O movimento educacional brasileiro foi palco de embates travados entre dois grupos - católicos e pioneiros - que disputavam o controle do aparelho escolar, amplamente estudados na historiografia da educação brasileira, de acordo com Carvalho (2005). Pioneiros seriam os signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, e católicos aqueles ligados ao Centro D. Vital, em São Paulo, à Associação dos Professores Católicos do Distrito Federal e, “a partir de 1934, na CCBE-Confederação Católica Brasileira de Educação” (CARVALHO, 2005, p. 89). Os dois grupos visavam proporcionar a atualização do professor e pretendiam a sua adesão aos novos preceitos pedagógicos e se valeram de variadas estratégias para alcançar o objetivo pretendido. A imprensa, neste contexto, se constituía em importante aliada:
Na forma de livro de estudo para a Escola Normal, de livro de formação integrante de uma Biblioteca Pedagógica, de artigo de revista dirigida ao professor, de instrução regulamentar endereçada às escolas, de artigo de polêmica em jornal de grande circulação etc., o impresso será dispositivo de regulação e modelagem do discurso e da prática pedagógica do professorado. (CARVALHO, 2005, p. 89).
Esses dois grupos vão concentrar as suas ações na criação de estratégias editoriais diversas, cada qual se colocando como porta-vozes dos preceitos mais adequados para orientar a condução da política educacional, contribuir com os diferentes projetos a serem implementados nas instituições escolares, inspirar a prática dos educadores e informar o público leigo. A “Página de Educação” do Diário de Notícias e, mais à frente, “Ensino e Educação”, do Jornal do Brasil fizeram parte dessas estratégias que mobilizaram educadores para a divulgação do ideário escolanovista por meio da imprensa, como evidenciado, por exemplo, por Nascimento (2013) e Roberto (2013), respectivamente.
Dirigida pela poeta, educadora e a partir daquele momento também jornalista, Cecília Meireles, de 12 de junho de 1930 até 12 de janeiro de 1933,1 a “Página de Educação” foi o suporte de uma visão de educação de um grupo de intelectuais ligados ao movimento da Escola Nova. Ali desenvolveu a arte de arregimentar educadores, diferentes personalidades do campo da educação do país e do exterior e publicar as suas ideias e a dos seus interlocutores: crônicas, entrevistas, notícias, conferências, debates e aulas. No jornal A Nação, Cecília considerou a possibilidade de continuidade ao trabalho iniciado no Diário de Notícias e seguiu à coluna “Commentario”, porém permaneceu por um curto período de tempo: de 14 de janeiro a 15 de março de 1933, tendo a sua saída agravada por discordâncias relacionadas à condução do jornal em relação à política de educação que apoiava.
Com a saída de Cecília da editoria dos dois jornais o grupo reformador precisava “manter acesas as questões que os mobilizavam”, como conjectura Roberto (2013, p. 19). Sendo assim, “em função do seu passado de serviços prestados às causas educacionais”, Frota Pessoa,2assumiu a direção da coluna “Educação e Ensino” no Jornal do Brasil, de maio de 1933 até 1948. Na coluna, ele “apresentava um eixo temático que marcara Cecília Meireles na “Página de Educação”: o ensino religioso (ROBERTO, 2013, p. 104).Na apresentação da coluna aos leitores Frota Pessoa indicava as diretrizes a serem seguidas: “[...] os assuntos referentes à educação e ao ensino no Distrito Federal, nos estados e no estrangeiro” e “tudo que se relacionasse com educação e ensino - desde a escola até a universidade - seria [...] objeto de uma constante preocupação” (ROBERTO, 2013, p. 105), ou seja, seguiria orientações bem aproximadas ao que Meireles havia realizado no Diário de Notícias e em A Nação.
O Diário de Notícias tem se destacado na historiografia da educação por ter sido uma página dedicada à Educação e por ensejar o trabalho de investigadores sob diferentes perspectivas. As pesquisas que se debruçaram sobre a singularidade e a configuração desse veículo de divulgação educacional têm se detido no cotejamento de dados referentes, sobretudo, à primeira fase, obviamente por investigarem a atuação de Cecília Meireles quer como editora quer como cronista que elegeu a educação como temática central. Dessa forma, essa produção continua sendo interrogada pelos historiadores da educação como objeto e como fonte para os seus trabalhos, como ponto de reflexão sobre o fazer educativo e como fonte de inspiração sobre as suas próprias práticas pedagógicas. O trabalho desenvolvido em A Nação, em 1933, foi referido por Silva (2021) e o período posterior ao ora investigado foi estudado por Pimenta (2008) que analisou as crônicas publicadas no transcorrer da primeira viagem de Cecília a Portugal, em 1934, quando publicou seu diário de bordo da travessia.
Investigar jornais, boletins, revistas e magazines, sejam feitos por alunos para seus pares ou para professores, “hechos por el Estado u otras instituciones como sindicatos, partidos políticos, asociaciones, iglesias” contribui sob muitos aspectos “para la comprensión de la historia de la educación y de la enseñanza”, como salientado por Bastos (2016, p. 2). Dessa forma, [...] “evaluarla política de las organizaciones, las preocupaciones sociales, los antagonismos y filiaciones ideológicas, así como las prácticas educativas y escolares” são perspectivas que se apresentam ao pesquisador que se utiliza dessas fontes para o desenvolvimento de suas reflexões.
