SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Paulo Freire en la liberación de la educación municipalizada en VenezuelaPaulo Freire: ensayo fotográfico de soledades índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 20-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022044 

DOSSIÊ: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA EM PAULO FREIRE

Atualidade do pensamento freiriano em tempos de autoritarismo: retomando suas Primeiras Palavras

Freire’s present thought in times of authorianism: resuming his First Words

João Vicente Hadich Ferreira1 

Maria Cristina Cavaleiro2 

1João Vicente Hadich Ferreira: Doutor em Educação pela UNESP-Marília-SP. Professor Adjunto do Curso de Pedagogia do Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP / Campus de Cornélio Procópio. Disciplinas de Filosofia na Área de Educação, Sociedade e Formação Humana. Membro dos Grupos de Pesquisa GEPPEPE e HISTEDBR-PR (UENP) e do Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica: Filosofia, Educação e Cultura” (UNESP).

2Graduada em Educação Física e em Pedagogia. Possui mestrado em Educação Física, pela Universidade Estadual de Campinas ( 2004) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2009). Tem experiência no ensino básico, trabalhou como professora e gestora nas redes publicas estadual e municipal na área de Educação e Educação Física. Atualmente é professora adjunta na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Campus Cornélio Procópio. Líder do Grupo de Pesquisa e Ensino em Políticas Públicas em Educação e Processos de Escolarização (GEPEPEE-UENP). Integrante do Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES/FE/USP). Atua no ensino, pesquisa e extensão para a formação em Política Educacional, Gênero e Sexualidades. Os subtemas de maior concentração são: educação, relações de gênero, diversidade sexual; escola, processos de escolarização.


Resumo

O presente ensaio retoma o texto introdutório da Pedagogia do Oprimido intitulado Primeiras Palavras. Um texto breve, apresentando seu clássico livro escrito a partir do exílio, em sete páginas, logo após o rico prefácio do professor Ernani Maria Fiori, ao qual Freire não poupou elogios. O contexto inspirador deste ensaio é o atual momento político do Brasil, em que Freire é atacado fortemente por sujeitos da sociedade civil juntamente com sujeitos de categorias políticas, na campanha por uma “escola sem partido” que luta “contra o abuso da liberdade de ensinar”. Paulo Freire continua incomodando mais pelo que se pretende desqualificar do seu pensamento do que necessariamente pelo que se compreende de sua obra. Por isso, ao retomar suas Primeiras Palavras, pretende-se explorar alguns dos principais conceitos trabalhados por ele para dialogar com todo e qualquer leitor, independentemente do espaço-tempo em que se encontre, apesar da inevitável datação de sua obra naquele momento. Radicalidade e revolução, contrapostos a sectarismo e reacionarismo, são conceitos trabalhados de forma esclarecedora para entendermos elementos contemporâneos da barbárie que continua pairando no horizonte, mesmo após décadas do término da ditadura no Brasil e do nazismo na Alemanha. Autoritarismo, dogmatismo e recrudescimento do conservadorismo na política atual demonstram que, mais do que nunca, é salutar retomar o pensamento crítico e divergente para nos emanciparmos e nos libertarmos do que tenta predominar sempre à luz dessas correntes: a usurpação do protagonismo dos existentes na construção da história humana.

Palavras-Chave Emancipação; Libertação; Radicalidade

Abstract

The present essay resumes the introductory text of the Pedagogy of the Oppressed entitled First Words. A brief text, presenting its classic book written from the exile, in seven pages, shortly after the rich preface by professor Ernani Maria Fiori, for which Freire spared no praise. The inspiring context of this essay is the current political moment experienced in Brazil, in which Freire is strongly attacked by subjects of civil society along with subjects of political categories, in the campaign for a "school without a party" that fights "against the abuse of freedom to teach". Paulo Freire continues to bother more about his thoughts, that some intend to disqualify, than necessarily by the comprehension of his literature. Therefore, resuming Primeiras Palavras intends to explore some of the main concepts worked by him, to dialogue with any reader, regardless of the space-time in which he is, despite the inevitable dating of his work in that moment. Radicality and revolution, opposed to sectarianism and reactionism, are concepts worked in an enlightening way to understand contemporary elements of barbarism that continues to hover on the horizon, even after decades of the end of the dictatorship in Brazil and Nazism in Germany. Authoritarianism, dogmatism and the increase of conservatism in the current policy show that, more than ever, it is beneficial to resume the critical and divergent thinking to emancipate and free us from what tries to prevail, always in the light of these currents: the usurpation of the protagonism of the existing in the construction of human history.

Keywords Emancipation; Freedom; Radical

Tempos sombrios...

A expressão acima remete-nos ao título de um dos livros de Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios (1987). Consideramos que representa bem o momento histórico em que vivemos. Mesmo que ainda imersos na atual conjuntura sem um possível distanciamento, que só a posteriori alcançar-se-á, somos açodados constantemente pelas lembranças de tempos que, acreditávamos, já estavam superados. Pelo menos, em grande medida.

