Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar o dispositivo de pesquisa-formação Reglus que pretende desenvolver uma nova proposta de formação docente para as mídias com professores em contexto de educação online.
Fake News1! Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro classificou uma reportagem2 da Folha de São Paulo que afirmava que após polêmicas no governo, um militar seria escalado para coordenar a estrutura de mídias digitais e reforçar a comunicação oficial do Palácio do Planalto. Para se defender da acusação do presidente, a Folha publicou3 uma nova reportagem sobre o assunto incluindo, dessa vez, parte da publicação do Diário Oficial da União4 que não apenas provava que a nomeação do coronel Didio Pereira de Campos para o cargo de Diretor do Departamento de Publicidade da Secretaria de Publicidade e Promoção da Secom era real como também quem assinava o despacho era o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.
Após a confusão, Bolsonaro então respondeu, dizendo que a primeira reportagem era fake news por ‘induzir leitor a associar meu perfil pessoal à notícia’ e que a segunda reportagem, mudava o foco de sua resposta e por isso era a Fake News da Fake News!5. Sete dias depois, sem admitir o erro e/ou apenas para validar o discurso do presidente, o DOU6 publicava uma correção tornando sem efeito a nomeação do coronel Didio na função de Diretor do Departamento para nomear novamente o mesmo para um novo cargo, agora de Assessor Especial da Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência da República.
Ao acusar a imprensa de estar reproduzindo fake news, mesmo quando esta estava se baseando em fontes oficiais e em informações verídicas, Bolsonaro estava apenas reproduzindo o discurso mais popular da atualidade, ‘Vocês são fake news7’, que desde 2017 tem ‘caído como uma luva’ sempre quando os fatos apresentados não corroboram com a sua versão da história. Afinal, em uma realidade de ‘fatos alternativos8’, ganha sempre quem grita mais e mais alto.
Mas como disse o jornalista da NBC, Chuck Todd, à assessora presidencial de Trump, Kellyanne Conway, ‘fatos alternativos não são fatos’. Não passam de afirmações vazias que, mesmo que contrariem todas as evidências, são repetidas incansavelmente até que a verdade dos fatos possa ser ensurdecida. A mesma lógica tem servido amplamente ao atual domínio da extrema-direita nas redes sociais, resultando na articulação da tomada do poder, através de ataques e disparos de mensagens em massa em contas no WhatsApp em busca criar outras narrativas em benefício próprio.
Compreender essa estrutura de mídias digitais é importante, pois a maior parte dessas narrativas não se sustentam e podem ser facilmente rebatidas por qualquer pesquisa competente que se faça nos motores de busca, mas que nunca acontece, uma vez que, como afirma Santaella (2018, p. 22), “[...] o modo de propagação é regido, sobretudo, pelo apelo emocional [...]” e a “[...] razoabilidade de filtro que o bom senso proporciona’ repousa na mesma gaveta que a ética e a idoneidade de quem compartilha”.
Enquanto se isenta da verdade e naturaliza o inverosímil, o indivíduo manipulado, agora armado pela tecnologia, sai à luz do sol para se juntar aos bots e a ampliar as fileiras da guerra contra toda forma de informação confiável. Terraplanando toda a esfera do conhecimento humano, resgata no negacionismo a nostalgia de épocas onde a opinião e o fato eram uma constante comum. Exige que os veículos de comunicação respeitem valores ‘éticos e sociais de família’ e provocam o obscurantismo, a censura, e a repressão a liberdade de imprensa, apenas para flertar com a volta dos mecanismos de controle estabelecidos pela ditadura militar no Brasil.
O homem é uma animal político. Um animal que se organiza em sociedade e busca aumentar o seu poder. Organizamo-nos em grupos que buscam o poder, opondo-se uns aos outros. Esses grupos adotam símbolos, práticas e crenças como fatores de união e coesão grupal. Queremos ser bons membros de nosso grupo, reconhecidos como representantes fiéis e puros de seus valores. Reproduzir as crenças de nosso grupo é essencial para pertencermos (Pinheiro, 2019, p. 91).