Como um instrumento de comunicação do nosso tempo a imprensa tem sido importante fonte para historiadores e historiadores da educação, como salientado por Hernández Díaz (2013), convertendo-se “em patrimonio documental para el investigador interessado em los temas de historia de la educación, sobre todo desde una lectura social” (p. 11). Tomar o jornal como fonte documental, para Zicman (1985), proporciona ao investigador a oportunidade de obter, além da reconstituição histórica, “um melhor conhecimento das sociedades ao nível de suas condições de vida, manifestações culturais e políticas” (p. 89) e, ainda, a possibilidade de examinar a periodicidade, a disposição espacial da informação e o tipo de censura (p. 90).
De acordo com a autora, as pesquisas precisam obrigatoriamente delinear as principais características dos órgãos de imprensa consultados: “mesmo quando não se faz História da Imprensa propriamente dita - mas antes o que chamamos História através da Imprensa - está-se sempre ‘esbarrando’ nela, pela necessidade de historicizar os jornais”. Outra recomendação se refere à clareza que o investigador deve ter quanto à apresentação das notícias que não são “mera repetição de ocorrências e registros, mas antes uma causa direta dos acontecimentos”, devendo considerar que as informações ali “denotam as atitudes próprias de cada veículo de informação”, seguindo e “segundo o seu próprio filtro” (ZICMAN, 1985, p. 90).
Sendo assim, ele precisa ter como princípio, como salientado por Araújo et al (1998, p. 4), que tomar a imprensa periódica como objeto de pesquisa requer que se tenha em vista que a mesma difunde interesses por ser “um produto social emergente na sociedade urbana e industrial.” Deve, pois, recusar “a ideia de que a imprensa seja apenas veiculadora de informações, imbuída de imparcialidade e de neutralidade diante dos acontecimentos, como se a mesma pudesse se constituir uma ilha diante da realidade histórica na qual se insere” (p. 4).
Tomando por base esses pressupostos, o texto trata da primeira fase da “Página de Educação” e da tentativa de continuidade no jornal A Nação, no espaço denominado “Educação”, onde foi mantida a coluna “Commentario”. Investiga-se as suas principais características, o que veiculava, quem eram os principais colaboradores e, principalmente, os antagonismos e resistências que concorreram para o afastamento de Cecília Meireles como editora da seção de educação dos dois matutinos cariocas.
IMPRENSA E INTELECTUAIS: CONVICÇÕES POLÍTICAS E APREENSÃO DA REALIDADE
Criado pelos jornalistas Orlando Ribeiro Dantas, Nóbrega da Cunha e Alberto Figueiredo Pimentel, logo após finalizarem as suas atuações em O Jornal, dos Diários Associados, o Diário de Notícias (1930-1974) foi inicialmente propriedade de uma sociedade anônima presidida por Manoel Magalhães Machado, com Aurélio Silva como secretário”. De acordo com Sodré (1999), com o final da Primeira Guerra a imprensa brasileira substituiu a “fase artesanal” e se organizou como uma “empresa nitidamente estruturada em moldes capitalistas”. Ainda persistiam “revistas de vida efêmera, literárias ou humorísticas, e jornais de circunstâncias”, mas eram cada vez “menos numerosos e acidentais”, pois resultavam de “empresas mal estruturadas”, que se esgotavam depressa e que consumiam “rapidamente o capital” investido (SODRÉ, 1999, p. 355). Quanto ao público alvo desses jornais, o autor enfatiza ser formado, principalmente, pela burguesia e que esse público influía “e era influenciado pelos jornais”, relação que à época “não era perturbada pelas forças econômicas que, mais adiante, tanto pesariam na orientação dos periódicos”. Outra característica importante é que os mesmos sobreviviam mais da venda avulsa que da publicidade, então “um grande jornal era, quase sempre, aquele que tinha tiragem grande” (SODRÉ, 1999, p. 356).
De acordo com Ferreira (s/d, p. 1), o Diário de Notícias desde a sua fundação explicitou a sua posição sem se “comprometer com os partidos existentes”, mas sustentando “as teses da Aliança Liberal, movimento oposicionista que apoiara a candidatura derrotada de Getúlio Vargas à presidência da República e cujas principais reivindicações eram a anistia, o voto secreto e reestruturação da justiça” (idem). A opinião pública era diariamente informada e esclarecida por meio da coluna “Movimento Revolucionário”, que noticiava a sequência dos acontecimentos que antecederam a Revolução de 1930, cuja proposta era se contrapor à estrutura oligárquica da República Velha, “colocando-se como porta-voz de um ‘espírito revolucionário’ que visava a transformação da sociedade”. Entretanto, esse “espírito revolucionário” não intentava a transformação da sociedade, mas a sua “reforma, a substituição e o aperfeiçoamento, vistos como uma forma de superar os métodos políticos antiliberais então em vigor” (FERREIRA, s/d, p. 1).
