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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 01-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e0220050 

DOSSIÊ: EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: HISTÓRIA E ATUALIDADE

Educação popular e o campo das drogas: enfoques da literatura

Popular education and the drug field: literature approaches

Ione Gomes Silva1 

Pedro José Santos Carneiro Cruz2 

1Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba; Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba; Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba.

2Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba; Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba; Graduado em Nutrição pela Universidade Federal da Paraíba; Professor do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba.


Resumo

Este estudo resulta de uma pesquisa de Mestrado em Educação (SILVA, 2020) e tem por objetivo apresentar como a temática das drogas lícitas e ilícitas vem sendo abordada na literatura do campo da Educação Popular. O texto organiza-se em quatro seções que compreendem, respectivamente, aspectos introdutórios; procedimentos metodológicos; resultados e discussão; considerações finais. Metodologicamente foi necessário realizar uma revisão narrativa da literatura, atualizada para a elaboração deste trabalho. O recorte de pesquisa compreendeu os últimos nove anos (2014-2022). Para a coleta dos dados foi utilizado o Portal de Periódicos da CAPES. Alguns dos resultados são, por exemplo: 1) o fenômeno das drogas é compreendido a partir de uma perspectiva crítica, pois se busca problematizar as contradições que fazem parte do modo como essa temática vem sendo abordada na sociedade, e a própria política sobre drogas vai sendo questionada e criticada, além das abordagens de prevenção que são orientadas por ela; 2) a escolha pela Educação Popular como orientadora das ações de educação sobre drogas tem a ver com o entendimento de que essa concepção educativa representa uma alternativa contrária às abordagens hegemônicas, essencialmente repressoras; 3) as ações que objetivam discutir a questão das drogas de maneira educativa utilizam diferentes ferramentas didáticas e metodológicas, com todas tendo em comum a opção pela Educação Popular como concepção teórica orientadora de suas abordagens. Dentre as conclusões, afirma se que ao buscar o referencial da Educação Popular objetiva-se educar sobre as drogas, mas também sobre a realidade por meio da reflexão e da problematização dos fatores sócio-históricos, econômicos e políticos.

Palavras-chave Educação Popular; Educação sobre Drogas; Drogas

Abstract

This study is the result of a master’s research in education (SILVA, 2020). It aims to present how the issue of licit and illicit drugs has been addressed in the literature in the field of Popular Education. The text is organized into four sections that comprise, respectively, the introductory aspects; methodological procedures; Results and discussion; final considerations. Methodologically, it was necessary to carry out a narrative review of the literature, updated for the elaboration of this work. The research cut comprised the last nine years (2014-2022), for data collection the CAPES Periodicals Portal was used. Some of the results are, for example: 1) the phenomenon of drugs is understood from a critical perspective, as it seeks to problematize the contradictions that are part of the way this theme has been approached in society. The drug policy itself is being questioned and criticized, in addition to the prevention approaches that are guided by it; 2) the choice of Popular Education as a guide for drug education actions has to do with the understanding that this educational concept represents an alternative contrary to hegemonic, essentially repressive approaches; 3) Actions that aim to discuss the issue of drugs in an educational way use different didactic and methodological tools. What they all have in common is the option for Popular Education as the guiding theoretical conception of their approaches. Among the conclusions, it is stated that when seeking the reference of Popular Education, the objective is to educate about drugs, but also about reality through reflection and problematization of socio-historical, economic and political factors.

Keywords Popular Education; Drug Education; drugs

1. Aspectos introdutórios

Historicamente a Educação Popular surge na América Latina como uma proposta teórico-metodológica de trabalho educativo com o povo, particularmente a partir dos esforços de produção e sistematização de autores como Paulo Freire, entre outros. Ela se afirma de maneira crítica e alternativa às práticas educativas de cunho autoritário e conteudista, com perspectivas metodológicas homogeneizantes que contribuem historicamente para manter oprimidos e desumanizados os homens e as mulheres das classes populares. Como concepção educativa, a Educação Popular vem se fazendo presente em diferentes contextos educativos e comunitários, principalmente nos movimentos sociais populares, promovendo organização e formação de grupos bem como práticas populares para que estes possam se inserir no processo histórico como sujeitos (SILVA, 2020).

Os processos educativos e formativos conduzidos com a orientação teórica e metodológica da Educação Popular tem características específicas, como o diálogo, a escuta sensível, o respeito à cultura e aos saberes dos sujeitos envolvidos. Por mobilizar esse conjunto de elementos que perfazem uma Educação crítica, a Educação Popular vem sendo convidada a dar sua contribuição em uma série de questões e discussões que apresentam relevância para a sociedade. É o caso, por exemplo, de alguns debates e práticas que vêm se desenvolvendo na área da Saúde, da Educação Ambiental, em questões de gênero e das drogas, como pode ser visto em obras como as de Vasconcelos (2013), Figueiredo (2013), Fleuri e Muraca (2013) e Leite (2018). Nesse sentido, a Educação Popular continua cumprindo seu papel educativo, formativo e humanizador em diferentes campos do conhecimento que apostam nas suas práticas dialógicas e emancipatórias.