Essa breve descrição resume bem o modus operandi dos homens que vivem e movem a era da pós-verdade9. Muito distantes daquilo que Parisier (2012) imaginava que seria o mote de uma população que nasceu com a internet, onde “[...] hackers e os tecnólogos mudariam o mundo, conectando-nos a informação melhor e nos dando a capacidade de interferir sobre elas” (Parisier, 2012. p. 8), para transpirar a cibercultura e viver o auge da democratização da informação e das vantagens da liberação do polo de emissão (Lemos, 2008). O resumo do que temos visto é que a proliferação dos algoritmos e das bases ideológicas dos provedores de acesso e conteúdo tem proporcionado ainda mais o surgimento das bolhas.
A democracia exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de vista dos outros; em vez disso, estamos cada vez mais fechados em nossas próprias bolhas. A democracia exige que nos baseemos em fatos compartilhados; no entanto, estão nos oferecendo universos distintos e paralelos (Parisier, 2012, p. 9).
Por toda essa influência que a emoção exerce na racionalidade humana, pela necessidade de se ter uma visão crítica cerca dos fatos, entendendo que “[...] a verdadeira crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade da práxis constitutiva do mundo humano” (Freire, 2014, p. 16) é preciso que nos distanciemos então, por um momento, desse novo mundo para então problematizá-lo, partindo de sua decodificação crítica. Ao entendermos como esses processos são articulados e percebermos como somos fruto de suas maquinações, temos a oportunidade de repensar nossos atos a partir de uma nova perspectiva, a de ‘sujeito instaurador desse mundo’ e de um novo personagem que precisa urgentemente reconhecer o seu papel.
Um papel que vai muito além de ler somente aquilo que endossa a nossa visão de mundo e que deve se aproximar de um fazer metodológico que busque a informação através da investigação e interpretação, rompendo assim com preconceitos e paradigmas que confortem s nossa visão de mundo, de sociedade e de direto.
Em meio ao mar de desinformação como saber então em quem/quando/onde confiar? Historicamente esse processo de mediação dos saberes sempre esteve confiado ao professor e em tempos de pós-verdade sua atribuição não seria menos coerente. O professor é uma bússola, versada nas artes do mar do conhecimento, constituída como tal para intermediar as miragens da visão dos inexperientes e prover orientação crítica que aponte sempre ao norte de uma formação democrática. Mas precisa ser também alguém que perceba que parar e refletir faz parte do processo, que aprenda como sobreviver em novos contextos a despeito de todos os ataques e perseguições e que diante de novas oportunidades, consiga mapear novas formas de existência e resistência na cidade e no ciberespaço.
Sendo assim, o papel do professor deve ser o de mediador da ampliação dos repertórios culturais em rede, com professores e alunos aprendendo juntos. Como ampliar o repertório do outro, sem ampliar seus próprios repertórios? As tecnologias digitais em rede ampliam em potência a nossa autoria, uma vez que ler e escrever são ações corriqueiras que fazemos com esses dispositivos. Isso só pode acontecer quando o professor pluralizar seu conceito de educação (Santos, 2015, p. 41, 2019, p. 53).
Entendendo então que a singularidade do momento em que vivemos demanda a aquisição de novos saberes e práticas em busca de uma maior compreensão desses elementos, buscamos estratégias de existência nas vivências do cotidiano, nas práticas de resistência e nas novas iniciativas do jornalismo de verificação de fatos, tentando assim forjar um dispositivo de pesquisa que nos ajude a promover experiências de vida e formação que possam desarticular a eminente falência da democracia.
Entendendo que o papel do professor é criar e arquitetar ambiências formativas, inteligentes e desafiadoras, que preparem as pessoas para o exercício da cidadania (Valle, 2018), partimos do pressuposto que os mesmos aplicativos que protagonizam em nossos dispositivos móveis - celulares e tablets - a avalanche de desinformação, podem nos ajudar também a potencializar a autoria (Backes, 2012) e a aprendizagem colaborativa (Torres, 2007) se pudermos estruturar e articular o que se pode ser produzido em rede.
