Introdução1
A categoria historiográfica educação do corpo tem sido pensada e desenvolvida por pesquisadores no campo da História da Educação considerando diferentes perspectivas teóricas. Dentre os debates produzidos, destacam-se os trabalhos de Soares (2000), Vaz (2004), Taborda de Oliveira (2004), Moreno et al (2012), Bassani; Richter; Vaz (2013), Honorato e Nery (2018); dentre outros. Sem ignorar as diferentes abordagens no campo das ciências humanas destinadas a pensar a educação do corpo, este estudo intenciona reflexionar sobre esta categoria analítica embasando-se em Norbert Elias (1993; 2011). Este intelectual não se dedicou a pensar diretamente sobre os processos educativos corporais escolarizados e nem desenvolveu tal categoria. Assim, o que se pretende com esta discussão é apresentar possibilidades analíticas em torno dos processos de educação do corpo que atravessaram a formação da mulher professora em uma instituição específica tendo como embasamento os pressupostos elaborados por Elias (1993; 2011).
A categoria historiográfica educação do corpo, aqui pensada com Norbert Elias, é entendida como um processo educativo no qual os indivíduos - no decorrer de toda a sua existência social - vão internalizando e naturalizando comportamentos, condutas, e construindo uma personalidade e consciência de si que são específicas à estrutura da sociedade e às redes de relações das quais fazem parte. Esses padrões de conduta são definidos ao longo do processo histórico e resultam das estruturas psíquicas dos indivíduos e das estruturas específicas da sociedade. A educação do corpo é um fenômeno humano histórico e processual, equivale à constante apropriação civilizatória - por parte do indivíduo - de comportamentos, hábitos, emoções e sentimentos que são naturalizados socialmente e que podem, ainda, serem modificados por meio das relações e trocas que o indivíduo estabelece com os demais, na vida em sociedade.
É um “[...] processo educativo do corpo, que envolve o individual e o social, o cultural e o biológico, o presente e o passado em um complexo movimento de interiorização de valores e códigos de conduta” (CARDOZO; HONORATO, 2020, p. 145). Neste processo de interiorização, os comportamentos, as emoções e a personalidade do indivíduo são educadas e delineadas no modo de vida social, em um movimento que perpassa e se entrelaça com as diferentes figurações das quais o indivíduo é constituinte. Assim, por meio de evidências históricas localizadas em uma escola da cidade Londrina-PR, objetivou-se identificar quais foram as práticas de educação do corpo que incidiram na formação de professoras mulheres na década de 1970.
A escola investigada foi o Instituto Estadual de Educação de Londrina (IEEL), que iniciou suas atividades em 1945, sendo a primeira escola de formação de professoras/es no município. A periodização histórica situa-se na década de 1970, tempo marcado por alterações na estrutura e organização cultural e política do país que vivia um período de Ditadura Civil-Militar e que compreendeu também modificações na organização e composição do curso de formação de professores.
Em contato com o arquivo do IEEL, verificou-se um expressivo arsenal de documentos passíveis de se tornarem fontes históricas relativas à década de 1970. Considerando a orientação historiográfica de Bacellar (2008), realizou-se um movimento inicial de organização e catalogação dos documentos acessíveis, que se encontravam em uma sala arquivo permanente do IEEL, raramente acessada, guardados em armários “arquivos”. Estes possuem origens e finalidades variadas, compondo um corpus documental bastante diversificado, abrangendo atas de comissões especiais (1970-1985), atas do Departamento Musical (1971), atas do Departamento de Educação Física (1971-1977), registros do sistema de avaliação (1972-1980), currículo do 2º. grau no IEEL (1973), atos oficiais do Setor Técnico - Pedagógico - Corpo Docente (1970-1985), grades curriculares (1972-1980), proposta ordinária de Educação Física 1° e 2° grau (1974), relatório da coordenação administrativa (1973-1979: setor de Bens Móvel e Imóvel), registro da estrutura funcional técnico administrativo (1973-1980), proposta geral ordinária de 1° e 2° graus (1974-1984), entre outros.
O corpus documental selecionado remete a um momento histórico marcado pela supremacia política militar. Esse regime autoritário, instaurado em 1964 e com apoio de frações da sociedade civil, priorizava a difusão de preceitos de moralidade, civilidade conservadora e bons costumes, visando salvaguardar as tradições e os hábitos julgados adequados socialmente, isto é, comportamentos que já vinham sendo definidos e difundidos no decorrer da história da civilização brasileira e que foram reafirmados naquele momento.
A estrutura e a organização social brasileira, na década de 1970, se caracterizavam pelo alargamento do controle externo dos comportamentos e condutas dos indivíduos e pelo controle de grande parte das informações advindas dos diferentes meios de comunicação, reforçados pelo monopólio e rígido controle em torno da educação nacional. Tais aspectos impactavam na modelação dos comportamentos e da personalidade dos indivíduos em escolarização no sentido de que esses, para além do autocontrole individual desenvolvido e naturalizado na realidade escolar, passariam a ter sua conduta regida por ordens inflexíveis e bem definidas, oriundas de um rigoroso controle externo e autoritário.
Diversos fatores dessa organização política e social reverberaram e influenciaram diretamente nas práticas educativas de formação de professoras e professores. Dentre eles, destacam-se as ideias de eficiência e de produtividade, que alteraram práticas e perspectivas pedagógicas rumo à uma tendência tecnicista2 que passou a permear o projeto educativo nacional e, no âmbito legal resultou na promulgação da Lei n° 5.692/1971, que acabou por descaracterizar os cursos normais, transformando-os em mais um dentre tantos cursos profissionalizantes de 2° grau, a Habilitação Específica para o Magistério (HEM).