No que concerne a questão das drogas, os debates envolvendo a Educação Popular enquanto concepção orientadora das práticas educativas ainda são relativamente recentes e começam a tomar corpo quando se evidenciam as relações de poder, a criação de estigmas e as práticas opressivas que podem ser reproduzidas por meio de ações educativas nesse setor, sob a orientação da “política de guerra às drogas” (SILVA, 2020). A partir da constatação do esquema de marginalização e controle social que vem sendo alimentado pela política repressiva, surge a necessidade da elaboração de abordagens contra-hegemônicas, portanto contrárias às práticas autoritárias e repressivas, pois preocupadas, de fato, em educar e assegurar o bemestar e a saúde dos indivíduos.

Entende-se que iniciativas orientadas pela Educação Popular representam novas formas de construção de saberes, com respeito aos conhecimentos e às experiências das pessoas, porém aparentemente existem poucas iniciativas relacionadas ao campo da educação sobre drogas. Uma vez verificada essa lacuna, durante a pesquisa desenvolvida no Mestrado, realizou-se este estudo objetivando a identificação de como a temática das drogas lícitas e ilícitas vem sendo abordada na literatura da área da Educação Popular.

2. Procedimentos metodológicos

O presente manuscrito constitui recorte de uma pesquisa mais ampla. Para a obtenção dos dados, metodologicamente foi realizada uma revisão narrativa da literatura definida por Vosgerau e Romanowski (2014). Segundo as autoras citadas, a revisão narrativa pode possibilitar a identificação de temáticas recorrentes e o surgimento de novas perspectivas para a afirmação de uma área de conhecimento. As produções bibliográficas pertencentes a uma determinada área podem revelar ideias, métodos e concepções que vêm sendo adotadas pelos pesquisadores. Nesse contexto, para a realização da revisão é necessário deixar claro o campo de pesquisa e o tema pesquisado, assim como fazer um recorte temporal e estabelecer as fontes de dados bem como as bases em que os dados serão recolhidos. Assim, o pesquisador pode optar por bases mais amplas, como o portal da CAPES, ou mais restritas, como revistas científicas (Ibidem).

O presente levantamento foi realizado no Portal de Periódicos da Capes, sendo atualizado em 2022. A estratégia de busca incluiu os seguintes descritores: Educação Popular; drogas; educação sobre drogas; prevenção ao uso de drogas. Todos os termos foram utilizados em conjunto. Utilizou-se o operador booleano AND.

Para a construção dessa revisão narrativa foram seguidas as seguintes etapas: 1) definição do objetivo da pesquisa; 2) definição do recorte temporal; 3) estabelecimento das fontes de dados e da base de pesquisa; 3) definição dos descritores de busca; 4) coleta dos documentos; 5) definição dos critérios de exclusão; 6) leitura dos títulos e dos resumos; 7) leitura completa dos estudos; 8) identificação das abordagens de Educação Popular.

O recorte temporal compreendeu os últimos nove anos (20142022). No Portal de Periódicos da Capes foram priorizados artigos revisados por pares, o que resultou em um total de 286 trabalhos selecionados e avaliados de acordo com os critérios de exclusão: ser pertinente ao tema da pesquisa; estar em formato de artigo; trazer

o diálogo entre Educação Popular e prevenção/educação sobre drogas.

Após a leitura dos títulos e dos resumos foram selecionados para leitura completa dez trabalhos que apresentavam a relação direta entre Educação Popular e educação sobre drogas. Após leitura completa constatou-se que em dois estudos a Educação Popular foi a abordagem escolhida para a realização de atividades junto a pessoas que consomem drogas, porém não foi desenvolvido o tema de prevenção/educação sobre drogas. Dessa maneira, oito trabalhos passaram a constituir o corpus da pesquisa. A seguir apresenta-se um quadro com as produções encontradas.

3. Resultados e discussão

3.1. O que dizem as pesquisas sobre drogas no contexto da Educação Popular?

Quadro 1 Produções científicas encontradas no banco de dados utilizado que compõem o corpus do estudo. 

AUTOR TÍTULO ANO PERIÓDICO
BRANCO, N. M. M. C. et al. Desconstruindo mitos e preconceitos sobre “loucos” e “drogados”: uma proposta de ação educativa para familiares de usuários de álcool e outras drogas na perspectiva da educação popular 2016 Pesquisas e Práticas Psicossociais
LEITE, I. N. Educação popular ontem e hoje: perspectivas e desafios 2016 Revista Espaço Acadêmico
LEITE, I. N. A educação popular perante a questão das drogas: uma incursão no tema e um marco conceitual 2018 Revista de Educação Popular da Universidade Federal de Uberlândia
LEITE, I. N. Educação Popular, sociedade e drogas: uma perspectiva para o trabalho socioeducativo 2019 Revista Emancipação
RUCKERT, B. et al. Diálogos entre a saúde do campo e a saúde mental: a experiência da oficina de educação popular em saúde mental do MST na ESP MG 2014 Interface
VASCONCELOS, A. C. M. et al. Educação popular em saúde na abordagem sobre drogas com adolescentes 2016 Revista de Educação Popular da Universidade Federal de Uberlândia
FARIAS, H. S. L. et al. Educação Popular no cuidado integral ao usuário de álcool e outras drogas 2020 Revista de Educação Popular da Universidade Federal de Uberlândia
ALBUQUERQUE, A. A. U. L. et al. Educação popular e economia solidária na prevenção ao consumo de álcool na adolescência 2016 Revista da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Mato Grosso

Fonte: elaboração própria.

