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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.68066 

Chamada Temática: A ascensão dos populismos e a crise democrática: desafios para o ensino das ciências humanas e sociais hoje

O “combate à ‘ideologia de gênero’” e o impacto sobre o ensino de ciências humanas sociais

La “lucha contra la ‘ideología de género’” y su impacto en la enseñanza de las ciencias humanas y sociales

1Universidade Estadual de Campinas, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, 13083-970, Campinas, São Paulo, Brasil.

2Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.


RESUMO.

O presente trabalho volta-se para o debate contemporâneo sobre a chamada ‘ideologia de gênero’, analisando, por meio de uma revisão bibliográfica, o processo de incorporação desse debate pelas chamadas ‘novas direitas’ no contexto brasileiro a partir de 2013. No bojo das transformações políticas ocorridas nesse período, destacam-se o impeachment contra Dilma Rousseff, em 2016, e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. O chamado ‘combate à ideologia de gênero’ ganha ainda mais visibilidade no campo educacional, com destaque para a atuação do movimento Escola sem Partido, fundado em 2004. Popularizam-se no Brasil projetos de leis inspirados nesse movimento que objetivam limitar a autonomia docente, estimulando também o contínuo processo de vigilância desses profissionais, especialmente no que diz respeito às discussões sobre gênero e sexualidade. Constatamos que, nesse contexto, os professores de ciências humanas e sociais são especialmente impactados por essas ações, na medida em que os estudos de gênero são constitutivos de seus campos disciplinares. Observamos, ainda, que o principal mecanismo desses movimentos é negar o caráter científico dos estudos de gênero, indicando que eles abarcam algo que deve ser do âmbito privado, e, portanto, ensinado pela família e não pela escola. Argumentamos, no entanto, que esse debate deve ser trazido para o centro da prática pedagógica, considerando sua relevância social e científica.

Palavras-chave: ideologia de gênero; ensino de ciências humanas e sociais; radicalismo de direita

RESUMEN.

Este estudio se centra en el debate contemporáneo sobre la llamada ‘ideología de género’, analizando, a través de una revisión bibliográfica, el proceso de incorporación de este debate por parte de las llamadas ‘nuevas derechas’ en el contexto brasileño a partir de 2013. En medio de las transformaciones políticas que ocurrieron durante este período, destacan el juicio político contra Dilma Rousseff en 2016 y la posterior elección de Jair Bolsonaro en 2018. El denominado ‘combate a la ideología de género’ adquiere aún más visibilidad en el ámbito educativo, con un papel destacado desempeñado por el movimiento ‘Escola sem Partido’ (Escuela sin Partido), fundado en 2004. En Brasil, se popularizan proyectos de ley inspirados en este movimiento que tienen como objetivo limitar la autonomía de los docentes, fomentando así un continuo proceso de vigilancia sobre estos profesionales, especialmente en lo que respecta a las discusiones sobre género y sexualidad. En este contexto, observamos que los profesores de ciencias humanas y sociales son especialmente afectados por estas acciones, ya que los estudios de género son parte integral de sus campos disciplinarios. Además, notamos que el principal mecanismo empleado por estos movimientos es negar el carácter científico de los estudios de género, sugiriendo que abarcan temas que deben permanecer en el ámbito privado y, por lo tanto, ser enseñados por las familias y no por las escuelas. Sin embargo, sostenemos que este debate debe ser llevado al centro de la práctica pedagógica, considerando su relevancia social y científica.

Palabras-clave: ideología de género; enseñanza de ciencias humanas y sociales; radicalismo de derecha

ABSTRACT.

This study focuses on the contemporary debate surrounding the so-called ‘gender ideology’, analyzing, through a literature review, the process of incorporation of this debate by the so-called ‘new right’ in the Brazilian context starting from 2013. In the midst of the political transformations that occurred during this period, the impeachment against Dilma Rousseff in 2016 and the subsequent election of Jair Bolsonaro in 2018 stand out. The so-called ‘fight against gender ideology’ gained even more visibility in the field of education, with a notable role played by the ‘Escola sem Partido’ (School without Party) movement, founded in 2004. Projects inspired by this movement, aimed at limiting teachers' autonomy, gained popularity in Brazil, leading to a continuous process of surveillance of these professionals, particularly regarding discussions about gender and sexuality. In this context, we find that teachers in the humanities and social sciences are especially affected by these actions, as gender studies are integral to their disciplinary fields. Furthermore, we observe that the main mechanism employed by these movements is to deny the scientific character of gender studies, suggesting that they encompass topics that should remain within the private sphere and, therefore, taught by families and not by schools. However, we argue that this debate should be brought to the center of pedagogical practice, considering its social and scientific relevance.

Keywords: gender ideology; teaching, teaching of humanities and social sciences; right-wing radicalism

Introdução

Ao observar aspectos do novo radicalismo de direita na Alemanha da década de 1960, Adorno (2020) buscou evidenciar que tal fenômeno poderia ser explicado pelo fato de que pressupostos de movimentos fascistas perduram socialmente. Mais recentemente, como analisa o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (Tricontinental, 2021), assim como no Norte Global, também na América Latina ‘novas’ direitas afloraram como uma reação ao aumento no número de governos nacionais progressistas e à consequente ampliação de direitos que o subcontinente experienciou nos últimos vinte anos.

Não por acaso, por toda parte vemos atores de direitas radicais não tradicionais ganhando peso, visibilidade e incidência de massas, transformando e ampliando seu espectro político-discursivo (Tricontinental, 2021). Álvarez, Martín, e Puello-Socarrás (2020) chamam atenção para este fato afirmando que, ainda que diversos episódios eleitorais e o perfil político de lideranças, organizações, programas e políticas públicas conservem certa continuidade histórica em relação às origens da ideologia ultradireitista, as estratégias das direitas emergentes na América Latina também expressam novos modos de articulação política e novas modalidades de (re)construção da hegemonia. Trata-se, portanto, de uma reação que relança projetos conservadores, e que pode ser entendida como ‘novas roupas’ que vêm sendo tecidas com ‘velhos fios’ como o racismo, o classismo, a homofobia, a misoginia, o autoritarismo, o militarismo e a repressão (Tricontinental, 2021).

É especialmente relevante o fato de que tais ofensivas se desdobram fortemente no terreno da disputa de sentido e por meio da ampliação da fronteira discursiva em direção à extrema direita. A partir de tal constatação, o Instituto Tricontinental (2021) identificou três aspectos que caracterizam as estratégias comunicacionais e os procedimentos de construção discursiva da reação conservadora na América Latina: (1) a renovação de uma matriz conspiratória e de uma história focada nos perigos do avanço das esquerdas, combinada com a criação de um inimigo externo e poderoso, e a aposta em figuras salvacionistas e/ou protetoras; (2) o apelo às denominadas ‘paixões tristes’ e à indignação por meio de campanhas difamatórias, fake news etc.; e (3) o destaque concedido aos problemas de segurança pública e o incentivo ao punitivismo e à repressão.

Apesar de mencionar que as ofensivas das direitas emergentes na América Latina vêm se desdobrando em nome de instituições e valores tradicionais como a família e o papel ‘natural’ do homem e da mulher, a análise desenvolvida pelo Instituto Tricontinental (2021) não se ocupou de um fenômeno extremamente relevante para o recente crescimento das direitas na América Latina: as políticas antigênero.

