Introdução
A constituição do ensino superior no Brasil
A Historiografia da Educação, ao tratar sobre o período colonial, tem apontado uma falta de incentivo por parte de Portugal ao desenvolvimento intelectual de sua colônia. Em relação ao ensino superior, havia na América portuguesa alguns estabelecimentos escolares jesuíticos que ofereciam cursos de Filosofia e Teologia, mas, diferentemente dos seus vizinhos latino-americanos, essa região foi desestimulada a fundar escolas desse nível até o início do século XIX. Paula (2016) afirma que a coroa portuguesa, ao invés de incentivar a formação de jovens no ensino superior em território americano, a estimulava na Europa1. Somente em 1808, seria determinada, por Dom João VI, a criação de instituições de educação superior, que dotariam o Brasil de centros de produção de conhecimento. Luiz Antônio Cunha (2007) avalia a proibição de se criarem universidades na América portuguesa como medida de impedir estímulo a movimentos revolucionários desejosos da independência. Embora muito difundida, essa corrente historiográfica adotada por Cunha retira o foco do principal elemento que inibiu a criação das universidades na América portuguesa: o grande interesse dos homens da época em realizar seus estudos superiores em Portugal, mais especificamente na Universidade de Coimbra.
Paula (2011) assevera que essa situação começa a se alterar apenas no período do Reino Unido, quando ocorreu a ‘inversão metropolitana’, ou seja, da antiga colônia passou a ser exercida a sede do governo do império português. Com a família real no Brasil, tornou-se fundamental a instalação de instituições de ensino para formar profissionais capazes de atender as necessidades locais e produzir novos conhecimentos. José Gonçalves Gondra (2004) assevera que todas essas intervenções ocorridas no país fazem parte de um processo de civilização - ou melhor, europeização -, que visava incutir hábitos e costumes na população, além de incentivar a busca pelo conhecimento. A partir desse momento, cada vez mais, a ciência no Brasil vai se estruturando em campos mais autônomos e, com a criação dos cursos superiores nas províncias, amplia-se os ramos de conhecimento. Durante todo o século XIX, o nosso ensino superior ficou restrito a um número limitado de faculdades, espalhadas na Corte e em algumas províncias, entre elas destacam-se as de Medicina no Rio de Janeiro e na Bahia; as de Direito em São Paulo e Recife e os cursos de Engenharia embutidos na Academia Militar do Rio de Janeiro.
Apesar da falta de estímulos, a criação de uma universidade em Minas Gerais fazia parte do projeto político dos Inconfidentes no final do século XVIII. A ideia de se criar uma universidade na região das Minas, porém, só se concretizou no século XX, mais especificamente em 1927, com a fundação da Universidade de Minas Gerais em Belo Horizonte. No entanto, cabe destacar que o desejo por instrução tão intrínseco aos inconfidentes e o reconhecimento da importância do ensino superior na região das Minas despertou projetos e possibilitou avanços no campo educacional2 durante o século XIX.
Em seus estudos, José Ramos Dias (1989) aponta que no dia 28 de janeiro de 1829 foi criada a Academia Médico-Cirúrgica de Ouro Preto e no ano de 1832 havia sido aprovada uma proposta de criação de um curso de Ciências Sociais em Ouro Preto. Apesar dos esforços, esses dois projetos pioneiros não obtiveram sucesso e a província mineira continuou desejosa em relação a criação de uma instituição de ensino superior na região. Somente no dia 4 de abril de 1839, Bernardo Jacinto da Veiga (Presidente Conselheiro da Assembleia Legislativa) sancionou a lei número 140 que pretendia criar uma Escola de Farmácia em São João Del Rei e outra em Ouro Preto. A primeira nunca chegou a ser implantada, mas a Escola de Farmácia de Ouro Preto, por sua vez, foi criada neste mesmo ano (1839) e tornou-se o primeiro estabelecimento de ensino superior oficial da província mineira e o mais antigo curso de Farmácia, desvinculado de um curso de Medicina, da América do Sul. De acordo com a lei número 140 de 1839, os farmacêuticos que quisessem exercer sua profissão precisariam apresentar:
[...] às Câmaras Municipais, um diploma das Academias Médico Cirúrgicas do Império ou do Presidente da Província, que os concedia somente aos candidatos que tivessem frequentado, por um ano, as escolas de Farmácia da Província e sido aprovados nos exames. Além disso, era ainda condição indispensável a prática de dois anos numa farmácia legalmente estabelecida. [...] (Dias, 1989, p. 35).