Desde que se tornou uma temática com relevância para a sociedade, a questão das drogas tem sido abordada a partir de diferentes perspectivas e visões de mundo. Alguns grupos sociais tomaram essa questão como uma bandeira de luta, com uns batalhando para exterminar essas substâncias e, assim, possivelmente, acabar com a comercialização e o consumo, outros para que o tema passe a ser tratado como uma questão de saúde pública e os seus consumidores respeitados e cuidados quando necessário. Dada a complexidade do fenômeno, faz-se pertinente abordá-lo de forma crítica. A seguir averiguar-se-á o que dizem os estudos.

Leite (2016) enfatiza o cuidado de evitar as posturas reprodutivistas no discurso e nas práticas de Educação Popular, abordando algumas questões e temáticas que vêm se colocando como desafios para a sociedade e a Educação Popular. O autor enfatiza a necessidade de, por meio dessa concepção educativa, desenvolver procedimentos e abordagens críticas para responder aos novos fenômenos e problemas que permeiam os espaços educativos na atualidade. Entre os temas apresentadas como novos desafios ou fenômenos sociais ele enfatiza a questão das drogas lícitas e ilícitas no contexto educativo e ressalta a importância de serem desenvolvidas abordagens sobre essa temática na perspectiva da Educação Popular.

O próximo estudo foi realizado por Vasconcelos et al. (2015). Trata-se de um artigo em que os autores relatam ações de Educação Popular na área da Saúde realizadas com o objetivo de fazer a prevenção ao consumo indevido de drogas na escola, tendo adolescentes como público participante. O estudo foi realizado no município de Sobral/CE. Para realizar as ações educativas, metodologicamente, os autores decidiram utilizar o Círculo de Cultura e seguiram algumas etapas. Em um primeiro momento, realizaram uma investigação na escola, conversando com professores e alunos em busca das palavras geradoras e dos temas que fossem mais importantes para os sujeitos. De acordo com os autores, “foram identificados três temas a serem trabalhados: cuidados com o corpo; liberdade e o uso de drogas; violência e as drogas” (VASCONCELOS et al., 2015, p. 184).

Dando prosseguimento à sua abordagem educativa, os autores realizaram uma tematização/teorização. Esse momento, segundo eles, correspondeu à fase de busca de significados dos temas geradores para a construção de situações “desafiadoras”, ou, como diria Paulo Freire, situações-limite que devem ser superadas pelos sujeitos. Essa construção temática deveria ser decodificada pelos participantes da pesquisa, conforme é descrito pelos autores, “como estratégias ativadoras do diálogo foram codificadas mensagens em imagens, músicas, dinâmicas de grupo e práticas corporais” (VASCONCELOS et al., 2015, p. 184). Nesse contexto, essas foram as ferramentas didáticas escolhidas para possibilitar a problematização e a reflexão sobre as questões que estavam sendo abordadas.

Nesse estudo optou-se por não abordar a questão das drogas em primeiro plano, mas por meio da associação com outras temáticas, quais sejam: corpo, liberdade e violência. O que motivou essa escolha, de acordo com os autores, foi o receio de, ao abordar a questão das drogas diretamente, aguçar a curiosidade dos adolescentes pelas substâncias. Assim,

[...] antes de tentar fazê-los entender os malefícios do uso indevido de substâncias, contextualizou-se o corpo, fazendo reflexões de modo a enfatizar sua importância para só depois mostrar a destrutividade das drogas sobre ele, assim problematizando e valorizando a fala dos sujeitos como forma de promover uma aprendizagem significativa

(VASCONCELOS et al., 2015, p. 185-186).

Dessa maneira, no desenvolvimento de estratégias didáticas sobre outras temáticas, a questão das drogas também foi sendo abordada. Percebe-se também que uma abordagem utilizada pelos autores foi a analogia, ou seja, o efeito de fazer comparações ou buscar semelhanças entre coisas distintas. Nesse contexto,

[...] drogas foram comparadas à gaiola enfeitada, que, a princípio, parece ser agradável, bonita, mas que não passa de uma prisão e que uma vez por ela atraída e capturada, torna-se bastante difícil de sair. [...] “A droga te dá asas, mas tira o teu céu”, com o intuito de mostrar que o fato das drogas serem atrativas, promover prazer, bem-estar, melhorar as relações sociais, não compensam os malefícios causados, e podem trazer consequências irreversíveis, incompatíveis com uma vida saudável

(VASCONCELOS et al., 2015, p. 186-187).

Vasconcelos et al. (2015) concluem sua abordagem de Educação Popular em Saúde sobre as drogas afirmando a pertinência da utilização dos princípios freirianos de Educação. Conforme é apontado por eles, essa abordagem levou os adolescentes a refletirem sobre a sua saúde e a questão das drogas. Além disso, proporcionou uma considerável aprendizagem sobre a temática.

Ruckert et al. (2014) apresentam um relato de experiência construído a partir da realização de oficinas de Educação Popular em Saúde direcionadas a populações integrantes de acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no estado de Minas Gerais. À época da publicação do artigo a experiência ainda estava em andamento e apresentava resultados parciais.

