SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1Populismos e identidade(s). Um conteúdo relevante no ensino das ciências sociais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.70525 

APRESENTAÇÃO

A ascensão dos populismos e a crise democrática: desafios para o ensino das ciências humanas e sociais hoje

Amurabi Oliveira1  * 
http://orcid.org/0000-0002-7856-1196

Antoni Santisteban Fernández2 
http://orcid.org/0000-0001-7978-5186

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

2Departament de Didàctica de la Llengua i la Literatura, i de les Ciències Socials, Universitat Autònoma de Barcelona, Barcelona, Espanha.


Apresentação

A questão da democracia sempre esteve no horizonte do debate educacional, ainda que esse debate seja marcado por inúmeros desencontros (Saviani, 2008). Tal questão evidencia-se no caso de países que sofreram descontinuidades em suas experiências democráticas, marcados por ditaduras civis e militares, como no caso do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e Espanha, apenas para pensarmos em alguns exemplos iberoamericanos. Ademais, mesmo em países com uma sólida tradição democrática têm observado a ascensão de movimentos autoritários e antidemocráticos, que passam a ganhar cada vez mais visibilidade, culminando em alguns casos com a eleição de chefes de Estado alinhados com o populismo autoritário. Neste contexto, as ciências humanas e sociais passam a ocupar um lugar central no debate, considerando seu papel histórico no currículo escolar com a formação crítica dentro de um projeto de sociedade democrática (Evans, 2011; Pagès & Santisteban, 2010; Sant & Brown, 2020; Oliveira, 2021).

Encontram-se recorrentemente articulados a esses projetos populistas autoritários movimentos de extrema-direita, que têm recebido distintas denominações na literatura sobre o tema, tais como: nacional-populista, iliberal, radical, autoritária, extrema, ultraconservadora, fascista, neofascista, pós-fascista (Eatwell & Goodwin, 2018; Mudde, 2019; Revelli, 2017; Traveso, 2019). Interessante perceber que este movimento ocorre num momento no qual os fundamentos da democracia passam a ser atacados de novas formas. Como bem destacam Levitsky e Ziblatt (2018), as democracias não são ameaçadas hoje apenas pela via da violência - como costumava ocorrer no século XX - pois de forma bastante paradoxal o retrocesso democrático começa nas urnas, com a eleição de figuras autoritárias que, legitimamente eleitas, aos poucos vão minando a democracia por dentro.

Tais figuras e movimentos autoritários percebem amiúde a escola como um dos principais campos de batalha em torno de um determinado modelo de sociedade, realizando uma verdadeira empreitada contra a ‘ideologia de gênero’, o ‘comunismo’, o ‘marxismo cultural’, o ‘globalismo’, dentre outras terminologias que muitas vezes ocupam um lugar de significantes vazios. Currículos oficiais, livros didáticos, cursos de formação de professores, passam a ser questionados e revisados, novos projetos de leis passam a ser elaborados visando evitar a ‘doutrinação ideológica’ dos professores. No Brasil ganha destaque a atuação do movimento ‘Escola sem partido’, que apoiou abertamente Jair Bolsonaro durante que sua eleição em 2018, e tem inspirado diversos projetos de lei em diversos estados e municípios (Oliveira, 2020). Apesar desses movimentos buscarem combater o ensino de temas considerados controversos em sala de aula, como ‘gênero’, ‘sexualidade’, ‘racismo’ etc., investigações no campo da didática das ciências sociais tendem a apontar para a relevância desse debate em sala de aula, assim como sua potencialidade pedagógica (Santisteban, 2019).

Devemos compreender, portanto, que a análise em torno dos embates que envolvem a ascensão dos populismos autoritários no campo educacional é uma das questões centrais do campo educativo na atualidade. Esse tem sido um aspecto ainda pouco explorado nos periódicos em educação, especialmente considerando o papel do ensino das ciências sociais nesse processo. Buscamos, portanto, trazer uma contribuição original e inédita para um periódico brasileiro, e que apesar da relevância política, social e educacional desta temática, ela ainda é pouco explorada de forma sistemática na literatura especializada.

Se compreendemos que o currículo reflete as relações de poder em uma sociedade (Apple, 2006), devemos considerar, portanto, que estamos diante de uma disputa aberta em torno de um determinado ideal de sociedade a ser construído a partir da escola (Ross, 2019). Neste sentido cabe-nos indagar qual o papel das ciências sociais no fortalecimento do projeto democrático e quais os desafios que se colocam para sua prática pedagógica?

