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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 06-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022027 

RESENHAS

LAATS, A.; SIEGEL, H. Teaching evolution in a creation nation. Chicago: The University of Chicago Press, 2016.

Guilherme Brambatti Guzzo1 

Gabriel Dall’Alba2 

1Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas (UCS), mestre em Zoologia (PUCRS) e doutor em Educação em Ciências e Matemática (PUCRS). Atualmente, é professor na área da Vida da Universidade de Caxias do Sul e membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática na mesma universidade.

2Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade de Caxias do Sul. Atualmente é mestrando no programa de pós-graduação Genome Science and Technology, na University of British Columbia (Canadá).

LAATS, A.; SIEGEL, H.. Teaching evolution in a creation nation. Chicago: The University of Chicago Press, 2016.


Uma das controvérsias socioculturais mais notórias e antigas relacionadas ao ensino de Ciências diz respeito ao papel da teoria da evolução – e de suas pretensas alternativas – no currículo de escolas públicas. Deveriam as aulas de Ciências ou Biologia tratar somente da teoria da evolução ou os professores também deveriam apresentar ideias como o criacionismo e o Design Inteligente (DI) como outras potenciais explicações científicas para a diversidade dos seres vivos? O historiador Adam Laats e o filósofo Harvey Siegel discorrem sobre essas e outras questões relacionadas em Teaching Evolution in a Creation Nation (The University of Chicago Press), de 2016.

Laats e Siegel organizaram a obra em oito capítulos, dos quais os primeiros quatro são destinados a uma análise histórica das controvérsias que têm envolvido o ensino da teoria da evolução biológica desde a década de 1920 nas escolas públicas dos Estados Unidos, enquanto os quatro capítulos finais trazem algumas das principais discussões filosóficas suscitadas a partir do conflito entre os defensores do ensino do evolucionismo e seus opositores.

No primeiro capítulo da obra, Laats e Siegel relatam a mudança na natureza das Instituições de Ensino Superior e na cultura científica norte-americana até a segunda década do século XX: se até então boa parte da pesquisa e do ensino universitário eram fortemente influenciados por doutrinas religiosas, o processo de internacionalização das universidades dos Estados Unidos fez com que seus administradores passassem a incorporar, em suas práticas institucionais, as opiniões de eminentes pesquisadores europeus mais do que as da maioria da população americana. Assim, de acordo com Laats e Siegel (2016, p. 12), os cientistas tiveram seus direitos protegidos para “realizar pesquisa ao invés de assegurar a instrução doutrinária”. A ideia de evolução por meio de seleção natural, elaborada e tornada famosa por Charles Darwin a partir da publicação de A Origem das Espécies, em 1859, já tinha um status de teoria dominante na década de 1920 nos Estados Unidos, e esse ambiente favorável à pesquisa e à divulgação de ideias científicas fez com que seu ensino fosse amplamente incorporado por escolas e universidades nessa época.

A ação dos opositores do ensino da teoria da evolução nas escolas públicas, por outro lado, também aumentou na década de 1920. A pressão por leis que banissem a biologia evolutiva das aulas de Ciências deu resultado em alguns estados norte-americanos. Muitas pessoas eram simpáticas à alegação de que sua fé deveria ser protegida de ideias que fossem potencialmente contrárias a ela e a teoria de Darwin era tida como uma dessas ameaças. Em 1925 o professor John Scopes foi julgado no Tennessee sob a acusação de ter violado a lei que proibia o ensino da evolução humana naquele estado, um episódio que viria a se tornar um símbolo da batalha cultural entre evolucionistas e criacionistas. Laats e Siegel (2016, p. 24) explicitam os eventos da década de 1920 nos Estados Unidos no segundo capítulo do livro: para esses autores, as batalhas travadas na época eram “disputas por controle”; se os evolucionistas pareciam em vantagem no começo dos anos 1920, ao final da década a situação estava se invertendo e a pressão social e legal contra o ensino da evolução biológica nas escolas havia crescido.