Dessa forma, é plausível observar que o exercício da profissão passou por um processo de legitimação, na qual a frequência em uma faculdade de ensino superior tornou-se indispensável a todos que desejassem exercer esta ocupação. Gradualmente, o conhecimento farmacêutico foi se afastando das antigas artes de curar do Brasil3.
Dias (1989) afirma que a Escola de Farmácia de Ouro Preto passou por grandes dificuldades nas décadas posteriores à sua criação. A falta de verba e o atraso (ou melhor, a ausência) dos ordenados dos professores se fez uma constante no prelúdio da história desta instituição. O autor nos conta que
[...] a Escola teria desaparecido se não fosse a dedicação dos dois saudosos mestres Arieira, professor de Farmacologia, e Cabral, professor de Botânica e Matéria Médica, que se prontificaram a prestar seus serviços ao governo, gratuitamente (Dias, 1989, p. 36).
Detendo-se ainda nos estudos de Dias (1989), observa-se que até o início da década de 70 do século XIX, o curso da Escola de Farmácia de Ouro Preto tinha a duração de dois anos e os alunos durante este período precisariam atuar e desenvolver seus aprendizados em uma das farmácias da cidade que admitisse praticantes. A atuação do estudante em uma farmácia era uma atividade obrigatória, uma vez que o proprietário do estabelecimento era o responsável em conceder o atestado que possibilitava os alunos a prestarem os exames práticos.
Nas décadas seguintes, o curso de Farmácia de Ouro Preto passou por uma série de mudanças e reformas educacionais. O Regulamento número 65 de 16 de agosto de 18724, por exemplo, criou novas cadeiras e ampliou a duração do curso farmacêutico de dois para três anos. Por sua vez, o Decreto n. 3.072 de 27 de maio de 18825 declarou válido em todo o Império os diplomas de farmacêuticos conferidos pelas escolas criadas pelas Assembleias Legislativas Provinciais. A legitimidade destes diplomas ficaria condicionada à equiparação dos cursos farmacêuticos aos seus congêneres das faculdades oficiais de Medicina do Brasil, reconhecimento esse que a instituição obteve no ano de 1883, sendo a primeira a legitimar os diplomas dos seus alunos e o único estabelecimento de ensino a ter sua equiparação desde o período imperial.
As reformas educacionais no período republicano: descontinuidades e vicissitudes.
Após a Proclamação da República, o Brasil passou por um período de contínuas reformas educacionais em todos os níveis de ensino, experimentando diversas medidas em um curto espaço de tempo6. Dermeval Saviani (2008) nota a ‘descontinuidade’ como uma das principais características da política educacional brasileira, o que representa até hoje um grande empecilho a avanços relacionados às questões da educação. Ao analisar o conjunto de reformas educacionais que tem início na segunda metade do século XIX, com a reforma Couto Ferraz (1854) e culmina na reforma Francisco Campos (1931), Saviani (2008) observa que existiu uma tendência de atribuir a cada reforma o nome do ministro da instrução responsável à época, como se cada novo homem que assumisse o poder deixasse impressa a sua marca e apagasse o que estava em curso pelo seu antecessor:
Essas reformas, vistas em retrospectiva de conjunto, descrevem um movimento que pode ser reconhecido pelas metáforas do ziguezague ou do pêndulo. A metáfora do ziguezague indica o sentido tortuoso, sinuoso das variações e alterações sucessivas observadas nas reformas; o movimento pendular mostra o vai-e-vem de dois temas que se alternam sequencialmente nas medidas reformadoras da estrutura educacional (Saviani, 2008, p. 11).
Durante as primeiras décadas do período republicano, observou-se a alternância entre as reformas quanto a promoverem ora a centralização do ensino, ora a descentralização; a oscilação entre a liberdade ou o maior controle educacional; o foco em um currículo mais científico ou humanístico:
Após a reforma Benjamin Constant, de 1890, que procurou introduzir os estudos científicos e atenuar o excesso de liberdade que marcou a reforma Leôncio de Carvalho, tivemos o Código Epitácio Pessoa, em 1901. Esse código ratificou o princípio de liberdade de ensino da Reforma Leôncio de Carvalho, equiparou as escolas privadas às oficiais e acentuou a parte literária dos currículos. Mas a reforma Rivadávia Corrêa, em 1911, volta a reforçar a liberdade de ensino e a desoficialização, além de retomar a orientação positivista, tentando imprimir um caráter prático à orientação dos estudos. Diante das consequências desastrosas, uma nova reforma, a de Carlos Maximiliano, instituída em 1915, reoficializou o ensino e introduziu o exame vestibular a ser realizado nas próprias faculdades, podendo a ele se submeter apenas os candidatos que dispusessem de diploma de conclusão do curso secundário. Com isso, tornou bem mais difícil o ingresso no ensino superior (Saviani, 2008, p. 11-12).