A realização dessa ação educativa foi fruto de uma reivindicação do Setor de Saúde do MST-MG, que também escolheu que as ações deveriam ser orientadas pelo referencial da Educação Popular. Além das lideranças de Saúde do MST, também podiam participar das oficinas os demais trabalhadores da área da Saúde Pública dos municípios em que existiam acampamentos. As oficinas foram divididas em três etapas:

A primeira etapa teve como público-alvo as lideranças de saúde do MST e a duração de quatro dias. Para a segunda etapa espera-se a participação dos trabalhadores do SUS e alguns representantes do Setor de Saúde do MST. Essas etapas pretendem desenvolver uma ampliação dos olhares sobre as temáticas da Saúde do Campo, Reforma Psiquiátrica e Redução de Danos no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. A partir desses pressupostos, a terceira etapa consistirá em um momento de integração entre os públicos participantes, visando à construção de estratégias compartilhadas de cuidado em saúde mental e qualificação dos serviços prestados no âmbito dos territórios envolvidos na experiência

(RUCKERT et al., 2014, p. 1.540).

De acordo com os autores, o estudo orienta-se por uma abordagem freiriana de Educação. O objetivo a ser alcançado com a realização das atividades foi colaborar com a disseminação de práticas de cuidado direcionadas, principalmente, à preservação da saúde mental, de forma a atender às necessidades de saúde da população, sobretudo as relacionadas ao consumo abusivo de álcool e outras drogas.

No estudo supracitado, a proposição do diálogo expressa a orientação da Educação Popular adotada. Nesse contexto, busca-se o diálogo entre os saberes da área da saúde mental e da saúde do campo assim como a articulação entre movimentos sociais e outras entidades. Conforme é apontado pelos autores, promoveramse problematizações, vivências e práticas por meio de oficinas. Buscava-se ainda uma amplificação do entendimento sobre saúde do campo, reforma psiquiátrica e redução de danos no cuidado com consumidores de álcool e outras drogas. Os autores ainda afirmam que, com as oficinas, foi possível contribuir para a construção de novos valores referentes às pessoas que apresentam sofrimento mental grave e aos consumidores que fazem abuso de drogas (RUCKERT et al., 2014).

No próximo estudo, realizado por Albuquerque et al. (2014), observou-se a junção entre Educação Popular e economia solidária para fazer a prevenção do consumo de álcool na adolescência. Os autores propõem uma associação teórica entre os campos da Educação Popular e da economia solidária para fazer uma ressignificação dos fatores de risco que envolvem o consumo do álcool; apresentam uma reflexão sobre a literatura da área; e pontuam que sua abordagem de prevenção ao consumo do álcool poderia ser desenvolvida por meio das diretrizes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), objetivando uma intervenção primária.

A abordagem proposta sobre a prevenção ao consumo do álcool apresenta um conjunto de vulnerabilidades sociais às quais os adolescentes podem estar expostos e que podem representar fatores de risco: “a) vulnerabilidade quanto ao contexto familiar; b) vulnerabilidade quanto ao contexto ético; c) vulnerabilidade quanto ao contexto socioeconômico; d) vulnerabilidade quanto ao contexto sexualidade; e) vulnerabilidade quanto ao contexto dialógico-educativo” (ALBUQUERQUE et al., 2014, p. 178). Assim, propõe-se que a junção entre Educação Popular e economia solidária provocaria uma alteração de sentidos:

A educação popular e a economia solidária inscrevem-se no âmbito das diretrizes do NASF e habilitam à defesa da formação de um espaço de convivência e cultura em que a equipe dos CAPSs e a dos PSFs estejam integradas (Brasil, 2010b), a partir dos referenciais de educação popular e economia solidária, objetivando a intervenção primária, preventiva, de modo a alterar os sentidos das vulnerabilidades atribuídas aos comportamentos dos adolescentes

(ALBUQUERQUE et al., 2014, p. 181).

As alterações de sentidos propostas pelos autores e realizáveis a partir do referencial da Educação Popular e da economia solidária pressupõem o entendimento das complexas relações que constituem o tecido social e atribuem os sentidos às categorias de vulnerabilidade apresentadas no estudo. A ressignificação desses fatores de risco aconteceria por meio de um conjunto de estratégias, dentre as quais estariam o oferecimento de potencialidades reflexivas sobre a realidade e o cotidiano, o diálogo sobre os riscos à saúde, o estímulo ao envolvimento com novas práticas – como clubes de livros e de serviços, criação de oficinas educativas, econômicas e solidárias direcionadas às famílias – e à curiosidade. As atividades deveriam ser desenvolvidas de forma integrada pelas equipes de saúde da família e saúde mental, porém, de acordo com os autores, alguns obstáculos deveriam ser ultrapassados, como, por exemplo, a necessidade de capacitação constante da equipe (ALBUQUERQUE et al., 2014).

Em síntese, como salientam os autores, a junção entre Educação Popular e economia solidária na prevenção ao consumo do álcool “favorece uma contracultura associada ao desenvolvimento de uma vida juvenil saudável, propiciando o lúdico, o dialógico, a prática concreta de ações que podem agregar renda à família” (ALBUQUERQUE et al., 2014, p. 184).