Já A Nação veio a público em 14 de janeiro de 1933 tendo como proprietário José Soares Maciel Filho, contando com João Alberto Lins de Barros, à época chefe de polícia do Distrito Federal (FERREIRA, s/d), do médico Arthur Neiva como diretor e do jornalista político Azevedo Amaral como redator-chefe (CHAVES, s/d). Vinculado à política tenentista, posicionava-se e se reconhecia, em seu primeiro Editorial “Rumo a Seguir”, como um dos orientadores da “obra reconstrutora da Revolução”, como “uma expressão dessa renascença espiritual”, que contribuiria para “criar a ambiência propícia a uma obra de construção política”, orientada por “um espírito inteligentemente conservador e ao mesmo tempo consciente das necessidades novas do momento nacional”. Afirmavam-se inspirados pelos ideais nacionalistas e que estes presidiam o jornal, que consagraria à educação pública a sua atenção, para que esta se organizasse “em todos os seus graus, dando ao ensino técnico e profissional o relevo” até então “tão lastimavelmente esquecido entre nós” (EDITORIAL, 14/01/1933, p. 4). Contava com Fernando Correia Dias, artista plástico e primeiro marido de Cecília Meireles, que “introduziu uma série de inovações gráficas” que contribuíram para popularizar o matutino entre o público leitor e “a colaboração do caricaturista Egídio Squeff” e também a de Sotero Cosme, “que ao invés de caricaturas, como era praxe na época, fazia retratos das personalidades em foco”. Dispunha de duas redações: “uma para o jornal propriamente dito, e outra para os suplementos dedicados a diferentes áreas, que saíam todos os dias alternadamente. Havia um suplemento cultural, um literário, um feminino, um infantil, um esportivo, etc.” (FERREIRA, s/d).
No período em questão, é possível compreender, com Pécaut (1990), que parte dos intelectuais brasileiros vão se ater a questões relacionadas à “identidade nacional e das instituições”. O autor afirma que as instituições da República adotaram um “liberalismo inspirado na ilusão de atingir a modernidade por imitação de modelos estrangeiros”, que concorriam para obstaculizar a “afirmação nacional”. Sendo assim, a organização da nação, para esses intelectuais, era uma tarefa que cabia exclusivamente às elites. E acrescenta: “Dela os intelectuais têm ainda mais motivos para participar, na medida em que constitui um fato indissoluvelmente cultural e político: forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de assegurar a sua unidade” (PÉCAUT, 1990, p. 15). O que se observa, entretanto, é que não havia uma unidade entre as concepções políticas compartilhadas por esses intelectuais.
Dar forma à sociedade, estruturar o espaço cultural equivalia, para a intelligentsia brasileira, “a possibilidade de criar instituições modernas, abertas ao espírito de renovação e de pesquisa”, ou seja, criar instituições suficientemente competentes e capazes de ultrapassar o isolamento em que esses intelectuais se mantinham, ampliando a capacidade dos mesmos em “difundir sua mensagem e de criar um ‘mercado’, não necessária ou exclusivamente no sentido econômico do termo”, mas “no sentido de um lugar onde se intercambiam ideias”, o que significava estabelecer um “loci para a fundação, o reconhecimento e a expansão de sua identidade social, e mesmo de sua ‘missão’ na sociedade” (MARTINS, 1987, p. 15). Apesar disso e de acordo com o autor, não havia uma pretensão em “falar em nome da nação”, ou seja, a intelligentsia “não aspira ‘substituir’ alguma classe social, nem falar em nome da nação” procura advertir a nação buscando em sua condição intelectual a legitimidade da liderança moral que quer exercer. De fato, é mais do que uma liderança moral: é o papel do “herói modernizador” que ela se atribui (MARTINS, 1987, p. 14).
Com suporte nas postulações de Sirinelli (2003), Gomes e Hansen (2016), afirmam que intelectuais são sujeitos históricos, que “atuam, exclusiva ou paralelamente, como mediadores culturais”, ou seja, o intelectual criador pode atuar como mediador na medida em que “se dedica à comunicação com públicos externos às comunidades de experts” e “se aperfeiçoa nas atividades de mediação e no uso de linguagens e estratégias com a sua experiência e com aquela acumulada ao longo do tempo” (p. 9). O intelectual mediador se converte em “um profissional especializado em atingir um público não especializado” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 19).
Sendo assim, compreendemos que um intelectual ao assumir uma página ou uma coluna em um jornal desenvolve o desígnio de fazer circular ideias, concepções, “trocas ou ‘transferências’ intelectuais diversas (...) entre círculos acadêmicos de diferentes regiões e países” (p. 19). Segundo as autoras, nem sempre o intelectual mediador apresenta-se, torna-se evidente “como responsável direto por um bem cultural, com crédito público ao seu nome” (p. 19). Eles “podem ser tanto aqueles que se dirigem a um público de pares, mais ou menos iniciado, como a um público não especializado, composto por amplas parcelas da sociedade” e podem, também, concentrar diferentes atribuições no decorrer de sua trajetória profissional, não ocupando posições fixas, podendo “ser ‘criador’ e ‘mediador’; (...) ser só ‘criador’ ou só ‘mediador’; ou pode ser ‘mediador’ em mais de um tipo de atividade de mediação cultural” sendo e tendo o seu trabalho reconhecido “quer pelo público, quer pelo próprio campo intelectual com o qual dialoga”. Dessa forma, “não há identidades profissionais ou pessoais fixas e imutáveis” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 22).
Sob esse ângulo é possível inferir que os intelectuais não só assumem e explicitam as suas convicções políticas, conforme as apreensões que têm da realidade circundante, mas agem em função delas, negando, discordando e agindo em favor de suas próprias concepções e as dos círculos de sociabilidade a que estão vinculados. Para Martins (1987), “não existe relação necessária entre a condição de intelectual e a de ator político (...) esta última qualidade é o atributo de um certo tipo de intelectuais, cuja emergência, como sujeito coletivo, parece ligada a certas condições sociais, políticas e culturais” (MARTINS, 1987, p. 1).