Percebendo ainda singularidade de nosso tempo e a necessidade de lidar com a agilidade e a automação de tantas notícias publicadas, inspiramo-nos finalmente na metodologia de atuação do jornalismo investigativo de checagem de fatos (fact-checking), para ‘fazer-pensar’ usos desses aplicativos, na prática docente, que possam proporcionar experiências formativas que, para além de compreender o fenômeno das fake news, ofereçam proposições para fins educativos.
Partindo dessas considerações iniciais onde procuramos trazer o contexto do tema principal do artigo, o texto está organizado em mais duas outras partes conforme demonstramos a seguir: ‘Apresentando Reglus, uma experiência de pesquisa-formação com App-Learning’ onde introduzimos o projeto Reglus, nossa proposta de uma prática pedagógica inspirada na cibercultura e na bricolagem de uma diversidade de dispositivos de pesquisa-formação e, por fim, a conclusão. Compreendendo que é preciso formar educadores ativistas que sejam capazes de “[...] criar, mediar e gerir ambiências educativas” (Santos, 2017, p. 12), mesmo em contextos excludentes, segregacionistas e antidemocráticos, uma vez que o docente é fundamental na mediação de todo o processo crítico formativo dos praticantes nesse cenário complexo e múltiplo de fontes, de dispositivos e de aplicativos pelos quais somos atravessados todos os dias enquanto buscamos informação.
Apresentando Reglus, uma experiência de pesquisa-formação com App-Learning
A presente pesquisa-formação na cibercultura é um recorte da tese de doutoramento, ainda em andamento: ‘Fact-checking education: identificação, produção e combate de narrativas nas redes’, e tem como campo de pesquisa o cotidiano da disciplina de ‘Informática na Educação’ do curso de Licenciatura em Pedagogia a distância pela UERJ/CEDERJ/UAB. A disciplina conta com um grupo no Facebook e está arquitetada no Moodle, que é uma plataforma de aprendizagem a distância baseada em software livre em que todos interagem criando e cocriando o conhecimento e suas aprendizagens. Onde a identificação pessoal e individual das narrativas e imagens é condicionada à autorização prévia em um ‘termo de consentimento livre e esclarecido10”.
Pretendemos compreender o contexto da emergência das fake news e suas repercussões na sociedade, inclusive na educação e desenvolver metodologias de pesquisa-formação em tempos de pós-verdade. A opção por investigar como essa guerra de narrativas vem modificando as formas de atuação e formação docente manifesta-se dos estudos dos fenômenos que emergem da cibercultura e suas apropriações pelos praticantes culturais, bem como a proposição de um diálogo entre a formação docente e as novas formas de socialização e aprendizagem contemporâneas.
São questionamentos da pesquisa: como os docentes em formação percebem o fenômeno das fake news em sua prática cotidiana, e quais estratégias que eles usam para combater a sua influência em seu processo formativo? Como desenvolver em nossa prática uma metodologia de fact-checking que nos permita identificar, combater e propor um contradiscurso as fake news? Como a pesquisa-formação na cibercultura, em especial no uso de aplicativos, pode contribuir para pensar a formação do docente na era da pós-verdade?
Não pretendemos nesse artigo atender a todos esses objetivos propostos para a tese, até por não estarmos aqui tratando de sua síntese. O esforço que aqui se propõe é no sentido de revelar alguns dos passos que estamos dando no sentido de compreender o último desses objetivos, a saber, ‘como a pesquisa-formação na cibercultura, em especial no uso de aplicativos, pode contribuir para pensar a formação do docente na era da pós-verdade?’
Para responder essa pergunta estamos inovando na proposição de um desenho didático, conforme Figura 1, que busca aprender com as plataformas em prol da checagem de fatos (fact-checking) novas formas de criar práticas que nos possibilitem identificar, combater e propor um contradiscurso as fake news. A atualidade do fenômeno e seus métodos de disseminação nos movem em busca de buscarmos também, como essas práticas estão sendo disseminadas na sociedade (em aplicativos, bots e inteligência artificial) para então, munidos nessas novas perspectivas, mobilizar novas formas de atuação docente.