Branco, Silva e Soldatelli (2016) apresentam um relato de experiência, descrevendo uma ação educativa para familiares de consumidores de álcool e outras drogas na perspectiva da Educação Popular. O trabalho foi desenvolvido no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial de Vitória/ES. O objetivo pretendido foi modificar o imaginário sociocultural acerca das pessoas que consomem drogas, considerando que esses sujeitos sempre são vitimados pelo preconceito e pelos estigmas que são construídos socialmente e povoam o imaginário da população. De acordo com as autoras, “a intervenção se deu na perspectiva teóricometodológica da educação popular, com ações educativas que valorizaram os conteúdos culturais e populares dos participantes, unindo-se aos princípios da atenção psicossocial” (BRANCO; SILVA; SOLDATELLI, 2016, p. 602).

As autoras do estudo optaram por realizar oficinas pedagógicas com duração de 40 horas em que foram abordados os seguintes conteúdos:

Cuidando de quem cuida; Mitos, a questão social, cultural e antropológica da questão do uso das drogas; Aspectos biopsicoculturais e motivacionais para o uso de drogas; Fatores de risco e proteção; Como lidar com a situação nos momentos mais difíceis; Empoderamento dos familiares, Reforma Psiquiátrica e Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras drogas e a Rede de Atenção em Saúde Mental; Epidemiologia sobre drogas: os diversos tipos de drogas; A lógica de Redução de Danos; Rede de Atenção

(BRANCO; SILVA; SOLDATELLI, 2016, p. 607-608).

Os conteúdos escolhidos, segundo as autoras, adquiriram mais significados ao serem abordados de acordo com o referencial teórico-metodológico da Educação Popular, priorizando o diálogo e tomando como ponto de partida os saberes dos participantes. As oficinas foram realizadas em diferentes espaços, como um parque e um museu. Também se utilizaram dinâmicas em grupo e vídeos como recursos didáticos para estimular a reflexão e as discussões.

A abordagem sobre as drogas na perspectiva da Educação Popular acontece mediante uma série de vivências distintas que buscam desconstruir os preconceitos criados em torno das pessoas que consomem drogas. Dessa maneira, são realizados passeios em parques, visitas guiadas em museus e escolas e práticas integrativas de biodança, dentre outras atividades. Durante as vivências, de acordo com as autoras, os conteúdos propostos são abordados e os participantes estimulados a dialogar e refletir.

Leite (2018) realiza uma discussão aprofundada sobre o fenômeno das drogas no contexto da Educação Popular. Conforme é apontado por ele, para desenvolver uma abordagem educativa sobre as drogas que esteja de acordo com os pressupostos teóricometodológicos da Educação Popular é necessário, primeiro, refletir sobre a dimensão sócio-histórica dessa concepção educativa.

O autor utiliza o conceito sociológico de desvio social para fazer uma reflexão sobre a sociedade, a criação de regras/normas e a produção e disseminação de rótulos que, por vezes, contribuem com a estigmatização e a marginalização de pessoas que consomem drogas. Assim, ele pontua que, “no caso da relação educação popular e drogas, é fundamental escrutinar o próprio conceito de sociedade, tendo em atenção os seus grupos sociais, as relações de poder e a definição de normas” (LEITE, 2018, p. 14).

Nesse sentido, o autor apresenta uma combinação de requisitos que, de acordo com a sua ótica, são fundamentais para que a Educação Popular possa desenvolver uma abordagem educativa sobre as drogas:

[...] trata-se de acionar um pressuposto metodológico (lógico-histórico) para abordar o assunto, combinado com outro pressuposto que inquire a questão do ponto de vista político, para, assim, proporcionar meios para que a premissa cognitiva da educação popular aporte a sua abordagem acerca do modo de enfocar as drogas

(LEITE, 2018, p. 17).

Refletindo sobre o modo de enfocar as drogas no contexto educacional de forma crítica e superando as abordagens tradicionais orientadas pela política proibicionista, o autor apresenta algumas sugestões de como o trabalho educativo sobre drogas pode ser realizado na perspectiva da Educação Popular. A primeira modalidade de abordagem apresentada por ele trata sobre a linguagem que geralmente é utilizada para se referir a pessoas que consomem drogas, por vezes contém um tom depreciativo e pode favorecer a reprodução dos estigmas. Além disso, exerce influência na maneira como a sociedade e os próprios sujeitos que consomem drogas se enxergam. Ele aponta que é necessário haver uma mudança na linguagem para que a questão comece a ser tratada de forma crítica (LEITE, 2018).

Uma segunda modalidade de abordagem a ser desenvolvida de acordo com os princípios da Educação Popular diz respeito a atividades socioeducativas de redução de danos no contexto do consumo abusivo de drogas e como uma opção que pode orientar a criação de políticas públicas. Porém, conforme é salientado pelo autor, é “fundamental que esteja definido adequadamente no âmbito da educação popular o que se entende por redução de danos” (LEITE, 2018, p. 22). No desenvolvimento dessa abordagem, ele defende que ações sejam realizadas levando em consideração quatro dimensões específicas, quais sejam: a promoção dos direitos humanos; a construção de aportes interdisciplinares; a intervenção no contexto da educação formal; a intervenção no contexto da Educação não formal.