Consideramos Cecília Meireles e vislumbramos a sua trajetória como intelectual que atuou no universo das letras como jornalista e editora da “Página de Educação” do jornal Diário de Notícias e da “Educação” no jornal A Nação, sob a perspectiva de Bourdieu (2005),quando assinala que trajetória pode ser compreendida como “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, 1989, p. 189). A partir desse conceito, acompanharemos parte do processo de criação e organização da proposta que ela desenvolveu nos dois periódicos cariocas procurando interpretar a centralidade da educação no debate que arrebatou os intelectuais de seu tempo.
UM SONHO OBSTINADO
Examinar a presença de Cecília Meireles na imprensa carioca envolve considerar que os jornais, assim como as revistas e os manifestos, de acordo com Sirinelli (2003), são estruturas elementares e de natureza diferente, pois oferecem ao campo intelectual “por meio de forças antagônicas de adesão - pelas amizades que as subtendem, as fidelidades que arrebanham e a influência que exercem - e de exclusão pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas”. Constitui-se em “um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais”, sendo, portanto, “um lugar precioso para a análise do movimento das ideias (...) fermentação intelectual e de relação afetiva” e, ao mesmo tempo, “viveiro e espaço de sociabilidade” podendo ser, “entre outras abordagens, estudada nesta dupla dimensão” (SIRINELLI, 2003, p. 249).
A esfera de atuação de Cecília Meireles circunscrevia-se, inicialmente, ao âmbito da literatura, destacando-se a sua presença como poeta em revistas literárias como Árvore Nova, Terra de Sol e Festa, no Brasil e Portugal Feminino, em Portugal (PIMENTA; DINIZ, 2015). Ainda no campo literário, nesse “viveiro” onde se movimenta e fermenta o labor intelectual, Cecília desponta como poeta com os livros Espectros (1919), Poema dos Poemas, Nunca Mais... (1923) e Baladas para El Rei (1925). Simultaneamente, atuava também como educadora, apresentando as suas primeiras incursões no campo com a publicação de Criança Meu Amor (1923) e, mais tarde, da tese O Espírito Victorioso (1929), com a qual concorreu à vaga do concurso de Literatura da Escola Normal do Distrito Federal.3
Em sua trajetória há construção da uma extensa “rede de sociabilidade intelectual”, que se estabelece, na concepção de Sirinelli (2003), quando um grupo de intelectuais se organiza “em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes”. Essas estruturas, pela sua extensão e pela heterogeneidade de vinculações de seus participantes formam “estruturas de sociabilidade difíceis de apreender, mas que o historiador não pode ignorar ou subestimar” (SIRINELLI, 2003, p. 248).
As redes de sociabilidade são construídas gradualmente, sem uma ordem preestabelecida, instituídas ao sabor dos encontros, das relações e dos contatos que vão sendo tecidos. A “Página de Educação” foi um desses espaços em que foi possível aglutinar e divulgar as produções de intelectuais como Anísio Teixeira, Artus Perrelet, Edouard Claparéde, Constâncio C. Vigil, Gerardo Seguel, Gabriela Mistral, Fernando de Azevedo, Ana de Castro Osório, Pierre Michailowsky, Lourenço Filho, Alphonso Reyes, Pablo Pizzurno, Lorenzo Luzuriaga, Khalil Gibran, Erich Maria Remarque, Rabindranath Tagore entre tantos outros. Alguns deles cooperaram a distância com trabalhos contratados por meio de cartas: um vasto diálogo construído que se tornou uma fonte poderosa para solicitar e receber colaborações para figurar nas páginas do jornal.
Se a literatura e a educação foram espaços de formação de sua sociabilidade e das temáticas de predileção para o trabalho elaborado por Meireles até aquele momento, pode-se afirmar, que a política também vai ser considerada e refletida no seu fazer cotidiano nos periódicos cariocas, ou seja, os movimentos revolucionários não vão ser ignorados e também vão alcançar, compor e ser temática gradativa e persistente, a orientar o seu trabalho, afirmar e firmar a sua posição como educadora ligada aos círculos da vanguarda educacional da época. O apoio à “Revolução” se reflete e se instaura como um mote para muitas de suas crônicas, como por exemplo em “Sinal dos tempos”, onde conclama os educadores a se comprometerem com as transformações políticas que a Revolução de Outubro requeria. A Revolução, afirma, era “um pórtico para uma idade nova” e era “o sinal dos tempos diferentes” e questionava: como o professor, “que prepara os homens vindouros” poderia “estar condignamente na sua situação, se lhe passarem despercebidos os detalhes de cada acontecimento desta Revolução, que é, igualmente, uma Revelação? (MEIRELES, 14/11/1930, p. 15).