Corrêa e Parker (2021) contribuem com o debate ao evidenciarem que essa recente guinada à extrema direita na região latino-americana contém, em seu âmago, esse tipo de política que se articula por meio de estratégias de preservação ou restauração de ordens sexuais e de gênero. Miskolci e Campana (2017), ao remontarem a trajetória histórica das políticas antigênero na América Latina, caracterizam as mesmas como uma reação específica à ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, conquistados pela luta de movimentos sociais durante a vigência de governos progressistas. Esta reação dá origem a diversas estratégias de ataques à luta por e à ampliação de tais direitos, que se reúnem sob o conceito de ‘ideologia de gênero’ no subcontinente.

Neste sentido, as políticas antigênero, ou seja, as diversas ações conservadoras ou reacionárias estrategicamente produzidas com o objetivo de preservar ou restaurar ordens sexuais e de gênero (Corrêa & Parker, 2021) se constituem como parte fundamental do espectro político-discursivo das ‘novas’ direitas radicais na América Latina. Portanto, parece sensato afirmar que a compreensão das estratégias comunicacionais de agentes que (re)produzem a linguagem antigênero se configura como uma tarefa indispensável à sociologia política contemporânea.

Propomos, então, no presente trabalho, uma discussão sobre aspectos do novo radicalismo de direita no Brasil, a fim de refletir sobre o lugar do combate à ‘ideologia de gênero’ no amplo projeto conservador-reacionário que avança no país ao menos desde as chamadas ‘jornadas de junho’ de 2013 e com mais intensidade a partir das manifestações pró-impeachment de 2015, e, de modo mais específico, sobre como esses acontecimentos impactam o ensino das ciências humanas e sociais, na medida em que inúmeros professores dessa área passaram a ser alvos de denúncias por parte de movimentos como o ‘Escola sem partido’, acusados de ‘doutrinação ideológica’.

Para tanto, dedicamos uma primeira seção à discussão sobre a extrema direita emergente no Brasil, a partir das pesquisas de Messenberg (2017) e Cesarino (2019; 2020), em diálogo com as elaborações teóricas de Adorno (2020) e Laclau (2009), respectivamente sobre o novo radicalismo de direita e sobre o populismo. Na seção seguinte, remontamos à trajetória histórica das políticas antigênero no Brasil. Posteriormente, adentramos, então, na reflexão sobre o combate à ‘ideologia de gênero’ no Brasil e sua relação com a agenda conservadora-reacionária que já vinha sendo gestada ao menos desde 2013 e que atinge seu apogeu com a eleição de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 (Cesarino, 2019). Por fim, buscamos evidenciar como que esses processos impactam o ensino de ciências humanas e sociais.

Observamos que o principal mecanismo de movimentos como o ‘Escola sem partido’ é negar o caráter científico dos estudos de gênero, indicando que eles abarcam algo que deve ser do âmbito privado, e, portanto, ensinado pela família e não pela escola. Argumentamos, no entanto, que esse debate deve ser trazido para o centro da prática pedagógica, considerando sua relevância social e científica.

O novo radicalismo de direita no Brasil

Na primeira década dos anos 2000, o Brasil viveu um momento político em que “[...] a esquerda aderia cada vez mais à economia de mercado, de um lado, e a direita, de outro, com o fenômeno que convencionou-se chamar de direita envergonhada, não assumia a sua identidade ideológica” (Fuks & Marques, 2020, p. 2). Porém, uma interrupção nessa tendência de deslocamento de partidos importantes em direção ao centro da escala ideológica tem sido observada ao menos desde 2013, com a ascensão da Lava Jato e dos movimentos anticorrupção e pró-impeachment (Cesarino, 2019), e com ainda mais intensidade a partir de 2015, ano em que diversas manifestações levaram centenas de milhares de pessoas às ruas nas principais cidades brasileiras e revelaram a existência de grupos de perfil conservador com convicções de cunho segregador e autoritário no país (Messenberg, 2017)1. Soma-se a esse cenário o fato de que a popularização das mídias sociais acelera-se a partir dos anos de 2010 no Brasil, e os movimentos de direita conseguem captar de melhor forma esse acontecimento (Miskolci, 2021).

Segundo Fuks e Marques (2020), essa descontinuidade no cenário político nacional está relacionada ao surgimento de uma nova direita nas ruas, no parlamento, nos meios de comunicação e na internet, e se desdobrou em uma polarização política no Brasil. Como observa Cesarino (2019, p. 531), “[...] esse rearranjo, que já vinha sendo gestado gradual e discretamente por meio de mídias sociais e outros fóruns na internet, ganhou força e projeção repentinas na esfera pública com a vitória meteórica de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018”.

É interessante que a análise de Fuks e Marques (2020) demonstra que essa recente ‘polarização’ na política brasileira não corresponde a um extremismo ideológico da direita e da esquerda, proporcional e simultaneamente: se trata, mais especificamente, da radicalização dessa nova direita, que se desloca explicitamente para seu respectivo extremo da escala ideológica, enquanto a esquerda conserva a tendência, da primeira década dos anos 2000, a uma neoliberalização de sua agenda, aproximando-se do ‘centrão’ político. Nesse sentido, entendo que a ‘polarização’ política no Brasil deve ser entendida como uma das consequências de uma direita conservadora radical que ‘saiu do armário’ (Messenberg, 2017) renovada e que vem instaurando uma atmosfera belicosa na vida social brasileira, identificando inimigos político-ideológicos a serem eliminados.

Como bem argumenta Adorno (2020, p. 44), o principal meio de manutenção dos pressupostos sociais de movimentos radicais de direita é o propagandístico. Nas palavras do autor, a técnica de propaganda, que em sua perspectiva é a substância da política dos movimentos fascistas, consiste em “[...] um número relativamente pequeno de truques estandardizados e completamente objetivados, que sempre retornam, que são bastante pobres e fracos, mas que, por outro lado, ganham um certo valor propagandístico para esses movimentos por meio de sua repetição permanente”.

Messenberg (2017), ao pesquisar a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita em 2015, discute a construção de enquadramentos que servem como ‘chaves de leitura’ para a interpretação da conjuntura política nacional, mas também como organizadores e orientadores de ações políticas2. Os resultados da pesquisa da autora são bastante interessantes para a compreensão dos conteúdos da propaganda fascista (Adorno, 2020) do novo radicalismo de direita brasileiro.

Após identificar os principais movimentos sociais que deram suporte logístico e ideológico às manifestações de 2015, bem como suas lideranças e outros formadores de opinião, Messenberg (2017) pode sistematizar três campos semânticos que se apresentavam de forma regular e repetitiva no discurso desses agentes sociais. Como indica a autora, campos semânticos são enquadramentos veiculados pela mídia e pelas redes sociais e se constituem por meio da articulação e da repetição de ideias-força.

Os três campos semânticos sistematizados por Messenberg (2017) são: (1) o antipetismo, formado pelas ideias-força: impeachment (fora PT, fora Dilma, fora Lula), corrupção, crise econômica e bolivarianismo; (2) o conservadorismo moral, formado pelas ideias-força: família tradicional, resgate da fé cristã, patriotismo, anticomunismo, combate à criminalidade/aumento da violência e oposição às cotas raciais; e (3) os princípios neoliberais, formado pelas ideias-força: Estado mínimo, eficiência do mercado (privatização), livre iniciativa (empreendedorismo), meritocracia e corte de políticas sociais.