Na construção dos aportes interdisciplinares, ele aponta que é preciso:

[...] superar as abordagens fragmentadas sobre as drogas, que geralmente se apoiam apenas em uma aérea científica. Produzir enfoques com evidência cientifica no sentido de desconstruir a retórica moral e ideológica das cruzadas antidrogas, principalmente sua “missão” politicamente rentável aos seus patrocinadores, ao combinar um alto grau de discurso populista, o financiamento de uma massiva casta de supostos especialistas, funcionários de captura/apreensão e operações espetaculosas com a cobertura da mídia

(LEITE, 2018, p. 22).

No que concerne ao âmbito da Educação escolar, ao apresentar como as intervenções podem ser realizadas, o autor afirma que as ações podem ser desenvolvidas da seguinte maneira:

Esclarecer o significado do conceito de drogas, enfocando a construção sócio-histórica da distinção entre drogas lícitas e ilícitas. Desenvolver atividades na Escola, como oficinas, conjuntamente para pais e alunos sobre o tema. Proporcionar aos professores aportes de formação continuada sobre o tema “drogas”, tendo como diretrizes seu enfoque sócio-histórico, a noção de medicalização da sociedade, a abordagem do campo da saúde coletiva, o conceito de ownership (propriedade de si, autodomínio) etc.

(LEITE, 2018, p. 23).

A terceira modalidade de abordagem apresentada pelo autor leva em consideração que o consumo de substâncias psicoativas não representa um problema por si só, ou seja, a questão principal seriam as formas de consumo e os tipos de vínculos que os sujeitos estabelecem com as drogas. Sendo assim, ele aponta que é importante em uma ação educativa fazer a distinção entre o consumo problemático e o não problemático de drogas, apontando que existem vários tipos de consumo e que nem todas as pessoas que consomem substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas tornam-se dependentes químicas.

Em outro estudo, Leite (2019) retoma as discussões que vêm desenvolvendo nos trabalhos anteriores e foram apresentados acima. A Educação Popular e a relação entre sociedade e criação de normas é novamente desenvolvida e aprofundada para abordar as formas de controle social que têm os consumidores de drogas ilícitas como principal público-alvo. De acordo com o referido autor, a repressão de comportamentos considerados desviados e a estigmatização das pessoas são frutos da tentativa de controle das condutas individuais. Esse controle “se consegue modificando a noção que as pessoas têm da atividade que deve ser controlada e da possibilidade de envolver-se com ela. São inculcadas socialmente então noções a seu respeito” (LEITE, 2019, p. 5).

A ferramenta político-ideológica que oculta sua verdadeira gênese e suas causas é introjetada de forma inconsciente pela sociedade, que passa a enxergar certos comportamentos como errados e outros como corretos. Em decorrência disso, consumidores de drogas ilícitas e, muitas vezes, moradores de comunidades empobrecidas acabam sendo associados à criminalidade e à marginalização. Nesse contexto, o fundamental que vem sendo desenvolvido por Leite (2019) em seus estudos é o papel que pode ser desempenhado pela Educação Popular diante da ideologia que alimenta e sustenta as abordagens repressivas sobre drogas e todos os danos causados por ela.

Foi no âmbito de um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPSad) que Farias et al. (2020) desenvolveram sua pesquisa baseada nos princípios metodológicos da Educação Popular em Saúde (EPS) e voltada para o cuidado às pessoas que consomem drogas. O trabalho apresenta críticas ao modelo proibicionista e às formas de cuidado que se baseiam apenas na abstinência e no isolamento dos indivíduos, ressaltando a importância das práticas de redução de danos. A EPS é apontada como uma alternativa contra-hegemônica, uma forma de superar as limitações das práticas autoritárias e moralistas e dar protagonismo aos sujeitos.

As autoras não revelam a cidade em que se deu a pesquisa, apenas mencionam um bairro periférico localizado na região da Zona da Mata no Nordeste do Brasil. De acordo com elas, foi realizada uma pesquisa-ação que se deu por meio da execução de oficinas com pessoas atendidas pelo CAPSad e orientadas pelos princípios da Educação Popular em Saúde. Farias et al., 2020, p. 230). afirmam que:

A atuação baseada na EPS, trouxe para prática o diálogo, a amorosidade, a construção compartilhada do saber e a emancipação, abre espaços para ampliação do cuidado. No CAPS AD, talvez o maior desafio das profissões da saúde seja lidar com o que é dito, ou ainda mais, com o que não é dito evidentemente e utilizá-lo como estratégia que impulsione pessoas a refletirem sobre si e sua importância no mundo.

Nesse sentido, as principais contribuições alcançadas com a escolha da EPS foram o estabelecimento do diálogo, a escuta ativa das pessoas, a valorização dos saberes, a amorosidade e a construção compartilhada dos conhecimentos. Essas são categorias centrais a serem desenvolvidas nas práticas de Educação Popular.

3.2. Abordagens sobre drogas orientadas pela Educação Popular

No contexto evidenciado pelos trabalhos apresentados, pode-se inferir que existe não apenas uma, mas algumas formas de abordar a questão das drogas sob a perspectiva da Educação Popular. Observa-se que as propostas ou as ações concretas desenvolvem-se em diferentes espaços educativos, apesar de haver uma maioria de estudos voltados para espaços não escolares.