Em 1929 Cecília concorreu à cátedra de Literatura Vernácula da Escola Normal do Distrito Federal com a tese O Espírito Victorioso (MEIRELES, 1929). Nela reivindicava novos rumos para a Educação: a nova ciência que transporia o passado e inauguraria um tempo em que a compreensão entre os homens seria uma realidade. Os professores, afirmava, deveriam “ter não apenas conhecimento, mas sensibilidade para os fenômenos da natureza humana”. Para ensinar, deveriam evidenciar aos educandos “não o sabor que os seus lábios sentiram, mas o desejo comovido e elevado de tocar também com a sua boca essa estranha bebida e distinguir-lhe o duplo ressabio de eternidade e impermanência (MEIRELES, 1929, p. 19). Entretanto, tão modernas quanto singulares impressões não foram suficientes para garantir um julgamento imparcial do seu trabalho. Cecília ficou em segundo lugar e atribuiu o resultado à presença de representantes da Igreja Católica, que como religiosos deveriam “deixar a batina à porta”, mas optaram por um candidato que fazia valer os seus próprios conceitos e preconceitos em relação à Educação Nova. Em se tratando de educação, deveriam ter outra conduta, afinal a “Escola Normal é um instituto pedagógico e não um seminário (MEIRELES, 21/09/1930, p. 4). Composta pelos escritores Coelho Netto e Nestor Victor e por Antenor Nascente, à época, professor do Colégio Pedro II e do líder católico Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde),4 os resultados divulgados pela banca do concurso foram contestados por Cecília em uma “Carta Aberta” dirigida a Fernando de Azevedo, então Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal (MEIRELES, 27/08/1930, p. 4).
Nela, afirmava que concorreu ao concurso apenas como educadora e intelectual mas que a banca se orientou por questões religiosas, que, definitivamente, não deveriam fazer parte do escopo da avaliação dos candidatos ali presentes e nem da qualificação que deveria ser exigida para os professores da Escola Normal. Iniciava assim um debate com os católicos, liderados por Amoroso Lima que, de acordo com Silva (2021), exercia, claramente, uma ascendência sobre os demais membros da banca e assumira uma posição de liderança após a morte de Jackson de Figueiredo, tornando-se um combatente do “catolicismo contra o laicismo (...), do nacionalismo contra o cosmopolitismo, da tradição contra a inovação, da hierarquização contra a mobilidade, da reação da autoridade contra o liberalismo democrático” (SILVA, 2021, p. 192).
A polêmica principiada a partir desse episódio seria acirrada mais à frente. O grupo católico, em diferentes ocasiões, influenciou os destinos da educação, procurando valer os seus propósitos, as suas concepções educacionais e ideológicas, como na indicação do Ministro da Educação e o Decreto do Ensino Religioso, em 1931, encontrando em Cecília uma forte opositora e combatente. Outras situações e acontecimentos vão incidir sobre o movimento escolanovista a partir de 1931 e 1932, todas elas amplamente comentadas, criticadas e repercutidas na “Página de Educação”, contribuindo para que sua presença à frente da página causasse oposições e indisposições, sobretudo com o grupo católico.
De acordo com Carvalho (1998), em dezembro de 1932 o grupo católico abandonou a Associação Brasileira de Educação ABE,5 pois constatou que a sua força e importância dentro da associação tinha sido minimizada, especialmente em 1931, quando Anísio Teixeira e Carneiro Leão foram eleitos presidentes na Assembleia Geral. Outros fatores importantes salientados pela autora reiteram esse descontentamento do grupo católico com os rumos da entidade:
[...] o lançamento do Manifesto dos Pioneiros, em meados de 1932, que a imprensa noticiara ser apoiado pela Associação; o movimento por uma reforma dos Estatutos que organizasse a ABE nacional; a repolitização da questão educacional no Conselho Diretor, a crescente oposição dos católicos a Anísio Teixeira como Diretor Geral da Instrução Pública no Rio de Janeiro e a proximidade da Constituinte são os ingredientes que, combinados, acabam por determinar o êxodo do grupo católico. Na Quinta Conferência Nacional, em janeiro de 1933, Anísio Teixeira falaria em nome da ABE articulando uma nova imagem da Associação, que acabou por sobrepor-se à construída nos anos 20 (CARVALHO, 1998, p. 71-72).
Conforme a autora, a ABE construiu desde a sua fundação, uma imagem apolítica que na verdade dissimulava o intenso posicionamento e as inúmeras disputas em que os seus principais membros estavam envolvidos. A associação era apresentada “como ponto de confluência e propulsão do que então se avança como campanha cívica pela ‘causa educacional’, campanha apolítica, segundo pretendiam” (p. 14). Portanto, “a valorização genérica da educação, estrategicamente a esvaziavam do significado político que conferiam a ela” (p. 72), ainda que em um segundo momento, tal representação fosse relativizada e ficado evidenciada “a atuação política de seus organizadores” (CARVALHO, 1998, p. 15).
As redes de sociabilidade construídas pelos educadores desde a criação da ABE nas quais se interpenetravam “o afetivo e o ideológico”, na acepção de Sirinelli (2003, p. 252), definiram comportamentos, afinidades, animosidades e até mesmo a separação de membros desses grupos esgarçadas por dissidências políticas e ideológicas. Dessa forma, outros motivos de desentendimento entre os abeanos se explicitaram pelas posições que assumiram em questões como o Ensino Religioso, como o que revela Jackson de Figueiredo para quem o catolicismo era “a força de ordem moral e religiosa que arregimenta todas as forças do país” e para tanto devia vigorar nos currículos escolares (CARVALHO, 1998, p. 44).