O terceiro capítulo de Teaching Evolution in a Creation Nation é destinado ao período de menor animosidade entre os protagonistas da história. Entre as décadas de 1930 e 1960, nos Estados Unidos, a discussão pública sobre o ensino da biologia evolutiva arrefeceu, embora em muitas escolas o tema ainda fosse tabu, sendo evitado por professores ou então relegado a um papel curricular secundário. Dois fatores fundamentais, no entanto, acabaram favorecendo a retomada do ensino da evolução nas escolas a partir do final dos anos 1960. O primeiro foi o crescente interesse dos norte-americanos pelo ensino de Ciências, alavancado pela corrida espacial disputada com os soviéticos na Guerra Fria. O segundo fator foi o desejo que o ensino de Ciências tratasse de temas científicos fundamentais e estivesse alinhado com aquilo que era tido como o melhor conhecimento da época nas mais diversas áreas da Ciência. A Biologia evolutiva já se configurava como uma ciência sólida, amplamente aceita como a melhor explicação para a diversidade da vida por pesquisadores da área da Biologia, e assim teve seu lugar garantido nas salas de aula dos Estados Unidos.

A partir dos anos 1960 os opositores do ensino da teoria da evolução não obtiveram mais sucesso em tentar bani-la de escolas públicas norte-americanas. Assim, sua estratégia mudou, como relatam Laats e Siegel no Capítulo 4 do livro. Ao invés de propor leis que proibissem a biologia evolutiva nas escolas, defendia-se agora uma espécie de tratamento justo para as “teorias alternativas”, como o criacionismo e o recém-criado Design Inteligente (DI). Curiosamente, como afirmam Laats e Siegel, um argumento semelhante foi usado pelos apoiadores do evolucionismo na década de 1920, quando estes demandavam igual consideração à teoria da evolução biológica em comparação com as leituras religiosas da origem das espécies, a visão dominante na época.

O quarto capítulo da obra de Laats e Siegel – o último dedicado à revisão histórica da controvérsia sociocultural que tem envolvido o ensino da evolução biológica em escolas públicas americanas – abre caminho para a discussão filosófica sobre o tema, realizada nos quatro capítulos posteriores. Afinal, se a partir da década de 1980 os opositores do ensino da evolução têm sustentado que – por uma questão de justiça e imparcialidade – é necessário incluir no currículo alternativas à teoria de Darwin, é fundamental analisar os méritos científicos dessas alternativas e, a partir disso, considerar a razoabilidade da sugestão de que elas sejam incorporadas às aulas de Ciências e Biologia de escolas públicas.

Laats e Siegel propõem que o tratamento igual de teorias científicas na sala de aula deve ser, primordialmente, resultado da análise de seu statusepistêmico, não de sua aceitação popular ou de sua importância cultural ou religiosa dentro de um determinado grupo de pessoas. Assim, esses autores entram no espinhoso debate sobre o que faz de uma ideia científica, ou sobre como se pode distinguir uma ideia científica de uma não-científica (ou pseudocientífica). No Capítulo 5 Laats e Siegel concedem que não existe maneira simples para demarcar a ciência da não ciência. Debates contemporâneos na Filosofia da Ciência – como em Pigliucci e Boudry (2013), por exemplo – tendem a rejeitar propostas de demarcação sustentadas por um único elemento, como a de Popper, que se baseava no critério da falseabilidade: sob essa perspectiva, uma ideia é científica se, e somente se, puder ser posta a teste e eventualmente puder mostrarse falsa. Laats e Siegel, no entanto, sugerem que não é necessário avaliar se o criacionismo ou o DI são ou não ciência para considerar a sua inclusão no currículo escolar. Para isso, basta que se compare o quão bem essas ideias se saem quando examinadas de acordo com alguns parâmetros tradicionalmente utilizados para avaliar o status de teorias e hipóteses científicas. “Pode não haver uma demarcação exata entre ciência e não-ciência”, escrevem os autores (LAATS; SIEGEL, 2016, p. 59), “mas há um espectro contínuo no qual as teorias caem, que vai de excelentes a pobres, terríveis, ou pior”.

E como determinar se o criacionismo e o DI são teorias científicas tão boas ou melhores do que a evolução? Laats e Siegel usam os capítulos 5 e 6 para discutir essa questão. Segundo os autores, é possível nos orientarmos por critérios como a testabilidade, a falseabilidade, o poder preditivo, o poder explanatório, a responsividade a evidências contrárias, entre outros, os quais não são infalíveis, mas permitem que façamos uma apreciação razoável do status epistêmico de uma teoria científica. E a partir deles, afirmam Laats e Siegel (2016, p. 59), “a evolução é claramente superior, e o criacionismo suficientemente inferior para ser justificadamente excluído das aulas de biologia como uma alternativa legitimamente científica à evolução”. E o mesmo, concluem os autores, se aplica ao DI.