As ações que objetivam discutir a questão das drogas de maneira educativa utilizam diferentes ferramentas didáticas e metodológicas. O que todas têm em comum é a opção pela Educação Popular como concepção teórica orientadora de suas abordagens. Observa-se a junção entre Educação Popular e Saúde; Educação Popular e economia solidária; e, por fim, Educação Popular e redução de danos.

A escolha por fazer o entrelaçamento entre a Educação Popular e alguma outra vertente de conhecimento para desenvolver uma abordagem sobre as drogas provavelmente objetiva qualificar essas ações e aumentar o seu alcance. Em alguns casos a junção justificase pelos tipos de atividades que se pretende desenvolver; em outros, por haver uma certa semelhança entre as práticas e os princípios da Educação Popular e da outra concepção escolhida. Nesse sentido, a relação entre Educação Popular e economia solidária é exemplar, pois a economia solidária possui um viés emancipatório e criativo, possibilitando a construção de um mundo mais humanizado por meio da defesa de um projeto de sociedade que supere a lógica do capitalismo (ZITKOSKI, 2010).

Em grande parte dos estudos o público participante das abordagens são os adolescentes. Essa fase da vida nos seres humanos representa um período de muitas descobertas, transformações, rebeldias, criatividades e curiosidades. É nesse período também que muitos sujeitos têm o seu primeiro contato com as drogas, sejam lícitas ou ilícitas. Nesse sentido, uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), no ano de 2010, aponta que a exposição dos estudantes às substâncias psicoativas acontece muito precocemente, mesmo antes dos 10 anos. O estudo revela que 5,4% dos sujeitos que foram entrevistados revelaram já terem consumido drogas no ano anterior à pesquisa, ou seja, quando ainda tinham apenas 9 anos de idade. A pesquisa aponta ainda que 30,6% dos alunos com idade entre 10 e 12 anos já consumiram álcool (CEBRID, 2010).

Assim como acontece com os demais seres humanos em outras fases de sua vida, os adolescentes podem iniciar o consumo de drogas pelas mais variadas motivações. Nesse contexto, as ações desenvolvidas em alguns dos estudos apresentados acima buscam fazer a prevenção ao consumo de drogas e, ao mesmo tempo, preparar os jovens para lidar de forma crítica com a realidade.

Ressalta-se que, apesar de a maioria dos trabalhos escolher os adolescentes como público-alvo, Vasconcelos (2015) e Leite (2016, 2018, 2019) apontam a escola como palco para o desenvolvimento de suas abordagens. Sendo que os demais estudos foram realizados em espaços não escolares de Educação, como Unidade de Saúde, Redes de Atenção Psicossocial, Unidades de Saúde da Família e Centro Comunitário. Propostas educativas em Educação Popular têm uma tendência maior para serem realizadas em espaços não escolares. Isso pode ser explicado e constatado quando nos detemos a observar a própria história.

Ao falar em Educação Popular tem-se em conta que esta se trata de um fenômeno sociocultural e uma concepção educativa com origem fora dos muros da escola. Ela surge e desenvolvese junto aos movimentos sociais, junto às classes populares em contextos comunitários. As próprias características da escola como um ambiente institucionalizado, em alguns momentos, foram apontadas como entraves para a realização da Educação Popular em suas dependências, porém esse entendimento vem sendo superado, sobretudo a partir das experiências desenvolvidas por Paulo Freire na Secretaria de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1991. A Educação Popular é uma concepção educativa que pode ser aplicada na e com a escola.

A respeito das ferramentas pedagógicas utilizadas no desenvolvimento das abordagens sobre drogas, constatou-se que na maioria dos estudos foram utilizadas metodologias que envolveram uma participação ativa das pessoas. Buscou-se promover a problematização e a reflexão sobre os conteúdos que estavam sendo desenvolvidos por meio dessas atividades. Utilizaram-se muitas dinâmicas, apresentações de filmes, jogos e oficinas. Nas abordagens sobre drogas que se orientaram pelo referencial da Educação Popular é perceptível a busca pela construção compartilhada do conhecimento por meio de um maior envolvimento das pessoas nas atividades, não apenas a transmissão das informações. Porém cabe salientar que tão importante quanto a escolha das ferramentas didáticas é também a escolha dos conteúdos e a compreensão que o mediador tem sobre a temática.

No estudo de Vasconcelos et al. (2015), no que tange ao tema das drogas, abordam-se principalmente os malefícios e a capacidade destrutiva das substâncias. As atividades buscam convencer sobre os aspectos negativos do consumo de drogas. Outros elementos que envolvem a questão acabam não sendo problematizados, o que pode inviabilizar a percepção das contradições presentes na forma hegemônica de abordar as drogas. Compreende-se que a Educação Popular orienta metodologicamente as ações, porém, teoricamente, a questão é desenvolvida de acordo com o que é enfatizado pelo discurso hegemônico.