À reflexão de Arendt ao tratar dos homens que, como luzeiros, surgem em determinadas épocas na humanidade, quando dos momentos mais cruciais, poderíamos associar as preocupações adornianas registradas em Educação após Auschwitz (ADORNO, 1995). Para ele, a premência de todo processo educativo é a de que se evite que a barbárie instaurada pelo nazismo e os regimes totalitários do século XX se repitam. Nesse sentido, o que propõe o filósofo é uma Educação contra a violência, condição fundamental para se evitar tal barbárie. A par de tal proposta, permitimo-nos fazer uma aproximação com a questão da personalidade autoritária, gênese constitutiva do fascismo (ADORNO, 1965), estudado pelos frankfurtianos a partir da parceria com os psicólogos sociais da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, ao final da década de 40 do século XX. O autoritário, nesse sentido, é aquele que, de bom grado, renunciaria à democracia pela pretensão de uma dominação totalitária.

Diante da conjuntura neoconservadora em que nos encontramos, com a liberação do ódio à política propagado pelas pautas de uma extrema-direita raivosa que tem se reorganizado no momento contemporâneo, reconhecendo que não é especificidade do Brasil tal caldo, ousamos acrescentar que vivemos não apenas tempos sombrios, mas insanos, nos quais o espaço público vai, aos poucos, se reduzindo, minguando, e as liberdades de pensamento, de crítica e de dissenso vão sendo cerceadas. No domínio privado, restaura-se o terror das dominações de gênero, raça e classe, a hipocrisia e o cinismo como as pedras fundamentais das subjetividades.

Nessa explosão, com o uso de novas ferramentas e novas formas de propagar uma normalização da destruição da política e da democracia, demonstra tal perspectiva que a banalização da barbárie, ou do mal, como nos explicitava Hannah Arendt (2004), caminha a passos largos.

Partindo de uma polarização maniqueísta travestida de oposição política, vemos o estabelecimento de uma pauta de costumes ancorada na ideia de uma luta do “bem” contra o “mal”, em que a máxima, atribuída a Maquiavel (1979), de que os fins justificam os meios é potencializada e descontextualizada de seu pensamento. Isso traz como consequências não a preservação da política, de seus fundamentos, mas o desmerecimento e desmonte de tal condição e entendimento. Para tais “militantes” do ódio não importa a alternância do poder, elemento constante em uma democracia. Para eles, o que está em foco não é a democracia, mas a destruição dos “inimigos”, mesmo que estes sejam criação de conjecturas alienadas e alienantes, produzidas por teorias conspiratórias propagadas por pseudo-intelectuais defensores de uma Terra plana, negacionistas da ciência e em constante cruzada contra a Cultura, a Educação e a esfera pública.

O que se pretende não é o entendimento, mas o prevalecimento de “verdades” que se propagam aos iniciados por meio das fake news. Partindo do aprimoramento daquilo que o nazismo explorou de forma competente, a propaganda mentirosa e as notícias falsas são potencializadas a partir de uma “industrialização cibernética” que, seduzindo e manipulando as subjetividades com a ação dos algoritmos, produz a sensação do in-group (de pertença, como era a ideia do partido para os nazistas) e a mitologização da figura do líder. Com maior potencialidade e alcance para além do domínio da imprensa, por exemplo, os boatos propagados valem mais do que qualquer estudo e as mentiras são mais aceitáveis do que os dados da ciência. Nesse projeto de destruição, pois não há projeto de construção, o que se pretende que prevaleça, ao final, é a estratégia da terra arrasada em que, se não há vitória, também nada restará para os que sobreviverem a tamanho caos.

Nesses contextos, a proposição de uma “Escola Sem Partido”, aliada às perspectivas da militarização da Educação e à defesa de um “ensino” domiciliar que descaracteriza o processo educativo já previsto legalmente, o conservadorismo ganha forças e os ataques são distribuídos a todas as frentes. O ataque às pautas importantes como a dos Direitos Humanos, a desconsideração pela ciência, o ataque às universidades e a escolha de Paulo Freire como o arauto de uma doutrinação marxista nos espaços escolares da Educação são todas facetas de uma mesma moeda.

Nesses tempos insanos em que a escola é tomada como um espaço de corrupção da inocência das crianças, termos são cunhados de forma ideológica para desqualificar o debate, com definições generalistas ou imprecisas que podem englobar focos de ódio e medo, como “ideologia de gênero” e “marxismo cultural” (PENNA, 2016). Para os defensores dessa pauta de costumes, arautos dessa destruição, “meninos devem vestir azul e meninas rosa”3. A Terra “voltou” a ser plana e há uma “conspiração global” para destruir a “família”, a “moral” e os “bons costumes”. Outros esforçam-se para reescrever a história da ditadura e a da escravidão, revisando-as a partir de outra perspectiva que não a dos fatos, dados e fenômenos que as constituíram. Nega-se a ciência, nega-se a história.