Acrescido à essas mudanças e em consonância com elas, a década de 1970 caracterizou-se por reforçar práticas formativas pautadas no controle e na avaliação constante, enfatizando e dando destaque às atividades voltadas ao desenvolvimento da moral, do civismo e dos bons costumes, visando a introjeção de valores, comportamentos e hábitos que favoreceriam e representariam o padrão de conduta socialmente esperado naquele contexto. Com o golpe civil militar, os cuidados e a vigilância em torno dos comportamentos e costumes se tornam redobrados, tendo como contrapartida a valorização das atitudes e virtudes esperadas no comportamento das alunas (LOURO, 1986).
Partindo da perspectiva teórico-metodológica adotada nesta investigação (ELIAS, 1993; 2011), considerou-se a importância de compreender este fenômeno - situado em um tempo e espaço específico - em seu caráter histórico e processual. Para isso, o estudo realizado teve como alicerce uma análise temporal mais abrangente fundamentada em pesquisas sobre a formação de professores no Brasil em diferentes espaços e períodos (AURAS, 2005; FURTADO, 2007; LOURO, 1986; MORENO et al, 2012; TANURI, 2000; VEIGA, 2011; VIDAL, 2001). Por meio do olhar processual tornou-se possível definir alguns parâmetros formativos que caracterizaram essa história mais abrangente e guiaram a investigação realizada. Esses foram delineados a partir da apreensão dos indícios em torno das possíveis práticas, dos saberes e dos processos educativos em suas permanências, descontinuidades e transformações que, no decurso da história da formação de professoras no Brasil, refletiram na educação do corpo da mulher em formação de professora.
Para explorar as evidências históricas encontradas que anunciavam as perspectivas e práticas de educação do corpo da mulher em formação de professora no IEEL na década de 1970, optou-se por apresentá-las considerando a distinção em três parâmetros formativos: as práticas de controle, inspeção e vigilância; os conteúdos, as disciplinas e os saberes formativos; e, as atividades e práticas educativas complementares. Apesar de serem expostos aqui de forma relativamente fragmentada, entende-se que esses parâmetros integraram parte da totalidade dos aspectos que envolveram e caracterizaram a dinâmica de organização pedagógica e educativa que permeava a escola e, assim, apresentam e possibilitam a percepção dos indícios em torno das práticas de educação do corpo que perpassaram por esse processo educativo.
As práticas de controle, inspeção e vigilância
Por meio dos estudos direcionados à história de formação de professores no Brasil, em seus diferentes períodos e com suas características específicas, percebeu-se que a educação das mulheres em formação de professoras foi assinalada por práticas de inspeção e controle. Práticas estas que refletiam, tanto na fiscalização da sanidade física e mental das alunas, submetendo-as a exames físicos e psicológicos como requisito eliminatório no ingresso aos cursos de formação, quanto na constante exigência de boa conduta e de comportamento adequado à essas mulheres, punindo-se atitudes indisciplinadas e valorizando-se atitudes esperadas (AURAS, 2005; LOURO, 1986; 2018; VIDAL,2001).
No IEEL, evidenciam-se algumas práticas educativas vinculadas ao controle, inspeção e vigilância do comportamento e da conduta dessas mulheres em processo formativo. Dentre elas, identificou-se a existência de orientações em torno das atividades avaliativas que permeavam a educação das/os estudantes em formação. No documento denominado “Sistema de Avaliação - primeiro e segundo [grau]”, no qual são apresentadas diversas orientações referentes aos processos avaliativos, lê-se que “[...] a avaliação diz respeito não apenas a matéria aprendida, mas a atitude, interesse, hábitos de trabalho, desenvolvimento físico e também ajustamento pessoal-social” (IEEL, 1972-1980b, s/p - grifos nossos), com estes processos avaliativos dever-se-ia ter “[...] em vista mudanças esperadas no seu comportamento” (IEEL, 1972-1980b, s/p).
A fim de compreender como essas práticas avaliativas incidiam na educação do corpo da mulher em formação de professora, pontua-se um exemplo de como esse processo avaliativo/punitivo acontecia na dinâmica escolar do período. Em um livro ata destinado ao registro de ocorrências da escola (IEEL, 1970,1985), há o relato de uma infração cometida pelas alunas do terceiro ano do curso de Magistério. Em resposta a prática indisciplinada das alunas, que entraram na sala da diretora e rasuraram o livro de faltas e notas de algumas disciplinas, realizou-se uma reunião, juntamente com as demais alunas da turma, para definir as ações a serem tomadas em resposta ao ocorrido.
Apoiando-se em Elias (2001), entende-se que as ações dos indivíduos refletem as interdependências sociais intrínsecas a teia de relações das quais este é constituinte, e resultam em respostas sociais a ela correspondentes. Desse modo, interpreta-se que a atitude dessas alunas não se reduz ao fato em si, mas rompe - infringe - com um processo social de modelação e definição de uma forma de ser e de se comportar, na escola e fora dela, que correspondem à função para a qual essas mulheres estavam sendo educadas para realizar. Assim, ao transgredir com a conduta esperada, essas alunas - além de serem socialmente expostas - corriam o risco de perder prestígio dentro dessa figuração escolar e até mesmo de serem expulsas dela.
Ao colocar as demais alunas da turma para julgar a transgressão cometida pelas outras utilizou-se do apelo à sentimentos como vergonha, o medo de estar no lugar transgressor e de serem - social e moralmente - descriminadas ou malvistas. Instaurando e definindo-se, potencialmente, uma dependência recíproca entre as mulheres inseridas nesse processo educativo, pois ao julgar a conduta uma das outras essas alunas eram ensinadas a regular o próprio comportamento com base no padrão de conduta e de personalidade considerado adequado, estando em sincronia com o esperado socialmente delas nas teias de relações que estabeleciam.