Os saberes e a realidade das pessoas são tomados, na maioria dos trabalhos, como o ponto de partida da ação educativa. Categorias como diálogo, desenvolvimento da consciência crítica, reflexão e conscientização são reconhecidas como elementos que fazem parte da Educação Popular e podem ser encontrados na maioria dos estudos. Alguns autores fazem referência à proposta pedagógica desenvolvida por Paulo freire, utilizando cada uma das etapas sugeridas por ele, começando pela investigação do universo vocabular, o Círculo de Cultura, as palavras geradoras, os temas geradores e as fichas-problema. Ainda são buscadas as situaçõeslimite e o inédito viável, categorias encontradas também na obra freiriana. Nesse contexto, o estudo de Vasconcelos et al. (2015) é exemplar.

Compreende-se que há diferentes maneiras de entender a natureza da Educação Popular, ou seja, suas particularidades, aquilo que lhe dá identidade como uma construção social e pedagógica. Carrillo (2013) aponta que alguns pesquisadores a concebem de formas distintas, como uma ferramenta ou um instrumento que pode ser utilizado em projetos educativos escolares ou de movimentos sociais; como uma metodologia que, da mesma forma que a pesquisa-ação participante, pode ser empregada no contexto de outras propostas e práticas que possuam um viés emancipatório; como uma concepção educativa com suas próprias práticas, conceituações e metodologias. Apesar da existência de compreensões diferentes sobre as especificidades da Educação Popular, é possível identificar algumas ideias centrais que lhe dão coerência, quais sejam: a postura crítica diante do modelo hegemônico e a opção por contribuir com a emancipação e o processo de formação educativa e política das classes populares.

De acordo com Freire (1979), para se concretizar o processo de conscientização, é preciso que o sujeito perceba as contradições da realidade. Isso acontece quando ele passa a refletir sobre ela e se dar conta das mistificações que contribuem com a manutenção da estrutura dominante. Assim, aprender a olhar criticamente para realidade é aprender a desvelar as suas especificidades e determinações; é conhecê-la para compreender os mitos que são produzidos e disseminados com o objetivo de captar os sujeitos oprimidos e torná-los submissos.

Acredita-se que essa é uma das funções que pode ser desempenhada pela Educação Popular no desenvolvimento do tema das drogas. É preciso desvelar as contradições que estão presentes na forma tradicional de abordar a questão, só assim será possível enfraquecer o discurso dominante e combater a marginalização, a opressão, a estigmatização e o silenciamento de que são vítimas muitos consumidores de drogas. A educação sobre drogas orientada pela referencial teórico e metodológico da Educação Popular se pretende interdisciplinar, dialógica, não estigmatizante e promotora de autonomia.

4. Considerações finais

Neste trabalho procurou-se apresentar como a questão das drogas vem sendo abordada no campo da Educação Popular. Para atingir este objetivo, realizou-se uma revisão narrativa da literatura a partir de artigos científicos que estavam disponíveis na base de dados CAPES. Conforme foi possível averiguar, ainda é possível encontrar um quantitativo pequeno de trabalhos que apresentam o diálogo entre a Educação Popular e o campo das drogas. A leitura e a posterior discussão dos estudos permitem a delineação de algumas considerações.

A escolha pelo referencial da Educação Popular nesses trabalhos tem a ver com o entendimento de que essa concepção educativa representa uma alternativa contrária às abordagens hegemônicas essencialmente repressoras. Compreende-se que, ao buscar o referencial da Educação Popular, objetiva-se educar sobre as drogas, mas também sobre a vida e a realidade.

Evidenciou-se que na maioria dos trabalhos o debate sobre as drogas vem sendo realizado de forma crítica, pois seus autores e suas autoras buscam problematizar as contradições que fazem parte do modo como essa temática vem sendo abordada na sociedade. A própria política sobre drogas vai sendo questionada e criticada, além das abordagens de prevenção orientadas por ela.

Abordam-se as temáticas do proibicionismo e do controle exercido por meio das políticas públicas. Nesse sentido, também se destaca a relação entre sociedade, criação de normas, desvio social e questões culturais e econômicas. Utilizam-se ou sugerem-se vários tipos de recursos didáticos que podem ser usados no desenvolvimento das atividades: oficinas, dinâmicas em grupo, jogos, filmes, entre outros. Há uma preocupação com a participação ativa dos sujeitos nas atividades. Pode-se dizer que essa é uma característica marcante dos trabalhos em Educação Popular. A utilização de recursos didáticos, além de auxiliar no processo de aprendizagem, pode ajudar também no processo de problematização e reflexão.

Busca-se discutir não apenas o consumo das substâncias psicoativas, mas também os fatores externos que podem ser de ordem social, política, econômica e cultural. Propõe-se que sejam problematizadas as circunstâncias da vida que podem representar empecilhos para que os sujeitos desenvolvam todas as suas potencialidades. Assim, a atividade educativa reveste-se de uma forte intencionalidade política. Nessas abordagens objetiva-se fazer

o desocultamento da realidade por meio das práticas educativas. O movimento histórico vai nos revelando que as maneiras de compreender o fenômeno das drogas estão se modificando. Vão sendo reconhecidas as conexões que existem entre as abordagens repressivas e a permanência da desigualdade entre alguns estratos sociais. Sendo assim, surgem alternativas políticas e educativas que se colocam a favor da diversidade e da liberdade e contra os

controles sociais que, no caso específico das drogas, são legitimados pelas políticas públicas.

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Recebido: 24 de Junho de 2022; Aceito: 13 de Novembro de 2022

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