É nesse cenário que nos sentimos convidados a retomar o pensamento de Paulo Freire. Como pensamento que transcende o tempo, não são as teses freirianas absolutas ou verdades inquestionáveis. Ao contrário, é isso que nos instiga em Freire: que o pensar seja um constante repensar, que se torna prática como processo de constituição de uma práxis que não desvincula teoria da prática, mas as reconhece de forma imbricada. Assim, da ação que exige reflexão e da reflexão que se transforma em ação, não é o distanciamento da realidade ou a superficialidade do pensamento que se propõe. Tão pouco doutrinação. Inversamente, ressalta-se, é a libertação.

A complexidade do pensamento de Paulo Freire não permite uma única interpretação. Eis sua riqueza. Contudo, não é simplório ou eclético na condição do “vale tudo”. É firme no horizonte em que se pautou. Revisita-se sempre dialeticamente e não é fruto de uma pulverização ingênua, como acontece geralmente com as quimeras.

Coerente com os conceitos que trataremos a seguir, o pensar freiriano manifesta-se contra todo sectarismo que produz o reacionarismo frente à construção da história e da vida. Por isso radical e revolucionário. Somos agentes no processo de produção e transformação do mundo. A história não é inexorável. A existência não está dada como determinada. São sempre potencialidades. Cabe a nós desenvolvê-las e realizá-las. Não sozinhos. Não massificados. Em comunhão.

Primeiras Palavras: A introdução de Paulo Freire à Pedagogia do Oprimido

Produzida no Chile durante o exílio na década de 60 do século XX, a Pedagogia do Oprimido certamente é uma referência no campo da Educação. Talvez menos por sua aceitação do que pelo incômodo que causa no contexto desvelado por Paulo Freire da situação de opressores e oprimidos na perspectiva educacional e, neste sentido, no estabelecimento das bases de uma Educação libertadora. Mas não trataremos do texto todo neste breve ensaio. Destacaremos, no nosso recorte, o texto introdutório da obra, intitulado Primeiras Palavras. Nele, Paulo Freire nos apresenta uma rica reflexão sobre os conceitos de sectarismo, reacionarismo, radicalidade e revolução.

Retomando brevemente o apontamento anterior, referente aos estudos dos frankfurtianos sobre o fascismo, intitulado La personalidad autoritaria (ADORNO, 1965), apesar de Paulo Freire não tratar especificamente dessa questão, esses conceitos nos permitem verificar a convergência com a concepção de uma Educação emancipadora em Adorno (1995). Em sua base, uma Educação contra a barbárie e, efetivamente, uma Educação política. Nesse contexto, destacamos a importância dos conceitos de radicalidade e revolução em Paulo Freire, que se contrapõe aos conceitos de sectarismo e reacionarismo para a compreensão de que uma Educação emancipadora e libertadora, efetivamente, é radical e revolucionária.

Nesse sentido ainda, são conceitos que expressam, em sua complexidade, elementos que nos permitem entender boa parte das dificuldades e das potencialidades para que possamos constituir, ou não, uma Educação que seja efetivamente emancipadora e libertadora, proporcionando cada vez mais a desconstrução das facetas de um cenário conservador e autoritário. Identificada pelos estudos dos frankfurtianos (ADORNO, 1965), a personalidade autoritária é a representação do sectarismo, do conservadorismo autoritário em qualquer um dos espectros políticos que, deixando-se seduzir pela propaganda antidemocrática, é reacionário a toda e qualquer proposta emancipadora e libertadora. Por isso, na perspectiva de uma Educação política, para a constituição de uma vida democrática e um mundo comum, não uniforme, a radicalidade, no contexto freiriano, é potencialidade revolucionária, criadora, que promove libertação, autonomia.

Homem da ação e da reflexão, Freire constitui sua obra, como um todo, não só das compreensões teóricas ao longo de sua formação, mas como alguém que constitui seu pensamento a partir do chão, do dia a dia e da observação desse dia a dia. Nesse contexto ele expressa, no seu texto introdutório, o que representa certamente o desenvolvimento de sua práxis ao longo dos anos:

As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no início destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção é continuar com estas observações para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá provocar, em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias

(FREIRE, 2011, p. 33).

Da ação-reflexão-ação é que Freire constitui sua produção. Da concepção de uma práxis que não dicotomiza teoria e prática, mas que as conjuga na perspectiva do amadurecimento do processo educativo. Não apenas de leituras, mas de situações concretas, da observação direta ou indireta do trabalho educativo para retificar ou ratificar o pensamento (FREIRE, 2011). Manifesta, assim, a abertura a um processo dialético e dialógico, na perspectiva de repensar, se for preciso, ou reafirmar, se assim for exigido, aprendendo e ensinando, mas nunca se dogmatizando. Característica freiriana, pois revisar o pensamento nunca lhe foi um problema efetivamente. É o que nos esclarece Scocuglia, na seguinte citação de Freire:

Em meus primeiros trabalhos, não fiz quase nenhuma referência ao caráter político da educação. Mais ainda, não me referi, tampouco, ao problema das classes sociais, nem à luta de classes [...]. Esta dívida refere-se ao fato de não ter dito essas coisas e reconhecer, também, que só não o fiz porque estava ideologizado, era ingênuo como um pequeno-burguês intelectual

(FREIRE, 1979 apudSCOCUGLIA, 1999, p. 32).

Aberto à crítica e à autocrítica, não se pode considerar o pensamento freiriano como dogmático ou sectário, tampouco reacionário. Comportaria, sim, o pressuposto que ele mesmo apresenta nas Primeiras palavras, da radicalidade de um pensamento revolucionário. Desse modo, ainda com Scocuglia (1999, p. 28), podemos entender que,

[...] enquanto um pensamento não-definitivo – que se sabe incompleto por sua própria rigorosidade e que se quer aberto, não-dogmático e não-determinista – a obra de Paulo Freire encontra-se permanentemente sequiosa de novas descobertas e novas experimentações.

Apesar de sua abertura teórica, consideremos, assim, que Paulo Freire manteve-se coerente na sua curiosidade epistemológica e, nesse contexto, norteou sua obra pela proposição de uma Educação que fosse libertadora e, entendemos, inevitavelmente emancipadora. Em tal proposição não se comportariam jamais os dogmatismos e os sectarismos, favorecedores do autoritarismo. Talvez, ciente de que não é assim um processo tão claro para todos, seja por isso que ele escreve – como um alerta ao final do trecho que citamos anteriormente, que é um “ensaio que, provavelmente, irá provocar, em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias”. Dessa perspectiva, portanto, podemos continuar explorando a tese da personalidade autoritária, perceptível por suas manifestações, entre elas o sectarismo.

O alerta freiriano, afirmamos, não é algo aplicável somente à leitura do seu texto, mas à compreensão da existência de uma personalidade autoritária (ADORNO, 1965), da sedução autoritária a que todos estamos sujeitos, que é um risco para todo e qualquer escrito que seja dissonante do exercício do autoritarismo.

Não é uma questão de incômodo apenas, o que é inevitável quando nos deparamos com leituras provocativas e desestabilizadoras do nosso modo de pensar, ou das nossas referências constituídas. É para, além disso, um fechamento intelectual pautado na concepção de que, dada a “verdade”, seja ela qual for para o sectário, tudo o que se apresenta dissonante é condenável e combatível. Nesse contexto, acreditamos, é que se acendem as fogueiras. E temos bons exemplos na história de como a cada momento é possível o recrudescimento de “soluções higienizadoras” e preservadoras da “moral e dos bons costumes”, perpetuando-se a negação, as hierarquias e as desigualdades.

Por isso, na radicalidade do pensamento, Freire explora o problema do sectarismo e do seu desdobramento, o reacionarismo, contrapondo às duas categorias o que, para nós, representará exatamente o procedimento dialético. Ou seja, contra a tese sectária, apresenta-se a antítese da radicalidade que, no conflito tético-antitético, permitiria uma síntese manifestada pelo pensamento revolucionário, não por uma perspectiva reacionária. Portanto, o problema não é haver uma opção teórica, coerente e distinta de outros, mas um fechamento frente à dialeticidade da existência que nos torne dogmatizados intelectualmente. Só a radicalidade é criadora, pois é crítica, não castradora. Esclarece-nos Freire (2011, p. 34):

Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos certos, poderão chegar ao fim do texto. Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, “irracionais”, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro. É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta.

Nutrida pelo fanatismo, com certeza a sectarização é porto seguro para todo pensamento autoritário. Baseado na irracionalidade, um diálogo com o autoritário fica impossível, pois, castradora na sua “segurança”, a sectarização não propõe a emancipação, mas a aceitação inquestionável da “certeza” estabelecida. Há, assim, um medo intrínseco à condição do sectário. Medo de estar errado, de ter que rever sua posição ou abandonar suas concepções. A sectarização cria, portanto, um pensamento mítico e alienante, em que outros pensam pelo existente, estabelecendo uma compreensão dogmatizadora e equivocada do mundo. Traz como ideologização o ocultamento da realidade, apresentando-a de modo falso, falacioso e imutável.

Por outro lado, a radicalidade é importante e fundamental para que se supere o sectarismo. Como escreve Freire (2011, p. 34), “a radicalização é crítica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva”. Por isso, continua Freire (2011, p. 34), “parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens”.