Conforme Strang (2018) assevera, de acordo com a lógica dos católicos, o controle da Educação pelo Estado “tornar-se-ia absolutismo pedagógico, bolchevismo intelectual, próprios da sociedade soviética”. Desconfiavam da interpretação da “Educação como fenômeno social”, sendo concebida apenas a finalidade espiritual, ou seja, “preparar o homem para a vida com princípios religiosos bem definidos. Nesse sentido, tudo o que divergisse do pensamento cristão era denunciado como fruto da influência comunista” (STRANG, 2018, p. 358). A questão do Ensino Religioso agitou a associação e dividiu os membros entre aqueles que apoiavam e os que entendiam a inevitabilidade da laicidade na educação pública brasileira.6 Cecília Meireles publicou diferentes crônicas em que repudiava o Decreto do Ensino Religioso:
Em vão o ditador Getúlio Vargas tem explicado com a sua amabilidade costumeira - que já lhe ia conquistando tantas simpatias no Rio!... - o espírito eclético do desastrado decreto do ex-ministro da Educação. Em vão, - porque ninguém acredita na vastidão desse ecletismo, e os próprios fatos todos os dias se estão encarregando de demonstrar a verdadeira acepção em que o decreto deve ser tomado (MEIRELES, 29/05/1931, p. 7).
Além das muitas crônicas, a “Página” veiculou, em distintas edições, a conferência “Por que a escola deve ser leiga?” (MEIRELES, 1932), realizada na Liga Anticlerical do Brasil. A escola leiga “acha desnecessária a lição de moral, não porque seja essa escola imoral ou amoral, mas porque já é preliminarmente moral, sem lições teóricas, pela prática constante, pelo estabelecimento de um meio que vai construindo, em lugar de ir corrigindo” (MEIRELES, 02/03/1932, p. 6). Frota Pessôa também se manifestou sobre o “Decreto do Sr. Francisco de Campos”, qualificando-o de “deserção”, de uma “traição” e de “prenúncio de derrota na batalha” pela “educação popular pela democracia e pela liberdade”:
O que torna o decreto sobre o ensino religioso inteiramente indefensável, antes mesmo de qualquer exame de sua doutrina ou do seu texto, é a carência absoluta de causas que o motivassem. Por isso sua promulgação determinou a mesma surpresa que produziria um corisco que varasse a atmosfera em um dia tranquilo de verão, sem borrasca e sem aguaceiro (FROTA PESSÔA, 29/05/1931, p. 7).
A dissidência fica mais explicitada pelas questões que os educadores dos dois lados defendiam. Com a saída da ABE muitos vão migrar, se vincular e fortalecer a composição de outras agremiações, como por exemplo, a Federação Nacional das Sociedades de Educação (FNSE), que havia sido fundada em 1929, sob a presidência de José Augusto e também a Sociedade de Amigos de Alberto Torres (SAAT), destino de outros abeanos, como por exemplo, Edgard Roquette-Pinto e Belisário Penna.
Como vimos, Meireles, que fazia parte da ABE desde 1928,7 apoiava as ideias e as iniciativas do grupo de educadores que se firmaram na IV Conferência de Educação e que culminou com a elaboração e o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em março de 1932. Conhecedora e militante do movimento educacional renovador, foi uma das signatárias desse documento ao lado de outros vinte e cinco educadores, como Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Armanda Álvaro Alberto, Paschoal Lemme entre outros. Os manifestos e abaixo-assinados, como afirmado por Sirinelli (2003, p. 249), “permitem aos participantes contarem-se num protesto”. Vale ressaltar que o grupo formado pelos signatários não era homogêneo e havia a intenção de protestar em favor de novos rumos e na forma de se conceber e implementar a educação brasileira, que deveria ser realizada em um outro patamar. Aderir significava um compromisso “no qual intelectuais de diferentes posições ideológicas selaram uma aliança em torno de (...) princípios gerais que confluíam para a modernização da educação e da sociedade brasileiras” (XAVIER, 2004, p. 5). Consolidava as ideias e a atuação desse grupo e foi mais um dos pontos de acirramento e cisão entre os abeanos que levou os educadores católicos a se reorganizaram na “Conferência Católica Brasileira de Educação, numa disputa aberta com os renovadores” (GOMES, 2016, p. 7).
Ao longo dos quase três anos em que esteve à frente da “Página de Educação”, Cecília manteve uma crítica bastante ácida em relação a diferentes temáticas que incidiam sobre os rumos da educação brasileira. O Decreto do Ensino Religioso, questão que ela foi frontalmente contra, foi mote de suas crônicas e também das conferências que proferiu atentando para a importância e a necessidade da laicidade na educação pública no Brasil. O embate teve início em 1931 com o “Commentario” em que criticou as reformas empreendidas pelo ministro Francisco Campos, que “mais do que a mentalidade do seu autor”, revelavam, também e “de maneira notabilíssima a dos professores”, que as comentavam “com aparência de alta sabedoria e grande conhecimento do assunto” (MEIRELES, 25/04/1931, p. 7). Mais à frente, em “Pedagogia de Ministro” afirmou: “Mas o sr. Francisco Campos parece que resolveu dar cada dia uma prova mais convincente de que não entende mesmo nada, absolutamente, de pedagogia. Que a sua pedagogia é uma pedagogia de ministro, isto é, politicagem...” (MEIRELES, 30/04/1931, p. 7).