Essa dinâmica de relações possibilita a apreensão de alguns dos aspectos que afetariam nas alunas a necessidade e a importância de se manterem sempre disciplinadas e comportadas. Em todo o texto da ata ficam evidenciados o teor e a gravidade moral do problema, dando destaque ao fato de que elas seriam futuras professoras e essa postura era incompatível com tal função. As demais alunas reiteraram “[...] os aspectos de caráter e personalidade, a nível de tese, imprescindíveis a função do Magistério” (IEEL, 1970,1985, s/p), deixando explícita a importância da difusão dos comportamentos adequados à essa função, indicando a não aceitação de atitudes desviantes a eles. Definiu-se como punição a suspensão por sete dias e o aconselhamento de transferência de curso, assim, ao verificar que a atitude dessas alunas não condizia com a função que desempenhariam (enquanto professoras), elas foram aconselhadas a mudar de curso.
O processo avaliativo e punitivo adotado na formação das futuras professoras tinha um enfoque na mudança de hábitos e comportamentos, valorizando a aquisição de atitudes, interesses, ideias, da conduta adequada e o ajustamento emocional e social dessas mulheres. A avaliação - e a adoção das punições necessárias - visando modificações no comportamento, hábitos e atitudes dessas alunas, se caracterizava como uma prática de inspeção e controle desses corpos, uma vez que elas eram severamente avaliadas e punidas tendo como base os seus hábitos e as suas condutas. Tais práticas objetivavam educar essas mulheres em formação de professora rumo ao autocontrole dos comportamentos e das emoções, visando a internalização do comportamento esperado e socialmente valorizado.
Ainda vinculada à essas práticas de controle, inspeção e vigilância do comportamento e do corpo dessas alunas, estava o uso obrigatório do uniforme. Este acabava por definir e divulgar uma vestimenta adequada e padronizada para as alunas, com todas as medidas muito bem delimitadas e demarcadas. Constando ainda, no caso do IEEL, a observação de que o branco da camisa não poderia ser transparente (IEEL, 1970,1978a).
Tendo em vista as diferentes figurações das quais essas alunas faziam parte e os papéis sociais que deveriam sincronizar enquanto professoras, mulheres e (possivelmente) mães de família - em uma sociedade ditatorial da década de 1970 -, inclusive como exemplos educativos a serem seguidos, definir e naturalizar uma vestimenta séria e recatada nessas alunas representavam aspectos essenciais nesse processo educativo do corpo. Apesar das mudanças nas concepções de moda e vestimenta e do apelo social ao uso de determinadas roupas mais descontraídas e modernas (SANT’ANNA, 2014), as mulheres em formação de professora encontravam-se inseridas em uma estrutura educativa específica - escola de formação de professores - que compunha e divulgava características comportamentais e de personalidade também muito específicas. Essas alunas eram ensinadas que, a fim de que cumprissem as funções sociais para as quais eram designadas, deveriam se vestir com seriedade, de forma a inspirar respeito. Assim, através da definição das roupas que eram adequadas para essas mulheres, imprimiam-se nas mesmas uma personalidade e compostura a elas correspondentes.
Essas diferentes práticas não ocorreram de maneira isolada ou fragmentada, mas integraram o todo de um processo educativo que era indissociável e relacional. Por meio da internalização de normas de conduta e disciplina, transformam-se e definem-se algumas das estruturas de personalidade e de autocontrole dos comportamentos e das emoções dessas alunas. Pois, entende-se que,
Juntamente com essa crescente divisão do comportamento no que é e não é publicamente permitido, a estrutura da personalidade também se transforma. As proibições apoiadas em sanções sociais reproduzem-se no indivíduo como formas de autocontrole. (ELIAS, 2011, p. 181)
O uso obrigatório do uniforme, com suas características muito específicas, compunha parte de um processo educativo que difundia um modo de se comportar e de se vestir. A perspectiva avaliativa, que atravessava as diferentes disciplinas e atividades, conforme evidenciado, também definia um modelo comportamental e emocional a ser alcançado nesse processo formativo. Ao identificar um exemplo de “transgressão”3, verificou-se como a conduta moral e disciplinar foi difundida na formação dessas professoras, ao serem, amplamente, definidas e divulgadas as atitudes que seriam aceitas e adequadas e as jamais admitidas.
Conteúdos, disciplinas curriculares e saberes formativos
O curso de formação de professores/as no período investigado, de acordo com as alterações previstas na Lei n° 5.692/1971, passou de Curso Normal Colegial para Habilitação Específica para o Magistério de 2° grau. Essa reforma do ensino refletiu e incorporou o “[...] espírito de produtividade, eficiência e eficácia” (LOURO, 1986, p. 153) que caracterizava a organização política e social do momento - soberania e Ditadura Civil Militar - com os cursos profissionalizantes de 2° grau e a ênfase em disciplinas mais operacionais. No Instituto Estadual de Educação de Londrina, esse processo de transição encontra-se relatado em um dos documentos investigados (IEEL, 1972-1980a).
Para abordar os aspectos da educação do corpo na formação de professoras sinalizados por meio das disciplinas curriculares e dos conteúdos formativos foram utilizadas as “propostas oficiais” do curso. Sendo assim, a apreensão possível e palpável no que diz respeito à essa frente educativa encontra-se restrita aos documentos institucionais e, por conseguinte, corresponde a uma percepção muito específica desse processo formativo, que não deixa de colaborar para a leitura e compreensão dessa dinâmica.