Enquanto existem maneiras de se mostrar que certos aspectos da biologia evolutiva podem estar errados, o mesmo dificilmente se aplica ao criacionismo e ao DI. Uma das assunções da teoria da evolução, por exemplo, é que muitas espécies não coexistiram em uma mesma era geológica, e isso é verificado, por exemplo, com fósseis descobertos em diferentes extratos de solo, o que indica que alguns animais foram extintos muito tempo antes de outros. A descoberta de um tiranossauro em um mesmo extrato geológico de um fóssil humano seria uma boa evidência desconfirmatória dessa assunção, pois sugeriria que nossa espécie conviveu com dinossauros. Por outro lado, como argumentam Laats e Siegel, faltam ao criacionismo e ao DI as capacidades de fazer previsões e trabalhar com hipóteses testáveis: qualquer observação de fósseis – e de, virtualmente, todo outro elemento da natureza – seria explicada post hoc por um criacionista ou um adepto do DI.

Assim, ao longo do quinto e do sexto capítulos, os autores assumem uma posição contrária ao ensino do criacionismo ou do DI como alternativas científicas à teoria da evolução em escolas públicas, notadamente porque a elas falta o rigor epistêmico que sustenta o evolucionismo. Isso considerado, Laats e Siegel avançam, no Capítulo 7, para a questão mais delicada dessa controvérsia que envolve a ação docente: deveriam, então, os professores de Ciências e Biologia trabalhar para que os estudantes acreditem na teoria da evolução?

“Quais são os objetivos do ensino de ciências?”, perguntam Laats e Siegel no Capítulo 7. “Persuadir os estudantes a acreditar na evolução biológica?” Não, segundo os autores. Para eles, um bom ensino de Ciências, mais especificamente um bom ensino de evolução, deve ajudar os estudantes a conhecer e a entender a biologia evolutiva, ou seja, apresentar aos estudantes os conteúdos e as ideias associados à teoria da evolução, promover reflexões a respeito de como os cientistas chegaram às conclusões que hoje estudamos em escolas e universidades sobre o tema e apreciar o papel das evidências e das razões em seu suporte (e as evidências e razões que enfraqueceriam a confiança na plausibilidade da teoria evolutiva). Adesão a uma crença, sublinham Laats e Siegel, não deve ser objetivo dos docentes em Ciências nem em outra disciplina escolar.

Conhecer e entender uma ideia, em muitos casos, acaba por conduzir um sujeito a acreditar nela, isto é, a tomá-la como verdadeira. Assim, a crença pode ser uma consequência do entendimento de uma determinada teoria, mas isso nem sempre se segue. Um estudante pode entender que de acordo com a teoria evolutiva, uma característica X tende a ser selecionada em um ambiente Y, mas não acreditar que uma característica X tende a ser selecionada em um ambiente Y. Se isso acontecer, escrevem Laats e Siegel, o objetivo de ensino do professor de Ciências foi cumprido.

A discussão sobre alternativas ao ensino da Biologia evolutiva em escolas públicas, como argumentam Laats e Siegel, não é exatamente uma controvérsia científica, já que a aceitação da teoria da evolução entre os especialistas é virtualmente unânime e nenhum livro acadêmico sobre o assunto traz propostas diferentes para explicar a evolução dos seres vivos na Terra. A questão pode ser entendida, como propõe Harker (2015), como uma controvérsia científica “criada” ou “fabricada”. Certamente existem temas e proposições controversos a serem explorados dentro da própria área da biologia evolutiva, mas o embate entre os evolucionistas e seus opositores na Educação é, em seu âmago, uma controvérsia cultural e social, e talvez por isso ela seja tão duradoura nos Estados Unidos e em outros países.