O embate contra o Decreto vai se agravar em maio de 1931. São publicados comentários diversos em que a tônica é sempre a crítica e a discordância em relação às reformas empreendidas pelo ministro e sobretudo ao Decreto do Ensino Religioso, como por exemplo em: “Como se originam as guerras religiosas” (MEIRELES, 02/05/1931, p. 7);8 “As crianças e a religião” (MEIRELES, 05/05/1931, p. 7); “Questões de liberdade” (MEIRELES, 06/05/1931, p. 7); “Perguntas para o ar” (MEIRELES, 08/05/1931, p. 7); “Pobre escola” (MEIRELES, 09/05/1931, p. 7); “O ensino religioso nas escolas” (MEIRELES, 10/05/1931, p. 7), entre outros. Diferentes crônicas vieram a público e também uma profusão de reflexões, pedidos de esclarecimentos e notas de repúdio de professores, como Isabel Cunha, que pediu mais informações sobre o Decreto, como se pode ver em “O Ensino Religioso nas Escolas - Uma professora pede esclarecimentos” (D. N., 08/05/1931, p. 7); reflexões e questionamentos como os de Andrade (11/06/1931, p. 7) e (17/06/1931, p. 6); Guanabara (12/06/1931, p. 7) e também os especiais de Frota Pessôa (08/05, 14/05 e 29/05/1931, p. 7). Também solicitaram explicações os acadêmicos de Engenharia da Escola Politécnica (D. N.,10/05/1931); os segundanistas de instituições educacionais do Paraná (D. N., 10/05/1931, p. 7); os alunos do Colégio Pedro II (D. N., 24/05/1931, p. 6); e, ainda os acadêmicos de Medicina (D. N., 24/06/1931, p. 6), por exemplo.
Os comentários se estenderiam pelos meses seguintes: “Ainda o nefando decreto” (MEIRELES, 04/06/1931, p. 7); “Aquele decreto” (MEIRELES, 18/06/1931, p. 7) e muitos outros onde a tônica sempre seria a sua crítica mordaz e certeira. A polêmica se instaurou quase que diariamente durante meses e eram veiculadas manifestações de intelectuais, professores, estudantes de diferentes graus de ensino, que certamente causaram desconforto e estimularam ainda mais os desafetos que cobraram a saída de Cecília Meireles e de seus colaboradores do Diário de Notícias.
Todos esses embates levaram a jornalista a encerrar a sua participação à frente da “Página de Educação” com o “Commentario” intitulado “Despedida” (MEIRELES, 12/01/1933, p. 6). Nele, reafirmava o seu compromisso ao longo de quase três anos que tinha sido “um sonho obstinado, intransigente, inflexível da construção de um mundo melhor pela formação mais adequada da humanidade que o habita” e que a acidez da sua ação intelectual havia partido da necessidade de imprimir “uma realidade enérgica”, muitas vezes necessária para sustentar sua justiça. Para tanto, “teve de ser impiedosa e pela força de sua pureza pode ter parecido cruel” (MEIRELES, 12/01/1933, p. 6). Cecília concluía, assim, apenas uma etapa em seu percurso e “deixaria o espaço privilegiado do debate que se acirrou entre católicos e pioneiros, em meio ao irremediável aprofundamento das divergências sobre os valores que a escola deveria defender”, como lembra Mignot (2001, p. 167).
DEPOIS DA DESPEDIDA
Em carta destinada a Alfonso Reyes, no dia seguinte à sua despedida do Diário de Notícias e da “Página de Educação”, Cecília Meireles comunicou ao amigo:
Deixei a redação do “Diário de Notícias”, para trabalhar na “A Nação”, cujo primeiro número deve sair amanhã. Tenho a impressão de ter saído de um navio em naufrágio para um avião que vai fazer um looping e cair. Esta sensação de perigo dá um gosto melhor à vida; vai-se experimentando, com ela, até onde a natureza humana é capaz de ordenar e resistir (MEIRELES, 13/01/1933).9
Dois dias depois, Cecília reinaugurou a coluna “Commentario” no jornal A Nação, em 15 de janeiro de 1933, tornando-se, mais uma vez, colaboradora de um jornal recém-criado.10 O espaço denominado “Educação” era bem mais modesto do que o do Diário de Notícias e se estruturava em duas ou três colunas em um quarto ou meia página, às vezes menos. Contudo, a despeito do pouco espaço para diálogos com outros interlocutores, reportagens e entrevistas, dispunha de mais espaço para as crônicas que eram mais longas do que as publicadas anteriormente.
Em fevereiro, o jornal lançou o inquérito: “Os grandes inquéritos de A Nação: porque se deve auscultar o pensamento brasileiro sobre o problema educacional” (A Nação, 03/02/1933, p. 1 e 4). Nele afirmavam que a educação era um dos maiores problemas “que a Revolução nos trouxe”, que desafiava “as inteligências superiores do país” e agoniava os “guias responsáveis”. Sendo assim, era preciso convocar os “homens de responsabilidade do país” pois esses possuíam “conhecimento geral das nossas questões econômicas e políticas,” sabiam das “condições das populações, do trabalho, da indústria e da lavoura” e conheciam o mecanismo das administrações. Em poucas colunas questionavam as iniciativas implementadas nas reformas de educação dos renovadores, contestavam os métodos que apontavam como “inadaptáveis a mais de uma região, e até contraproducentes”. Afirmavam pretender arejar “o ambiente confinado em que as ideias do ensino não ultrapassam os limites do profissionalismo pedagógico”. Assim sendo, convocavam para o debate “os vultos de indisputável destaque nas ciências políticas e sociais, e especialmente no magistério, ou em todas as rodas de cultura superior” (A Nação, 03/02/1933, p. 1 e 4).
