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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022031 

RESENHAS

Hooks, Bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Tradução: Bhuvi Libanio. São Paulo: Elefante, 2020.

Lucas Antunes Machado1 

1Graduação em Psicologia (PUCRS) e licenciatura em Sociologia (UNIASSELVI). Mestrando em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI/UFRGS) e Especialização em Educação em Direitos Humanos (UFABC). Professor de Psicologia na Educação Profissional e Sociologia no Ensino Médio da rede pública estadual do Rio Grande do Sul.

hooks, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Libanio, Bhuvi. São Paulo: Elefante, 2020.


bell hooks2 é o pseudônimo da escritora feminista e crítica literária Gloria Jean Watkins, que teve sua experiência educacional marcada pela segregação racial nas escolas do apartheid norte-americano na década de 1950. Posteriormente, conviveu nos estudos de graduação, pós-graduação e foi professora universitária com uma política educacional marcada pelos efeitos e processos de subjetivação de uma sociedade patriarcal, imperialista, capitalista e supremacista branca que historicamente invisibiliza as experiências de marcadores sociais de classe social, gênero e raça nas escolas.

Esta resenha tem por objetivo apresentar o livro “Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática”, de autoria de bell hooks, publicado pela editora Elefante (2020). O referido livro completa uma trilogia sobre as experiências de aprendizagem e ensino da autora que precede as obras “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade”, lançada em 1994, sendo sua primeira obra traduzida para a língua portuguesa e publicada no Brasil no mesmo ano, e “Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança”, lançada em 2003, publicada no Brasil no ano de 2021. O principal referencial teórico da autora está na concepção da Educação como prática de liberdade, do educador Paulo Freire, e nos ensinamentos do monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh, que observa uma maneira de pensar a ação pedagógica que evidencie a união entre corpo, mente e espírito, numa perspectiva holística e integral da relação pedagógica e da Educação3.

A obra em tela apresenta em sua estrutura trinta e dois capítulos denominados “ensinamentos”. Segundo a própria autora, na introdução à obra (ensino), a ideia do livro é “explorar as conexões entre pedagogia engajada e questões de raça, gênero e classe social” (hooks, 2020, p. 26), tangenciado pelas contribuições e pelo impacto da obra freiriana em suas reflexões. Longe de apresentar conceitos definidos para o campo da Educação, a autora ainda deixa claro em sua introdução que a proposta dos “ensinamentos” ali apresentados advém de questões e problemas apresentados a ela por estudantes e professores, perfazendo uma gama ampla de questões relativas a raça, sexualidade, classe social, autoestima, humor, raiva, histórias pessoais, imaginação, conversa, dentre outros aspectos que perpassam as salas de aula. Para a educadora e escritora feminista, a contribuição dos escritos reunidos nessa obra converge para sua experiência de alimentar o autodesenvolvimento e a autorrealização de seus alunos bem como visa transformar a sala de aula em um lugar de engajamento e aprendizagens intensas e coletivas (hooks, 2020).

Nos ensinamentos de 1 a 6 percebe-se a retomada de definições importantes para a compreensão da proposta de uma Educação e uma política feministas no contexto de ensino, propostas já defendidas por bell hooks em obras anteriores. Compreendendo o ato de pensar como ação e a predisposição que as crianças têm para o pensamento crítico, considera essa última o ato de questionar e descobrir respostas paras os infindáveis questionamentos que nossas crianças curiosas – perdidas quando nos deparamos com um sistema educacional que nos compele a obediência e a conformidade –, a fim de utilizar o conhecimento à nossa disposição de modo crítico e criativo. Para isso, é salutar o engajamento dos educandos, com suas mentes, corpos e espíritos, por meio de uma pedagogia engajada que consista em “uma estratégia de ensino que tem por objetivo recuperar a vontade dos estudantes de pensar e a vontade de alcançar a total auto realização” (hooks, 2020, p. 33).

A pedagogia engajada estimula o pensamento crítico como processo interativo que envolve professores e alunos no compartilhamento de ideias e no “prazer do pensamento como ação” (hooks, 2020, p. 35, ensinamento 1), transformando a sala de aula em uma comunidade pedagógica. Porém, adverte a autora, para que uma sala de aula se constitua em comunidade pedagógica de fato, que faça uso de uma concepção pedagógica engajada, é necessário que professores e alunos se conheçam, experimentem e corram riscos, nomeando seus “medos, expondo sua resistência a pensar, expressar-se e honrar os momentos em que tudo se conecta e o aprendizado coletivo acontece” (hooks, 2020, p. 49, ensinamento 3). Ademais, a postura a partir de uma pedagogia engajada é uma das mais importantes e dá base para que a Educação seja genuinamente democrática, possibilitando problematizações em torno de como o sistema patriarcal, imperialista, capitalista e supremacista branco oprime e coloniza nossas mentes diariamente.