Em tempos de ‘digital em rede’ (Santos, 2015, 2019) e de democratização do acesso e consumo das mídias podemos perceber que os usos que os praticantes (Certeau, 2008) culturais fazem hoje de seus dispositivos móveis investem contra o paradigma comunicacional massivo e convergem para a composição de um espaço de multiplicação de canais de aquisição de informação, de proliferação do conhecimento e de estilos de aprendizagem.
Dentre esses estilos, a lógica de aprender e ensinar por intermédio de aplicativos de dispositivos móveis, ou App-Learning, como define Santaella (2016), tem se mostrado um campo de atuação interessante; uma vez que tem como princípio básico a apropriação de aplicativos que usamos em nosso cotidiano para compor novas configurações e subversões em ambiências formativas. A experiência do app-learning, como prática social que emerge da cibercultura, proporciona outros contextos de pesquisa, cria novas oportunidades de reflexão acerca dos usos que fazemos de nossos dispositivos móveis e provoca a geração de novos contextos significativos de aprendizagem que busquem nas vivências dos praticantes a inspiração para a produção de experiências transformadoras da prática docente.
Amparados em outras pesquisas (Almeida, 2018), onde se investigou a potencialidade dos atos de currículo na perspectiva do app-learning e em estudos posteriores, focados na app-docência (Almeida, Santos, & Carvalho, 2018), nas perspectivas de autoria em práticas de app-learning (Almeida & Santos, 2019) e nas autorias colaborativas via aplicativos em rede pudemos verificar que o desdobramento da produção-participação coletiva que se refere ao surgimento da noção de ‘autoria colaborativa via app em rede’ precisa ser concebido “[...] nas relações com outros, por meio de conversas, nas tessituras de pontos de vista distintos, em tensões cotidianas e oportuniza situações de negociações-partilha e colaboração-interatividade” (Almeida, Santos, & Carvalho, 2019, p. 184).
Partindo assim também da nossa implicação com a causa democrática da verdade e do interesse de mobilizar saberes outros em sintonia com as dinâmicas da cibercultura, ousamos formar e nos formar com alunos de graduação em Pedagogia, tendo como suporte essencial a proposta de um desenho didático interativo e aberto que busca contemplar práticas de vivência e resistência nos campos de batalha da contemporaneidade: a cidade e ciberespaço.
O dispositivo que pretendemos acionar é a criação do espaço base do ‘Projeto Reglus’. O nome Reglus foi escolhido como uma homenagem ao grande educador e filósofo brasileiro Paulo Reglus Neves Freire em um contradiscurso à onda conservadora que busca censurar as vozes dos professores e alunos assim como sua pedagogia. A alfabetização, para Freire (2009), não é apenas um processo técnico de aprendizagem da linguagem escrita. A problematização do cotidiano e das relações de poder que se estabelecem nele tem peso fundamental, pois a “[...] leitura de mundo precede a leitura da palavra” (Freire, 2009, p. 11). Tal argumentação apresenta uma das contribuições elementares de sua pedagogia que o levou ao posto de patrono da educação brasileira. Desse modo, nos inspiramos nele para atuarmos nessa nova perspectiva de educação midiática desses docentes pelo ciberespaço.
O Reglus é a nossa proposta de solução em busca de responder aos/com nossos praticantes: como podemos distinguir notícias falsas de fatos verificados? Com a cibercultura, a forma como buscamos e consumimos informação mudou drasticamente, assim como a forma como verificamos e avaliamos as fontes dessas informações. Entendendo que precisamos aprender a identificar e pensar criticamente nesses novos espaços de produção de informação é que desenvolvemos essa iniciativa. O Reglus será uma plataforma onde vamos centralizar todas as práticas de produção com os dispositivos da pesquisa.
A plataforma tem como proposta a bricolagem de uma diversidade de dispositivos de pesquisa-formação, entre os quais destacamos:
- As aulas da disciplina Informática na Educação (PED-LIC) - UERJ, na realização das atividades de pesquisa, análise dos debates em fóruns de discussão online, observação das práticas pedagógicas via ambiente virtual de aprendizagem.