Compreender os desafios que são postos neste contexto ao campo educacional como um todo, e ao ensino das ciências sociais em particular, mostra-se como fundamental para o avanço do debate acadêmico no momento atual. Isso inclui não apenas a compreensão de realidades de países como Brasil, Turquia, Hungria, Polônia, dentre outros, mas também de países com uma sólida tradição democrática que cada vez mais presencia a ascensão de movimentos que se situam nesse espectro político.

Neste número agregamos contribuições de pesquisadores de diversas partes do mundo, por compreendermos que esse movimento de ascensão do populismo autoritário é um global, incidindo de diversas formas a nível nacional e local.

Iniciando o debate, “Populismos e identidad(es). Un contenido relevante en la enseñanza de las Ciencias Sociales” de autoria de Noelia Pérez-Rodríguez, Nicolás de Alba-Fernández e Elisa Navarro-Medina indicam que a ascensão do populismo é um problema para a democracia, levantando como hipótese que esse tipo de discurso se conecta melhor com a população que outros mais democráticos. Partindo de uma pesquisa qualitativa realizada com estudantes do curso de formação de professores da Universidade de Sevilha, os autores indicam que os docentes em formação dão pouca relevância à política para explicar suas identidades. Mediante os resultados, eles indicam que é necessário que os modelos formativos considerem a abordagem da política como uma questão relevante na formação da identidade dos futuros professores e dos estudantes da educação básica.

Gustavo González-Valencia, Neus González-Monfort, Núria Arís Redó e Antoni Santisteban em “Competências da Cultura Democrática do Conselho da Europa: como é interpretada a partir da formação de professores” focam no processo e nos desafios de construção de uma cultura democrática, enfocando no papel de instituições supranacionais, a Comissão Europeia e a União Europeia. O objetivo do trabalho é analisar a incorporação dessas Competências para a Cultura Democrática (CDC) indicadas por tais instituições como necessárias para a construção de uma cultura democrática nos programas de formação de professores, indicando a existência de um quadro geral que promove a incorporação das CDC no curso analisado.

Em “Ensinar a esquecer - ensino de história e extrema direita”, Karla Saraiva e Fernando Seffner analisaram como a extrema direita vem buscando transformar o ensino de história, deslocando-o da historiografia academicamente aceita para narrativas gloriosas no formato de um romance nacional. Eles discutiram de forma mais específica as produções da Brasil Paralelo na forma de história pública e tensionamos essa versão a partir de um estudo etnográfico da cultura escolar, demonstrando a existência de aproximações entre as formas historiográficas e métodos de divulgação das propostas pela extrema direita, mas também indica alguns afastamentos.

José Luis Zorrilla Luque, Adriana Razquin Mangado e Carmen Rosa García Ruiz em “Memoria Democrática en tiempos de populismo. Pensamiento histórico y emociones en profesorado en formación” apontam como que há na Espanha uma recorrente negação dos acontecimentos violentos e traumáticos ocorridos no período da guerra civil espanhola e do franquismo. Os autores investigam como que os futuros docentes percebem a memória histórica e democrática, centrando-se nas controvérsias que geram e que se manifestam na forma de discursos de ódio que ocultam ou omitem os acontecimentos do passado. Para os autores introduzir tais debates na formação de professores se vincula fortemente às discussões sobre as emoções.

Francisco Thiago Silva em “Educação e a luta antinazifascista no Brasil: implicações para o campo dos estudos curriculares na voz de estudantes de mestrado e doutorado” busca compreender as principais implicações e consequências que a ascensão da extrema direita no Brasil provocou na educação a partir da percepção de estudantes de mestrado e doutorado que cursaram uma disciplina na área de currículo e formação docente, em um Programa de Pós-Graduação em Educação de uma universidade federal da região Centro Oeste do Brasil, no período de 2.2022 por meio da aplicação de um questionário de perguntas semi-estruturadas. No trabalho o autor aponta para a possibilidade da existência de um ‘currículo fascistizado’, marcado pelo caráter autoritário e monocentrado em toda a sua arquitetura pedagógica, além de não tomar a ciência como centro. Diante dos resultados, o autor considera impreterível elaborar e praticar um ‘currículo crítico e socialmente anticapitalista e antinazifascista’.

Tocando em um tema central do debate contemporâneo, Patricia Gómez Saldivia, Antoni Santisteban Fernández e Sixtina Pinochet Pinochet.em “Representaciones sociales del profesorado de ciencias sociales em formación sobre la libertad de expresión” partem de um estudo de caso, através de uma pesquisa realizada com professores em formação na área de educação para a cidadania e história no Chile, para investigar como os docentes em ciências sociais percebem a questão da liberdade de expressão. Foi percebido que as representações desses agentes se relacionam ao direito constitucional, indicando como limite para o mesmo o discurso de ódio.