No que se refere à influência das disciplinas e conteúdos curriculares na educação da corporeidade dos alunos em formação, anunciaram Moreno, et al (2012) que,
Já no início do período republicano, e mesmo antes, a legislação deixa ver iniciativas dessa preocupação. Disciplinas com claro teor de educação das sensibilidades e do corpo como: hygiene escolar, instrucção moral e cívica, musica e gymnastica, trabalhos de agulha e noções de economia doméstica já apareciam como necessárias à “instrucção theorica e prática” dos alunos e alunas das escolas normais em funcionamento no estado. Além dessas, ainda outras disciplinas vão subliminarmente incidir sobre os gestos, colaborando na constituição, pouco a pouco, de uma corporeidade escolar. (MORENO, et al, 2012, p. 230).
Destacam-se algumas disciplinas curriculares que compuseram o curso de formação de professoras/es do IEEL e que possivelmente influenciaram nesse processo educativo do corpo das mulheres que o integraram, são elas: Educação Física, Programas de Saúde, Expressão Corporal, Plástica e Sonora, Educação Musical4, Educação Artística, Organização Social e Política Brasileira (O.S.P.B) e Educação Moral e Cívica (EMC). Essas disciplinas foram analisadas e interpretadas com base nos programas curriculares disponíveis, seus conteúdos programáticos, objetivos e métodos avaliativos.
Na disciplina de Educação Física, ministrada nos três anos do curso, são explicitados objetivos como:
- Formação física das jovens normalistas5 e o desenvolvimento do gosto pelas atividades ginásticas e desportivas, bem como o domínio das principais técnicas recreativas e conhecimento de atividades folclóricas adequadas a escola primária;
- Dar ênfase aos aspectos mais diretamente ligados ao domínio das técnicas de expressão, através da forma, do gosto e do movimento;
- Favorecer o desenvolvimento da capacidade física das educandas e dar-lhes o hábito da boa postura;
- Oferecer as educandas oportunidades para eliminar as causas da timidez e agressividade através da Expressão Corporal;
- Incentivar, nas educandas, o desejo da execução dentro da técnica;
- Locomover-se com desembaraço, coordenação os movimentos corporais;
- Incentivar o desenvolvimento do espírito de iniciativa provocando reações prontas e adequadas a situação correta;
- Despertar o interêsse pela atitude correta;
- Caminhar e correr com desenvoltura;
- Propiciar meios para que a aluna assuma responsabilidade pelo próprio aprendizado, cumprindo seus deveres conscientemente (IEEL, 1973, s/p - grifos nossos).
Assim, a disciplina de Educação Física visava formar uma mulher professora que não fosse nem agressiva e nem tímida, que dominasse suas emoções e sua corporalidade, que soubesse a forma correta e adequada de reagir e responder às situações cotidianas e que fosse responsável e entendesse seu lugar e sua função social como professora e, também, como mulher. Na Proposta Ordinária de Educação Física - 1° e 2° grau / Ano Letivo de 1974, evidenciam-se alguns objetivos elaborados para o “Preparo Didático-Pedagógico”, da 3ª. série do curso de Magistério:
a. Executar satisfatoriamente as atividades físicas ministradas.
b. Demonstrar com perfeição os exercícios físicos nas práticas de ensino.
c. Formular planos de aula.
d. Revelar qualidades de educadora, tais como:
- domínio de classe;
- linguagem fluente; clara e simples;
- controle emocional;
- responsabilidade;
- comunicação, etc.
(IEEL, 1974, s/p - grifos nossos).
Ao pensar a Educação Física escolar no contexto da Ditadura Civil Militar, Taborda de Oliveira (2002) chama a atenção para a existência de certa autonomia experienciada pelos sujeitos na prática cotidiana dessa disciplina em contrapartida à perspectiva anunciada pelos documentos e programas oficiais do período. No caso do IEEL, verifica-se que as propostas desta disciplina vinculada à formação de professoras apresentavam-se dando o enfoque não tanto ao domínio de técnicas esportivas, mas sim nas competências, habilidades e composturas vinculadas à função específica para a qual estavam sendo formadas.
O desenvolvimento físico e corporal dessas mulheres estava vinculado ao “melhoramento” e “aprimoramento” de qualidades específicas e esperadas em uma professora, favorecendo o desenvolvimento e a internalização de um modo de ser que compunha características muito bem definidas e delimitadas. Assim, ao serem ensinadas as “qualidades de educadora”, tais como as posturas e comportamentos corretos que se deveriam internalizar, a forma como deveria se movimentar, o modo adequado de falar, a tonalidade de voz correta a utilizar, a desenvoltura que deveria dominar, as responsabilidades a ela destinadas, entende-se que essas professorandas foram sendo educadas em sua corporeidade e personalidade.
Integraram a disciplina Programas de Saúde finalidades como:
[...] desenvolver hábitos de saúde e higiene; aprender a importância da postura tanto no aspecto físico quanto no estético; compreender a importância do saber vestir; conhecer a importância da higiene, iluminação e ventilação no lar. (IEEL, 1973, s/p - grifos nossos).
Somadas à importância de conhecer o perigo de “regimes alimentares” realizados sem orientação (IEEL, 1973, s/p), estas indicam uma perspectiva formativa voltada à educação do corpo de uma mulher que deveria desenvolver hábitos de saúde e higiene, saber e respeitar a forma correta e adequada de se vestir e de se comportar - como mulher e professora - e ainda dominar as habilidades e conhecimentos que envolviam o cuidado com a casa, uma vez que, além de professoras, possivelmente, eram mulheres do lar.