- A criação e manutenção de um repositório online de notícias confiáveis, curado e alimentado pelos praticantes culturais da disciplina onde docentes e discentes ‘fazemaprendem’ como atuar como agência de checagem de fatos, isto é, um confrontamento de histórias com dados, pesquisas e registros.
- A aplicação de inteligência artificial na atuação direta (com a criação de um chatbot que irá responder pesquisas acerca de veracidade de notícias no Facebook, WhatsApp e no Twitter) e indireta (com a criação de um bot que irá pesquisar, nas publicações de notícias no feed do Twitter, a incidência de notícias falsas, respondendo cada uma delas com a informação fatual verificada).
Partindo assim da nossa implicação com a causa e o interesse de mobilizar, informar e agir docentes em formação, tendo como suporte essencial de luta as novas tecnologias do ciberespaço, iniciamos a pesquisa no ambiente virtual de aprendizagem da disciplina promovendo nas aulas da disciplina Informática na Educação (PED-LIC) - UERJ uma estratégia de atuação que parte da investigação de quais as concepções que eles traziam consigo sobre o processo de aprendizagem na cibercultura (Aula 1- Educando em nosso tempo), para então compreender as estratégias que eles criam para perceber, conceber e promover informação em seu cotidiano (Aula 2 - De onde vêm as informações?).
A Figura 2 revela a nossa intencionalidade em investir em uma representação estética inspirada na identidade visual dos principais aplicativos pelos quais os brasileiros se informam em mobilidade11 buscando criar no imaginário coletivo dos praticantes da disciplina um novo olhar acerca dessas plataformas, atuando na transformação desses espaços de desinformação. Na associação das possibilidades desses aplicativos com o caráter formativo de um ambiente virtual de aprendizagem, buscamos situar nosso desenho didático para a abertura da prática docente ao exercício de novas experiências.
Essas questões tornam-se cada vez mais urgentes, principalmente com a emergência da cibercultura. Além de conhecer a dinâmica dos processos comunicacionais, como são produzidas as mensagens circuladas? Quais os interesses dominantes? Cabe ao trabalho docente não só fazer a crítica aos meios, mas sobretudo arquitetar situações e ambiências para a produção desses meios. A cibercultura desafia o currículo e os professores para o exercício de autorias coletivas com seus alunos, pois, ao contrário das mídias de massa, através da internet, cada espaço ou cenário de aprendizagem pode se constituir como uma agência de notícias (Santos, 2005, p. 58).
Tendo como objetivo, para além de compreender os usos que os praticantes fazem de seus aplicativos de seus dispositivos móveis em seu processo de aquisição de informação, desenvolvemos ambiências formativas de educação e atuação online, intencionando construir o currículo ao longo do processo formativo com os praticantes (Macedo, 2013) da disciplina, na proposição de uma metodologia de pesquisa que nos permita fazer pensar como esses novos processos de aquisição de informação em articulação com os aplicativos e suas potencialidades, podem mobilizar saberes a fim de gerar um ambiente propício para a formação de educadores críticos, ciberculturais, políticos e ativistas que acreditem e saibam se utilizar das mídias de comunicação eletrônica da cibercultura.
Para atender à proposição de um modelo de educação midiática inspirada pelo fact-checking, ou simplesmente fact-checking education, atuamos efetivamente na criação e na disponibilização de um repositório online de informação confiável (fundamentado nas práticas das agências de checagem de fatos em atuação no Brasil e pelas atuais iniciativas do jornalismo independente) no endereço eletrônico <reglus.me>.
Através da seção ‘Arquivo de notícias verificadas nas redes’ (Figura 3) os praticantes culturais da pesquisa serão convidados a capturar fake news, recebidas por eles mesmos, em qualquer uma das plataformas de mídias sociais, para através de sua própria pesquisa e investigação nas redes, produzir texto argumentativo e didático documentando o seu próprio processo de verificação daquela narrativa, a consonância de suas afirmações com a validação dos fatos e a deliberação final acerca da publicação, caracterizando-a como: verdadeira, imprecisa, exagerada, contraditória, insustentável ou falsa.