Ao assumir que o tema é social e culturalmente controverso, o último capítulo da obra examina um novo argumento a favor da inclusão de alternativas ao ensino da evolução nas escolas públicas: o de que o acréscimo do criacionismo ou o DI no currículo significaria uma forma de respeito à uma cultura minoritária (no âmbito científico, pelo menos). Laats e Siegel entendem que, enquanto os estudantes que rejeitam a evolução por conta de suas convicções religiosas devem ser respeitados, não é razoável tratar de tópicos de teor epistemicamente frágil em uma situação de pretensa simetria com um corpo de conhecimento e pesquisa sólidos, como é o caso da biologia evolutiva.

Existem elementos importantes que perpassam o escrito de Laats e Siegel e devem ser alvo de atenção dos professores. Por exemplo, o fato de que estudantes mantêm posições “alternativas” sobre quaisquer temas não é necessariamente uma questão de ignorância, ingenuidade ou desconhecimento de ideias científicas, históricas, filosóficas ou de qualquer outra área. Como discutimos anteriormente, controvérsias como a do ensino de evolução têm raízes culturais e sociais, por isso se mantêm ao longo de diferentes gerações. Assim, a presença de opiniões dissonantes na sala de aula – bem como as crenças individuais dos estudantes – deve ser respeitada e vista como bem-vinda, desde que essas posições possam ser abertamente discutidas. Como escreve Savater (2012, p. 128), “aprender a discutir, a refutar e a justificar o que se pensa é parte indispensável de qualquer educação que aspire ao título de ‘humanista’”. As opiniões não são sagradas, mas o respeito às pessoas que as expressam sim.

O tipo de ensino de Ciências que Laats e Siegel propõem coloca a discussão sobre razões e evidências – isto é, a justificação de teorias e ideias científicas – como foco central das aulas de Ciências e Biologia. Assim, estudantes e professores tendem a se afastar de um ensino resumido à “retórica de conclusões”, no qual os conteúdos escolares são apresentados como tópicos a serem memorizados e absorvidos, mas raramente compreendidos. Enfatizar a justificação de argumentos – como os que sustentam o evolucionismo – é também importante por lembrar da natureza provisória e falível do conhecimento: enquanto temos fortes razões para sustentar que a ideia de evolução biológica é a melhor explicação para diversos processos naturais, futuras evidências e razões podem demandar ajustes na teoria da evolução ou, eventualmente, sua rejeição. Mas, dado o que conhecemos até o momento, é sensato tratá-la como um pilar fundamental da área das Ciências Biológicas.

Teaching Evolution in a Creation Nation é um acréscimo importante à literatura da Filosofia da Educação Contemporânea. Ainda acompanhamos no Brasil discussões acaloradas sobre tópicos explorados por Laats e Siegel em sua obra que vão do desarquivamento de propostas para a inclusão do criacionismo no currículo das escolas (BRANCO, 2019) à ascensão de proponentes do criacionismo a cargos de elevada importância, como em órgãos públicos ligados à pesquisa (SALDAÑA, 2020). Independentemente do que se possa pensar sobre as conclusões apresentadas pelos autores – e entendemos que elas são razoáveis –, o livro é uma fonte de insights importantes a respeito de uma discussão centenária e pode iluminar outros debates recentes em Educação.

Referências

BRANCO, M. Câmara desarquiva propostas para ensino do criacionismo nas escolas. Revista Forum, 2019. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/camara-desarquivapropostas-para-ensino-do-criacionismo-nas-escolas/. Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

HARKER, D. Creating scientific controversies: uncertainty and bias in science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. [ Links ]

LAATS, A.; SIEGEL, H. Teaching evolution in a creation nation. Chicago: The University of Chicago Press, 2016. [ Links ]

PIGLIUCCI, M.; BOUDRY, M. Philosophy of pseudoscience: reconsidering the demarcation problem. Chicago: The University of Chicago Press, 2013. [ Links ]

SALDAÑA, P. Novo presidente da Capes defende criacionismo em ‘contraponto à teoria da evolução’. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 jan. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol. com.br/educacao/2020/01/novo-presidente-da-capes-defendecriacionismo-em-contraponto-a-teoria-da-evolucao.shtml. Acesso em: 21 set. 2020. [ Links ]

SAVATER, F. O valor de educar. São Paulo: Planeta, 2012. [ Links ]

Recebido: 21 de Setembro de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2021

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