Destaca-se a atenção voltada aos regimes alimentares, sendo um tópico de conteúdo destinado à temática: “regimes e os tipos de alimentação” (IEEL, 1973). Com isso, tem-se que as mulheres já trilhavam a “busca pelo corpo padrão” - o corpo magro -, e esse aspecto adentrava também as escolas de formação de professoras. Ao averiguar a existência de tal conteúdo no programa do curso, considera-se que essa constante busca de se enquadrar em um padrão corporal específico era uma prática comum, inclusive indicada para essas mulheres, mas que deveria ser realizada da forma “correta”. Entretanto, “[...] o antigo prolongamento entre o corpo feminino e o espaço doméstico se mantinha quase intacto [...]. A casa ainda era o espelho da sua senhora” (SANT’ANNA, 2014, p. 116). Divulgavam e reforçavam um ideal de corpo, de beleza e compostura que deveria ser buscado pelas mulheres, ensinavam-se a essas mulheres que haviam roupas específicas e adequadas para elas e um cuidado indispensável com o lar. A formação dessas professoras estava envolta de normatizações do modo correto de se vestir e se portar, e suas obrigações como mulheres do lar.
As disciplinas de Educação Artística e Expressão Plástica, Sonora e Corporal foram apresentadas como disciplinas que objetivavam instrumentalizar a professora em formação, desenvolvendo habilidades de expressão e comunicação, estimulando o desenvolvimento rítmico e motor dessas alunas e favorecendo a criatividade e a socialização das mesmas, objetivando sua atuação no 1° grau. Em ambas as disciplinas, as atividades previstas enfocavam o desenvolvimento motor e rítmico, atividades e o desenvolvimento de sensibilidades estéticas e ainda a participação ativa nas comemorações e datas cívicas e religiosas, e a realização de dramatizações (IEEL, 1973, s/p).
As disciplinas de Organização Social e Política Brasileira (O.S.P.B) e de Educação Moral e Cívica tornaram-se obrigatórias nos currículos escolares em todos os níveis de ensino e receberam maior destaque e valorização com o regime autoritário. No programa da disciplina de O.S.P.B do curso de formação de professoras/es do IEEL, encontram-se objetivos como: “tornar o aluno mais cônscio de seus deveres sociais”; “formar o caráter do educando pela absorção de ideias sadias como civismo, patriotismo sem falsidade, aversão por soluções extremadas”; “criar hábitos e atitudes que sirvam às exigências da vida prática” (IEEL, 1973, s/p - grifos nossos). Já na disciplina Educação Moral e Cívica, listam-se objetivos gerais e específicos como:
- Desenvolver o senso de responsabilidade para com os direitos morais e cívicos, perante a família, escola e comunidade;
- Adquirir hábitos morais e cívicos;
- Formação no educando de hábitos de conduta, conforme a lei moral através do fortalecimento da vontade;
- Elaborar um código de conduta;
- Conhecer e identificar a palavra responsabilidade;
- Citar a importância da família em relação a formação dos filhos;
- Conhecer os principais problemas da dissociação familial. (IEEL, 1973, s/p - grifos nossos)
Apesar de não serem exclusividade da formação de professoras/es, as disciplinas O.S.P.B e Educação Moral e Cívica carregavam em seu rol de conteúdos e objetivos uma concepção específica de família e de sociedade, consequentemente, divulgavam papéis e definiam responsabilidades específicas para a mulher, seja enquanto mãe, filha ou esposa, seja como professora responsável pela educação das crianças, o que ecoava diretamente na formação das futuras professoras. Assim, pode-se inferir que por meio dessas práticas educativas formar-se-ia uma mulher passiva, obediente e socialmente enquadrada, que possuísse autocontrole emocional e corporal, que internalizasse valores morais e cívicos que correspondiam a um conjunto de códigos de conduta e comportamento. Destaca-se ainda o forte apelo à difusão e consolidação de um modelo específico de mulher, estritamente vinculado à valorização da família e o seu papel no espaço do lar e da escola. Uma vez que, no que diz respeito à função social da mulher, no contexto da Ditadura Civil Militar, é possível afirmar que, “[...] ainda se recaía sobre ela a figura de mãe do lar e esposa devotada” (GUSMÃO, 2018, p. 141).
Em toda a proposta curricular do Magistério do IEEL, nas diversas disciplinas encontraram-se objetivos, conteúdos e práticas avaliativas voltadas à educação do corpo da mulher em formação de professora. Estes miravam mudanças no comportamento das alunas em busca da adequação da personalidade e da conduta das mesmas, tais como: aprender a escutar para julgar; contribuir para a educação moral; integrar-se no grupo social; expressar-se de maneira clara e estética; desenvolver o senso de responsabilidade e atitude de cooperação; observação do aluno; assiduidade; pontualidade; interesse e relacionamento social (IEEL, 1973).
Todo o processo educativo das alunas que optavam pelo magistério estava, explícita ou implicitamente, voltado para uma formação comportamental e emocional muito bem definida e direcionada, que ensinaria às alunas o autocontrole do comportamento e das pulsões, o respeito e a disciplina, desenvolveria o senso de responsabilidade e competência e o “bom” caráter vinculado a funções específicas (mulher mãe, professora, devota e do lar).