O currículo do curso farmacêutico e os exames preparatórios necessários para a admissão na Escola de Ouro Preto refletiram as vicissitudes e a descontinuidade das primeiras reformas educacionais do Período Republicano. Acompanharemos a seguir os impactos e as reações da classe farmacêutica diante as reformas educacionais de 1890 a 19117.
A Reforma Benjamin Constant de 1890
Com o objetivo de acompanhar as consequências que estas reformas tiveram na instituição e as reações da classe farmacêutica diante este cenário, cabe destacar que no final do período monárquico, os exames necessários para a matrícula na Escola de Farmácia de Ouro Preto de acordo com Dias (1989) eram: Português, Francês, Aritmética, Latim, Álgebra (até equação do segundo grau), Geometria Plana e no espaço e Geografia. Por sua vez, o curso farmacêutico desta instituição era composto por sete cadeiras. Ver Tabela 1 a seguir:
Ano | Disciplinas |
1˚ ano | Física Médica |
1˚ ano | Química Mineral e Noções de Mineralogia |
2˚ ano | Botânica e Zoologia |
2˚ ano | Química Orgânica e Biologia |
3˚ ano | Matéria Médica (brasileira) |
3˚ ano | Toxicologia e estudos das falsificações dos principais gêneros alimentícios |
3˚ ano | Farmácia Teórica e Prática |
Fonte: Dias (1989).
No dia 19 de abril de 1890 - sob o governo do presidente Deodoro da Fonseca, o General de brigada Benjamin Constant Botelho de Magalhães assumiu a Secretaria de Estado dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos e pouco tempo depois, assinou o Decreto n. 981, de 8 de novembro de 1890, que objetivava regulamentar a educação primária e secundária no Distrito Federal. O objetivo deste decreto era ditar os princípios básicos norteadores da educação, enfatizando a relevância de uma educação científica/enciclopédica com base nas ideias positivistas da época. Observa-se por meio deste decreto uma tentativa de ruptura com a tradição humanista que caracterizou a educação brasileira nos últimos séculos e o afastamento da educação dos preceitos religiosos (através da defesa do Estado laico). Ao investigar as representações da cultura política republicana8 presentes nesta reforma, averigua-se que:
O ensino secundário se constituía na base propedêutica de línguas e ciências para a admissão no ensino superior. Ele acabou por tornar-se enciclopédico - um saber em extensão-, ou seja, de tudo o que existe. Em todos os níveis de ensino havia uma ampliação do número de cursos (disciplinas) e seus anos de duração. As disciplinas deveriam ser sempre as mesmas, porém cada vez mais seriam estudadas com maior profundidade (Delaneze, 2006, p. 5420).
A Reforma Benjamim Constant constituiu-se em uma série de decretos. Pela análise de documentos existentes no Arquivo da Escola de Farmácia de Ouro Preto, constata-se que a primeira reforma do período republicano, também fixada pelo Decreto n. 1.270, de 10 de janeiro de 1891 (artigo 7, capítulo 1)9, ao deixar estabelecido que apenas poderia exercer a profissão de farmacêutico os licenciados em faculdades federais, sem se referir à Escola de Ouro Preto, detentora do direito de conceder títulos oficiais desde 1883, colocou em dúvida a validade dos diplomas dessa escola, provocando muitos protestos na época. Pode-se observar em documentos datados deste mesmo ano de 1891 que ocorreu uma transferência coletiva dos discentes de Ouro Preto para as faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia. Além disso, no ano de 1896, os membros da Escola de Farmácia de Ouro Preto enviaram ao ministro do Interior uma reclamação acusando a Diretoria do Corpo de Saúde da Armada de excluir do concurso para farmacêutico os titulados por essa instituição. Junto à reclamação foram enviados alguns exemplares de estatutos que regiam a escola, dos quais constava o respectivo plano de curso, provando que este se igualava aos cursos farmacêuticos das faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, respeitando assim as exigências de equiparação do Decreto n. 8.950, de 9 de junho de 1883:
O Director e professores da Escola de Pharmácia de Ouro Preto, capital do estado de Minas Geraes por si e em commissão nomeada pela Assembléia popular hontem reunida n’esta cidade, vem representar a V Excia contra a disposição contida na última parte do art. 7º do Decreto n. 1270 que parece prohibir aos pharmaceuticos titulados por esta escola o exercício de sua profissão no território da República (Ouro Preto, 1896).