Ao focar na produção de culturas, saberes e conhecimentos pelos praticantes da pesquisa, situamos a nossa opção metodológica de pesquisa no âmbito da pesquisa-formação na cibercultura acreditando que, segundo Santos (2015, p. 9, 2019, p. 19), o processo de ensinar e pesquisar parte do “[...] compartilhamento de narrativas, imagens, sentidos e dilemas de docentes e pesquisadores pela mediação das interfaces digitais concebidas como dispositivos de pesquisa-formação”.
Pesquisar na cibercultura é atuar como praticante cultural produzindo dados em rede. Os sujeitos não são meros informantes, são praticantes culturais que produzem culturas, saberes e conhecimentos no contexto da pesquisa. Fazer pesquisa na cibercultura não é, para nós, apenas utilizar softwares para ‘coletar e organizar dados’ (Santos, 2015, p. 10, 2019, p. 20, grifo da autora).
O âmbito da pesquisa se dá contexto da multirreferencialidade (Ardoino, 1998) e dos cotidianos (Alves, 2003), das situações educativas e formativas dos fenômenos sociais em contexto da metodologia de pesquisa-formação na cibercultura (Santos, 2015, 2019) sob a ótica da verificação de fatos, buscando assim compreender como essa nova forma de aprendizagem, pode nos motivar a viver, sentir produzir e transformar efetivamente a nossa prática docente em direção ao movimento de um novo fazer pedagógico.
Promovemos essas iniciativas acreditando que são experiências formativas como essas, que vão nos permitir compreender como o empoderamento dos praticantes pelos meios de produção e emissão (aplicativos, mídias sociais e inteligência artificial) de informação, potencializado aqui pelo recurso discursivo das diretrizes de checagem de fatos, pode mobilizar vivências efetivas de educação midiática.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO e o Instituto Palavra Aberta, a educação midiática é o “[...] conjunto de habilidades para acessar, analisar, criar e participar de maneira crítica do ambiente informacional e midiático em todos os seus formatos - dos impressos aos digitais” (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], 2019). Essa perspectiva, que segundo a organização é tida como ‘um requisito fundamental para a formação do cidadão e para o fortalecimento da democracia’, encontra também correspondência no texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) desde o ano de 2017, na perspectiva de que são competências da educação midiática o ato de “[...] compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais” (Base Nacional Comum Curricular [BNCC], 2017).
Uma vez que, para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo (autoral, pessoal e coletivo) precisamos analisar os processos humanos e automáticos de curadoria que operam nas redes sociais. Para atuar nessa diversidades de domínios do ciberespaço e de forma crítica, consciente e autoral entendemos que a produção desses atos de currículo proporciona oportunidades de “[...] ampliar as possibilidades de trato com o diferente e minimizar o efeito bolha e a manipulação de terceiros” (BNCC, 2019).
Atendendo então aos princípios de elaboração de uma formação para a educação midiática e fundamentando a nossa lógica de verificação de notícias na utilização das categorias descritivas fundamentais para catalogação das notícias encontradas nas redes, tomamos como referência final a metodologia das agências de checagem de fatos, a saber, os jornalistas brasileiros que atuam como membros verificados da IFCN - International Fact-Checking Network13: Lupa, Aos Fatos e Estadão Verifica.
A Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN) foi criada em 2015 para apoiar uma crescente de iniciativas de verificação de fatos que estavam surgindo e atuar como uma unidade (do Instituto Poynter) dedicada a reunir esses verificadores de fatos em todo o mundo, promovendo boas práticas e intercâmbios nesse campo.
A atuação da Rede Internacional de Verificação se estende ao monitoramento de tendências, formatos e elaboração de políticas sobre verificação de fatos em todo o mundo; ajuda a consolidar posições comuns entre os verificadores de fatos do mundo; promove padrões básicos por meio do código de princípios e projetos dos verificadores de fatos para rastrear o impacto da verificação de fatos; financia diversas iniciativas de inovação em verificação de fatos através de um programa de financiamento coletivo; convoca verificadores de fatos em uma conferência anual (Fato Global) e promove esforços colaborativos na verificação de fatos internacionais, fornecendo treinamento presencial e online em busca de defender e promover mais verificação de fatos, inclusive por meio de um dia internacional anual de verificação de fatos.