Os objetivos e métodos de avaliação, acima mencionados, integravam as diferentes disciplinas do curso e possibilitaram a percepção de que esse processo educativo do corpo compunha um todo interligado que envolvia e difundia um padrão muito específico de comportamento, valores e personalidade. Essas práticas acabavam tendo um papel importante nesse processo formativo, pois avaliavam cada movimento e cada atitude das alunas a fim de transmitir e naturalizar o modo correto de ser e de se comportar. Assim, construía-se nelas uma consciência de percepção específica em torno do que representava socialmente ser mulher e ser professora, uma vez que,
[...] a consciência, qualquer que seja sua forma específica, não é inata a ninguém. No máximo, o potencial para formar uma consciência é um dote humano natural. Tal potencial é ativado e toma forma numa estrutura específica através da vida de uma pessoa com outros. A consciência individual é específica à sociedade. (ELIAS, 1995, p. 66)
A consciência, pensando com Elias (1995), é constructo humano social que responde e relaciona-se com a estrutura específica da sociedade e com as demandas das relações das pessoas entre si. Desse modo, a partir da dinâmica educativa da instituição estudada como um todo e das interdependências que integravam e definiam a função social da mulher em processo formativo para se tornar professora, foi se construindo nessas alunas uma consciência específica em torno do que significava e compunha ser esse indivíduo (mulher professora) dentro dessa estrutura de relações que a permeava. Pois, apesar da mulher, naquele momento, adentrar de forma um pouco mais potente no mundo do trabalho e assumir novos papéis sociais, “[...] era evidente também a luta para conservação da imagem feminina tradicional” (LOURO, 1986, p. 147) vinculada às concepções que caracterizavam o ser mulher no contexto da Ditadura Civil Militar. A consciência individual, a personalidade e a corporeidade dessas mulheres eram, assim, produzidas e transformadas nas dinâmicas dessas relações sociais.
Na proposta curricular elaborada visando à adequação à Lei 5.692/1971, encontrou-se, ao fim do documento, o levantamento dos bens patrimoniais. Nesse levantamento, verificou-se o registro dos materiais do setor de Música, de Artes, da Biblioteca, da sala de Educação Física, do Departamento de Audiovisual, da Fanfarra - todos setores vinculados às disciplinas ou práticas que constavam no programa do curso.
Mas, o que chamou a atenção foi o registro do levantamento dos materiais do setor de Educação Doméstica, compondo quase cinco páginas de descrição. Listam-se materiais e instrumentos de costura, roupas de cama, mesa e banho, agulhas com diferentes finalidades (crochê, tricô, tecelagem, tapeçaria, etc.), todos os instrumentos e objetos que envolviam o cotidiano doméstico (talheres, eletrodomésticos, ferro de passar, fogão, geladeira, louças, bandejas, diversas panelas), móveis que comporiam uma casa (balcão, mesas com cadeiras, sofás com almofadas, divã, armários) e, ainda, bandeja para curativos, estojo para injeções inox, seringa de injeções e pinça para curativos (IEEL, 1973).
As mudanças na sociedade são caracterizadas por constante movimento, os processos acontecem de forma gradual. Os padrões de comportamentos, os valores e os modos de ser que compõem e modelam a vida dos indivíduos não são abruptamente transformados ou retirados de um contexto de uma hora para outra. Considerando esses aspectos, no processo de formação de professoras, foi possível admitir que, apesar de a área de Educação Doméstica não aparecer enquanto uma prática explícita curricular e diretamente vinculada ao curso no período estudado, o fato de ser incluída no levantamento do patrimônio da escola no projeto curricular da Habilitação Específica para o Magistério pode indicar esse processo gradual que envolviam as transformações das práticas sociais, e pode ser um indício da existência de resquícios de práticas anteriores que estiveram [ou não] presentes no momento histórico da década de 1970. Tal fato indica uma perspectiva educativa específica que, mesmo não compondo a formação curricular oficial, poderia ser um espaço que acabaria sendo utilizado nesse processo educativo.
As práticas educativas complementares
As comemorações, práticas cívicas e a celebração de datas emblemáticas estão presentes na história da formação de professoras desde o início de século XX (FURTADO, 2007). Entretanto, tem-se, no período histórico investigado, o fortalecimento e a valorização dessas atividades em consonância com a organização política e social em vigor. Registra-se a participação das alunas do curso de formação de professoras/es do IEEL (década de 1970) em diferentes práticas educativas complementares, as atividades extracurriculares. Dentre elas, evidenciou-se a existência da Fanfarra no Ensino Normal e a participação expressiva, e de destaque, das alunas “normalistas” nos Desfiles de 7 de setembro, sendo elas as portas e guarda bandeiras (IEEL, 1971-1977). No contexto do Instituto e da sociedade local, as alunas participavam dos Desfiles de 7 de setembro, Hasteamento da Bandeira, atividades cívico-educativas etc.
Nessas atividades cívicas, com base nas evidências encontradas, as alunas eram colocadas como modelos à linha de frente e, geralmente, no contexto dos eventos, fortalecer-se-iam os sentimentos desejados em relação à pátria, à família e às responsabilidades individuais, assimilando preceitos de moralidade, civilidade, bons hábitos e costumes. As práticas cívicas contribuíam para a internalização e naturalização, nessas alunas, de comportamentos nacionalizantes adequados e esperados socialmente visando o desenvolvimento de uma personalidade estável, autocontrolada e responsável, considerando a função social que iriam desempenhar enquanto professoras e mulheres disseminadoras desses mesmos valores.
Em um livro ata direcionado ao registro das atividades realizadas no curso de formação de professoras pelo Departamento de Educação Musical, no ano de 1971, destacou-se a apresentação de duas peças teatrais em diversas escolas primárias do município de Londrina-PR: O casamento da Dona Baratinha, versão colhida na Revista Ensino, e A bruxinha que era boa, de Maria Clara Machado (IEEL, 1971). Foram relatadas também atividades de organização de corais, jograis e apresentações musicais preparadas para os eventos cívicos e datas comemorativas, como o “Dia das Mães”.
Pensando no teor e no conteúdo da história das peças teatrais dramatizadas pelas alunas, A bruxinha que era boa e O Casamento da Dona Baratinha, percebeu-se que ambas difundiam características específicas que compreendiam modos de ser e de se comportar nas relações sociais adequados às mulheres, e, assim, acabavam divulgando também um modelo específico de beleza. Por meio da peça O Casamento da Dona Baratinha difundia-se a ideia de que as mulheres deveriam ser sempre limpas, asseadas e bem arrumadas, mantendo e cuidando da limpeza e organização dos espaços pelos quais eram responsáveis (no caso da história, o lar). Já com a história A bruxinha que era boa, de autoria de Maria Clara Machado, intentava-se disseminar padrões estéticos e comportamentais muito específicos, uma vez que “a bruxinha boa” era loira - diferente fisicamente das demais - que eram morenas; diferente também das bruxas más, “a bruxinha boa” em suas relações sociais era discreta, delicada e cuidadosa, era inteligente e tinha sentimentos, chorava e se preocupava em ajudar os outros (MACHADO, 2009).
Característico do fazer teatral e musical, o viés formativo corporal e estético envolvia o domínio de posturas e movimentos corporais específicos, o autocontrole do corpo e da voz, a concentração, a desenvoltura e delicadeza ao realizar os movimentos. Ao exigir disciplina e autocontrole (físico e emocional), responsabilidade e comprometimento com as apresentações e ensaios agendados, essas atividades influenciaram na educação do corpo e da personalidade da mulher em formação de professora no IEEL.
Moreno, et al (2012), em estudo sobre a educação do corpo na formação de professores na Escola Normal Modelo da Capital, em Belo Horizonte, nas primeiras décadas do século XX, afirmam que “a presença da música na escola, sob a forma do canto, pode ser compreendida como um procedimento civilizador, tanto pelo seu caráter estético, quanto pelo conteúdo moral das letras “(MORENO, et al, 2012, p. 233). Sem desconsiderar que as evidências aqui investigadas tratam de período distinto na história da formação de professores no Brasil, destaca-se o potencial educativo de tal prática na formação de professoras/es.
Em um outro recorte de jornal, referente ao período de Maio/Junho de 1971, apresentavam-se as atividades programadas para o Sistema de Créditos do Curso Normal:
Alguns dos cursos ofertados, tais como: “Artesanatos em couro”, “Confecções de cabides artísticos”, “Curso de orientação à Maternidade e Casamento”, “Plastificação”, “Flores Ornamentais e bolsas de pedras”, “Confecções em feltro”, “Curso Planejamento Familiar”, não apresentavam relação direta com as funções e responsabilidades vinculadas à profissão de professora. Infere-se que estes existiam e apresentavam outros objetivos formativos que atravessaram a dinâmica educativa do corpo da mulher que integrava esse processo.
Com uma educação que valorizava o domínio de saberes e práticas vinculados ao lar e à maternidade, essas alunas deveriam internalizar habilidades manuais e artesanais que contemplassem um gosto estético específico e ocupassem o tempo, a atenção e direcionassem e modelassem o pensamento delas. Considerando que os códigos de comportamento difundidos socialmente são característicos de uma estrutura específica de sociedade, sua divisão de funções e de suas relações de poder correspondentes (ELIAS, 1993), entende-se que a mulher, naquele momento histórico dos anos de 1970, tinha sua função social - ainda em grande parte - vinculada ao lar e à família. Assim, essa mulher professoranda era educada com base em padrões específicos de docilidade e fragilidade, internalizando valores direcionados ao casamento, maternidade e ao lar e naturalizando os comportamentos correspondentes a esses valores.
Esses cursos eram parte de um Sistema de Créditos e, portanto, as alunas poderiam escolher quais iriam realizar e quais não. Acredita-se que nem todas as mulheres adeririam e realizariam esses cursos6. Entretanto, a grande quantidade de cursos com essas temáticas indica que esse processo formativo do corpo estava diretamente voltado ao aprimoramento do comportamento e da personalidade dessas alunas com um viés muito específico, voltado à formação de uma mulher que - além, ou antes mesmo, de ser professora - fosse mãe, esposa, habilidosa manualmente e se autocontrolasse emocionalmente e corporalmente visando um bem maior, a vida familiar.
Em 1971, registra-se um convite de uma rádio da cidade para a apresentação das alunas do coral do IEEL no programa de domingo, que acontecia das 13h às 14h, a professora responsável expôs que não houve adesão, pois, “a maioria das alunas normalistas inscritas nêsse crédito são casadas e tem filhos; alegavam que domingo os maridos irritar-se-iam com esta obrigação, além do horário também não ajudar, por ser na hora do almoço” (IEEL, 1971, p. 10). A fim de conseguir a participação das alunas, a professora se dispôs a isentar três faltas ou isentar de três comparecimentos ao crédito e, somente assim, conseguiu a adesão de algumas alunas.
Como afirma Elias,
[...] a interdependência dos indivíduos, e as coerções que sua dependência recíproca exerce, têm origem em determinadas necessidades e ideais humanos, socialmente marcantes. O modo da dependência recíproca varia conforme aparecem as necessidades sociais que levam a novos vínculos entre as pessoas. (ELIAS, 2001, p. 150).
Para pensar a educação do corpo das mulheres em formação de professoras deve-se considerar que os comportamentos, as condutas e as personalidades desses indivíduos - assim como suas ações - são construídas e definidas nas teias de relações e das divisões de funções que permeiam essas relações, gerando dependências recíprocas entre os indivíduos. Somado a isso, destacam-se os diferenciais nas relações de poder que influenciam diretamente na elaboração e definição de comportamentos adequados. As mulheres encontram-se, historicamente, em desigualdade na balança de poder que permeia a relação entre os sexos e, com isso, têm seus comportamentos e personalidades definidos também a partir dessa relação de desigualdade (ELIAS, 1998).