Cesarino (2020), ao analisar o conteúdo que circulava em grandes grupos pró-Bolsonaro no aplicativo WhatsApp durante e após a campanha eleitoral de 2018, a fim de entender a recorrência de certos padrões discursivos e estéticos, chegou ao que descreve como ‘populismo digital’, tendo a teoria de Laclau e Mouffe como pano de fundo.

Laclau (2009) defende que uma definição de populismo deve ser elaborada no terreno das ‘práticas’ políticas, e não dos movimentos ou das ideologias. Deste modo, nas palavras do autor, “[...] um movimento não é populista porque apresenta, em sua política ou ideologia, ‘conteúdos’ reais que podem ser identificados como populistas, mas sim porque mostra uma determinada ‘lógica de articulação’ desses conteúdos - quaisquer que sejam esses últimos” (Laclau, 2009, p. 52, grifos do autor, tradução nossa)3. O autor promove, portanto, um deslocamento do foco do debate sobre populismo, defendendo que importa menos ‘o que’ um movimento defende (seus conteúdos ideológicos) e sim ‘como’ articula seus conteúdos ideológicos (práticas políticas). Seu conceito de populismo é formal e não conteudista. Nas palavras do autor, resumidamente,

[...] só há populismo se existe um conjunto de práticas político-discursivas que constroem um sujeito popular, e a condição prévia para o surgimento de tal sujeito é, como vimos, a construção de uma fronteira interna que divide o espaço social em dois campos. Mas a lógica dessa divisão é estabelecida, como sabemos, pela criação de uma cadeia de equivalências entre uma série de demandas sociais nas quais o momento de equivalência prevalece sobre a natureza diferencial das demandas. Finalmente, a cadeia de equivalências não pode ser o resultado de uma coincidência puramente fortuita, mas deve ser consolidada mediante a emergência de um elemento que outorga coerência à cadeia por significá-la como totalidade. Este elemento é o que denominamos ‘significante vazio’ (Laclau, 2009, p. 64, grifo do autor, tradução nossa)4.

Nessa lógica, como coloca Cesarino (2020, p. 95), estruturante da campanha a favor de Bolsonaro nas redes sociais em 2018, “[...] populismo digital [...] refere-se tanto a um aparato midiático (digital) quanto a um mecanismo discursivo (de mobilização) e uma tática (política) de construção de hegemonia”. Porém, como destaca a autora, não se trata de simplesmente acrescentar o digital ao mecanismo populista clássico, descrito por Laclau em um contexto anterior ao advento da internet. Existem elementos novos, próprios das mediações do digital, que tornam este novo tipo de populismo distinto do clássico. Entre esses elementos, Cesarino (2019) destaca a ‘fractalização do mecanismo populista’ (sua capilarização entre os usuários de redes sociais e mídias digitais) e o ‘corpo digital do rei’ (a remoção do corpo físico de Bolsonaro do espaço público depois da ‘facada’ e sua substituição por um corpo digital formado por seus apoiadores que se autodenominavam ‘marqueteiros/fiscais/escudo/exército/robôs do Jair’).

Esta breve discussão nos permite considerar duas coisas. A primeira delas é que parece analiticamente potente que os aspectos do novo radicalismo de direita no Brasil sejam compreendidos nos termos de uma ‘mobilização constante’ (Cesarino, 2019), de uma propaganda fascista (Adorno, 2020) que tem por objetivo a veiculação regular e repetitiva, nas mídias digitais e nas redes sociais, de campos semânticos que servem como ‘chaves de leitura’ para a interpretação da conjuntura política nacional, e que organizam e orientam ações políticas (Messenberg, 2017). A segunda é que parece bastante interessante que a lógica de articulação (Laclau, 2009) dos conteúdos desses campos semânticos, ou seja, de suas ‘ideias-força’ (Messenberg, 2017), seja concebida como uma expressão de um ‘populismo digital’ (Cesarino, 2020) que cultiva diferenciações em relação ao mecanismo populista clássico descrito por Laclau (2009).

Tendo essas duas considerações analíticas como pano de fundo, propomos, então, uma reflexão sobre o lugar do combate à ‘ideologia de gênero’5 no amplo projeto conservador-reacionário que avança no país ao menos desde 2013. Mas, antes, revisemos a trajetória das políticas antigênero, do combate à ‘ideologia de gênero’ no Brasil.

Trajetória história das políticas antigênero no Brasil

Ao menos desde 2011 o combate à chamada ‘ideologia de gênero’ possui especial relevância na conjuntura política brasileira. Relacionada nesse primeiro momento à polêmica do ‘kit gay’ (material didático do programa ‘Escola sem homofobia’)6, a noção talvez tenha atingido sua popularidade máxima em 2014, quando estava em discussão a inclusão de questões de gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação (PNE), que estará em vigor até 2024 (Miskolci & Campana, 2017; Borges & Borges, 2018; Balieiro, 2018). É importante considerar, como nos coloca Hamlin (2020), que uma característica comum desses movimentos é a apropriação de categorias acadêmicas, subvertendo o sentido das mesmas, o que também teria ocorrido com ‘ideologia de gênero’, uma vez que seria relativamente consensual nas ciências humanas e sociais a existência de uma ideologia de gênero (sem aspas), que remete aos processos e dominação de produção de desigualdades a partir das relações de gênero.

Segundo Miskolci e Campana (2017), o combate à ‘ideologia de gênero’ já havia sido pautado na América Latina em 2007, durante a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam). Nesse evento, por meio do documento Aparecida, uma agenda comum contra a denominada ‘ideologia de gênero’ foi estabelecida, tendo em vista, entre outras coisas, a preocupação de religiosos católicos com relação às demandas políticas de grupos homossexuais e a necessidade da Igreja Católica de defender o conceito tradicional de família. Ainda segundo os autores, esses empreendedores morais se associam e se articulam nessa cruzada dentro de um ‘campo discursivo de ação’ e por meio de uma ‘gramática política’ comum contra o que denominam ‘ideologia de gênero’. Para os autores, essa gramática política “[...] opera na lógica dos fenômenos que a sociologia denomina de pânicos morais reconhecíveis quando emerge a retórica da sociedade sob ameaça” (Miskolci & Campana, 2017, p. 739-740).

Focalizando o contexto de discussão sobre a inclusão de questões de gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação (PNE) em 2014 - e, por consequência, nos planos estaduais e municipais -, Borges e Borges (2018, p. 13, grifos das autoras) nos oferecem mais detalhes sobre a conceituação do combate à ‘ideologia de gênero’ no Brasil como uma cruzada moral, em analogia aos movimentos militares cristãos que partiram da Europa Ocidental entre os séculos XI e XIII: “Com o intuito de salvaguardar a família tradicional brasileira, encontram o mal na inserção das questões de gênero e sexualidade nos planos educacionais; e, com a eficácia da disseminação da ‘ideologia de gênero’, pretendem excluir, como verdadeiros ‘cruzados morais’, o perigo iminente”.

As autoras argumentam, também apoiadas na sociologia do desvio de Howard Becker, que é adequado falar em ‘cruzados morais’ porque eles acreditam que sua missão é sagrada e destacam, ainda, que uma cruzada moral visa dois objetivos interdependentes: (1) criar regras e impor novas leis, e (2) estabelecer um novo grupo marginalizado, considerado ‘desviante’ dessas regras e leis.

No caso da cruzada contra a ‘ideologia de gênero’ no Brasil, quem são os empreendedores morais que criam e impõem novas leis? Miskolci e Campana (2017) identificam entre eles: setores da Igreja Católica, organizações ‘pró-vida’, organizações evangélicas e outros grupos que se engajam na batalha por razões não apenas religiosas, mas éticas, morais e/ou políticas, que podem não ser necessariamente da sociedade civil e podem atuar dentro de instituições, inclusive no governo. Borges e Borges (2018) concluem que se trata de setores conservadores liderados por grupos religiosos cristãos e políticos das bancadas religiosas do poder legislativo.

E como efeito da gramática política disseminada por esses empreendedores morais - gramática essa que se desenvolve apoiada em afirmações como: “[...] a ideologia de gênero quer acabar com a biologia [...]”; “[...] a ideologia de gênero quer excluir os conceitos de homem e mulher [...]”; “[...] a ideologia de gênero quer acabar com as famílias [...]”; “[...] a ideologia de gênero vai hipersexualizar as crianças e incentivar a homossexualidade [...]” (Borges & Borges, 2018, p. 13) - se disseminou o pânico moral sobre a ‘ideologia de gênero’. Ainda segundo Borges e Borges (2018), de modo geral, pânicos morais são situações em que um grupo de acontecimentos é tomado como uma ameaça aos valores e aos interesses da sociedade e, a partir disso, estratégias são criadas para seu enfretamento, até que a ameaça desapareça. No caso do pânico moral da ‘ideologia de gênero’ no Brasil:

Embora outros alarmes tenham sido levantados, tais como a ameaça à família e a suspensão do direito de expressão, foi com a construção da ameaça às crianças que a discussão teve ampla repercussão midiática, com consequências efetivas ao serem barradas iniciativas voltadas aos direitos humanos no que tange a gênero e sexualidade (Balieiro, 2018, p. 8).

Como demonstra Balieiro (2018), foi nesse contexto que o movimento político Escola sem Partido, criado em 2004 com foco no combate à ‘doutrinação ideológica comunista’ nas escolas brasileiras, se tornou um dos principais empreendedores morais no combate à chamada ‘ideologia de gênero’, forjando no seio dessa cruzada moral a figura da criança (ou adolescente) vulnerável e suscetível à manipulação de docentes com más intenções. Uma das principais ações do Escola sem Partido foi a disponibilização, em seu site oficial7, de projetos de lei federal, estadual e municipal para parlamentares proporem alterações nas bases normativas educacionais, a fim de proibir discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas (Balieiro, 2018).

Fica evidente, portanto, que “[...] os empreendedores morais contra o que chamam de ‘ideologia de gênero’ parecem partilhar com seus inimigos, defensores dos direitos humanos, a crença na educação como meio de formação política” (Miskolci & Campana, 2017, p. 738-739, grifos dos autores).

Ainda que caiba destacar que esses grupos se utilizam recorrentemente de estratégias complexas, nas quais em vez de combaterem os direitos humanos, passam a disputar no campo semântico seu significado (Oliveira, 2021). Corrêa e Parker (2021) inclusive destacam que a inclusão de questões de gênero e sexualidades na educação (especialmente pública) é alvo das políticas antigênero em todos os nove países latino-americanos por elas pesquisados. Cabe, então, sublinhar que o ‘fantasma’ da ‘ideologia de gênero’ se alastrou pelo Brasil especialmente por meio da discussão dos planos educacionais país afora (Miskolci, 2018; 2021) e que o Programa Escola sem Partido é um dos principais empreendedores morais dessa cruzada.

Frigotto (2017) busca entender o sucesso do Programa Escola sem Partido na historicidade de fatos e acontecimentos anteriores, pois defende que existem determinações muito profundas e pouco visíveis já sedimentadas nas relações sociais que sustentam as teses de tal programa. Para o autor, o Programa Escola sem Partido está diretamente ligado à estrutura colonial e escravocrata do Brasil, às heranças do golpe e da ditadura militar, à hegemonia dos grandes grupos econômicos e do capital financeiro, à educação regida por critérios e leis mercantis, ao imperialismo norte-americano, ao Estado policial e à lei antiterrorista, à manipulação midiática e à cultura da delação premiada (espraiada durante a operação ‘anticorrupção’ Lava Jato). Ademais, Frigotto (2017) compreende que, juntamente ao movimento ‘Todos pela Educação’, o Programa Escola sem Partido operou, no amplo contexto de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016, como ‘o núcleo empresarial golpista’ no campo da educação. Nesse sentido, o Escola sem Partido é compreendido como um programa de “[...] liquidação da escola pública como espaço de formação humana, firmado nos valores da liberdade, de convívio democrático e de direito e respeito à diversidade” (Frigotto 2017, p. 17).

Os principais efeitos das ações do Escola sem Partido sobre a educação brasileira passam pela mudança da função docente (ameaçando sua autonomia no ensino) e pelo ataque às universidades públicas e a disciplinas como a Sociologia, a Filosofia e demais ciências humanas (acusando-as de serem ideológicas e não científicas). Em resumo, nas palavras do autor: “[...] sob a ideologia da neutralidade do conhecimento e da redução do papel da escola pública de apenas instruir, esconde-se a privatização do pensamento e a tese de que é apenas válida a interpretação dada pela ciência da classe detentora do capital” (Frigotto, 2017, p. 29).

É fato que, a partir de 2014, se instaurou no Brasil uma batalha narrativa a respeito da proibição ou inserção de questões de gênero e sexualidade na educação escolar brasileira (César & Duarte, 2017), levando à retirada de qualquer menção à palavra gênero na versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2018, além de outros apagamentos, relacionados à regionalidade, raça etc. (Oliveira, 2021), e que, devido a isso, “[...] feministas, estudiosos/as das teorizações de gênero, da sexualidade e da diversidade sexual vêm se ocupando da análise desse fenômeno, tanto do ponto de vista global como local” (César & Duarte, 2017, p. 143). Porém, a partir de 2020, novos elementos foram introduzidos à gramática política de combate à ‘ideologia de gênero’ e uma nova estratégia foi posta em prática por parte de alguns dos empreendedores morais dessa cruzada.

Segundo Covas e Bergamini (2021), durante o ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma série de ações nas quais considerou inconstitucional diversas leis municipais e estaduais que proibiam a aplicação dos termos ‘gênero’ e/ou ‘orientação sexual’ em suas respectivas redes de ensino. O argumento central desses julgamentos era que tais leis contrariavam a proteção do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como a promoção da tolerância, como preveem a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Essa série de julgamentos desfavoráveis parece ter deslocado o foco das ações de parlamentares antigênero para a proibição do uso da linguagem neutra (ou não-binária) em escolas, em nome do ‘direito estudantil de aprender a língua portuguesa de acordo com a norma culta’ (Alfano, 2021). Ou seja, o mal a ser eliminado na cruzada moral de combate à ‘ideologia de gênero’, primeiramente localizado no denominado ‘kit gay’ e, logo em seguida, na presença de questões de gênero e sexualidade nos planos educacionais e na BNCC, foi agora identificado no uso da linguagem neutra ou não-binária em espaços escolares8.

Seidel (2021) afirma que em 2020 foram apresentados quatro projetos de lei federal na Câmara dos Deputados com o objetivo de proibir a linguagem neutra em instituições educacionais. Rodrigues, Brevilheri, e Nalli (2022), observaram que pelo menos 18 estados brasileiros e o Distrito Federal possuem projetos de lei, em tramitação ou aprovados, com o mesmo objetivo em suas respectivas Assembleias Legislativas. Não encontramos dados objetivos sobre as municipalidades brasileiras, mas em uma breve pesquisa exploratória, identificamos a existência de projetos de lei (tramitando ou aprovados) nas Câmaras Municipais de pelo menos 23 municípios de 11 estados brasileiros.

Antes de seguir para a reflexão sobre o lugar do combate à ‘ideologia de gênero’ no amplo projeto conservador-reacionário que avança no país ao menos desde 2013, consideramos importante pontuar algumas questões mais teóricas a respeito do fenômeno das políticas antigênero ou do combate à ‘ideologia de gênero’.

Primeiramente, reforçar que, como mencionamos anteriormente, esse fenômeno pode ser observado em diversos países da América Latina (como também em países da Europa e nos Estados Unidos). Ou seja, não é exclusivo do Brasil. Além disso, retomar o seguinte argumento de Bento (2017, p. 172): “Ora, não é de hoje que alguns parlamentares tentam atrelar e condicionar o Estado brasileiro a uma interpretação violenta do cristianismo. O que há de novo? Uma palavra, apenas uma palavra: identidade”. Como bem afirma a autora, a inserção e a relevância de discussões sobre identidades nos movimentos feministas e da diversidade parece ser um dos principais acontecimentos que levou setores conservadores e reacionários a se mobilizarem de forma mais intensa. Porque, mais que conquistar ou ampliar direitos sociais, o debate pautado nas identidades é um debate que questiona e desnaturaliza a biologia, o biológico, o ‘poder criativo de Deus’ (Butler, 2019). Nesse sentido, com essa ‘nova’ palavra e todas as discussões elaboradas a partir dela, “[...] a suposta estabilidade do gênero assentada no corpo (vagina-mulher-feminilidade-maternidade-família & pênis-homem-masculinidade-paternidade-família) começou a cair por terra” (Bento, 2017, p. 172).

Com esse diagnóstico, uma terceira questão precisa ser destacada: o amplo movimento ‘antigênero’, que acusa setores progressistas de estar disseminando uma ‘ideologia de gênero’, é extremamente pró-gênero e está completamente comprometido com a disseminação de uma ‘teoria de gênero biologizante’ (Bento, 2017). Na contemporaneidade, quem se diz antigênero e combatente da ‘ideologia de gênero’ na verdade se preocupa profundamente com a defesa e a manutenção dos gêneros que acreditam terem sidos ‘naturalmente’ criados por Deus, uma “[...] obra exclusiva do trabalho dos hormônios, dos cromossomos, dos formatos das genitálias e de outras estruturas biológicas” (Bento, 2017, p. 171). Em resumo: inclusiva ou transfóbica, sempre há uma ideologia e uma teoria de gênero fundamentado as práticas e os discursos sociais.9

O combate à ‘ideologia de gênero’ e o novo radicalismo de direita no Brasil

Messenberg (2017) observou que, entre as ideias-força que constituem o campo semântico ‘conservadorismo moral’, discursivamente articulado por formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros em 2015, encontra-se a ‘família tradicional’. Segundo a autora, os elementos discursivos frequentemente relacionados a essa ideia-força são: “[...] oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, oposição ao aborto, à ideologia de gênero nas escolas, à expansão do feminismo e a concordância com a ‘cura gay’” (Messenberg, 2017, p. 637, grifos da autora).

Portanto, embora o antipetismo tenha sido o campo semântico que reuniu o maior número de emissões discursivas dos formadores de opinião analisados por Messenberg (2017), é central na propaganda fascista (Adorno, 2009) da nova direita radical brasileira aquilo que Álvarez et al. (2020) chamam ‘narrativas sociais discriminatórias’: vetores ideológicos dirigidos à estigmatização e até mesmo à criminalização dos direitos humanos, das mulheres, da população LGBTQIAP+ , dos povos indígenas e afrodescendentes. Cesarino (2019) endossa tal argumento ao evidenciar que o ataque às políticas de identidade ou do reconhecimento desempenha um papel central na gramática populista de Bolsonaro.

Como demonstram Corrêa e Parker (2021, p. 13-14, grifos das autoras), o próprio conceito de ‘ideologia de gênero’ pode inclusive ser entendido, nos termos do mecanismo populista descrito por Laclau (2020), como um significante vazio:

Assim como ocorre no Leste Europeu, a ‘ideologia de gênero’ tem sido propagada na América Latina como uma cesta vazia, ou como um significante que envolve múltiplos conteúdos e alvos. A linguagem antigênero é popular, versátil e do senso comum. Ela deixou a semântica religiosa para trás e se apropriou de argumentos da biologia, biomedicina, demografia, assim como da democracia, cidadania e do direito. Na América Latina, um traço forte do espantalho antigênero é que, na maioria dos países, ele circula associada [sic] ao marxismo, comunismo ou totalitarismo.

Nesse sentido, propomos observar o fenômeno do combate à chamada ‘ideologia de gênero’ a partir das cinco funções metalinguísticas, ou padrões discursivos, que Cesarino (2020) identificou como recorrentes na totalidade do conteúdo que circulava em grupos pró-Bolsonaro durante e após a campanha eleitoral de 2018. Comecemos pela terceira dessas funções: mobilização permanente através de ameaça e crise.

Essa função metalinguística é muito bem evidenciada por Miskolci e Campana (2017), Borges e Borges (2018), e Balieiro (2018), quando criam o consenso de que a gramática política comum de combate à ‘ideologia de gênero’ opera na lógica dos pânicos morais. Há uma constante construção da ameaça à sociedade, à família, aos valores e, principalmente, às crianças (Balieiro, 2018).

A construção de um cenário de pânico moral em relação à ampliação de direitos sexuais e reprodutivos, e à intensificação dos debates sobre questões de gênero e sexualidades em diversas esferas da vida social, nos leva à consideração da primeira função metalinguística identificada por Cesarino (2020): fronteira antagonística amigo-inimigo. Afinal de contas, se há algo ou alguém sofrendo ameaças, logicamente há algo ou alguém ameaçando.

Como demonstra Cesarino (2019), a grande fronteira antagonística traçada pela memética bolsonarista10 é entre a militância feminista, LGBTQIAP+ e do movimento negro ‘contra’ os ‘cidadãos de bem’. Ou seja, a identificação do inimigo, responsável pela ameaça social da ideologia de gênero, não passa simplesmente pelas categorias ‘mulheres’, ‘gays’, ‘negros’ etc., mas sim pela politização dessas identidades por parte de militantes ‘esquerdistas’.

E isso nos leva à quarta função metalinguística característica da memética bolsonarista: espelhamento do inimigo e inversão de acusações. Pois, para sustentar a produção da ‘militância’ como o inimigo, “[...] minorias oprimidas passaram a ser vistas como fonte de opressão e de cerceamento de liberdades, ou como segmentos indevidamente privilegiados” (Cesarino, 2020, p. 109). Esse grande jogo de espelhamento e inversão discursiva explica a apresentação regular e repetitiva de termos como ‘ditadura gayzista’, ‘feminazis’ etc. em discursos da direita radical brasileira (ibidem).

Cesarino (2020) identificou ainda outra inversão característica da memética bolsonarista que é a ponte entre o espelhamento do inimigo e inversão de acusações, de um lado, e a segunda função metalinguística, a equivalência líder-povo, de outro. Nos referimos ao ‘anti-politicamente correto’, que contraria e espelha a militância feminista, LGBTQIAP+ e outras pautas identitárias, mas também produz uma identidade comum entre Bolsonaro, o líder populista, e ‘o povo brasileiro’, produzido discursivamente pela memética bolsonarista como cansado de ser oprimido e cerceado pelo ‘mi-mi-mi’ da militância esquerdista.

Nessa perspectiva, o ‘politicamente correto’ é identificado como uma ordem compulsória que fere as liberdades de expressão e de pensamento, e o líder e o povo se identificam mutuamente enquanto vítimas de tal opressão e sujeitos da mudança que desejam. Sobre esse ponto, é interessante relembrar o que afirma Fassin (2019, p. 60), em sua análise sobre a eleição de Trump nos EUA: “[...] o novo presidente não foi eleito apesar da sua atitude de xenofobia e racismo, mas por causa dela”.

Poderíamos, deslocando e adaptando tal afirmação para a realidade brasileira, dizer que Bolsonaro foi eleito não apesar de sua atitude machista, LGBTfóbica, ‘antigênero’ e politicamente incorreta, mas por causa dela. Afinal de contas, “[...] não há mal-entendido - pelo menos não à direita” (Fassin, 2019, p. 62). Tal atitude, em verdade, foi gasolina para um tipo específico de afeto que já incendiava os corações de uma parte da população brasileira: o ressentimento.

Como define Fassin (2019, p. 70), “[...] o ressentimento é a ideia de que há outros que desfrutam do prazer no meu lugar e, se eu não desfruto, é por culpa deles. E tal raiva impotente se torna, por sua vez, prazer”. A identidade comum do ‘anti-politicamente correto’ pode ser pensada, então, como uma forma de articulação de uma política de ressentimento cultural que tem como ponto de partida o desejo de recuperar posições de dominação e privilégio que foram supostamente ‘confiscadas’ pela militância de certas minorias sociais (Fassin, 2019).

Por fim, a última função metalinguística identificada por Cesarino (2020) e que faltaria mobilizar aqui para refletirmos sobre o fenômeno do combate à ideologia de gênero no Brasil é a quinta: produção de um canal midiático exclusivo. O cerne dessa função metalinguística é a deslegitimação de instâncias de produção de conhecimento, como a academia e as mídias profissionais. Nesse sentido, vemos tal padrão discursivo se manifestar no próprio menosprezo pelas produções teóricas resultantes do acúmulo científico de décadas de pesquisas no campo dos estudos feministas, relegando-as a uma ‘ideologia’ arbitrária e infundada.

Tal prática se desenvolve apoiada em regimes de pós-verdade que, como define Harsin (2015), são o resultado de mudanças históricas na dinâmica dos aparelhos e discursos de produção de verdade; de distinção do que é verdadeiro daquilo é falso - o que Foucault denominou ‘regimes de verdade’. Decorre daí que, nesse novo contexto, a produção de verdade “[...] sempre envolve uma afirmação cuja veracidade está em questão [...]” (Harsin, 2015, p. 2, tradução nossa)11, o que torna oportuno a agentes políticos especialmente ricos em recursos

[...] explorar e incentivar o reconhecimento do ceticismo em relação às autoridades culturais no jornalismo, na política e nas disciplinas acadêmicas, cada uma com seus especialistas. Eles multiplicam afirmações de verdade (muitas vezes divertidamente tabloides) cujo significado, se não a veracidade, não é fácil ou rapidamente confirmado (Harsin, 2015, p. 5, tradução nossa)12.

No caso dos contextos escolares, a pós-verdade tem um impacto direito sobre o questionamento acerca da autonomia docente, bem como sua capacidade de arbitrar sobre a verdade em termos científicos (Peters, 2017). Cesarino (2020) oferece um exemplo de como a pós-verdade opera no combate à ‘ideologia de gênero’ por parte da direita radical brasileira. A autora relembra a propaganda bolsonarista contra o chamado ‘kit gay’ e destaca que:

[...] qualquer um podia cortar, colar, montar (gravar um vídeo, um áudio) e compartilhar sua própria versão caseira desse signo do inimigo. Nas redes bolsonaristas, o kit gay circulou como puro significante (no sentido de Saussure), a ponto de perder qualquer conexão com um referente concreto. Ninguém nunca viu o kit gay original, e, não obstante, enquanto significante flutuante ele produziu efeitos reais sobre o eleitorado (Cesarino, 2019, p. 102).

Esse é um ótimo exemplo do quão eficaz é essa produção de um canal midiático exclusivo para a manutenção da propaganda ideológica do novo radicalismo de direita no Brasil. Ao mesmo tempo, fica também evidente a inovação do mecanismo populista que o digital provoca, garantindo sua fractalização, capilarizando-o entre os usuários de redes sociais e mídias digitais.

O impacto desse cenário no ensino de ciências humanas e sociais

A compreensão de que a identidade de gênero é uma construção social e que não reflete necessariamente o sexo biológico é algo relativamente consensual no campo das ciências humanas e sociais, de modo que esse debate acaba sendo também recorrente nas aulas de professores nessa área do conhecimento. Eventualmente professores de Filosofia, Geografia, História ou Sociologia abordarão essa temática, considerando o próprio impacto dos estudos de gênero nessas disciplinas, bem como a relevância de analisar a sociedade a partir desse prisma. Todavia, em um cenário como esse que acabamos de descrever, como isso impacta o ensino de ciências humanas e sociais?

Como já indicado anteriormente, a versão final da BNCC não faz menção à categoria gênero, o que reflete as diversas disputas existentes nesse campo, e como que grupos conservadores conseguiram pautar suas demandas nas políticas educacionais. Notadamente devemos destacar que a aprovação da versão final de BNCC ocorreu em um momento de inflexão democrática, no contexto do pós impeachment ainda no governo de Michel Temer, marcado por uma guinada à direita nas políticas de Estado, e pela ausência de apoio popular (Estellés, Oliveira, & Castellví, 2023). A retirada da categoria gênero da versão final da BNCC visa, objetivamente, questionar a legitimidade de professores que porventura venham a lecionar tais conteúdos, buscando produzir neles uma espécie de ‘autocensura’ por receio de serem denunciados.