Com isso, o autor faz novo alerta para o fato de que o pensamento sectário não se encontra apenas no homem de direita, como equivocadamente poderíamos pensar. O sectarismo não é específico de uma corrente ou linha de pensamento político ou religioso. Pode acometer a qualquer um, seja da esquerda ou da direita, seja cristão ou não, ateu ou teísta, liberal ou marxista. O pensamento sectário não se aplica a uma opção teórica per si, mas a uma interpretação equivocada, como já foi frisado, da realidade. Eis a questão. Isso pode representar o paradoxo para qualquer revolução, considerando que não são poucos os casos das ideias revolucionárias e dos revolucionários da esquerda, que se tornam ou se tornaram tão sectarizados quanto o sectarismo direitista que em algum momento se propuseram a combater (FREIRE, 2011).

É nesse contexto que a radicalidade é condição de uma verdadeira revolução. A busca pela radicalidade não representa a intolerância, própria do sectarismo. Ao contrário. É a busca pela raiz do problema, da questão. Pela transformação, a partir do enfrentamento do antagônico, mas não pela solidificação do pensamento. O radical não é dogmático, tampouco licencioso. O que busca é a libertação, não a licenciosidade. E, aqui, a importância de explorarmos um pouco mais o conceito.

Nossa preocupação com a questão conceitual se dá no entendimento de que costumeiramente temos o hábito de expressar os conceitos sem a compreensão de seus fundamentos. Sintoma da nossa falta de radicalidade. Temos, às vezes, a fixação de algumas interpretações conceituais no dia a dia que se tornam lugar comum e facilmente são utilizadas como determinantes para estigmatizar pessoas ou situações4.

Parece-nos ser o caso do conceito de radical. Assim, quando ouvimos alguém ser chamado de “radical”, quase que inevitavelmente isso é dito a partir de uma concepção de desmerecimento ou de desqualificação da pessoa numa discussão ou num processo conflituoso. Temos por lugar comum que a pessoa radical é “intolerante”, “fechada à discussão”, “dona da verdade”, “aquela que não muda sua posição” ou que é “agressiva” na defesa dos seus argumentos, entre outras coisas que se tem atribuído a essa figura. Se atentarmos, na realidade, todos esses são atributos do sectário, não do radical, conforme já expusemos. E, não raras vezes, é o sectário quem atribui essa conotação negativa ao conceito, pois a radicalidade o incomoda. Parece que, como se contemplasse seu reflexo num espelho no embate com o radical, reflexo dado não a partir deste, mas de si mesmo, das suas ideias, o sectário atribui ao radical o que no fundo enxerga em sua pessoa.

Por isso, num constante uso indevido do conceito, apropria-se o senso comum de uma percepção equivocada e ingênua e perpetua a indisposição ao enfrentamento da realidade. Não o enfrentamento fundado no sectarismo, perseguidor e determinista da história e da verdade, mas o enfrentamento dos problemas, dos antagonismos, desvelando as contradições, propondo-se e buscando a transformação da realidade. Da realidade, como diz Freire, concreta e objetiva.

Portanto, se fugimos à radicalidade, renunciamos a todas as possibilidades e potencialidades da emancipação. Ser radical, nesse contexto, é “ir a fundo”, buscar o entendimento, lutar por princípios porque são princípios, não por conveniência ou corporativismos. É romper com os “jeitinhos” e os elementos de um pensamento patrimonialista, também. É manifestar opções, é uma militância pela libertação. É compreender a história como possibilidade e escrevê-la, mesmo que não se saiba onde ela vai parar. Acima de tudo, é criar e correr os riscos de errar, de não sucumbir à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É o processo revolucionário que só os radicais podem levar a termo.

Fazer a revolução não é estabelecer a sua verdade, como demonstrará Freire (2011) ao longo da Pedagogia do Oprimido. Isso seria novamente sectarismo. A revolução não se dá de fora para dentro, mas de dentro para fora. Não ocorre à revelia, mas com e entre homens e mulheres. É um processo e, como tal, exige a conscientização de sua possibilidade. Por isso, aponta Freire (2011), não é uma pedagogia para o oprimido, mas uma pedagogia do oprimido a se construir. E só quem se permitir essa radicalidade poderá sair de seu conforto e de sua segurança para entender a raiz dessa questão.

Evidentemente, não é uma tarefa fácil e outro tipo de medo aparece naquele que está oprimido, a saber, o medo da liberdade. É um medo que aparece quando se tem o exercício do pensamento no processo de conscientização. Assim escreve Freire (2011, p. 31), no início do seu texto:

Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damos e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora, é o “medo da liberdade”, a que faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio. Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que manifestam o seu “medo da liberdade”, se referem ao que chamam de “perigo da conscientização”. “A consciência crítica (dizem) é anárquica”. Ao que outros acrescentam: “Não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?” Há, contudo, os que também dizem: “Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não a temo!”

Esse medo da liberdade, expressado pelo homem comum, aparece exatamente nesse processo que, para Freire, não é estanque, finito ou concluso. Para ele, a conscientização não se caracteriza pela separação entre consciência e mundo. Assim, ao se tomar consciência da opressão, apresenta-se o medo de que a continuidade do processo de conscientização leve às rupturas com a opressão, ou as formas que a representam, num processo de destruição, desamparo, conflito que se quer evitar.

