017, as autoras do presente artigo identificaram que, nesse período, o termo “Educação Popular” está entre os mais citados pelo conjunto de trabalhos analisados, como apresentado no quadro abaixo:
Palavras-chaves | Frequência | |
---|---|---|
EJA | 44 | 11,9% |
Proeja | 20 | 5,4% |
Formação docente/educadores | 9 | 2,4% |
Trabalho e Educação | 7 | 1,9% |
Educação Popular | 1,9% | 1,6% |
Fonte: Elaboração das autoras a partir de consulta dos trabalhos disponíveis na página da Anped – GT 18.
Muito embora a pesquisa tenha detectado grande dispersão de palavras-chaves, em um total de 371 o termo “Educação Popular” é o quinto mais citado. Excetuando-se a obviedade de “EJA” ser o termo mais citado, as quatro palavras mais recorrentes refletem a marca social de trabalhadores-estudantes, o que converge para a necessidade de formação de professores que sejam sensíveis, compromissados e competentes para atuar junto aos sujeitos da EJA.
Vale ainda informar que, nesse mesmo período em questão, 06 (seis) trabalhos tematizaram problemáticas sobre Educação Popular:
Trabalho | Número |
---|---|
Educação Popular no semiárido sertanejo | 2 |
Educação Popular e Movimentos Sociais | 1 |
Educação Popular e Agência de Cooperação Internacional | 1 |
Educação Popular no campo | 1 |
MEB e práxis freireana | 1 |
Fonte: Elaboração das autoras a partir de mapeamento de pesquisas no GT 18.
Entre vários aspectos ressaltados nesses trabalhos de caráter qualitativo, chamam atenção as pesquisas empíricas realizadas em contextos não urbanos, o que sugere que os princípios da Educação Popular no período apurado e no âmbito do GT 18 foram mais expressivos quando articulados aos projetos engendrados por Movimentos Sociais populares.
Muito embora o número pequeno de trabalhos dificulte densidades analíticas, pode-se inferir que a Educação Popular é um instituinte de repertórios de ação-reflexão-ação que se constitui enquanto prática político-pedagógica das classes populares organizadas coletivamente. Assim, podemos compreendê-la como “uma perspectiva, uma metodologia, uma ferramenta de apreensão, compreensão, interpretação e intervenção propositiva de produção e reinvenção de novas relações sociais e humanas” (CALADO, 1999, p. 137).
É interessante percebermos que a perspectiva da Educação Popular na escolarização de crianças, jovens e adultos tem os seus momentos de “salto”, embora muito mais difíceis de serem visibilizados na atual conjuntura histórica. Aqui vale trazer o trabalho realizado por Paulo Freire à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989-1991), convidado pela prefeita Luiza Erundina (1989-1993).
Em exílio forçado no exterior durante 15 anos, Freire retoma a sua práxis político-pedagógica, dessa vez em solo brasileiro, para contribuir para a Educação democrática, popular e de qualidade.
Ao enfrentar os desafios da escola pública degradada pelo abandono das classes dominantes, Freire defende que em sua gestão: “A marca que queremos imprimir coletivamente às escolas privilegiará a associação da educação formal com a educação não-formal. A escola não é o único espaço de veiculação do conhecimento” (SÃO PAULO, 1989, p. 7).
Nesse sentido, assumimos a perspectiva de Freire de que a Educação Popular é a Educação dos oprimidos, uma Educação que se evidencia como história aberta aos inéditos-viáveis mobilizados pelas classes populares.
A Educação de Jovens e Adultos é entremeada pela “história aberta” dos oprimidos como momento ético da libertação latinoamericana e se conecta às experiências da Educação Popular, pois, conforme reporta Wanderley (1979, p. 74), “o povo sabe acumular historicamente, tem sua sabedoria, suas formas de expressão próprias, sua lógica do mundo cotidiano, sua simbologia e sua linguagem”.
Momentos de ações para romper o contínuo da história...
No circuito de debates na ANPED e na sociedade como um todo existe um consenso de que as mudanças ocorridas, em especial após a década de 1970, não alteraram significativamente o acesso das classes populares à Educação Pública. Nas décadas seguintes a maior parte da população conquistou o direito de entrar na escola,ao mesmo tempo que o ciclo das políticas neoliberais estendia no tempo o processo de “exclusão branda” (BOURDIEU, 2008) de crianças, jovens e adultos das classes populares que chegam à escola.