Evans, Avery, e Pederson (1999) já debatiam esse assunto no final da década de 1990, a partir do caso estadunidense, indicando que os professores de estudos sociais frequentemente optam por silenciar diante de tópicos considerados demasiadamente controversos e, em alguns casos, tornam-se tabu. Ao que nos parece, a estratégia dos grupos conservadores no Brasil é, justamente, produzir um cenário no qual os professores sejam silenciados e evitem determinados conteúdos, ainda que sejam conteúdos relevantes socialmente e com um amplo respaldo da comunidade científica.

Os agentes vinculados à Escola sem Partido, seja através de artigos ou declarações na impressa, insistem em um determinado tipo de distinção que delimitariam a atuação docente: cabe à família educar e à escola instruir. Repousa ao fundo dessa divisão a ideia da educação como um ato moral, centrado nos valores familiares, ao passo que a escola forneceria fundamentos de conhecimentos de caráter técnico-científico, recorrentemente compreendidos de forma estreita13. Os ataques às ciências humanas e sociais ocorre, justamente, nas brechas abertas por essa divisão e pelo caráter arbitrário que ela possui, uma vez que parte expressiva dos conhecimentos dessas ciências são classificadas por esses movimentos como algo que seria do âmbito da educação familiar e não do conhecimento científico.

Evidencia-se ainda o fato de que no contexto da pós-verdade as evidências científicas são postas em um segundo plano, a favor das convicções pessoais. Esse cenário fortalece o negacionismo científico, algo que fora ainda mais evidenciado no contexto da pandemia do Covid-19 (Caponi, 2020), demonstrando que a negação da ciência e a desinformação científica afeta não só as ciências humanas e sociais, como também as ciências naturais.

Deve-se atentar para o fato, portanto, de que nesse jogo de classificação os estudos de gênero são classificados como ‘ideologia’ na medida que não seriam ciência, e assim sendo, seriam algo do âmbito privado, familiar, e não da arena pública, escolar. Trata-se de uma estratégia discursiva que afeta de forma mais direta os professores de ciências humanas e sociais, como podemos observar a partir das denúncias encontradas no próprio site do Escola sem Partido (Oliveira, 2022).

Uma das pautas que também ganha fôlego entre os apoiadores do Escola sem Partido diz respeito ao direito dos estudantes filmarem seus professores, o que funcionaria como um mecanismo de vigilância. Esse processo chega a se institucionalizar durante a gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), mais especificamente como uma ação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanas (MDH), que estava sob o comando de Damares Alves, uma vez que em 2021 constou no Manual de Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ‘Ideologia de gênero’ como um ataque aos direitos humanos, portanto, passível de denúncia pelo ‘disque 100’.

Um exemplo desse processo de institucionalização da perseguição aos professores da educação básica ocorreu em dezembro de 2021, quando a Polícia Civil intimou a Escola Municipal Getúlio Vargas localizada na cidade de Resende (RJ). Segundo a intimação, ocorreu uma denúncia anônima que fora encaminhada pelo MDH:

A vítima sofre a seguinte violação: Denunciante informa que a Escola Municipal Getúlio Vargas está expondo adolescentes aos conceitos comunistas, induzindo sua ideologia política. Além de também pregar ensinamentos de ideologias de gênero. Denunciante alega que a responsabilidade de direcionar a conduta dos jovens pertence unicamente aos pais e não a escola (Leal, 2021).

Além dos mecanismos institucionalizados e dos projetos de lei que tramitam em diversos níveis do legislativo, também são recorrentes denúncias contra os professores que viralizam em redes sociais e ganham repercussão ainda maior ao serem difundidas por políticos conservadores. Em março de 2022 viralizou um vídeo de um professor de sociologia do município de Jaguariúna (SP), no qual ele debate conceitos referentes à identidade de gênero, conteúdo previsto no currículo do estado de São Paulo, tendo sido o vídeo compartilhado pelos deputados federais Flávio Bolsonaro (PL-SP) e Carla Zambelli (PSL-SP). Como consequência, o professor e sua família receberam ameaças e foi necessário registrar um boletim de ocorrência sobre o caso (Las Casas, 2022).

O que nos interessa ao destacar esses casos é evidenciar o modus operandi dessas ações no âmbito escolar, e sobre como que os docentes que atuam nas ciências humanas e sociais tornam-se alvos preferenciais dessas ações, uma vez que o debate sobre gênero e sexualidade é constitutivo desse campo.

É válido ainda ressaltar que os temas controversos em sala de aula podem ser compreendidos como importantes recursos pedagógicos, na medida em que tais temas possuem uma importante capacidade de engajar os estudantes em sala de aula (Fernandéz, 2019). Compreende-se assim que tais temas não deveriam produzir uma autocensura nos professores, mas sim abrir espaços de debates em sala de aula.

Se compreendermos que os princípios pedagógicos e epistemológicos do ensino das ciências sociais assentam-se no estranhamento e na desnaturalização da realidade social (Moraes & Guimarães, 2010), significa que o debate sobre o conceito de gênero encontra-se no cerne dessa discussão, na medida em que essa categoria nos possibilita descolar a identidade do sexo biológico, compreendendo o processo de construção sociocultural elaborado em sociedade. Tal conhecimento é fundamental para os estudantes da educação básica, na medida em que os auxilia a compreender as transformações em curso, além de expandir sua compreensão singular de mundo.

Considerações finais

A partir das pesquisas de Messenberg (2017) e Cesarino (2019; 2020), em diálogo com as elaborações teóricas de Adorno (2020) e Laclau (2009), respectivamente sobre o novo radicalismo de direita e sobre o populismo, buscamos discutir aspectos da nova direita radical brasileira, e como isso impacta o ensino de ciências humanas e sociais.

Foi proposta, uma reflexão sobre o lugar do fenômeno do combate à ‘ideologia de gênero’ no amplo projeto conservador-reacionário radical que avança no país ao menos desde 2013. Entendendo a cruzada moral contra a ‘ideologia de gênero’ como a articulação de um campo discursivo de ação no qual uma gramática política comum é (re)produzida (Miskolci & Campana, 2017), ficou evidente como tal fenômeno está diretamente relacionado ao campo semântico ‘conservadorismo moral’ e, de forma especial, à ideia-força ‘família tradicional’, constituída por elementos discursivos como oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, oposição ao aborto, à ideologia de gênero nas escolas, à expansão do feminismo e a concordância com a ‘cura gay’ (Messenberg, 2017).

Nesse sentido, é notável que narrativas sociais discriminatórias (Álvarez et al., 2020) possuem um papel central na recorrente e repetitiva gramática populista-digital de Bolsonaro (Cesarino, 2020). De forma que é possível observar o fenômeno do combate à ‘ideologia de gênero’ a partir das cinco funções metalinguísticas, ou padrões discursivos, que Cesarino (2020) identificou como recorrentes na memética bolsonarista.

No âmbito das escolas, observou-se a criação de mecanismos institucionais e não institucionais de denúncia contra os professores acusados de doutrinarem os estudantes em sala de aula, na medida em que movimentos ‘antigênero’ negam o caráter científico das ciências humanas e sociais. O gênero é uma ‘ideologia’ para tais movimentos, pois não seria ciência, e assim não teria espaço na estrutura escolar, compreensão essa que não possui fundamentação acadêmica.