“Sobreviventes e náufragos: reflexões sobre Filosofia e Sociologia no Ensino Médio no contexto de disputas sociopolíticas contemporâneas” de Gustavo Louis Henrique Pinto, Patrícia da Silva Santos , Elisângela da Silva Santos e Marcos Alfonso Rucinski Spiess busca problematizar os condicionantes de permanência da disciplina de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio, na educação brasileira, em contexto de crise democrática e avanço do autoritarismo na última década. De forma mais específica, os autores se voltam para a sobrevivência da Filosofia e Sociologia na Rede Federal, ressaltando o contexto político adverso para essa permanência e a persistente situação de ameaça. Na interpretação dos autores, há uma baixa institucionalização e a fragmentação da presença da Filosofia e da Sociologia na Educação Básica, que reforçam a deslegitimação do conhecimento científico e das Ciências Humanas.

Focando um elemento mais específico presente no debate educacional brasileiro contemporâneo, Inaê Iabel Barbosa e Amurabi Oliveira em “O ‘Combate à ‘Ideologia de gênero’’ e o impacto sobre o ensino de ciências humanas sociais”, examinam a ascensão de movimentos conservadores na sociedade brasileira e seu impacto na educação, algo que vem sendo moldado ao menos desde de 2013 na interpretação dos autores, ganhando proeminência com o impeachment contra Dilma Rousseff, em 2016, e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Segundo os autores, os professores de ciências humanas e sociais são especialmente impactados por essas ações, na medida em que os estudos de gênero são constitutivos de seus campos disciplinares, e ao mesmo tempo têm seu caráter científico negado por tais movimentos, indicando que eles abarcam algo que deve ser do âmbito privado, e, portanto, ensinado pela família e não pela escola.

Esperamos que o conjunto dos trabalhos possa contribuir para o debate, situando o ensino de ciências sociais na discussão contemporânea sobre a crise da democracia no mundo. Boa leitura!

Referências

Apple, M. (2006). Ideologia e currículo. Porto Alegre, RS: Artmed. [ Links ]

Eatwell, R., & Goodwin, M. (2018). National populism: The revolt against liberal democracy. Londres, UK: Pelican. [ Links ]

Evans, R. W. (2011). The hope for American school reform: The cold war pursuit of inquiry learning in social studies. New York: Palgrave Macmillan. [ Links ]

Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. [ Links ]

Mudde, C. (2019). The far right today. Cambridge, UK: Polity Press. [ Links ]

Oliveira, A. (2020). La enseñanza de las Ciencias Sociales en Brasil hoy. REIDICS: Revista de Investigación en Didáctica de las Ciencias Sociales, (7), 207-222. DOI: https://doi.org/10.17398/2531-0968.07.207 [ Links ]

Oliveira, A. (2021). Reading the world through the educational curriculum: The Social Sciences curriculum in Brazil in the context of the rise of conservatism. Bellaterra Journal of Teaching & Learning Language & Literature, 14 (2), 1-16. DOI: https://doi.org/10.5565/rev/jtl3.948 [ Links ]

Pagès, J., & Santisteban, A. (2010). La educación para la ciudadanía y la enseñanza de las ciencias sociales, la geografía y la historia. Íber. Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, 64, 8-18. [ Links ]

Revelli, M. (2017). Populismo 2.0. Turim, IT: Einaudi. [ Links ]

Ross, E. W. (2019). Humanizing critical pedagogy: What kind of teachers? What kind of citizenship? What kind of future? Review of Education, Pedagogy, and Cultural Studies, 4(5), 371-389. DOI: https://doi.org/10.1080/10714413.2019.1570792 [ Links ]

Sant, E., & Brown, T. (2020). The fantasy of the populist disease and the educational cure. British Educational Research Journal, 47(2), 409-42. DOI: https://doi.org/10.1002/berj.3666 [ Links ]

Santisteban, A. (2019). La enseñanza de las Ciencias Sociales a partir de problemas sociales o temas controvertidos: estado de la cuestión y resultados de una investigación. El Futuro del Pasado, (10), 57-79. DOI: https://doi.org/10.14516/fdp.2019.010.001.002 [ Links ]

Saviani, D. (2008). Escola e Democracia (Edição Comemorativa). Campinas, SP: Autores Associados. [ Links ]

Traveso, E. (2019). The new faces of fascism: Populism and the far right. Londres, UK: Verso. [ Links ]

* Autor para correspondência. E-mail: amurabi.oliveira@ufsc.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons