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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.26  Santa Maria  2022  Epub 15-Out-2022

https://doi.org/10.1590/2236-3459/117075 

Artigo

PERMANÊNCIAS E RUPTURAS NAS TRAJETÓRIAS DE DUAS INTELECTUAIS EM SUAS PRÁTICAS CULTURAIS DE MEDIAÇÃO NO PARANÁ (1850-1920).

ESTANCIAS Y RUPTURAS EN LA TRAYECTORIA DE DOS INTELECTUALES EN SUS PRÁCTICAS CULTURALES DE MEDIACIÓN EN PARANÁ (1850-1920)

STAYS AND BREAKS IN THE TRAJECTORY OF TWO INTELLECTUALS IN THEIR CULTURAL PRACTICES OF MEDIATION IN PARANÁ (1850-1920)

PERMANENCES ET RUPTURES DANS LE CHEMIN DE DEUX INTELLECTUELS DANS LEURS PRATIQUES DE MÉDIATION CULTURELLE AU PARAN (1850-1920)

Alexandra Padilha Bueno* 
http://orcid.org/0000-0002-0351-0060

Graciele Dellalibera de Mello** 
http://orcid.org/0000-0002-0383-0523

*Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), Paranaguá/PR, Brasil.

**Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR, Brasil.


Resumo

O objetivo deste artigo é examinar o tema da educação feminina a partir do estudo da trajetória de duas intelectuais: Iria Corrêa e Mariana Coelho, analisando suas práticas culturais de mediação, no Paraná, no período que se estende entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Embora as duas tenham vivido em temporalidades distintas, desempenharam o papel de intelectuais mediadoras, configurando em suas trajetórias, práticas culturais que se caracterizaram por oferecer opções artísticas e educativas para mulheres em seus contextos de atuação. O corpus documental deste trabalho é composto por fontes da imprensa periódica paranaense, Relatórios da Inspetoria Pública do Paraná (1906-1917) e as memórias de Antonio Vieira dos Santos (1952). Metodologicamente a opção deste artigo é o trabalho com a perspectiva de intelectuais mediadores (SIRINELLI), o conceito de trajetória (BOURDIEU) e de gênero (SCOTT).

Palavras-chave: mulheres intelectuais; história da educação; intelectuais mediadores

Resumen

El objetivo de este artículo es examinar el tema de la educación femenina a partir del estudio de la trayectoria de dos intelectuales: Iria Corrêa y Mariana Coelho, analizando sus prácticas culturales de mediación en Paraná, en el período comprendido entre la segunda mitad del siglo XIX y las primeras décadas del siglo XX. Si bien las dos han vivido en temporalidades distintas, desempeñaron el papel de intelectuales mediadoras, configurando en sus trayectorias prácticas culturales que se caracterizaron por ofrecer opciones artísticas y educativas para las mujeres en sus contextos laborales. El corpus documental de esta obra está compuesto por fuentes de la prensa periódica de Paraná, Informes de la Inspección Pública de Paraná (1906-1917) y las memorias de Antonio Vieira dos Santos (1952). Metodológicamente, la opción de este artículo es trabajar con la perspectiva de los intelectuales mediadores (SIRINELLI), el concepto de trayectoria (BOURDIEU) y de género (SCOTT).

Palabras clave: mujeres intelectuales; historia de la educación; mediadores intelectuales

Abstract

The aim of this article is to examine the theme of female education from the study of the trajectory of two intellectuals: Iria Corrêa and Mariana Coelho, analyzing their cultural practices of mediation in Paraná, in the period between the second half of the 19th century and the first decades of the 20th century. Although the two have lived in different temporalities, they played the role of mediating intellectuals, configuring in their trajectories cultural practices that were characterized by offering artistic and educational options for women in their working contexts. The documentary corpus of this work is composed of sources from the periodical press of Paraná, Reports of the Public Inspectorate of Paraná (1906-1917) and the memories of Antonio Vieira dos Santos (1952). Methodologically, the option of this article is to work with the perspective of mediating intellectuals (SIRINELLI), the concept of trajectory (BOURDIEU) and gender (SCOTT).

Keywords: intellectual women; history of education; intellectual mediators

Résumé

Le but de cet article est d'examiner le thème de l'éducation des femmes à partir de l'étude de la trajectoire de deux intellectuelles : Iria Corrêa et Mariana Coelho, en analysant leurs pratiques culturelles de médiation au Paraná, dans la période comprise entre la seconde moitié du xixe siècle et les premières décennies du 20e siècle. Bien que les deux aient vécu dans des temporalités différentes, elles ont joué le rôle d'intellectuels médiateurs, configurant dans leurs trajectoires des pratiques culturelles qui se caractérisaient par l'offre d'options artistiques et éducatives pour les femmes dans leurs contextes de travail. La presse périodique du Paraná, les Rapports de l'Inspection publique du Paraná (1906-1917) et les mémoires d'Antonio Vieira dos Santos (1952). Méthodologiquement, l'option de cet article est de travailler avec la perspective des intellectuels médiateurs (SIRINELLI), la notion de trajectoire (BOURDIEU) et de genre (SCOTT).

Mots-clés: femmes intellectuelles; histoire de l'éducation; médiateurs intellectuels

Introdução

A ampliação dos objetos de pesquisa, assim como sua observação e análise em variadas escalas na produção historiográfica recente, permitiu que o campo da história dos intelectuais se apropriasse de tal renovação. Seus objetos foram perpassados por uma nova relação que mesclou seus antigos interesses na história política com a história social e cultural. Tais arranjos derivam de um entendimento mais amplo sobre o que caracterizaria o termo intelectual, o qual passou a englobar tanto homens quanto mulheres que se sobressaíram em seus campos de atuação, fossem eles políticos, filosóficos, estéticos, científicos, literários e/ou religiosos, conforme explicita Carlos Eduardo Vieira (2011).

Todas essas áreas de conhecimento têm em comum, no século XIX e início do XX, a ação de notórios agentes imbuídos de certa autoridade ou reconhecimento pela sociedade a que pertencem. Suas intervenções no meio social, em maior ou menor grau, permitem o rastreamento e mapeamento do registro de suas ações e de seus impactos nessa sociedade.

Assim, é que a educação e a instrução feminina no Paraná, enquanto projeto coletivo, esteve atrelado às ideias de mudança e reestruturação da sociedade. Essas foram organizadas, em geral, pelos dirigentes econômicos e que também se tornaram ao longo do processo uma elite intelectual e/ou mentora dos direcionamentos da infraestrutura e das relações sociais no período.

Com a emancipação da Província de São Paulo, o Paraná teve suas ações governamentais e particulares documentadas, como é o caso das práticas culturais difundidas através da educação feminina, a partir da segunda metade do século XIX.

A imprensa é fonte fundamental para análise das ações dessas intelectuais, atuantes em períodos e formas diferenciadas. Para tanto partimos da noção de intelectual anunciada por Jean-François Sirinelli, sendo:

[...] uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os “mediadores” culturais, a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento. No primeiro caso, estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. Nos degraus que levam a esse primeiro conjunto postam-se uma parte dos estudantes, criadores ou “mediadores” em potencial, e ainda outras categorias de “receptores de cultura”. (SIRINELLI, 2003, p. 242).

Sendo assim, analisar os intelectuais é observar estes dois grupos, ou seja, tanto os criadores, quanto os divulgadores e vulgarizadores que, por sua vez, fazem os produtos culturais atingirem outros grupos, ou seja, as práticas culturais de difusão ou transmissão (GOMES; HANSEN, 2016).

Muitos desses mediadores culturais, como as mulheres, foram considerados de pouca notoriedade, entretanto “[...] representaram um fermento para as gerações intelectuais seguintes, exercendo uma influência cultural e mesmo às vezes política” (SIRINELLI, 2003, p. 246).

De tal forma, temos num período anterior à chamada “geração de ilustrados” (VIEIRA, 2011), mediadores culturais de uma cultura erudita burguesa, sobretudo europeia, que incluiu a arte na educação feminina, mesmo que dentro dos padrões de gênero vigentes. Tal educação permitiu que Iria Corrêa (1839-1887) se apropriasse da linguagem artística e de símbolos de uma classe, produzindo uma série de pinturas que retratavam, mesmo que de forma idealizada, a condição de seu grupo social.

No início do século XX, com uma maior circulação de saberes e engajamento social por parte desses intelectuais, temos Mariana Coelho (1857-1954), educadora e feminista portuguesa que chegou a Curitiba no ano de 1893 onde se manteve atuante até a década de 1940.

Engajada na causa da emancipação feminina, Mariana Coelho encontrou espaço na imprensa para a divulgação de suas ideias em um campo ainda restrito à participação das mulheres, utilizando-se de suas amizades e parcerias com intelectuais de sua época. Ela teve uma intensa participação no cenário intelectual curitibano, escreveu e publicou seis livros e um número considerável de artigos e notas em periódicos locais, também sustentou uma relação de proximidade com instâncias culturais regionais, nacionais e internacionais, como a Academia de Letras do Paraná, o Centro de Cultura Feminino, a Loja de Adoção Filhas de Acácia, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e a International Woman Suffrage Alliance. Mariana Coelho trocou ampla correspondência com associações nacionais e internacionais, sendo que parte desse material se encontra preservada pelo Arquivo Nacional, compondo o que se chama de cartas fundadoras do “movimento feminista organizado”, datadas da década de 1920.

Em relação às suas experiências no campo educacional, Mariana Coelho foi proprietária e diretora do Colégio Santos Dumont, em Curitiba, Paraná. Fundada em 1902, era uma instituição privada de escolarização para o ensino primário e secundário, destinada à ambos os sexos, ofertando habilitação para a matrícula na Escola Normal. Também oferecia o curso de prendas domésticas voltado ao ensino de trabalhos com agulha, curso de Línguas Estrangeiras e Música (COELHO, 1905, p. 3). Após o fechamento do Colégio Santos Dumont, Mariana Coelho passou a atuar na Escola Profissional Feminina de Curitiba, primeiro como secretária e professora de datilografia e, posteriormente, como diretora da instituição, cargo que ocupou até meados de 1940. Nesses espaços e na cena pública, defendeu a participação feminina em diferentes campos de atuação, os direitos políticos e civis das mulheres, a ampliação de sua cidadania e de sua educação formal.

Para Sirinelli (2003), os intelectuais possuem em comum a “sensibilidade ideológica ou cultural” e o que ele chama de “redes”, que seriam as “[...] estruturas de sociabilidade” (p. 248), ou os espaços de encontro e elaboração de ideias e que variam de acordo com o período.

A imprensa, um dos espaços de sociabilidade intelectual, atrelada a outras fontes, fornece um caminho para identificar tanto as ideias em circulação, quanto a presença e o suporte de grupos específicos.

No caso das intelectuais, suas ações devem ser observadas sob o aspecto de gênero, pois muitas vezes, essas foram minimizadas, porém, não inviabilizadas, como demonstram as fontes. A categoria de gênero utilizada na análise permite buscar correlações que apontem as construções culturais em torno do comportamento feminino na sociedade em questão e que, em nosso entendimento, influenciou na, maior ou menor, visibilidade dessas mediadoras culturais (SCOTT, 1995).

Sobre as trajetórias aqui abordadas, tomamos como referência a perspectiva de Bourdieu (2005), sendo que:

[...] diferente das biografias comuns, a trajetória descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor (ou intelectual) em estados sucessivos do campo, tendo ficado claro que é apenas na estrutura de um campo, isto é, repetindo, relacionalmente, que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicações em tal ou qual revista, ou por tal ou qual editor, participação em tal ou qual grupo, etc. (p. 73).

Iniciamos nosso percurso em 1849, período anterior a emancipação do Paraná (1853), portanto, quando a quinta Comarca de Curitiba e Paranaguá ainda pertencia a Província de São Paulo. Nesse momento, a elite econômica de Paranaguá tratava de se apropriar de hábitos provenientes da burguesia europeia, a fim de se distinguir dos demais habitantes. Tais hábitos culturais eram disseminados de formas variadas, desde a convivência com estrangeiros, passando pelos impressos nacionais e internacionais e chegando à instrução feminina. Assim, a instrução feminina da elite passou a ser realizada, preferencialmente, por estrangeiras que ofertavam novos modelos de comportamento às jovens, incluindo conhecimentos relacionados à arte (MELLO, 2018).

Esse modelo educacional se baseava no determinismo biológico vigente (SAFFIOTI, 2013), era balizado pelo patriarcado e pela religião (MANOEL, 1996), entretanto, abriu algumas brechas àquelas que tiveram acesso a ela. Tal ação estava inserida num projeto mais amplo das famílias de elite, segundo Pompília Lopes dos Santos (1948), e que se destinava “a levantar o nível intelectual de Paranaguá”, começando com a criação do colégio feminino dirigido pelas inglesas Jessica e Willie James, mãe e filha, “ambas cultas” (p. 125). Em 1856, era inaugurado outro colégio aos mesmos moldes, com professoras de origem francesa, dando continuidade à apropriação de uma cultura importada por parte das filhas dessa elite, da qual temos como representante a pintora Iria Corrêa. Ela registrou muitos desses conhecimentos e das ideias do grupo a que pertencia em suas telas.

No que concerne à trajetória de Mariana Coelho, de origem portuguesa, ela chega a Curitiba no contexto da virada do século XIX para o século XX. Nesse período, a capital paranaense experimentou o clímax do ciclo da erva-mate. Não obstante, esse ciclo econômico fosse uma atividade regional, a partir dele foi possível o desenvolvimento e o fomento em distintos campos da vida cultural curitibana (BEGA, 2001, p. 112). Mariana Coelho, soube aproveitar o capital simbólico que possuía para angariar apoiadores e permear o campo cultural curitibano, ainda bastante restrito à participação de mulheres.

No contexto apresentado, a localização das intelectuais, de algumas de suas ações e deslocamentos, nem sempre foram registrados por elas e, sim, por homens. Nesse sentido, o presente artigo busca identificar a presença dessas mulheres à partir de fontes documentais de diferentes naturezas e de distintas autorias, tais como aquelas oriundas da imprensa periódica paranaense, balizadas no período entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, os Relatórios da Inspetoria Pública do Paraná (1906-1917), a cartilha de alfabetização João de Deus (1878), as memórias de Antonio Vieira dos Santos (1952) acerca de Paranaguá e algumas pinturas de Iria Corrêa.

O termo intelectual, por seu caráter polissêmico (SIRINELLI, 2003), permite certa amplitude de uso, cabendo ao historiador sua delimitação a partir das fontes. Dessa maneira, são abordadas as trajetórias de duas intelectuais que contavam com certa notoriedade em seus grupos culturais e na sociedade local, participando de diferentes maneiras da elaboração, circulação e transmissão de ideias no contexto em que estavam inseridas.

PERSCRUTANDO PISTAS ACERCA DA EDUCAÇÃO FEMININA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

A cidade portuária de Paranaguá, até a emancipação em 1853, era a mais conhecida da região. Sua elite econômica, independentemente da origem, elaborou discursos acerca da modernização da infraestrutura urbana e social nas cidades, buscando abandonar tradições mais populares em prol daquelas tidas como “mais civilizadas” (PEREIRA, 1992, p. 12).

Esses discursos elaborados por homens e, em geral, encontrados na imprensa periódica, apontaram alguns caminhos para a construção das relações sociais do período. Neles, a questão do acesso à instrução de meninas e meninos era apontado como algo moderno, pois se configurava como espaço de inserção de novos hábitos, como visto no Relatório do Presidente da Província, Vaz de Carvalhaes (1857).

Essa função civilizadora colocada sob o patamar de mudanças estruturais e sociais, segundo José Ricardo Pires de Almeida (1989), teria aumentado com a chegada da família Real de Portugal (1816). Para o autor, o apreço pela música, e que depois inspirou o teatral, se alastrou da nobreza às camadas mais ricas e depois entre funcionários mais simples (ALMEIDA, 1989). Tanto que a imprensa periódica teria passado, na segunda metade do século XIX, da mera descrição dos atos políticos a:

[...] propagandista do que havia de bom e belo. Foi então que começaram a aparecer as revistas literárias e de instrução, as escolas públicas e os colégios particulares que, abertos um atrás do outro, elevaram o nível das aspirações. (ALMEIDA, 1989, p. 54).

Castro, Palmeiras, São José dos Pinhais e Ponta Grossa tinham registro de escola de instrução pública primária datada de 1831, Curitiba e Paranaguá eram as únicas que tinham registro de cadeira do sexo feminino e masculino à época (ALMEIDA, 1989). Lembrando que nem sempre as vagas estavam ocupadas por professores.

O memorialista Antonio Vieira dos Santos (1952) registra que em 1849, teria surgido o primeiro colégio particular para meninas, na cidade de Paranaguá, e que teve como professoras as inglesas Jessica James e sua filha Willie (MELLO, 2018).

Na instrução disseminada por essas mulheres estrangeiras estavam inseridos os hábitos que direcionavam as alunas ao recato, ao apreço do lar e à maternidade, incluindo-se nesse rol de conhecimentos a arte (MELLO, 2018). O âmbito doméstico era colocado como de domínio das mulheres da elite, ficando a seu encargo o comando da organização da casa, o cuidar e educar das crianças, bem como as festas familiares e aquelas destinadas à sociedade (PERROT, 2017).

Entre os chás beneficentes, banquetes e concursos organizados para angariar fundos para instituições de atendimento a pobreza, foi possível que essas mulheres, ao final do século XIX, ampliassem sua autonomia, sendo reconhecidas por suas competências no trabalho que realizavam (PERROT, 1991). Dessa forma, elas contribuíram para que se estabelecesse o tripé que compunha os fundamentos das chamadas “profissões femininas”: ensinar, tratar e assistir (PERROT, 1991, p. 508). Além de ter facilitado o contato entre as mulheres de diferentes estratos e espaços sociais, configurando-se ainda como um “germe” para o desenvolvimento de outros movimentos de mulheres.

Assim, as professoras James estiveram entre as primeiras a difundir esse ideal de cultura burguesa na região do Paraná, ofertando às suas alunas:

Doutrina cristã, leitura, caligrafia, aritmética, línguas portuguesa, francesa e inglesa gramaticalmente, geografia, história, música, piano, dança, desenho e bordado em todo o gênero e o que mais faz parte de uma completa educação. (SANTOS, 1952, p. 353).

Na Europa, muitos ofícios como os trabalhos de agulha, desenho e pintura, eram ensinados de pais para filhos, incluindo as filhas, e ao longo do século XIX, com a intensificação do processo de industrialização, esse ensino passou para as escolas de ofícios (HIGGONET, 1991). Assim, a associação entre arte e artesanato era um domínio, até mesmo profissional, de algumas mulheres na Europa (HIGONNET, 1991).

No Brasil, no século XIX, a inserção de matérias relacionadas a arte na educação feminina passou da aristocracia à burguesia (VASCONCELOS, 2005). Assim como a música e o teatro, o gosto por atividades culturais que serviam para serem praticadas durante o período de ócio, destinado a camada de mulheres da elite, ou para a socialização e entretenimento coletivo, se difundiram a partir da segunda metade do século XIX.

A imprensa local, surgida com o primeiro jornal da Província do Paraná, o Dezenove de Dezembro (1854), anunciava e disseminava tais práticas e/ou produtos culturais, como sendo primordiais a uma civilização que se entendia como moderna. Portanto, algumas medidas sociais são sinônimo de moderno, como a moda, a diversão (AMERICUS, Dezenove, Curitiba 5 ago. 1854, p. 1) e a educação feminina (CARVALHAES, 1857b).

As moças das classes mais altas eram incumbidas da diversão e sociabilidade da família, o que por sua vez alimentava o status do patriarca da família no meio social em que estavam inseridos.

[...] pretendia-se uma formação cultural adequada ao meio de origem e suficientemente abrangente que lhes permitisse serem interlocutoras do seu marido, bem como um instrumento de relacionamento social entre famílias. (VAQUINHAS, 2000, p. 98).

Tal função era exercida dentro de certos limites e construída junto a outros pilares presentes na educação, como a religião, por exemplo.

O primeiro presidente da província do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcelos, deixou registrado que era necessário educar as meninas, pois, “[...] de sorte que se pode dizer que instruir as meninas é de algum modo criar uma escola em cada família!” (VASCONCELLOS, Dezenove, Curitiba, 15 jul. 1854, p. 19-20), sendo, portanto, uma forma de propagar o ensino entre a população. Essa era uma estratégia utilizada para formar cidadãos entendedores das leis do Estado.

Para outro presidente da província, Vaz de Carvalhaes (1857b), a educação ofertada às mulheres deveria ser boa, porque elas “atuam sobre os costumes e o progresso da razão humana” (p. 33), sendo responsáveis pela formação inicial dos filhos.

Assim, é que muitas filhas da elite econômica parnanguara foram educadas no colégio de meninas das James, dentre elas, Iria Corrêa (1839-1887), oriunda de uma família de origem portuguesa, e que na época contava com 10 anos de idade.

Alguns anos depois, já no período provincial, a francesa madame Carolina Zoé Taulois chegou ao Paraná e junto às filhas, Gabrielle Jeanne e Eugenie, instaurou o Colégio Paranaguense de meninas em 1856 (ARAÚJO, 2012). A divulgação do regimento do colégio foi feita no jornal Dezenove de Dezembro, o que nos permitiu analisar alguns dados acerca desse modelo de educação feminina, perpassado pelo acréscimo das prendas domésticas e dos dotes artísticos (MELLO, 2018).

Leitura, escrita, gramática nacional, língua francesa e inglesa, elementos de aritmética, princípios gerais de história e geografia universal com desenvolvimento especial concernente a história sagrada, e história e geografia do Brasil, música, canto, piano, dança, desenho, pintura e prendas domésticas, compreendendo todos os trabalhos de agulha, tapeçaria, bordados e crochê. (TAULOIS; JEANNE; CADEAC, Dezenove, Curitiba, 02 abr. 1856, p. 4).

Nota-se que o currículo desse colégio era muito similar ao anterior, entretanto, acrescentava o canto e a pintura no seu regimento.

Iria Corrêa, à época uma adolescente de cerca de dezesseis anos, mesmo tendo estudado no colégio das James também foi matriculada na instituição, a fim de aperfeiçoar os dotes artísticos. Segundo a memória local da cidade de Paranaguá, a aluna se tornou professora particular de piano e de pintura, entretanto, na falta de material de registro acerca dessa parte de sua carreira não podemos aprofundar a análise. Sabemos pela historiadora da arte, Adalice Araújo (2012), que a coleção David Carneiro teria uma pintura do comendador Ricardo Carneiro, realizada por uma de suas alunas, Irmina Guimarães Miró.

A artista teria sido, segundo o escritor e jornalista Leôncio Correia, com quem conviveu em Paranaguá:

[...] uma grande educadora e uma inspirada maestrina. Educou e instruiu mais de uma geração de moças paranaguenses, e a quase todas as jovens das margens do Itiberê. Compunha, executava e fazia executar. E de tal forma o seu método de ensino era uniforme e hábil, que houve época em Paranaguá em que se tinha a impressão de que todos os pianos eram tocados pelas mesmas mãos. (CORREIA, 1942)

Sob essa égide de conhecimentos artísticos e certo suporte familiar e social, Iria Corrêa foi a única pintora a participar da primeira Exposição Provincial em 1866 (EXPOSIÇÃO PROVINCIAL, Dezenove, Curitiba, 1 ago. 1866, p. 4). Dessa mostra de produtos regionais seriam escolhidos aqueles destinados a Exposição Nacional no mesmo ano. Iria Corrêa apresentou ao público um apanhado de cerca de 20 trabalhos, entre retratos, natureza-morta e os de temas religiosos, nas técnicas de pintura a óleo, guache, aquarela e desenhos em lápis crayon e pastel (EXPOSIÇÃO PROVINCIAL, Dezenove, Curitiba, 20 fev. 1867, p. 4). Na comissão de delegados para a montagem da exposição estavam membros de sua família, como o tio Manoel Antonio Guimarães, demonstrativo das relações sociais estabelecidas e do círculo do qual fazia parte (EXPOSIÇÃO PROVINCIAL, Dezenove, Curitiba, 19 maio 1866, p. 4).

a simbologia da elite parnaguara nas pinturas de iria corrêa

Apesar do discurso da mimese que envolve a arte, a construção de imagens, mesmo a fotográfica, está relacionada a certa idealização (DUBOIS, 1994). Assim, a pintura se relaciona a uma série de elementos artísticos culturais próprios de cada período e não podem ser tomados como meras cópias da realidade. Entretanto, podem ser entrecruzados com outras fontes a fim de aproximar e/ou distanciar leituras e contextos.

Portanto, observamos que alguns aspectos das discussões públicas acerca da influência das mulheres nos costumes sociais eram disseminados através da educação feminina, sendo que alguns destes signos passaram a figurar nos trabalhos da artista, realizados ao final dos anos 1850 e início dos 1860.

Muitos dos seus desenhos e pinturas eram retratos de membros de sua família mais próxima, como pais, tios e primas. Em seus retratos femininos alguns elementos são construídos de forma a demonstrar o recato físico, anunciado pelo traje preto e fechado, usado não somente por aquelas que estavam enlutadas. Assim, demonstravam um papel de devoção e moralidade, moldadas pela religião que estava firmemente presente no cotidiano dessas mulheres. Um dos exemplos é o retrato de sua mãe, Damiana Corrêa (fig. 1).

Fonte: Museu Paranaense.

Figura 1 -  Iria Corrêa, Damiana Corrêa, s/d, óleo sobre tela, 65x49 cm, Coleção David Carneiro. 

Fonte: Museu Paranaense

Figura 2 - Iria Corrêa, Rita Loyola Marques, s/d, óleo sobre tela, 71,5x58 cm, Coleção David Carneiro. 

Damiana Corrêa usa alguns adornos, como a gola bordada, comum para o período e possivelmente feita por ela ou uma das filhas, pois alguns impressos, como o Jornal das Senhoras, forneciam os moldes em suas edições, além do bordado estar inserido na instrução ministrada nos colégios particulares. Ela também usa joias discretas, como o camafeu na gola, incrustado com algumas pedras. Os cabelos são presos num coque baixo, de modo a esconder a parte superior das orelhas, o que permite a visualização dos brincos.

A importância dos eventos sociais e as diferenças nos trajes utilizados pelas mulheres dessa camada social aparecem na fig. 2, no retrato de Rita Loyola Marques. Nesse retrato visualizamos um modelo difundido entre os periódicos femininos da época e que deveria ser utilizado em festas, pois, deixava braços e ombros à mostra, além de afunilar bem a cintura. Mesmo o vestido deixando parte de seu corpo à mostra, o colar com pingente em formato de cruz deixa ao alcance dos olhos a devoção religiosa. O penteado, muito similar ao de Damiana Corrêa, deixa o brinco visível. Entre as joias, uma pulseira e um colar, na mão direita ainda segura um leque ornamentado.

Em ambas as pinturas, as personagens têm as bochechas ruborizadas, podendo ser o registro de certo embaraço pela posição de modelo ou ainda um traço da maquiagem do período. Nas diferenças, o semblante de Rita Loyola é mais jovial, seja pelo aspecto de pele mais firme, do brilho nos olhos ou pelo leve sorriso esboçado.

Era através de impressos femininos que a moda europeia era transmitida a essa camada das mulheres, da qual a artista fazia parte. Os modelos dos trajes, seja o do cotidiano ou o das festas, eram encontrados no carioca Jornal das Senhoras, ofertado às famílias paranaenses pelo Dezenove de Dezembro e vendido na tipografia Paranaense de Cândido Lopes, sendo esse “[...] redigido por uma senhora. Além dos seus excelentes figurinos e variados artigos, traz sempre figurinos das modas e as mais modernas peças de música” (SUBSCREVE-SE, Dezenove, Curitiba, 28 mar. 1855, p. 4).

Notamos que além do fundo cinza, as duas retratadas estão numa posição de semiperfil (3/4), comum em outros trabalhos da pintora. A atenção se volta aos personagens e aos pequenos sinais de seus papéis sociais, já que temos o indicativo de nomes e sobrenomes, bem como os símbolos a eles agregados.

Fonte: Museu Paranaense.

Figura 3 -  Iria Corrêa, Coronel Joaquim Cândido Corrêa, s/d, óleo sobre tela, 65,5X49 cm, Coleção David Carneiro. 

Fonte: Museu Paranaense

Figura 4 - Iria Corrêa, Comendador Manoel Francisco Correia Junior, s/d, óleo sobre papelão, 26 x 22 cm, coleção Museu Paranaense. 

Vemos na fig. 3, o pai da artista, tenente-coronel Joaquim Cândido Corrêa (1815-1884) e na fig. 4, seu tio, Manoel Francisco Corrêa Júnior (1809-1857). Ambos fizeram parte das famílias de elite de Paranaguá no século XIX (LEÃO, 1926). Joaquim Cândido Corrêa foi provedor da Irmandade de Misericórdia e fez parte da comissão inspetora das escolas de primeiras letras (CARNEIRO JR., 2014). Na caneta que segura nas mãos o signo do trabalho letrado e não braçal, o terno com caraterística gravata de borboleta ainda traz uma joia logo abaixo, presa na camisa branca. As fig. 3 e 4 mostram que a moda entre os homens também trazia uma barba apenas nas laterais, formando um molde escuro no rosto.

O traje similar de Manoel Francisco Corrêa Júnior se diferencia do de seu irmão pela insígnia que carrega, discreta e próxima ao lugar do coração. Esse era o símbolo da comenda da Ordem Militar de Cristo, que no período era ofertada aqueles que prestavam serviços ao Império dentro da categoria de ordens honoríficas de Portugal. Além de ervateiro, ocupou o cargo de comandante da Guarda Nacional, entre outros na administração pública (CARNEIRO JR., 2014).

Iria Corrêa viveu e disseminou o modo de vida que lhe foi ensinado, o de uma educação feminina aos moldes burgueses que tinha como objetivo incutir a domesticidade, reforçada por certo verniz presente na formação cultural, voltada ao entretenimento social. Porém, essa educação feminina forneceu-lhe as ferramentas para o seu ofício, o da arte, e permitiu que seu nome fosse registrado na imprensa como a primeira senhora a participar de uma mostra de trabalhos no Paraná.

A ampliação da ação pública das mulheres tomava mais espaço na imprensa ao final do século XIX, quando a artista parnanguara faleceu em 1887. Supomos que, leitora dessa imprensa em expansão, tenha entrado em contato com as novas ideias sobre a mulher na sociedade, como no artigo intitulado A Educação e a atividade da mulher na Suécia (A EDUCAÇÃO, Dezenove, Curitiba, 13 nov. 1882, p. 2-3). Tal artigo anunciava a diversificação do trabalho das mulheres em variados segmentos profissionais, entre eles a educação, a arte e a literatura. Assim, ideias estrangeiras reverberavam em território paranaense, trazendo significativas mudanças de comportamento e de sensibilidades que marcaram as trajetórias de mulheres que viveram entre a segunda metade do século XIX e início do século XX.

UMA VOZ LUSITANA NA “BELA CAPITAL”

Bastante atuante e engajada no contexto cultural da capital paranaense das primeiras décadas do século XX, Mariana Coelho chega ao Paraná em 1893, ali firma-se como intelectual, feminista e educadora (BUENO, 2010, p. 13).

O contexto curitibano do momento em que ela chega à capital era de efervescência cultural, cenário que favoreceu sua participação na cena intelectual curitibana. Como mencionado anteriormente, o final do século XX foi marcado pela emergência do campo cultural local. Do ponto de vista do contexto estrutural, o país passava por um lento processo de profissionalização de mulheres, que atingia principalmente àquelas oriundas dos estratos sociais médios, que anteriormente estavam ausentes do processo produtivo. Isso ocorria em virtude da crescente urbanização, fato que foi observado atentamente pelo movimento feminista de primeira onda, do qual Mariana Coelho participou.

Como ocorria com outros intelectuais do seu tempo, Coelho acreditava na ciência como instrumento de civilização e progresso da nação, e na educação como único meio possível para salvar uma nação doente. Nesse contexto, a causa da educação constituiu-se como o grande tema de discussões entre os intelectuais brasileiros. Destarte, foi escolhida para fomentar acalorados debates públicos que se desmembravam em proposições para projetos educativos, tais como: aplicação social das ciências, reformas no sistema de ensino, a aplicação de novos métodos de ensino, o preparo do magistério, a arquitetura escolar, entre outros.

Diferentes grupos disputavam a possibilidade de intervenção nas políticas públicas do Estado, constituindo um espaço público, principalmente por meio da imprensa periódica, como lugar privilegiado para a atuação e manutenção de seu papel social de intelectuais.

A conjuntura dos primeiros anos do século XX possibilitou a entrada de agentes sociais anteriormente excluídos da cena pública, ou poucos presentes, incluindo-se o público feminino. Neste contexto, as mulheres viram abrir-se novas possibilidades de formação e profissionalização para si, conquanto as mesmas ainda apontassem para as funções consideradas femininas, como referido anteriormente.

Pleitear direitos civis e políticos, a ampliação da educação, bem como outros espaços de profissionalização feminina, não significava necessariamente o abandono de seus papéis sociais, ancorados em elementos considerados femininos. A moderação em torno desses temas é recorrente nos jogos de linguagem usados por intelectuais feministas do período. Ele fazia parte de uma estratégia do reconhecimento por parte dessas mulheres de que era necessário manter certas características da “natureza feminina”, pois a ausência desses atributos poderia ser visto como uma masculinização e inversão de papéis sociais e ter como consequência tornar-se pária no espaço público. Pensamento este endossado por Mariana Coelho:

O sexo feminino, da mesma forma que o masculino, pode, socialmente falando, subir a escada do progresso até onde as próprias forças intelectuais lho permitam, sem jamais abandonar o seu primordial e simpático papel, que sempre representará no lar - convertido em verdadeiro paraíso quando a mulher alia a uma sólida educação à qualidade indispensável de boa filha, esposa e mãe, trindade admirável que a diviniza fazendo dela o eterno símbolo encantador da ternura e da paz. (COELHO, 1901, p. 1).

Há poucos registros de Mariana Coelho sobre sua vida em Portugal, um deles encontra-se em uma narrativa ficcional presente em sua obra Cambiantes (1940), nessa coletânea de contos, ela faz referência a uma Vila Lusitana como, - [...] um arcaico amontoado de capelas e brasões [...] (p.19) representação que se contrapõe à descrição que faz de sua chegada ao Paraná, expressando os aspectos de modernização que encontrou (BUENO, 2010):

À medida que a locomotiva avança, aparece e desaparece por entre os quinze túneis que perfuram com extrema graça estes assombrosos morros e rochedos, desenrola-se sucessivamente, à vista do espectador deslumbrado, o quadro mais variado e surpreendente que se pode imaginar - embelezado ainda pela vista deliciosa de estrepitosas e lindas catadupas despenhando-se em caixões alvíssimos e ruidosos, e dos rios que serpeiam cristalinos ao fundo dessas colossais montanhas! Depois, todo este empolgante conjunto de atrativos desaparece atrás da locomotiva, na aproximação da estação de Piraquara, onde ela chega, enfim vencedora, vertiginosa e soluçante, num misto de riso e pranto, vomitando uma intensa nuvem que se estende em direção oposta à sua marcha, semelhando uma cabeleira enorme que flutua, com esquisita elegância, impelida pela força da aragem provocada pela velocidade do trem. (COELHO, 1908, p. 20).

Destacamos nesse trecho, a perspectiva de uma estrangeira que voltava seu olhar para o novo e ancorava sua argumentação sob os signos de modernidade que encontrava pelo caminho. O final do século XIX assistiu assombrado a invenção das locomotivas, sua presença alterou de maneira expressiva as noções de tempo e espaço da sociedade da época. A tecnologia e a engenharia desafiavam a natureza e modificavam não apenas o cenário, mas também impunham um novo ritmo para comunicação, possibilidades de encontros e reduziam a distância entre as pessoas.

Os motivos da mudança de Mariana Coelho e sua família de Portugal para o Brasil são desconhecidos, contudo algumas fontes e referências apontam que este período coincide com a viuvez de sua mãe, o que leva a hipótese de que sua transferência tenha ocorrido em função deste episódio. Além da mãe, Maria do Carmo Meirelles Coelho, mudou-se para o Brasil junto com Mariana Coelho, dois irmãos, Thomaz Coelho e Carlos Alberto Teixeira Coelho, e sua irmã Rita do Rosário Teixeira Coelho.

Há indícios de que Mariana Coelho teria iniciado sua vida literária ainda em Portugal, colaborando em periódicos locais com poesias de sua autoria. Conquanto seja possível ponderar que essa intelectual tenha tido a oportunidade de uma formação básica que a capacitou para o exercício da escrita autoral, bem como para a função docente, as fontes encontradas não foram suficientes para apontá-la. Em seu atestado de óbito consta como profissão Do lar, muito embora a sua ampla participação na cena pública atestem que a mesma atuou como autora, linguista, crítica literária e educadora em Curitiba. No colégio Santos Dumont, que fundou em Curitiba em 1902, utilizava o método João de Deus, que conforme indicam documentos da época, só podia ser utilizado por professores habilitados com o curso realizado no Instituto de mesmo nome, em Portugal.

Todavia seja complexo encontrar pistas sobre a vida de Mariana Coelho em Portugal, sua presença em Curitiba, e sua intensa participação como intelectual mediadora na cena pública da capital paranaense é facilmente encontrada. Mariana Coelho publicou em periódicos locais, seu nome aparece em verbetes regionais e em documentos oficiais. Também encontram-se disponíveis para consulta na Biblioteca Pública do Paraná, obras de sua autoria, sendo que as duas mais significativas foram reeditadas e lançadas pela imprensa oficial do Paraná em 2002.

IDENTIDADE DE MULHER PÚBLICA: MARIANA COELHO COMO MEDIADORA CULTURAL

Conforme apontado anteriormente, durante o século XIX havia uma tendência ao pensamento de que a educação era antagônica ao papel feminino e a sua natureza: saber e feminilidade eram incompatíveis. Livros ficcionais poderiam abrir as portas perigosas do imaginário e leituras teóricas ou filosóficas não combinavam com a fragilidade do cérebro feminino, sendo cansativas e muitas vezes tornando a natureza feminina, antes dócil e flexível, em uma personalidade hostil e insubordinada. (PERROT, 2007, p. 63). Neste sentido, para aquele período, se fazia necessário instruir as meninas com saberes mais voltado a sua natureza, como aqueles voltados aos papéis de dona-de-casa, de esposa e de mãe.

D’incao (2006), afirma que entre o final do século XIX e início do século XX, a intelectualidade formada por médicos, articulistas e educadores, sublinhava a importância da função da mulher enquanto guardiã do lar e da família, papel este que ao longo das primeiras décadas do século XX foi reforçado com o incremento da escolarização em massa e um discurso voltado ao papel da mulher como mãe redentora da República (p. 230).

Perrot (2007) aponta que no decorrer do século XIX, famílias de elite costumavam contratar tutores ou preceptores para oferecer alguma instrução as suas filhas mulheres. Nestas aulas, em geral elas aprendiam equitação, línguas estrangeiras, música, declamação e artes que fossem úteis à sua sociabilidade nos salões. Embora não seja possível afirmar que Mariana Coelho recebeu esse tipo de formação, não podemos descartar tal possibilidade, considerando que ela falava e escrevia em inglês, francês e que iniciou sua vida literária muito cedo.

Embora Mariana Coelho tenha uma ampla produção no campo cultural e que tenha sido reconhecida por seus pares do período como intelectual, era no campo educacional que sua contribuição era mais aplaudida. Suas iniciativas em prol da educação feminina eram manifestas desde seus primeiros escritos. Em 1900, na revista Breviário ela escrevia:

[...] permitir, hoje, que a mulher permaneça amarrada ao deplorável poste da ignorância, equivale a arrisca-la criminosamente a probabilidade de receber em compensação do seu mais nobre e espontâneo afeto, o completo aniquilamento da alma, - o que quer dizer a sua principal ruína. (COELHO, 1900, s.p.).

Possivelmente, em função desta característica de seu pensamento, Mariana Coelho, junto com seu irmão mais novo, o farmacêutico, escritor e filólogo Carlos Alberto Teixeira Coelho, fundou o Colégio Santos Dumont. Uma escola mista, voltada principalmente ao público feminino e pautada em uma perspectiva moderna de ensino das primeiras letras. Como dito anteriormente, a escola utilizava o método João de Deus e mereceu das autoridades locais diversos elogios, tanto do ponto de vista de sua arquitetura, quanto do ponto de vista do quadro de professores e das disciplinas adotadas pela escola. Em sua concepção:

Os novos educadores, na sua sublime cruzada em prol da moderna educação, empenham a sua responsabilidade social e intelectual para afirmar que nenhum sistema de ensino é bom se não fornece ao homem a faculdade de pensar por si só, de racionar logicamente, pois a escola moderna é a que ensina a ser independente. (COELHO, 1933, p. 32).

O nome de seu colégio foi escolhido também de forma estratégica. Santos Dumont manteve uma amizade com Mariana Coelho no início do século XX, ambos trocaram ampla correspondência e o cientista/aviador, chegou a realizar uma visita à escola de Coelho em 1916. Na Exposição Nacional de 1908, o colégio foi premiado com Medalhas de Ouro e de Prata, ganhando notoriedade nacional, também pela presença e interlocução com diversos intelectuais da época, que fizeram parte de seu quadro de professores, tais como Rocha Pombo e Dario Veloso, na capital paranaense, Olavo Bilac e Bertha Lutz, nacionalmente.

Em 1917, Mariana Coelho, assumiu a direção da Escola Profissional Feminina de Curitiba, um espaço subvencionado pelo Estado do Paraná, desde que a instituição iniciou seus trabalhos, por meio do decreto 548, de 08 de agosto de 1917. De acordo com seu regulamento a escola era,

[...] destinada ao ensino de artes, economia doméstica e prendas manuais a alunos do sexo feminino, compreendendo as secções seguintes:

a - de desenho; b - de pintura; c - de datilografia; d - de corte e feitio de vestidos e roupas para senhoras; e - de corte e feitio de vestidos para crianças; f - de corte e feitio de roupas brancas; g - de fábrica de flores e ornamentação de chapéus; h - de arte culinária em todos os ramos e de economia doméstica; (Regulamento da Escola Profissional Feminina, 08/08/1917, p. 352).

No que diz respeito à grade curricular da escola destacamos que embora a maior parte das disciplinas fosse direcionada a trabalhos manuais que tendiam apenas a ampliar e refinar a educação de mulheres para o trabalho doméstico, o relatório apresentado ao Diretor da Instrução Pública em 1930, destacava possibilidades de maior participação destas meninas no meio profissional. Criadas especialmente para o público feminino, as escolas profissionais funcionaram, quase sempre, como um ― laboratório social, onde as alunas puderam ensaiar papéis inéditos de trabalhadoras na esfera pública. (BUENO, 2010, p. 104).

Conclusão

Mesmo tendo vivido em épocas distintas, principalmente, no que concerne as ideias acerca do espaço que poderia ser ocupado pela mulher na sociedade paranaense, do final do século XIX e início do século XX, essas duas intelectuais atuaram criando e mediando práticas culturais para a população.

Observando os códigos artísticos e culturais do período, foram analisadas as imagens femininas e masculinas criadas pela pintora Iria Corrêa. Sob a égide do feminino, da cultura burguesa e da influência de tais ideias sobre a educação da mulher e da arte, ali inseridas, ela produziu imagens da classe social a que pertencia, permitindo a análise de suas técnicas, bem como o cruzamento com outras fontes para delinear a história econômica, social e cultural que inscreveu em suas telas.

No caso de Mariana Coelho, é possível afirmar que ela se configurou enquanto uma intelectual que buscou durante toda a sua trajetória a realização de um projeto educativo: a instrução e a profissionalização da mulher.

Esse projeto educativo, que culminou nas ações de mediação realizadas por Mariana Coelho ao longo de sua vida, esboçava o ideal de uma figura feminina que lentamente transpunha as fronteiras do espaço privado, sem, contudo, escandalizar o espaço público com a chamada inversão de papéis sociais.

Sem romper com o estereótipo da mulher esperado para sua época, essa intelectual ousou buscar por pequenas mudanças no papel feminino de seu contexto, militou por um maior acesso à educação e mais participação de mulheres na cena pública, sem nunca contestar, ou negar a função dessas mulheres enquanto esteio da família.

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Recebido: 24 de Julho de 2021; Aceito: 22 de Novembro de 2021

E-mail: alexandrapadilha192@gmail.com

E-mail: gracidemello@gmail.com

ALEXANDRA PADILHA BUENO é Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), foi coordenadora de alfabetização do ensino fundamental do Núcleo de anos iniciais da Secretaria da Educação do Município de Araucária (Gestão 2009-2012). É professora da Educação Básica no Município de Araucária, atuando principalmente com turmas do ciclo de alfabetização. Tem experiência nas áreas de Ensino e Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da educação, história intelectual, educação feminina, imprensa, alfabetização e letramento.

GRACIELE DELLALIBERA DE MELLO é Professora de Artes da rede pública do Paraná desde 2005, Mestra e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná, Linha de História e Historiografia da Educação, é graduada em Educação Artística pela Universidade Federal do Paraná (2004). Desenvolve pesquisa na área da história da educação feminina e estudos de gênero, história intelectual e suas conexões com a arte.

Editora responsável:

Dóris Almeida

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