Esse processo da exclusão branda nos remete aos anos 90, que têm se mostrado bastante interessantes para análises como tempode-agora pela qual a dialética histórico-social benjaminiana nos faz recolher fragmentos políticos, epistêmicos e estéticos como imagens em materialidade de acontecimentos “saturadas de agoras” que, por não serem finitas, estão abertas a travessias quando nos debruçamos sobre os ocorridos que vão processando os enlaces.
A leitura desse contexto é relevante quando buscamos compreender os desafios da Educação Popular como perspectiva na escolarização das classes populares. Sobre isso, vale retomarmos as preocupações de Esteban e Tavares (2013, p. 297), ao afirmarem que “A chegada massiva das classes populares na escola [...] incrementa a visibilidade da diferença em seu cotidiano com a produção escolar e social da desigualdade”.
Sem dúvida, a escola como lugar ao qual jovens e adultos têm recorrido, seja para elevar a sua escolarização, para reproduzira vida ou por motivações subjetivas que dão ânimo ao direito ao delírio e representam a conquista do direito à escola, é um dos mais importantes repertórios das lutas das classes popular e trabalhadora, constituindo um dos seus patrimônios coletivos.
Se a criação do GT 18, no ano de 2000, ganha delineamentos em um contexto nacional favorável para atender especificidades dos sujeitos que não tiveram acesso ao direito à escolarização, ao mesmo tempo esse ambiente é sufocado por uma conjuntura internacional que impõe grandes enfrentamentos para as organizações de trabalhadores, as políticas sociais e as instituições que vinham estabilizando o direito à Educação em todos os níveis de ensino.
No contexto do golpe midiático-jurídico-parlamentar que destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff no ano de 2016, o presidente interino Michel Temer (2016-2018), sustentado pela histórica “couraça da conciliação conservadora” representada pelo Centrão (FERNANDES, 2020, p.72), aprovou uma série de propostas de emendas constitucionais (PEC) que põe em curso as reformas da previdência, do trabalho, do Ensino Médio e da Base Nacional Curricular.
Sobre isso, Gagnebin (1987, p.13) assinala um dos mais profundos apontamentos extraídos da tese XVI sobre a história de Walter Benjamin, ao afirmar que no pensamento desse autor “A continuidade da história é a dos opressores” e “a história dos oprimidos é uma descontinuidade”. Ou seja, a história dos oprimidos é uma “história aberta”.
Acompanhadas por esses apontamentos, vemos que a emersão do GT 18 corrobora a escrita da “história aberta” dos oprimidos como momento ético da libertação latino-americana que segue na (re)construção de uma “pedagogia engajada na luta das classes”, como nos lembra Garcia (2001), ao refletir sobre as possibilidades oferecidas para a busca da coerência na produção do GT de Educação Popular.
As reuniões nacionais da Anped expressaram, sobretudo a partir de 2015, os golpes recentes que viriam a consolidar a aliança da dependência periférica do capitalismo no Brasil e na América Latina. Os temas das reuniões foram: “PNE: Tensões e perspectivas para a educação pública brasileira” (2015); “Democracia em Risco: a pesquisa e a pós-graduação no contexto de resistência” (2017); “Educação Pública: ataques, lutas e resistências” (2019); “Educação como prática de Liberdade: cartas da Amazônia para o mundo!”(2021).
Nesse ambiente, os GTs 06 e 18 propuseram a realização das seguintes sessões especiais conjuntas articuladas aosGTs da subárea 1 (GTs03,06,18,21,22 e23)4, cujos temas entrelaçam aspectos importantes vivenciados na conjuntura política e educacional, como podemos ver no quadro a seguir:
Tema da sessão | Ano |
---|---|
Educação popular e EJA: ações plurais, sujeitos singulares | 2015 |
Interculturalidade: gênero, raça, culturas indígenas e sexualidades | 2015 |
Novos ativismos: características, desafios e tendências. Um balanço de junho/2013 a outubro/2015 | 2015 |
Contexto nacional e as exigências para a pesquisa em educação (Educação Popular e Pessoas Jovens e Adultos) | 2017 |
Movimentos Sociais e ações coletivas: o contexto latino-americano de lutas e resistências Direitos, identidades, transformações societárias (Movimentos Sociais e Educação Ambiental) | 2017 |
As políticas da diversidade e enfrentamento das desigualdades (Gênero e relações étnico-raciais) | 2017 |
Interseccionalidade e Educação: desafios teóricos e metodológicos | 2017 |
Infâncias, Juventudes, Velhices: olhares interseccionais em Educação | 2019 |
Pedagogias e Pesquisas na perspectiva De(s)colonial | 2019 |
Epistemologias decoloniais | 2021 |
Paulo Freire e Movimentos Sociais na América Latina | 2021 |
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras a partir da página da Anped.