Em que pese as denúncias contra os professores de ciências humanas e sociais, compreendemos que o debate sobre gênero é constitutivo desse campo, e que os temas controversos devem estar no centro do debate dessas esferas de saberes. A consolidação de um projeto democrático de sociedade perpassa justamente pelo debate público de determinados temas, o que também encontra-se em consonância com a concepção sociopolítica do conhecimento escolar, se o compreendermos nos termos postos por Young (2007), como um conhecimento poderoso que o estudante não acessaria por outro espaço que não a escola. Situando o problema desse modo, os professores de ciências humanas e sociais seriam peças-chave para o combate à desinformação científica no âmbito de seus respectivos campos disciplinares, e, por consequência, para reorientarmos o debate sobre a chamada ‘ideologia de gênero’ no Brasil.

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1Ainda que já no começo dos anos 2000 alguns movimentos de direita já se organizavam em ‘resposta’ ao que estava ocorrendo no país, como o Escola sem Partido, por exemplo, que surge em 2004.

2Sobre esses formadores de opinião, Rodrigues (2018) nos oferece elementos interessantes para refletir sobre as novas modalidades de (re)construção da hegemonia por parte de agentes da nova direita brasileira. A autora chama de ‘mercado de reações’ o fenômeno que, partindo de um acordo discursivo a respeito de uma ‘hegemonia cultural de esquerda’, torna jornalistas-professores e professores-jornalistas conservadores ofertantes de enquadramentos, ‘chaves de leitura’, que seus contratantes e sua clientela demandam. Rodrigues (2018) foca sua análise especialmente em agentes como Olavo de Carvalho, Demétrio Magnoli, Marco Antonio Villa, Reinaldo Azevedo, Luiz Felipe Pondé, Rodrigo Constantino e Leandro Karnal.

3No original: “[...] un movimiento no es populista porque en su política o ideología presenta ‘contenidos’ reales identificables como populistas, sino porque muestra una determinada ‘lógica de articulación’ de esos contenidos -cualesquiera sean estos últimos-.”

4No original: “[…] sólo hay populismo si existe un conjunto de prácticas político-discursivas que construyen un sujeto popular, y la precondición para el surgimiento de tal sujeto es, como hemos visto, la construcción de una frontera interna que divide el espacio social en dos campos. Pero la lógica de esa división es establecida, como sabemos, por la creación de una cadena equivalencial entre una serie de demandas sociales en las cuales el momento equivalencial prevalece por sobre la naturaleza diferencial de las demandas. Finalmente, la cadena equivalencial no puede ser el resultado de una coincidencia puramente fortuita, sino que debe ser consolidada mediante la emergencia de un elemento que otorga coherencia a la cadena por significarla como totalidad. Este elemento es lo que hemos denominado ‘significante vacío’”.

5“Esse conceito tem sido utilizado de forma bastante ampla por grupos conservadores religiosos e laicos na esfera pública, não apenas no Brasil, mas em diversos países. Ainda que a categoria ‘gênero’ seja bastante consolidada no âmbito das ciências humanas e sociais, remetendo em sua gênese à medicina, ela tem sido utilizada como indutor de pânico moral pelos movimentos conservadores, ainda que eles a utilizem de forma plástica, sem haver necessariamente uma definição clara de seu sentido, assentando-se exclusivamente na ideia de que ela representa uma ameaça. Destaca-se ainda que tais movimentos opõem recorrentemente o termo ‘ideologia de gênero’ a uma concepção assentada em uma perspectiva que reduz os papéis sociais (relacionados a gênero e sexualidade) ao sexo biológico” (Oliveira, 2023, p. 2, grifos do autor). Ou seja, apesar de ser um termo que remete a uma longa tradição teórica nas ciências humanas (Hamlin, 2020), ele acaba assumindo um papel de significante vazio ao ser incorporado à gramática desses movimentos conservadores (Cesarino, 2019), bastante plástico, tornando-se uma ferramenta de ‘ataque à ideologia de esquerda’ em um sentido mais amplo.

6O Projeto Escola sem Homofobia se originou do Brasil Sem Homofobia, nome dado ao Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual elaborado pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Saúde em 2004. Uma parte do Programa Brasil Sem Homofobia enfatizava a necessidade de uma formação docente sobre questões de gênero e sexualidade, então um kit composto por um livro, boletins informativos e vídeos seria distribuído às instituições educativas de todo o país. Em 2011, antes mesmo do material ser impresso, setores conservadores do Congresso Nacional iniciaram uma campanha contra o projeto, liderada por Bolsonaro (na época deputado pelo Partido Progressista - PP). Na campanha, o material do Escola sem Homofobia foi apelidado ‘kit gay’ sob a argumentação de que estimulava o ‘homossexualismo’ e a promiscuidade - nas palavras de Bolsonaro (Bolsonaro critica 'kit gay'..., 2011; Soares, 2015).

7Recuperado de http://escolasempartido.org/

8É válido mencionar que, durante o período de campanha eleitoral de 2022, outro fenômeno tornou-se alvo da cruzada moral de combate à ‘ideologia de gênero’ por também ser concebido como um perigo a ser eliminado: a implantação de banheiros unissex. De modo mais específico, o fenômeno se tornou pauta da campanha de Jair Bolsonaro, na condição de candidato à reeleição como presente pelo PL à época, por meio da disseminação de fake news em redes sociais, afirmando que seu oponente Lula (PT) implantaria banheiros unissex em escolas de educação infantil (Pinho, 2022).

9Aqui destacamos os trabalhos de Butler (2015) e Vergueiro (2015) a respeito da produção discursiva do ‘sexo biológico’ como ‘pré-discursivo’ para a (re)produção e a manutenção de normas cisheteronormativas de gênero.

10‘Memética bolsonarista’ refere-se aos padrões discursivos e estéticos pró-Bolsonaro que circularam amplamente em redes sociais em forma de memes, textos, áudios e vídeos curtos durante a campanha eleitoral de 2018 (Cesarino, 2019).

11No original: “[…] it always involves a statement whose veracity is in question”.

12No original: “[…] to exploit and encourage the recognition of skepticism toward cultural authorities in journalism, politics, and the academic disciplines, each with their experts. They multiply truth claims (often entertainingly tabloidesque) whose meaning, if not veracity, is not easily or quickly confirmed”.

13Fugiria ao foco e ao escopo desse artigo, porém é importante enfatizar que essa concepção também se desdobra em outra pauta desses movimentos: o homescholing, compreendido como fundamental para garantir o ‘direito’ dos pais de educarem seus filhos de forma apartada de valores morais dos quais discordem.

24NOTA: Inaê Iael Barbosa contribuiu com a concepção, a revisão bibliográfica, a escrita e a revisão do artigo e Amurabi Oliveira contribuiu com a revisão bibliográfica, a escrita e a revisão do artigo.

Recebido: 01 de Maio de 2023; Aceito: 31 de Julho de 2023

* Autor para correspondência: E-mail: inaeib@outlook.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Inaê Iabel Barbosa: Estudante de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na linha de pesquisa em Estudos de Gênero. Possui Licenciatura em Ciências Sociais (2019) e Mestrado em Sociologia e Ciência Política (2023) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0644-1996 E-mail: inaeib@outlook.com

Amurabi Oliveira: Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Livre-docente em Cultura e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com estágio pós-doutoral em Didática das Ciências Sociais pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB, Espanha). Atualmente, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7856-1196 E-mail: amurabi.oliveira@ufsc.br

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