Por isso, expressões como “a conscientização é perigosa” ou “tal condição nos levaria a desordem” manifestam-se e, no fundo, expressam o medo de se perder o controle, o espaço seguro que criamos ou que, pior ainda, aquele que oprime e, por assim dizer, o autoritarismo que está estabelecido nos colocam como inevitável.

Analogamente ao que explicitávamos na questão do sectarismo, o pensamento autoritário atribui, contra quem busca a libertação, uma adesão deste a possíveis fanatismos por suas perspectivas de ruptura. É um conflito interno, a introjeção que traz do opressor a condição do oprimido. Na verdade, de modo inverso, “não é a conscientização que pode levar o povo a ‘fanatismos destrutivos’. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação” (FREIRE, 2011, p. 32). É condição de ruptura.

Igualmente, continua Freire (2011, p. 32), “o medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel, preferindo-a à liberdade arriscada”. Essa é condição comum e possível para todo aquele a quem se desvela a realidade da opressão, do autoritarismo, da dominação. O que é preocupante, e esse é outro elemento contribuinte para o prevalecimento de autoritarismos e pensamentos como o patrimonialismo, é que a maioria das pessoas não manifesta claramente seu medo da liberdade. Como esclarece Freire (2011, p. 33),

Sua tendência é, antes, camuflá-lo, num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende a liberdade e não como o que a teme. Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo, ameaça, então, a liberdade.

Essa reação, para além do medo não manifestado, parece-nos coerente com a perspectiva do pensamento despolitizante e do autoritário que, na luta para manter-se incólume, aliena-se de sua responsabilidade histórica e de seu comprometimento com a liberdade e a libertação dos homens.

Por isso, dissimulado e alinhado, no fundo, ao pensamento estabelecido, “posa com ares de crítico”, mas na verdade não é a criticidade que busca, e sim a licenciosidade ou a submissão do pensamento. Evidentemente, desde que seja o seu ou, no caso da sua alienação, o do dominante. Pode, de tal modo, manifestar-se extremamente legalista e moralista, recorrendo aos subterfúgios das regras, transformando-as em fins, não em meios, para garantir a ordem e condenar toda subversão quando lhe aprouver. Argumenta, portanto, que é contra a desordem, os fanatismos, a “radicalidade” – lembrando aqui a desvirtuação a respeito do conceito – e tantas outras coisas que, atribuídas àquele que enfrenta seu medo e posiciona-se com coragem política, caberá a este o ônus de provar o contrário. É um processo perverso, mas que precisa ser desvelado.

Esse é o enfrentamento do radical em sua radicalidade do pensamento. Não aceita, portanto, o aliciamento e a submissão, na perspectiva apresentada, pois faz uma opção. Por isso, “porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do dominador” (FREIRE, 2011, p. 35).

Para tornar mais clara a virtude do radical, o autor trata ainda da questão da subjetividade e do subjetivismo, conceitos também confundidos cotidianamente pelo senso comum, aqui aplicado a qualquer um, mesmo na academia, ou propositalmente por aqueles que pretendem desqualificar qualquer debate sério.

Subjetividade-objetividade, subjetivismo-objetivismo e outras análises

Acusar alguém de ser subjetivista implicaria considerar que, fundamentando-se o acusador numa perspectiva epistemológica equivocada da defesa da “objetividade plena do conhecimento”, essa pessoa não encontra respaldo na sua argumentação. Considera-se, a partir do fundamento equivocado que apontamos, que subjetivismo é o mesmo que subjetividade e que, por falta de objetividade, o argumento não se sustentaria. Nesse contexto, o que valeria é a objetividade, a possibilidade de uma “verdade objetiva” do conhecimento, como defendiam, em certa perspectiva, os empiristas modernos.

Pela confusão entre os conceitos, e por falta da radicalidade também em sua fundamentação, esquecem, ou não querem entender, os argumentadores pró-pensamento autoritário – que a subjetividade é inseparável do sujeito e que o subjetivismo é, na realidade, o outro extremo daquilo que no fundo eles também defendem de modo inapropriado, um objetivismo com relação à realidade.

O problema, logo, não está na objetividade ou na subjetividade, mas na percepção de que os extremos de ambos é que são perniciosos a qualquer perspectiva de radicalidade, favorecendo efetivamente os sectarismos e os dogmatismos do pensamento, não sua emancipação. É na conjugação entre objetividade e subjetividade, de forma dialética, do sujeito cognoscente e do objeto conhecido, que a possibilidade se apresenta.

Nesse sentido, Freire inova com relação à epistemologia tradicional, que se centrava exclusivamente na relação entre sujeito e objeto. No seu pensamento, a intersubjetividade e o conhecimento social envolvem um nós, não apenas um eu, que exige compromisso e coerência, partindo da prática dos sujeitos e do confronto com as ideologias dominantes, abrindo-se, assim, à possibilidade de transformação. Desse modo, ele afirma que

[...] jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria ideia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para transformá-la. O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua ‘irracionalidade’ que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade, ou a percebe equivocadamente

(FREIRE, 2011, p. 35).