São esses temas, entre tantos, abordados nas sessões especiais que nos alertam sobre as precariedades que desafiam os GTs 06 e 18 a problematizar questões que os puseram a realizar travessias com olhares de enlaces entre os campos de pesquisa. Travessias que continuam a ser feitas diante da necessidade de se enfrentar a ideologia da globalização como integração econômica e cultural que oculta dicotomias entre integração/desintegração, inclusão/ exclusão, centro/periferia.
Essas dicotomias expressam a forma dominante do capital como novo padrão de poder mundial ao incorporar regiões e populações do planeta com o objetivo de continuar escrevendo a história dos vencedores e produzindo novos documentos de barbárie, pois, como nos provoca Walter Benjamin (2005, p. 70) em sua tese VII, “nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”.
Nesse sentido, os Grupo de Trabalho de Educação Popular, Educação de Pessoas Jovens e Adultos e demais grupos que compõem a subárea 1 na Anped tiveram a virtude de reconhecer, solidariamente, os desafios postos por tensões cada vez mais presentes no cotidiano das camadas populares, provocadas pelas condições de produção da vida nos limites do ciclo histórico atual da acumulação capitalista.
O desafio de buscar a coerência de uma pedagogia engajada tem nos encontros, mais do que nos desencontros, potencialidades pararealizar travessias. Vasculhar o passado impulsiona o salto para o presente como invoca Benjamin, “espichando-o”, como propõe Fischer:
Espichar o presente é trazer as categorias desse passado clássico: classe social, estrutura social, formação histórica social do país, quer dizer, esses elementos que não estão descartados sejam vertebrados por esse espichamento do cotidiano, que então todas essas questões que nós podemos, ainda, trazer para uma análise mais reflexiva, menos prescritiva, mais indagativa, mais relacional.
(FISCHER, 1998 apud SOARES, 2011, p. 21).
Dentro desse “espichamento” do presente, travessias são feitas e refeitas mobilizadas para os “inéditos-viáveis”, como nos conclama Freire (1992). Destarte, um grupo de trabalho não se dá a conhecer um sem outro(s), operando a partir de um “inventário nu e óbvio do factual”, como assinala Matos (1989, p.53) a propósito da dialética materialista de Walter Benjamin, que vislumbra o tempo inacabado e escovado a contrapelo para “romper o contínuo da história” pela ação utópica concreta dos vencidos e oprimidos.
Para uma (in)conclusão
As travessias percorridas pelos GTs 06 e 18 impulsionaram a produção de conhecimento que consideramos inter-relacionar esses dois campos. Muitos são os acontecimentos que desembocaram um tempo de agora para os respectivos grupos. O presente requer atenção e vigília para desdobramentos que escapam às demandas legítimas dos sujeitos jovens e adultos e impõem desafios que pareceram coincidir com as ruínas acumuladas pelo neoliberalismo, o que nos faz perscrutar momentos possíveis quando escovamos a história a “contrapelo”.
O deslizamento do GT 18 para um lócus próprio, pelas referências dos autores com os quais dialogamos neste texto, bem como as pesquisas e os movimentos cartografados nos dizem que as travessias continuam. Nesses percursos podemos remover dúvidas que se insinuavam como especificidade do campo da EJA, como um campo de exclusivos interesses de pesquisas concentradas no contexto escolar e nos processos de escolarização de jovens e adultos.
Muito embora, desde a série histórica de estudos caracterizados como estado da arte, tenham sido poucos os que explicitaram diretamente a interface entre Educação Popular e Educação de Jovens e Adultos, o presente que se engendra a partir de um objeto de conhecimento histórico-social do presente é emprenhado por conexões com o passado. Daí ser irredutível a leitura do tempo em uma lógica homogênea e linear. Trata-se de tempo rebelde, tempo de confronto que mobiliza leituras interpretativas de políticas do passado e do presente de objetos históricos que mudam em diferenças temporais.
Para tanto, percorremos alguns apontamentos do pensamento de Walter Benjamin, particularmente algumas categorias presentes em suas teses sobre a dialética da história pela qual o autor amplia a noção de escrita da história como reflexão e refração de tempos simultâneos e desiguais. Os resíduos espalhados do passado eclodem no presente sempre “grávido de agoras” (BENJAMIN, 1986) e nos inspira a enxergar o movimento relacional dos GTs 06 e 18, cujos vínculos revelam travessias solidárias na composição de campos de pesquisas no âmbito da Anped.