Ao situar nossa estratégia de verificação de notícias para atender aos padrões estabelecidos pela Rede Internacional de Verificação de Fatos intencionamos, que ao final de nossa pesquisa, possamos encaminhar também as nossas práticas para compor mais um ponto de atuação brasileira no mapa do EduCheck14, um banco de dados sobre pensamento crítico e conhecimento sobre mídia, dados e letramento de desinformação, que centraliza práticas positivas em checagem de fatos em todo o mundo.
Em última fase, concluiremos a pesquisa na disponibilização de um dispositivo concreto do projeto Reglus para a sociedade, que terá como função prática a utilização todo o conteúdo produzido no âmbito da pesquisa em forma de narrativas e imagens de notícias que já foram verificadas pela aplicação coletiva dos praticantes da disciplina para alimentar um banco de dados que irá prover uma base de consulta e referência para uma diversidade de plataformas em complemento ao dispositivo.
Um chatbot baseado em linguagem natural fará consultas para efetivamente responder usuários do Facebook, do Messenger, do WhatsApp e do Twitter, a partir de palavras-chave, se uma determinada notícia é verdadeira, imprecisa, exagerada, contraditória, insustentável ou falsa (Figura 4) e, caso a mesma não tenha sido ainda analisada pelos nossos praticantes, uma opção de cadastramento de notícias pode ser acessada para enviar a notícia para verificação (Figura 5).
Um bot desenvolvido em linguagem de programação, fará consultas para alimentar um algoritmo de pesquisa no feed do Twitter por links de notícias falsas que tenham sido verificadas pela nossa base de dados de investigação, para responder com informação devidamente verificada (Figura 6).
Nesse contexto os praticantes da disciplina serão impulsionados acompanhar as ressonâncias de suas verificações tomarem uma nova abordagem para um contexto de enfrentamento e debate cara a cara com aqueles que disseminam fake news e desinformação. Acreditando que essas experiências poderão motivar a construção de uma conscientização coletiva acerca das notícias que eles recebem/compartilham em suas próprias redes.
Considerações finais
Seguindo esses passos, objetivamos promover novos letramentos. Formando assim educadores ativistas que sejam capazes de ‘criar, mediar e gerir ambiências educativas’, mesmo em contextos excludentes, segregacionistas e antidemocráticos, tendo sua própria autoria como fundamento na proposição de um contradiscurso tão influente e tão abrangente quanto é viral o compartilhamento de desinformação nas redes. Concordando assim com Singer (2019) quando diz que o melhor contra-ataque é dominar as artes de fazer, devemos mergulhar efetivamente no sentido das práticas do ciberativismo para saber fazer “[...] produzir, remixar, reutilizar, arquitetar, mediar e gerir comunidades de práticas e expressões cidadãs” (Santos, 2015, p. 40, 2019, p. 53) em nosso presente.
Alguns discursos acadêmicos, políticos ou artísticos acreditam que as formas de comunicação eletrônica da cibercultura possam efetivamente favorecer a ação social engajada, os movimentos sociais legítimos e romper com a apatia e o narcisismo contemporâneos. A Internet não serve hoje apenas como forma de expressão do ‘mundo da vida’. Diversas ações ao redor do mundo mostram que formas de expressão política engajada (a partir de problemas globais e locais) surgem, são suportadas e expandem-se na internet. Estamos falando de diversas expressões do que se chama hoje de ciberativismo (Lemos, 2003, p. 2, grifo do autor).
Dentre as formas de ciberativismo que existem na contemporaneidade podemos destacar, segundo Lemos (2003, p. 33), três grandes variantes: (1) Conscientização e informação, como as campanhas promovidas pela Anistia Internacional, Greenpeace ou a Rede Telemática de Direitos Humanos. (2) Organização e mobilização, a partir da Internet, para uma determinada ação (convite para ações concretas nas cidades). (3) Iniciativas mais conhecidas por ‘hacktivismo’, ações na rede, envolvendo diversos tipos de atos eletrônicos como o envio em massa de e-mails, criação de listas de apoio e abaixo-assinados, até desfiguramentos (defacing) e bloqueios do tipo DoS (Denial of Service).