Todos esses atos descritos são indícios de que os professores, estudantes e diretores da Escola de Farmácia de Ouro Preto responderam de diversas formas à implantação desse decreto de 1891, que tinha o intuito de reorganizar as faculdades de Medicina e Farmácia existentes no Brasil e tiveram de lutar para que seus direitos fossem preservados. A união da classe farmacêutica para enviar uma reclamação ao ministro do Interior foi possível graças ao fato de os membros desse grupo estarem inseridos em um mesmo espaço social e possuírem iguais interesses. Na perspectiva dos estudos de Serge Berstein (1998), a escola, o liceu e a universidade podem ser vetores de uma determinada cultura política. Dessa forma, é plausível pensarmos que o grupo farmacêutico de Ouro Preto, ou melhor, a própria Faculdade de Farmácia seria um meio de difusão de ideias contrárias ou favoráveis a cultura política republicana.
Em sua obra intitulada Apontamentos históricos do sesquicentenário da Escola de Farmácia de Ouro Preto, José Ramos Dias (1989) menciona que a instituição foi remodelada pelo Decreto n. 534, de 10 de julho de 1891, e entre as mudanças ocasionadas por essa norma estaria a implantação de novos exames preparatórios (trigonometria, física, química e história natural) para o ingresso de seus discentes. Embora o ideário positivista/enciclopédico inerente à Reforma Benjamin Constant não tivesse atingido de forma ampla os resultados previstos e algumas ideias não saíram do papel, observa-se que após a reforma conteúdos científicos foram acrescentados aos exames preparatórios exigidos para o ingresso na Escola de Farmácia de Ouro Preto. Conforme se pode constatar na Tabela 2 comparativa abaixo:
Exames preparatórios exigidos em 1889 (antes da reforma) | Exames preparatórios exigidos em 1891 (após a reforma) |
Português | Português |
Francês | Francês |
Aritmética | Aritmética |
Álgebra até equações do 2 grau | Álgebra (até equações do 2˚ grau) |
Geometria plana e no espaço | Geometria Plana e no Espaço |
Geografia | Geografia |
_ | Trigonometria (noções) |
_ | Física |
_ | Química |
_ | História Natural |
Fonte: Dias (1989).
Gradativamente, o currículo acadêmico foi sendo substituído e o enciclopedismo e as ciências positivas ganharam espaço. Acrescente-se que uma nova reorganização ocorreu no dia 3 de agosto de 1892, pela Lei n. 4110, mediante a qual o curso passaria a fornecer dois diplomas: o de farmacêutico, com duração de três anos, e o de bacharel em Ciências Naturais e Farmacêuticas aos que além dos três anos cursassem mais um ano de estudos e defendessem uma tese. Ver Tabela 3 a seguir:
Ano | Disciplinas ofertadas em 1889 (antes da reforma) | Disciplinas ofertadas em 1893 (após a reforma) |
1˚ ano | Física Médica | Física |
1˚ ano | Química Mineral e Noções de Mineralogia | Química Inorgânica e Mineralogia |
2˚ ano | Botânica e Zoologia | Botânica e Zoologia |
2˚ ano | Química Orgânica e Biologia | Química Orgânica e Noções de Química Biológica |
3˚ ano | Matéria Médica (brasileira) | Matéria Médica e Terapêutica |
3˚ ano | Toxicologia e estudos das falsificações dos principais gêneros alimentícios | Química Analítica e Toxicologia |
3˚ ano | Farmácia Teórica e Prática | Farmácia Teórica e Prática |
4˚ ano 11 | _ | Anatomia Descritiva e História Natural Médica |
4˚ ano | - | Fisiologia, Química Biológica e Medicina Judiciária |
Fonte: Dias (1989).