Diante disto, essas mulheres em formação de professoras inseridas em outras figurações - a maioria eram casadas e tinham filhos - integravam redes de dependências recíprocas que exigiam delas a previsão e a capacidade de auto restringir suas atividades a fim de estar em sincronia com suas outras obrigações/funções. Sabendo que o horário da atividade proposta não agradaria aos maridos e chocaria com suas outras responsabilidades familiares e do lar, essas mulheres se recusaram a participar. A capacidade de previsão delas e as desigualdades nas relações de poder que, historicamente, caracterizam a figuração familiar acabaram por definir a postura dessas mulheres. Porém, após a proposta da professora algumas alunas aderiram à atividade, tal aspecto pode indicar a capacidade de o indivíduo de alterar algumas relações de poder e construir novas possibilidades nesse processo, sem desconsiderar os limites característicos das redes de interdependências e relações de poder.
Por sua vez, menciona-se a existência de Concursos de Beleza entre as alunas em formação de professoras. Em um grupo da rede social Facebook que congrega antigos alunos da década de 1970, foi possível encontrar um recorte de jornal, do ano de 1978, que divulgou um concurso de beleza que ocorreria na “Festa das Normalistas” e iria eleger a Miss IEEL.
Um concurso de beleza entre as alunas “normalistas” indicava e fortalecia a disseminação de um padrão estético, de comportamento e de personalidade específicos para essas mulheres, uma vez que os concursos de beleza valorizavam padrões específicos de composição e postura corporal, vestimenta, desenvoltura, abrangendo, inclusive, os gostos estéticos e as práticas sociais e comunitárias das envolvidas.
As misses da década de 1950 vão sendo substituídas pelas top models nas décadas de 1970 e 1980, que eram mulheres mais altas, magras e com aparência e apelo mais sensuais (SANT’ANNA, 2014). O que se verificou no IEEL, entretanto, é a permanência de um ideal de beleza vinculado a ideia de miss, que acaba por preservar uma concepção muito específica de beleza e comportamento, mais tradicional e conservadora, que, possivelmente, foi contrária a essa perspectiva mais liberta e sensual da mulher que vai emergindo gradualmente no período estudado. Infere-se que, em contrapartida à “liberdade e abertura sensual”7 das mulheres que emerge nesse momento (SANT’ANNA, 2014), a educação das mulheres professoras do IEEL permaneceu sendo uma formação que valorizava o recato, a docilidade, a delicadeza, a beleza e a personalidade conservadora.
Conclusão
As evidências históricas analisadas permitiram a apreensão de algumas das práticas educativas do corpo que permearam a formação de professoras no Instituto Estadual de Educação de Londrina (IEEL), na década de 1970. Estas estavam em consonância e difundiam um padrão específico de comportamento e de personalidade à essas mulheres em processo educativo. Entende-se que, através de diferentes frentes formativas, foi-se definindo e difundindo um modo de ser e de se comportar que era socialmente adequado e valorizado por meio de uma formação que prezava pela educação corporal e emocional em seus minuciosos aspectos, visando a internalização de um modo de ser, estar, ler e viver no mundo relacional objetivado em diferentes figurações.
Esse processo educativo do corpo das mulheres em formação de professora buscava a mudança de hábitos e comportamentos, valorizando a aquisição de atitudes, de interesses específicos e de ideias adequadas, atingindo o ajustamento emocional e social das alunas. Divulgava-se qual era a vestimenta adequada, imprimindo um comportamento recatado e respeitoso correspondente ao modo correto de se vestir. Almejava-se desenvolver habilidades manuais, corporais e uma sensibilidade estética específica, voltadas para o domínio e autocontrole do corpo e das emoções, além de favorecer a formação moral e a internalização de valores sociais vinculados à naturalização de um comportamento adequado e que estivesse em consonância com o esperado socialmente de uma mulher na década de 1970. Difundiam-se ainda a importância do autocuidado corporal, da higiene, da limpeza e do cuidado com a casa, visando a naturalização de uma postura e vestimenta adequada nessas mulheres. Tem-se, com isso, que a formação da mulher dizia respeito - também - à condição de ser esposa, mãe e responsável pelo lar.
As práticas de educação do corpo integraram a totalidade do processo formativo das professoras no IEEL. Os princípios e padrões de comportamento, que foram sendo difundidos para essas mulheres em formação de professora, nada mais eram do que objetivações de uma estrutura social específica, suas interdependências e as relações de poder delas características. Pois, com diferentes funções delegadas às mulheres, naquele momento, e com a necessidade de as mesmas sincronizá-las nas distintas figurações que integravam, foram sendo divulgados comportamentos e condutas específicas - constituídos ao longo do tempo histórico - para atender a essas demandas sociais. Entretanto, não se pode desconsiderar que, no bojo dessas relações, essas mulheres possuíam gradientes de poder que as possibilitavam alterar as relações que integravam, e que, apesar de circunscritas em interdependências, as práticas de resistência, mesmo que pequenas e pontuais, também existiram.
Existia, portanto, uma concepção de educação do corpo muito específica e vinculada à formação dessas mulheres ditas civilizadas. As práticas educativas provocavam na mulher em formação de professora um conjunto de princípios, valores, competências e comportamentos que eram socialmente reforçados - dentro e fora da escola - e que as educavam em uma direção própria, a saber, uma mulher professora que deveria apresentar comportamentos polidos, ser responsável e organizada, vestir-se com pudor, ser asseada, simples, porém saber expressar-se e comunicar-se sem exageros, ter autocontrole do seu próprio corpo e das suas emoções e pulsões, dominar com perfeição os conteúdos que envolviam a prática como professora, ser eficiente, passiva e dócil e, ainda, não esquecer de suas funções como mulher em uma sociedade na qual a figuração familiar e o lar ainda eram responsabilidades fortemente atribuídas à ela. Em suma, ser uma mulher decente, uma professora competente.