Muitas primaveras (árabes)15 depois, uma diversidade de movimentos ciberativistas tem encontrado nas redes um espaço vital para a efetivação de táticas de resistência civil, sobretudo em questões de organização e mobilização, a partir da utilização de aplicativos de mídias sociais em ubiquidade com os protestos e atos coletivos pela cidade. O chamado para as manifestações, parte do ciberespaço para unir o povo nas ruas das cidades, encadeando humanos e dispositivos na luta pela sobrevivência.
Apesar do perigo do controle algorítmico programado pela base ideológica que orientam os aplicativos e seu comportamento nas redes, precisamos entender que “[...] todas as armas podem ser usadas para o bem ou para o mal” (Singer, 2019, p. 106). Como educadores, não podemos nos ater apenas ao caráter negativo dos aplicativos e nos ausentarmos do diálogo nesses espaços, até porque, nossos interlocutores ainda estarão lá.
Uma técnica não é boa, nem má (isto depende dos contextos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades) [o que nos impõe a necessidade de] situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela transporta e de decidir o que dela fazer (Lévy, 2000, p. 26).
A sensatez pode ser o melhor termômetro para verificar de que modo são idealizados os projetos políticos e o que os seres humanos estão criando a partir deles. Como não existe imparcialidade, e como todos são orientados por uma base ideológica (Freire, 2014), a inclusão precisa ser a nossa motivação para aprender a produzir uma infinidade de projetos (outros), onde cada intencionalidade, cada discurso político e ideológico, crie e propague os usos que inovem na perspectiva de garantir que se autorizem os sujeitos, que se potencialize o sentimento de pertença, de colaboração e de cidadania.
A docência na cibercultura proporciona oportunidades de múltiplas experimentações e expressões, provocando situações de inquietação criadora e mobilização da experiência e do conhecimento através da interatividade em sala de aula (Silva, 2009). Nesse contexto de enfrentamentos, o papel docente é fundamental na construção de sua própria perspectiva crítica como também por mediar todo o processo crítico formativo dos praticantes.
A concepção de um docente ciberativista ou de um ciberativismo docente parte da implicação do mesmo com a causa e o interesse de “[...] mobilizar, informar e agir, tendo como suporte essencial de luta as novas tecnologias do ciberespaço” (Lemos, 2003, p. 2). Uma perspectiva muito importante, tendo em vista os diversos ataques que a classe tem sofrido como um dos alvos preferenciais do atual governo e de todos os membros de sua família. Sob o pretexto de combater uma pretensa doutrinação marxista e a ‘ideologia de gênero’16 nas escolas, apadrinham-se projetos como o ‘Escola Sem Partido’17 e a caça desembestada ao educador, simbolizado na pessoa de Paulo Freire, como o verdadeiro culpado pelo fracasso do sistema educacional brasileiro.
Um argumento, imoral que busca combater, na verdade, a liberdade de cátedra e a autonomia universitária que tanto são necessárias à profissão docente. A educação que a intolerância defende é aquela que oprime o professor ao impedir seu posicionamento crítico e que restringe a liberdade de reflexão na abordagem dos conteúdos de sua área do conhecimento. Um projeto de cultura do ódio que espera que os próprios educandos participem da caçada daqueles que os ajudam a compreender sua história, sua cultura, e cooperam na luta contra as injustiças sociais e as explorações dos ‘mitos’ que os impedem de se libertarem das amarras do fracasso.
Quem, melhor que o oprimido, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida (Freire, 2014, p. 17).
Compreender a aquisição de informação nesse cenário complexo e múltiplo de fontes, de dispositivos e de aplicativos móveis, nos inspirando também para com eles, mover práticas que invistam fortemente em outras possibilidades de utilização, de apropriações e de subversões, estabelecendo assim um contexto dialógico entre a cultura, as práticas e os dispositivos pelos quais somos atravessados todos os dias enquanto buscamos informação. Esse é o nosso principal desafio na atualidade.