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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022029 

RESENHAS

MENDONÇA, Adriany F. A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.

Rui Carlos Mayer1 

1Mestrado em Educação (na subárea de Filosofia e Educação), especialização em Ensino de Filosofia e graduação (como bacharel e licenciado) em Filosofia pela Universidade de Brasília.

MENDONÇA, Adriany F.. A invenção da metafísica a partir da arte:, perspectivas nietzschianas. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.


Adriany Ferreira de Mendonça, autora do livro aqui resenhado, nasceu no ano de 1975 na cidade do Rio de Janeiro. Tendo sua formação inicial em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996), tornou-se mestra (2000) e doutora (2005) em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desenvolvendo investigações sobre o pensamento estético de Friedrich Nietzsche, em ambos os casos, com a orientação de Rosa Maria Dias, uma renomada pesquisadora nesse campo. Atualmente, Adriany Mendonça trabalha como professora do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenando o Núcleo de Filosofias da Criação.

O livro em consideração – A invenção da metafísica a partir da arte – é resultado dos muitos anos em que sua autora se dedicou a investigar as passagens e os locais do pensamento nietzschiano na história da filosofia. Nesse livro, Mendonça se ocupa com a original recusa de Nietzsche a Sócrates e Platão, então complementada por sua revisão e seu afastamento de Kant, Schopenhauer e Wagner e ainda desenvolvida na sua afirmação radical da existência e da vida. Ao reconhecer o procedimento nietzschiano de um perspectivismo cultural e filosófico, por meio do qual se consideram e se interpretam as visões, miradas e projeções de mundo elaboradas em raciocínios e argumentos, a autora desenvolve esse procedimento, todavia com uma renovada (e tão particular quanto abrangente) proposição: a de acusar os discursos metafísicos, dos clássicos aos modernos, de perseguirem objetivos compartilhados com os das elaborações artísticas, vale dizer, objetivos de expressão representativa ou fictícia/inspiradora; no caso dos discursos metafísicos, de uma expressão fictícia/inspiradora que se pretenderia representativa.

Destarte, o estratagema empregado por Adriany Mendonça foi o de procurar compreender o embasamento e o sistema de sustentação do pensamento nietzschiano enquanto este se eleva em confronto com a tradição metafísica, procurando atingir a categórica separação socrático-platônica entre um mundo de aparências e um mundo de verdades ideais. Tal confronto se dá, pela estratégia nietzschiana, em dois terrenos que se pospõem e complementam-se: 1) o de uma exprobação à mundividência metafísica e à sua desvalorização geral da mundanidade aparente; 2) o de uma promoção de elementos mundanos particulares, os quais a mundividência metafísica intentou e intenta desvalorizar.

Apoiando-se nesse procedimento perspectivista, a conjectura fundamental desse livro se encontra na proposição de que Nietzsche desenvolveu uma explanação sobre a ponte que localizou entre a filosofia e a arte, uma ligação mais bem destacável quando da instituição ou do estabelecimento histórico da filosofia, que se deu com uma precoce hegemonia histórica da metafísica – vale dizer, com Sócrates e Platão. O livro trata, por conseguinte, de propor questões e respostas acerca da reprodução de determinados valores morais ou de gosto por parte da metafísica, do modo como essa reprodução pôde facilitar ou garantir sua hegemonia histórica e, principalmente, que ligação é da metafísica com a arte, como achada e exposta pelo perspectivismo nietzschiano.

Nos passos iniciais desse livro, a autora revisita o pensamento de Nietzsche, especialmente sua primeira obra de maior importância: O nascimento da tragédia. Essa obra passa, então, por uma apreciação a partir, acerca e além de sua denúncia do socratismo como o grande culpado pela perdição do pathos trágico dentre os gregos. Duas figuras históricas são, pois, destacadas para ilustrar o combate de Nietzsche ao socratismo – Eurípedes e Aristófanes. Assim como aconteceria com Platão, Eurípedes fora contaminado por uma estética decadente, uma estética de secção entre os ethos apolíneo e dionisíaco (e de apartação do dionisíaco); se Platão se desfaria de sua própria criação teatral, Eurípedes havia se desfeito da vitalidade em sua produção teatral em favor de uma dramatização esvaziada do pathos trágico dos gregos. Já Aristófanes, que bem ousou zombar da caricata e presumida sabedoria de Sócrates, é evocado não apenas por sua contraposição cômica ao socratismo como também como uma discreta, porém séria, influência sobre esse primeiro grande ataque de Nietzsche à tradição metafísica.

Mas o ainda mais significativo, talvez, nesses começos do livro de Adriany Mendonça, seja o exame sobre como e por que, à época de O nascimento da tragédia, Nietzsche sugeria, menor ou maior, porém sempre, alguma proximidade com as obras de Kant, Wagner e especialmente Schopenhauer. Sucedeu-se que, por essa época, Nietzsche se referenciava na crítica à metafísica tradicional, tal como inaugurada por Kant, desenvolvida e alterada por Schopenhauer e artisticamente renovada por Wagner. Contido entre os referenciais terminológicos, semânticos e conceituais dessa crítica à tradição, Nietzsche só chega a desenvolver, de início, uma revitalização dessa crítica: por um lado, seguindo mais longe, porém pela mesma senda aberta por Schopenhauer, pela crítica à metafísica tradicional; por outro lado, pela defesa da arte trágica. De passagem, vale ainda observar que Nietzsche compartilhava com Kant e Schopenhauer o gozo da interpretação radical, enquanto também compartilhava com Schopenhauer e Wagner a veneração pela arte, em geral, e pela música, muito em particular.

Alcançando, então, um amplo e firme platô histórico-filosófico sobre a crítica de Nietzsche ao socratismo e sobre sua defesa da arte trágica, Adriany Mendonça passa a desenvolver uma das ideias centrais do livro: de que a hegemonia da tradição metafísica, apesar de sua desvalorização da mundanidade aparente e (conseguintemente) da arte, se fundamenta numa forma de expressão (in)apropriadamente artística, ou seja, na forma dos diálogos platônicos. A autora passa, pois, a investigar o deslocamento da crítica nietzschiana a Sócrates, desde uma figura histórico-filosófica (na perdição do pathos trágico dos gregos) para uma prosaica figura literário-filosófica (de pronto protagonista nos diálogos de Platão). Nesses passos, então, Adriany Mendonça procura demonstrar que, para Nietzsche: 1) a tradição metafísica teria surgido em e como uma forma discursiva de caráter inequivocamente artístico; 2) os próprios discursos metafísicos seriam a expressão de valores morais ou de gosto (explícitos ou implícitos) dos artistas filosóficos que os elaboraram – mesmo quando estes se põem a desvalorizar a própria arte.

Nos passos finais do livro, a autora dirige suas atenções às últimas obras de Nietzsche. Daí, então, outra das ideias centrais do livro é desenvolvida: de que a radicalização da crítica à tradição metafísica, como promovida pelo pensamento nietzschiano, resulta numa perspectiva que compreende e inter-relaciona vida, existência e arte, reconhecendo e promovendo uma arrojada valorização do mundo das aparências. Ora, em suas últimas obras Nietzsche já tinha desenvolvido e vinha trabalhando com uma metodologia crítica comumente chamada genealógica – metodologia que se vale e parte do procedimento perspectivista para investigar e interpretar a história da cultura e da filosofia pela consideração de suas diversas mundividências. Aplicada à história da filosofia e da tradição metafísica, por conseguinte, a crítica genealógica denunciará uma determinada reprodução/expressão de valores morais ou de gosto pelos discursos metafísicos, indício inequívoco de uma forma de arte que rejeita a própria arte, como rejeita também, já de começo, de volta e por fim, a vida e a existência.

De encontro, pois, com a tradição metafísica, Nietzsche concebe e compõe uma filosofia perspectivista capaz de valorizar o mundo das aparências, e, neste e deste, as percepções e expressões de assumidas ficções, ilusões ou mentiras (conquanto existencialmente autênticas). Nessa outra senda, aberta agora por si e para si – como também para quem quiser compartilhar dessa aventura artístico-filosófica –, Nietzsche passou a explorar recursos literários que vinham sendo menos usuais na história da filosofia e se tornaram muito recorrentes em suas últimas obras. Dessa maneira, no lugar de permitir-se a contenção por algum tipo de vínculo, mesmo que crítico, com uma filosofia metafísica e dogmática bem como com suas verdades ideais ou categóricas, Nietzsche pôde exigir de si e para seus leitores uma assunção dos riscos da criação de novos e diferentes valores bem como uma afirmação radical da existência, da vida e da arte.

Esse livro de Adriany Ferreira de Mendonça se configura, afinal, como um ensaio filosófico de amplo interesse, seja para estudiosos da história da filosofia, da metafísica, da filosofia moral, da estética ou da filosofia da arte. Apesar de seu objeto específico de investigação estar localizado em um processo do pensamento nietzschiano, sua investigação cobre variados, porém complementares, períodos histórico-filosóficos, desde o aparecimento da tradição metafísica na Antiguidade Clássica, com Sócrates e Platão, passando pela moderna crítica da metafísica, com Kant e Schopenhauer, e, por óbvio, detendo-se no desenvolvimento do pensamento estético de Friedrich Nietzsche. Um bom emprego do perspectivismo nietzschiano, pela feita da autora, facilita e reforça uma dúplice concepção: 1) de que os valores incutidos nos discursos metafísicos teriam tanto um caráter moral como um caráter de gosto; 2) de que de uma crítica aos valores da tradição metafísica se pode passar para uma crítica à valoração de qualquer mundividência metafísica – seja clássica ou moderna. O livro resenhado, então, mais do que desenvolver certas perspectivas nietzschianas, aponta para outras e novas perspectivas possíveis a partir e em volta do pensamento nietzschiano.

Recebido: 01 de Junho de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

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