O que pretende o pensamento sectário é submeter, dominar os pensamentos e o tempo, e o autor ainda afirma que, mesmo tratando-se de uma dialética, na percepção do sectarismo esta seria também domesticada. Portanto, sem a dialeticidade, a domesticação pretende docilizar a existência, harmonizar a realidade e ocultar as contradições. Nesse sentido, evitar a transformação é o objetivo que se estabelece na tentativa de frear todo processo deflagrado nesse caminho. Para tanto, faz-se vital, para qualquer pensamento sectário, de direita ou de esquerda, domesticar o tempo, como nos esclarece Freire (2011), pois essa é condição para também domesticar os homens.

Nessa questão, o sectário de direita, que Paulo Freire chama de “sectário de nascença”, quer domesticar o tempo, porque considera que o futuro deve ser, no máximo, a repetição do presente que já fora domesticado. No entendimento desse sectário, o hoje está ligado ao passado de forma imutável e, por isso, “nasce” nessa concepção sectária de que se deve conservar o que existe, pois sempre foi assim e sempre deverá ser. A harmonia deve ser preservada e, nesse contexto, não há conflitos de classes, por exemplo, mas a realização da felicidade na perspectiva da submissão ao sistema vigente.

No caso do sectário de esquerda, pretenso revolucionário, a domesticação do tempo se faz necessária, porque ele cria a “sua dialética da história” que, de forma equivocada, implica a substituição de uma “verdade” por outra, caindo, assim, no fatalismo e no determinismo que conduzem a uma inexorabilidade histórica. Desconsideram, desse modo, as possibilidades que podem se manifestar na mão dos sujeitos históricos, não nas determinações do “partido” ou do “novo sistema”. A revolução, nesse sentido, seria apenas o estabelecimento de uma nova doutrina.

Tanto um quanto outro pretendem ser donos do tempo e dos homens. Como explicita Freire (2011, p. 36), “ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem, um e outro, formas de ação negadoras da liberdade”. Nesse sentido, explica-nos o autor, não são expectadores passivos, mas agentes para que, na visão do primeiro, o presente se mantenha “bem-comportado” e, na percepção do segundo, o futuro esteja predeterminado. Por isso,

[...] fechando-se em um ‘círculo de segurança’, do qual não podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado, como se fosse destino, com se devesse ser recebido pelos homens e não criado por eles. A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele

(FREIRE, 2011, p. 36).

Em sua expressão mais contundente, o sectarismo fortalece todo sentimento reacionário e toda reacionariedade ao diálogo e à dialeticidade da história. Alimenta os covardes e apropria-se dos alienados, perpetuando o autoritarismo e suas condições. Sedutor – porque propagador de uma “falsa segurança” –, submete os incautos, prometendo, nos fechamentos em seus “círculos”, a ordem, a justiça, a estabilidade, a harmonia e, por fim, a solução de todos os problemas. Como escreve Freire (2011, p. 36-37),

Um na posição que lhe é própria; o outro na que o nega, ambos girando em torno de “sua” verdade, sentem-se abalados na sua segurança, se alguém a discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade. “Sofrem ambos da falta de dúvida”.

Tal é a sina do sectário e do seu secto, arautos de alguma “verdade”, que, para que esta seja garantida, nega-se o diferente, a pluralidade, o existente, a mínima possibilidade da dúvida na sua “crença”. Campo do preconceito e do recrudescimento dos autoritarismos. Traços da personalidade autoritária e de uma mentalidade patrimonial que, se não se identifica inicialmente como autoritária, molda-se tranquilamente na perspectiva sectária da defesa do “rei” e de sua casa. Por isso não pode ser o sectário um revolucionário. Não passa, efetivamente, de um reacionário.

Por fim, reforçando a condição do radical, Freire (2011, p. 37) afirma que ele é

[...] comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em ‘círculos de segurança’, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do revolucionário.

Se ao sectário cabe o medo de perder a sua segurança e a manutenção do medo, porque também tem medo da liberdade, ao radical implica-se a coragem e a libertação de ambos os medos. Este é que pode fazer a revolução. A radicalidade é própria do pensamento revolucionário, ao passo que a sectarização é própria do pensamento reacionário (FREIRE, 2011).

Encerra-se, assim, este pequeno opúsculo do pensamento freiriano que, a nosso ver, apesar de sua sinteticidade, permite-nos manifestar, de forma mais perceptiva, aquilo que está na base do autoritarismo e da personalidade autoritária, principalmente. Salutar, ressaltamos mais uma vez, para o atual momento em que nos encontramos.