Dias (1989) informa que a primeira reforma do período republicano possibilitou a ampliação do curso e o aumento do número de exames preparatórios necessários para a admissão na instituição, assim como outras conquistas para a escola, a instalação de novos laboratórios, a aquisição de equipamentos mais modernos etc. Ressalta-se que a criação de novos laboratórios e gabinetes na Escola de Farmácia foi amplamente elogiada e recomendada no relatório do Presidente do Estado de Minas Gerais em 1893, uma vez que na opinião dos inspetores escolares a ampliação da escola possibilitaria convertê-la em uma Faculdade de Medicina:
Monta-los como estão os laboratórios e já criadas cadeiras que são comuns aos cursos de Farmácia e Medicina, bastarão poucos cursos de medicina e cirurgia para se obter tão notável melhoramento. O tributo pesado de vidas que pagam as famílias mineiras, que mandam seus filhos estudar nas cidades marítimas, a necessidade que tem o Estado de facilitar a seus filhos o preparo para todas as carreiras liberais, são razões que justificam plenamente a criação que lembro (Relatório do Presidente do Estado de MG, 1893, p. 30-31).
Um dos principais argumentos para a criação de uma Faculdade de Medicina em Minas Gerais era a possibilidade de se constituir um quadro composto por todos os ramos do ensino superior no estado. Diz o inspetor escolar do estado: "[...] temos já a Escola de Minas e Engenharia Civil, a Escola de Farmácia, a Faculdade livre de Direito, gozando das regalias das Faculdades da União, e, com pequeno esforço podemos ter a Escola de Medicina." (Relatórios do Presidente do Estado de MG, 1893, p. 31). Logo, constata-se que, apesar do momento de luta em busca de legitimidade, a organização e o funcionamento da Escola de Farmácia estavam em um período de crescimento e grandes realizações após a Reforma Benjamin Constant (1890).
A Reforma Epitácio Pessoa de 1901
No entanto, a Reforma Epitácio Pessoa (1901), também conhecida como Código do Ensino12 trouxe fim à expansão iniciada na década anterior, reduzindo consideravelmente tanto a duração do curso de Farmácia quanto os exames preparatórios necessários para o ingresso na instituição. No dia 1º de janeiro de 1901, o presidente do Brasil Campos Salles, com o apoio do ministro da Justiça e Negócios Interiores - Epitácio Pessoa, resolveu aprovar o Código dos Institutos Oficiais de Ensino Superior e Secundário pelo Decreto n. 3.890, seguido do Decreto n. 3.902, de 12 de janeiro daquele ano, que estabeleceu um novo regulamento para as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro.
O Código Epitácio Pessoa (Decreto n. 3.890, 1901) ditou normas para o processamento dos exames de madureza e para a equiparação das escolas particulares, estendendo assim tal privilégio a um número cada vez maior de instituições:
Art. 361. Aos estabelecimentos de ensino superior ou secundário fundados pelos Estados, pelo Distrito Federal ou por qualquer associação ou individuo, poderá o Governo conceder os privilégios dos estabelecimentos federais congêneres.
Art.370. Os institutos equiparados terão o direito de conferir aos seus alunos os graus que concedem os estabelecimentos federais, uma vez que eles tenham obtido as aprovações exigidas pelos regulamentos destes para a obtenção dos mesmos graus (Decreto n. 3.890, 1901).
Em relação aos impactos provocados pela Reforma Epitácio Pessoa, em virtude do Decreto n. 1.480 de 21 de outubro de 1901, alguns professores foram dispensados e houve a supressão do cargo de bibliotecário e de três serventes da escola (Relatório de Presidente de Estado, 1902). Além disso, por intermédio do Decreto n. 3.902/1901, pode-se constatar que o capítulo VII dessa norma diminuiu significativamente os exames preparatórios necessários para a matrícula no curso de Farmácia de Ouro Preto, como os de: história do Brasil, física, química, zoologia, botânica, mineralogia e geologia, que deixaram de ser exigidos dos futuros farmacêuticos. Conforme pode-se observar na Tabela 4:
Exames preparatórios exigidos em 1899 (antes da reforma)13 | Exames preparatórios exigidos em 1907 (após a reforma) |
Português | Português |
Francês | Francês (feitos em provas escritas e orais) |
Aritmética | Aritmética (prática) |
Álgebra (toda álgebra) | Álgebra (até equações do 1º grau) |
Geometria (toda a geometria) | Geometria Plana |
Física | Elementos de Física e Química |
Química | Elementos de História Natural |
História do Brasil | _ |
Trigonometria | _ |
Chorografia do Brasil | _ |
Zoologia | _ |
Botânica | _ |
Mineralogia | _ |
Geologia | _ |
Fonte: Ouro Preto (1907).
Por sua vez, o capítulo III do Decreto n. 3.902/1901 reduziu a duração do próprio curso; antes da Reforma Epitácio Pessoa, o curso era composto por três anos de estudos - ou melhor, quatro anos para quem desejasse cursar o bacharelado; após a reforma, a duração passou a ser de apenas dois anos (Tabela 5):
No tocante aos estudos iniciaes para a matricula nos cursos pharmacologicos, o citado Código do ensino reduziu os preparatórios [...]. Não parou por ahi, foi além: reduziu o curso que era de três annos, a dous, supprimindo as cadeiras de physica medica, de chimica analytica e toxicologia e fundindo outras em uma única. (Ouro Preto, 1907).
Ano | Disciplinas do curso farmacêutico em 1893 (antes da reforma). | Disciplinas do curso farmacêutico em 1907 (após a reforma). |
1˚ ano | Física | História Natural Médica |
Química Inorgânica e Mineralogia | Química Mineral, Matéria Médica e Farmácia | |
2˚ ano | Botânica e Zoologia | Química Médica e Farmacologia |
Química Orgânica e Noções de Química Biológica. | _ | |
3˚ ano | Matéria Médica e Terapêutica | _ |
Química Analítica e Toxicologia | _ | |
Farmácia teórica e prática. | _ | |
4˚ ano | Anatomia Descritiva e História Natural Médica | _ |
Fisiologia, Química Biológica e Medicina Judiciária | _ |
Fonte: Ouro Preto (1907).
No Relatório do Presidente de Estado de Minas Gerais de 1901, o inspetor escolar afirmou que tais mudanças tiveram de ser realizadas para que o curso continuasse a ter o mesmo modelo, dito oficial, adotado pelas escolas do Rio de Janeiro e da Bahia. Além disso, defendeu que a aplicação do Código do Ensino de 1901 era do próprio interesse da escola para que ela não fosse extinta por falta de frequência dos alunos. No entanto, a dita reforma foi amplamente criticada pela classe farmacêutica que respondeu reivindicando e demonstrando sua indignação. Através de busca documental no Arquivo da Escola de Farmácia de Ouro Preto, encontra-se uma representação enviada no ano de 1907 ao Congresso Nacional pelo Centro Farmacêutico de Minas Gerais, assinada pela Diretoria de Ouro Preto, com o objetivo de demonstrar aos senadores e deputados o estado deficitário em que se encontrava esse ensino:
A reclamação contra o estado anarchico do ensino, confessado já pelo digno Ministro do Interior, em papel público, é o móvel desta representação que dirigimos ao corpo legislativo de nosso paiz, pedindo-lhe que lance as suas vistas sobre o desmantelo lastimoso e a decadência entristecedora a que chegou este ramo da administração pública. A balburdia, o desconcerto e a falta de unidade de ação e_porque não dizé-lo? _ o pouco caso e o filhotismo, fizeram do ensino a tavola rasa de todas as concessões e arena de todos os desmandos. O famigerado Código do Ensino, já por si falho, deficiente e contradictorio, foi um concurrente para o anarchisamento, já então muito bem iniciado, provocando a vigoração deste protesto da própria mocidade das academias, entre os quaes o da Escola de Pharmacia de Ouro Preto, um notável centro de educação scientifica (Ouro Preto, 1907).
Observa-se que na primeira década do século XX a classe farmacêutica precisou se unir novamente diante os impactos das reformas educacionais analisadas por esta pesquisa. Justifica a classe farmacêutica:
[...] é o exercício de um direito que nos assiste e o zelo e o amor pela classe a que pertencemos que nos fazem, congregados pelo nosso interesse collectivo e pela defesa commum da nossa causa, vir à presença de V. EXª (Ouro Preto, 1907).
Em sua representação dirigida ao Congresso, o grupo farmacêutico de Ouro Preto14 acusa os ministros de negligenciarem ou conduzirem de forma não benéfica as discussões relacionadas ao Código do Ensino e alerta para a precarização do ensino, afirmando que a duração do curso foi reduzida consideravelmente e muitos dos preparatórios necessários para a admissão foram suprimidos ou restringidos à ‘noções muito breves’, ou a ‘rudimentos acanhadíssimos’ dos conteúdos15. Além disso, o decreto de 15 de outubro de 1906 determinou que alguns exames de admissão (Física, Química e História Natural) deveriam ser realizados somente através de provas orais ‘irrisórias’ e ‘ridículas’16 de 20 minutos, tempo considerado insuficiente na opinião da classe farmacêutica da época. Segundo o grupo de Ouro Preto, a diminuição dos preparatórios e a supressão das cadeiras alteraram fundamentalmente o ensino da Farmácia:
Já o pharmaceutico não seria um chimico, porque essa cadeira de chimica analytica fôra tirada da seriação das matérias e o curso, comprimido em dous annos escassos, lhe não daria tempo e ensancha para um estudo cuidadoso (Ouro Preto, 1907).
Faria Filho (2005) afirma que a legislação educacional é demarcadora de identidades profissionais. Sendo assim, averigua-se a insatisfação dos farmacêuticos perante a Reforma Epitácio Pessoa (1901). Uma das críticas principais é em relação ao fato de que os exames de admissão após a implantação do Código do Ensino passaram a ser realizados em qualquer estabelecimento equiparado ao Ginásio Nacional (antigo Colégio Pedro II). Vale relembrar que a equiparação entre diferentes instituições de ensino tanto do nível secundário quanto do superior era o principal objetivo desta reforma de 1901. Pronuncia a classe farmacêutica: "Parece que há evidente intenção de fazer do pharmaceutico um acabado incompetente. [...] é o que é, actualmente, o curso pharmaceutico entre nós, no Brasil que se gaba de ser a nação mais adiantada da América do Sul" (Ouro Preto, 1907).
Detendo-se ainda a analisar a Representação Dirigida ao Congresso Nacional pelo Centro Farmacêutico de Ouro Preto de 1907, observa-se que entre as estratégias adotadas pelo grupo se pode destacar: a comparação das mudanças ocorridas na Escola de Farmácia de Ouro Preto em contraposição a ampliação e a criação de novas cadeiras dos cursos das faculdades oficiais de Medicina, Direito e Engenharia; a comparação do ensino farmacêutico ofertado no Brasil em confronto com a formação recebida pelos profissionais estrangeiros em outros países considerados mais ‘adiantados’17; e a convocação das autoridades para "[...] legislarem sobre tão grave assumpto e reabilitarem a Classe Pharmacêutica [...] " que, na opinião do grupo "[...] dentro de poucos anos se continuar o actual estado das cousas, descerá às ultimas camadas da incompetência e acabará em mercancia perigosa de medicamentos" - alerta os responsáveis pelo documento (Ouro Preto,1907).
Após apresentar todas as perdas que o curso de Farmácia sofrera, o grupo de Ouro Preto propôs uma alternativa de programa com todos os requisitos e cadeiras necessárias para a formação de um farmacêutico18. Entre os exames de admissão a serem exigidos na proposta, observa-se a inclusão do inglês, justificado pelo grupo devido ao progresso da Farmacopeia britânica e norte americana; e da Geografia e da História, conhecimentos considerados indispensáveis a todos os homens. Por sua vez, entre as disciplinas propostas no regimento, aparecem a cadeira de Higiene; de Anatomia e da Fisiologia (ciências acessórias ao estudo da terapêutica); e da Química Analítica e da Bacteriologia (para que os farmacêuticos se tornassem aptos a realizarem analises até então confiadas aos médicos ou então, aos profissionais estrangeiros). Ver Tabelas 6 e 7:
Proposta de exames preparatórios | Português |
Francês | |
Inglês | |
Geografia | |
Chorografia do Brasil | |
História Universal e do Brasil | |
Aritmética | |
Álgebra | |
Geometria Plana e no Espaço | |
Física e Química | |
História Natural |
Fonte: Ouro Preto (1907).
Ano | Proposta de disciplinas |
1˚ ano: | Química mineral e mineralogia |
1˚ ano: | Física Médica |
1˚ ano: | Anatomia |
2˚ ano: | Química orgânica e Biologia |
2˚ ano: | Fisiologia |
2˚ ano: | História natural Médica |
3˚ ano: | Farmacologia e arte de formular |
3˚ ano: | Química Analítica e Toxicologia |
3˚ ano: | Matéria médica e Terapêutica |
3˚ ano: | Bacteriologia e Higiene |
Fonte: Ouro Preto (1907).
Diante a apresentação desta proposta, solicita os farmacêuticos de Ouro Preto:
Pedimos remédio para o mal e submetemos ao alto critério de V. EXª o estudo deste programa. Em último caso, queremos retrogradar ao que éramos em 1899. O progresso das reformas nos está saindo comprometedor...assistireis de braços cruzados a esse aniquilamento? (Ouro Preto, 1907).
Logo, constata-se que a classe farmacêutica de Ouro Preto se viu entre a mudança e a resistência perante o ‘progresso’, ou melhor, durante a implantação das primeiras reformas educacionais do período republicano.
A Reforma Rivadávia Correa de 1911
Por sua vez, a reforma seguinte - Rivadávia Corrêa - reorganizou novamente a Escola de Farmácia de Ouro Preto, proporcionando uma série de mudanças decretadas pela Lei Orgânica do Ensino, expedida pelos Decretos Federais n. 8.659 e 8.661, de 5 de abril de 1911. Em seus estudos, Saviani (2008) atenta-se para o fato de essa reforma visar à possibilidade de uma maior liberdade aos cursos superiores, resultando no processo de desoficialização do ensino e total anarquia educacional. Ou seja, as instituições de ensino ganharam maior autonomia, enquanto o Estado se desobrigou de suas funções interventivas.
A nova lei eliminou as normas implantadas pela reforma anterior que autorizava o exame de madureza e estabelecia a necessidade da equiparação das instituições de ensino secundário ao Ginásio Nacional. A partir de agora, as faculdades poderiam desenvolver seus próprios exames de admissão para os alunos. Já em relação ao currículo, o curso voltou a ter a duração de três anos (conforme desejava o grupo farmacêutico investigado19). Conforme se pode observar na Tabela 8 a seguir:
Disciplinas ofertadas em 1907 | Disciplinas ofertadas em 1911 |
História Natural Médica | História Natural Médica |
Química Mineral, Matéria Médica e Farmácia | Química Mineral |
Química Médica e Farmacologia | Farmacologia |
- | Química Orgânica e Industrial |
- | Química Analítica e Toxicologia |
- | Higiene e Microbiologia |
- | Física |
- | Bromatologia |
Fonte: Dias (1989); Ouro Preto (1907).
Observa-se que após a reforma de 1911 a Escola de Farmácia de Ouro Preto retomou algumas cadeiras que eram ofertadas no início do período republicano, ou melhor, recuperou algumas disciplinas ministradas antes da reforma Epitácio Pessoa de 1901 - (química orgânica; química analítica e toxicologia; e física). Por outro lado, aproveitando a flexibilidade garantida pela nova lei, a escola também implantou uma nova disciplina de ‘higiene e microbiologia’ (cadeira proposta pela classe farmacêutica na representação dirigida ao Congresso Nacional em 1907). Logo, diante às vicissitudes educacionais do início do período republicano, constata-se uma contínua oscilação de sentimentos vivenciados pelo grupo de farmacêuticos de Ouro Preto. Em determinados momentos, nota-se o acolhimento ao novo e uma sensação de progresso; em outros, percebe-se uma grande resistência e a união da classe farmacêutica na defesa de seus direitos e interesses. Entre a mudança e a resistência, o que se averigua é a tradição farmacêutica sendo atualizada diante o projeto educacional das elites republicanas.
Considerações finais
A presente pesquisa trouxe à tona a história de uma importante instituição de ensino superior do Brasil muitas vezes negligenciada pela historiografia da educação, a Escola de Farmácia de Ouro Preto. O intuito foi analisar as primeiras reformas educacionais republicanas e o seu impacto nos estudos farmacêuticos. Luciano Mendes de Faria Filho (2005) destaca o poder ordenador da legislação educacional, mas também sua capacidade de gerar conflitos e lutas sociais. Pode-se observar que o cumprimento da lei era fundamental para a Escola de Farmácia de Ouro Preto preservar a legitimidade do curso e respeitar a equiparação exigida na época. No cotidiano da instituição de ensino, nota-se a obediência à legislação, o respeito à hierarquia e todo um aparato burocrático, legitimado em decretos e regulamentos, que coordenam as interações dos atores e o funcionamento da escola. Como nenhuma instituição de ensino está isenta de perturbações, conflitos e relações de poder antagônicas, o período da Primeira República foi um momento no qual a Escola de Farmácia de Ouro Preto passou por profundas mudanças e precisou se legitimar constantemente. Sendo assim, através de análise documental é possível identificar tanto momentos nos quais a classe farmacêutica precisou romper e questionar o poder simbólico exercido de forma impessoal pelo Estado e representado pela lei, quanto situações nas quais simplesmente aprovou ou acatou as mudanças. Logo, a finalidade principal desta pesquisa foi atentar para todas as reações, estratégias e formas mais sutis de resistência adotadas pelo grupo de Ouro Preto quando deparado com o impacto de tais reformas.