Nesse sentido, a Educação e os professores engajados devem ter um compromisso político contínuo com o processo de libertação na busca de enfrentamentos à Educação como ferramenta de colonização que serve como manutenção do status quo, contribuindo para a descolonização das mentes e corpos dos estudantes. Contudo, as salas de aula só se tornarão lugares em que a integridade é valorizada por meio de uma Educação como prática de liberdade (ensinamento 5) quando professoras e professores estiverem preocupados com a integração entre a reflexão e o aprendizado de conteúdos4 e compromissados em “ver os estudantes crescerem e se auto realizarem” (hooks, 2020, p. 68, ensinamento 6).

Os desafios que envolvem diretamente as práticas de ensino e aprendizagem das professoras estão destacados nos ensinamentos de 7 a 15. Voltando cada vez mais atenção para as experiências de ensino em salas de aula, bell hooks (2020) deposita na confiança o mote para construção e personificação de práticas pedagógicas mais engajadas na escola. Porém, adverte sobre a importância de se perceber que a confiança nunca é estática, portanto cabe ao professor a tarefa de constantemente reforçar ações que reabilitem e sustentem um clima de confiança nas aulas (ensinamento 7). Dentre as formas de construção de laços de confiança em comunidades pedagógicas, a autora aponta algumas pistas, quais sejam o diálogo e as conversas, pois é “conversando juntos que rompemos com a noção de que a experiência de adquirir conhecimento é particular, individualista e competitiva” (hooks, 2020, p. 81, ensinamento 8). Além disso, esse modelo de aprendizado baseado na conversação torna-se útil em salas de aula cada vez mais diversas e multiculturais. A outra pista se volta para a contação e o compartilhamento de histórias em sala de aula. O movimento feminista, ao insistir na ideia de que “o pessoal é político” (hooks, 2020, p. 97), contribuiu para a valorização das experiências tanto quanto das informações factuais no âmbito da educação escolar (ensinamento 10).

É nesse sentido que, no partilhar e receber histórias uns dos outros, cria-se na comunidade pedagógica um ritual de comunhão que abre não só as mentes, mas os corações dos sujeitos envolvidos no processo de ensinar e aprender (ensinamento 9). Novamente a autora defende a relação entre teoria e prática ao apontar que os professores, ao partilhar experiências pessoais, têm a possibilidade de “iluminar o material indicado, ajudando a estabelecer bases para a construir uma comunidade de aprendizagem autêntica” (hooks, 2020, p. 99, ensinamento 10). No ensinamento 11 destaca-se o cultivo da imaginação, coibida pela cultura do dominador para reprimir e manter os colonizados nos limites das relações de poder.

A posição da autora quanto a palestrar ou não em aula (ensinamento 12) é que, embora em muitos momentos a palestra promova um processo de ensino passivo, isso também pode ser encarado como um momento de preparo para uma aprendizagem que ocorrerá fora do âmbito do espetáculo e da performance do palestrante (professor). Ademais, os afetos de amor, alegria e raiva (ensinamentos 13, 14 e 15) são partícipes do processo de ensino, sobretudo de uma pedagogia engajada que promova o pensamento crítico frente a materiais e discussões que problematizam questões de uma cultura dominadora e colonizadora (racismos, machismos, elitismos, fundamentalismos religiosos, homofobias, etc.). Segundo bell hooks (2020, p. 133), “conexões positivas fundamentadas em respeito e afeto podem surgir em relacionamentos que começaram com muitas contestações e conflitos”. Inclusive, a escritora em tela ainda sustenta a ideia de que ensinar nossos estudantes a lidar com os conflitos e as diferenças de pensamento e opiniões é uma das tarefas mais urgentes daqueles educadores que aspiram ao cultivo de alunos que tenham uma abertura radical para com a diferença.

A partir do ensinamento 17 hooks procede uma discussão em torno das contribuições específicas do movimento feminismo e de outros movimentos por direitos para ampliação das discussões sobre raça, classe social e gênero e o pensamento crítico em salas de aula engajadas. Para a escritora, a crítica disseminada contra o machismo em conjunto com a resistência ao patriarcado realizada pelas feministas constituiu uma verdadeira revolução não violenta na Educação (ensinamento 18). Não obstante, reações abertamente antifeministas e antipatriarcais ressurgem ameaçando a promessa de uma Educação que priorize o pensamento crítico em conexão com a justiça social (ensinamentos 17 e 18). Aludindo à sua própria experiência e à de outras professoras negras na Educação, destaca as formas pelas quais a supremacia branca reforça uma consciência cultural que coloca as mulheres em uma condição estereotipada como violenta (agressivas ou megeras), a qual é vivida de formas diferentes entre professores negros, tendo em vista as intersecções entre as opressões de raça e gênero que afetam sobremaneira as mulheres. Destaca-se a definição proposta por bell hooks para o termo “supremacia branca”, importante contribuição ao educador engajado que se propõe a analisar criticamente as relações raciais que ocorrem no âmago das salas aula. A supremacia branca se refere a “noções de que as pessoas negras são inferiores academicamente ou de que pessoas negras serão racistas se criticarem a branquitude e os privilégios” (hooks, 2020, p. 156, ensinamento 17).