Considerações finais

Com Paulo Freire, partindo da análise de sua introdução à Pedagogia do Oprimido, é possível constatar que a questão do pensamento autoritário pode manifestar-se mesmo naqueles que se autointitulam “revolucionários” – aqui entre aspas porque, nesse caso, como nos demonstra Freire, o sectarismo pode acometer tanto o pensamento de esquerda quanto o de direita, e tão pernicioso quanto um é o outro, pois ambos são, na realidade, reacionários.

Ou seja, o sectarismo em seu desenlace expressa o reacionarismo que é exatamente o oposto do pensamento revolucionário. Castrador e pobre, fechado em sua “zona de segurança”, o pensamento sectário não compartilha do diálogo nem da reflexão sobre a existência. Tudo se reduz à sua verdade e, consequentemente, à defesa do seu grupo, do seu secto. Em ambos os casos, alinhado à esquerda ou à direita, o sectário é tão autoritário quanto o antagônico que ele critica.

Por isso, retomando as palavras de Freire (2011, p. 34), “parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens”. Num breve texto de sete páginas, Paulo Freire nos possibilita desvelar alguns comprometimentos do pensamento autoritário: a ideia de que é possível se assenhorar do tempo, domesticá-lo, para que se mantenha a harmonia social existente, ou determiná-lo, definindo a história dos homens por um horizonte, na busca da realização de um futuro já estabelecido. Assim pensam, no primeiro caso, os sectários de direita e, consequentemente, da segunda forma, os sectários de esquerda. Por isso todo pensamento que desemboca no autoritarismo subtrai de homens e mulheres a potencialidade de se tornarem sujeitos históricos, escreverem sua história e se manifestarem contra a inexorabilidade estabelecida. Na contraposição disso, uma Educação emancipadora será inevitavelmente libertadora e transformadora.

Nesse contexto, é imprescindível destacar que, na lição do pensamento freiriano, em acordo com os estudos dos frankfurtianos, não se trata, nesses tempos sombrios, de se estabelecer a luta contra um grupo ou a defesa de cruzadas libertadoras pelos propositores de um pensamento sectário, seja de um grupo ou de outro. Mais especificamente, inicia-se o nosso desafio pelo combate ao autoritário que pode nos habitar. Descobrimos que não nos libertamos sozinhos, mas em comunhão com outros.

Na conclusão destes apontamentos, no momento presente em que despontam os elementos do autoritarismo de forma tão estarrecedora, a atualidade do pensamento de Paulo Freire manifesta-se como apelo ao exercício do entendimento daquilo que o autoritário não suporta: a divergência, a contradição, a diferença, a pluralidade do pensamento que se dá fundamentada pela singularidade dos existentes. Enfim, a busca não por um consenso pleno, tampouco pela perpetuação do dissenso, mas pelo encontro, no mínimo, com um pouco de bom senso.

3Damares Regina Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ainda nos primeiros dias do novo cargo, em 2019, reunida com assessores e assessoras a portas fechadas, exaltava: “Uma nova era começa no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa!” A frase foi repetida em coro e euforicamente, entre expressões de “Amém” e “Adonai” pelas pessoas presentes naquela sala. O primeiro termo significa “assim é” e o segundo, com origem na língua hebraica, significa “meu Senhor”, destacando o teor do fundamentalismo religioso que perpassa o atual governo. (EM VÍDEO, Damares diz que 'nova era' começou: 'meninos vestem azul e meninas vestem rosa'. G1, 03 jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/em-video-damares-alves-diz-que-nova-era-comecou-no-brasil-meninos-vestem-azul-e-meninas-vestem-rosa.ghtml. Acesso em: 20 jun. 2022).

4Compreende-se, neste estudo, que o estigma se forma em contextos específicos de cultura e poder, que influenciam o “quando aparecem” e “a forma que assumem”, sendo empregado por atores sociais reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status dominante dentro das estruturas de desigualdade social existentes (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 16).

Referencias

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. [ Links ]

ADORNO, Theodor W. et al. La personalidad autoritaria. Buenos Aires: Editorial Proyección, 1965. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. de Denise Bottmann. Posfácio de Celso Lafer. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [ Links ]

EM VÍDEO, Damares diz que “Nova Era” começou: “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. G1, 03 jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/em-video-damares-alves-diz-que-nova-era-comecou-no-brasil-meninos-vestem-azul-e-meninas-vestem-rosa.ghtml Acesso em: 20 jun. 2022. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Escritos políticos. Trad. de Lívio Xavier. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores) [ Links ]

PARKER, Richard; AGGLETON Peter. Estigma, Discriminação e AIDS. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA Cidadania e Direitos, n. 1). [ Links ]

PENNA, Fernando. Ódio aos professores. In: AÇÃO EDUCATIVA (org.). A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2016. [ Links ]

SCOCUGLIA, Afonso Celso. Origens e prospectiva do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 25-37, jul./dez. 1999. [ Links ]

Recebido: 24 de Junho de 2022; Aceito: 24 de Agosto de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.