Nos ensinamentos 19, 20 e 21 estão presentes a ideia de que as relações de poder que permeiam as salas de aula devem ser reconhecidas pelos professores como meio de reconhecimento de que o status de poder do docente não deve implicar uma relação de dominação ou qualquer outra forma de abuso. Não obstante, devem os professores ter sua formação calcada na compreensão de quais de seus comportamentos podem aumentar ou dirimir o aprendizado do aluno, pois considerar a autoestima saudável é um componente crucial no processo de aprendizagem do aluno e do professor. O poder da leitura, da escrita e da vida intelectual, segundo a autora, pode transformar vidas, porque permite a expansão da imaginação e da consciência, permitindo a descolonização das mentes e a aprendizagem de novas formas de olhar e estar no mundo (ensinamentos 22, 23 e 24). A espiritualidade, o toque e o amor são condições precípuas de uma relação pedagógica como prática de liberdade, porque combinam afetos de compaixão, respeito, cuidado, tolerância, responsabilidade, conhecimento e confiança que nos afastam das relações de neutralidade e dominação (ensinamentos 25, 26 e 27). É por isso que a definição de amor proposta pela autora está vinculada à ideia de um amor para a autorrealização do educando e do educador, não de um amor romântico, presente na compreensão capitalista e patriarcal (ensinamento 28).

Pensar a partir de uma consciência e práxis interseccional é uma exigência para todos e todas aquelas educadoras que se colocam na posição de oferecer novas e diferentes formas de pensar e ser aos seus alunos (ensinamento 29). Para isso é necessário valorizar o lugar do eros (hooks, 2017)5 e do corpo na sala de aula, pois é justamente esse lugar que o corpo ocupa na estrutura da sociedade patriarcal capitalista imperialista supremacista branca que pode contribuir para que se construa uma conexão entre pensamento crítico e sabedoria prática em sala de aula, condição inócua do processo de ensinar e aprender engajados (ensinamentos 30, 31 e 32).

Destaca-se que, ainda que a autora sustente sua proposta de pedagogia engajada em perspectivas e epistemologias feministas negras e na obra de Paulo Freire – sustentado, por sua vez, pelo aporte teórico marxista –, seus ensinamentos, na obra em tela resenhada, apontam para reflexões e intervenções microrrevolucionárias no campo da Educação escolar, uma vez que não intentam uma teoria da Educação ou a proposta de uma intervenção global nas práticas de ensino e aprendizagem. Pelo contrário, a obra contribui com e suscita importantes reflexões em torno da abertura à experimentação de afetos e afetações em sala de aula, condicionadas pelas interseccionalidades entre raça, gênero e classe social que habitam o chão da escola. Nesse sentido, a autora dá continuidade à sua proposta de que o feminismo seja conhecido e compartilhado por todos por meio de uma ética-política feminista nas práticas pedagógicas. A obra reúne reflexões densas que podem contribuir para se repensarem práticas de ensino mais engajadas, localizadas e concatenadas com as experiências interseccionais de educandos e educandas.

2A utilização do nome e sobrenome em letras minúsculas demarca, num primeiro momento, uma diferenciação em relação a sua avó, Bell Blair Hooks, de quem pega emprestado o pseudônimo e, em segundo lugar, seu posicionamento político e crítico em relação academia que, segundo aponta a escritora na própria obra aqui resenhada, apresenta “uma obsessão em torno da propriedade de ideias. A competição pelo respeito acadêmico faz indivíduos terem uma necessidade desesperada de ser a pessoa que primeiro teve a ideia” (p. 85). bell hooks nos propõe a reflexão de que as ideias estão sempre circulando e, portanto, se renovando se envolverem reflexão crítica em conversas e trocas internas que dão novos sentidos ao pensamento comum. Por isso utiliza o pseudônimo em letras minúsculas, reforçando os conteúdos de suas obras em detrimento de sua autoria.

3Para um estudo mais completo da relação entre as duas perspectivas recomenda-se a leitura do capítulo “Pedagogia engajada”, do livro Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade (hooks, 2017).

4bell hooks rejeita a separação entre teoria e prática no processo de interação social e na prática de ensino. Baseada em sua própria trajetória de vida pessoal e profissional, ela argumenta que “tudo o que fazemos na vida está fundamentado em teoria [...] há um sistema implícito moldando pensamento e prática (hooks, 2019, 41).

5Sugere-se a leitura complementar do capítulo Eros, erotismo e o processo pedagógico, do livro “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade”, para maior aprofundamento da ideia que a autora desenvolve em torno da relação entre eros, corpo e sexualidade em sala de aula.

Referências

hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. [ Links ]

hooks, b. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 4. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019. [ Links ]

hooks, b. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Editora Elefante, 2020. [ Links ]

Recebido: 14 de Novembro de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

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