Mais à frente, no Editorial de 07 de fevereiro evidenciavam-se os “equívocos” pretendidos por educadores brasileiros tendenciosamente orientados para a formação de cidadãos cosmopolitas. Recomendava que a verdadeira educação deveria tornar as crianças “cidadãos das suas respectivas pátrias”, cultivando em cada uma delas “os sentimentos e os instintos que melhor contribuam para tornar o indivíduo útil à nação”. A educação devia formar, prosseguia, uma “unidade trabalhadora” capaz de sacrifícios excepcionais que a defesa nacional deles pôde vir a exigir”. Criticava a escola da atualidade e afirmava que os educadores renovadores arruinavam e atrofiavam “nas novas gerações o instinto da nacionalidade”. As consequências de tais ações, continuava, contribuiriam para “enfraquecer as energias indispensáveis à manutenção eficiente da soberania nacional”. Atacava, frontalmente, as ideias pedagógicas alheias ao interesse nacional:
Tenham os especialistas em pedagogia plena liberdade de sugerir planos para a organização técnica da educação nacional. Mas devemos detê-los, quando sob a influência de ideias abstratas ou de teorias sem contacto coma realidade do mundo atual, pretenderem desvirtuar a suprema finalidade da formação educativa das novas gerações brasileiras (...) (Editorial, 07/02/1933, p. 13).
O Capitão Dulcídio Cardoso, então Diretor Geral da Educação, órgão vinculado ao Ministério de Educação e Saúde, também expôs as suas concepções educacionais. Foi apresentado como alguém com espírito superior pois “se educou para educar” e, sendo militar, “preparou-se para guiar e orientar homens que precisam receber as lições vivas da disciplina e do civismo; como professor, “aprimorou-se pelo seu mister e a ele tudo deu da sua capacidade e do seu sentimento”. Como patriota “antes de tudo”, esperava que fossem formados professores responsáveis pela “reconstrução moral e política da nacionalidade, para a qual antevê e deseja uma posição de destaque na civilização” (A Nação, 10/02/1933, p. 1). O capitão, com formação militar, supostamente tinha a resposta para todas as questões relativas à educação brasileira pois não lhe faltavam predicados.
Esperava-se que o jornal, que dispunha de uma grande tiragem, influenciasse a opinião pública e aqueles que decidiam os rumos da educação no país. Era uma investida para sobrepor, questionar, desmerecer as concepções e ações dos renovadores, apesar de garantirem que o periódico estava “imune de preocupações facciosas”, que era independente e que nunca obstaculizaria a expressão de quem quer que estivesse disposto a trazer “o concurso do seu trabalho e de sua boa vontade para a edificação política” e que à sua sombra todos os brasileiros encontrariam abrigo (EDITORIAL, 14/01/1933. p. 4). Na verdade, acabavam por cercear e obstaculizar os que discordavam, procurando convencer o professorado e a opinião pública.
Na sequência e procurando dialogar em meio à contenda, Cecília publicou as crônicas intituladas “Um inquérito importante” (MEIRELES, 08/09/10 e 11/02/1933, p-p. 9-12-12 e 9). Nelas, reconhecia a importância do Inquérito sobre educação do A Nação, afinal constatara que “após três anos de atuação diária em assunto que, antes, mal se conhecia, na imprensa ”o destaque que o assunto despertava”, não apenas “no terreno técnico, como ainda no jornalístico e, finalmente, no político, − onde a sua compreensão exata e honesta” poderia produzir “resultados vitais para a formação brasileira”. Para discutir a pertinência do Inquérito e as questões que o mesmo reivindicava para a educação brasileira, Cecília trouxe para a cena a contribuição de educadores e suas obras: Lourenço Filho (Introdução ao Estudo da Escola Nova), Anísio Teixeira (Vida e Educação) e Fernando de Azevedo (Novos caminhos e novos fins) e o prefácio do “Manifesto”. Asseverava que eram inegáveis as contribuições desses “três educadores brasileiros e de um grupo cujo valor se tem demonstrado por palavras e atos” e a solidez do conhecimento amealhado pelos mesmos (MEIRELES, 08/02/1933, p. 9). Acrescentava ao debate o pensamento de Horace Mann, José Pedro Varela, John Dewey, Humberto Diaz Casanueva, Augusto Messer, Claparède, Binet, Montessori, Ferrière, Decroly e outros.
Nas crônicas a seguir e em diálogo frente às reflexões e ideias educacionais de Dulcídio Cardoso (A Nação, 10/02/1933, p. 1); da entrevista do Padre Leonel Franca (A Nação, 13/02/1933, p. 1); do Editorial elogiando as iniciativas educacionais do jesuíta, apontado pela “solidez e largueza do seu preparo intelectual” que se contrapunha “às limitações tão frequentes na maioria dos pedagogos, como efeito das deformações profissionais” (A Nação, 14/02/1933, p. 4), Cecília publicou crônicas de mesmo título “A formação nacional e a Educação Nova” (MEIRELES, 16/17/18/21/23 e 25/02/1933, p. 12/7/12/12/12 e 11). Nelas, explorou, mais uma vez, o pensamento e a ação de nomes importantes do movimento renovador no país e no exterior, principalmente da América Latina.
O Inquérito do A Nação reacendia a polêmica entre os grupos “católicos e renovadores”, nascida nas disputas na ABE, na IV Conferência de Educação e no lançamento do “Manifesto”. A entrevista de Alceu Amoroso Lima (A Nação, 09/03/1933, p. 1), reavivava as querelas nascidas anteriormente com a questão do Ensino Religioso. Em “Pedagogia e filosofia” (EDITORIAL, 10/03/1933, p. 4), os articulistas se diziam contemplados pelo exposto por Amoroso Lima, afinal de contas, o líder católico confirmava o que o jornal preconizava em termos de educação, pois cabia à Família, ao Estado e à Igreja o cumprimento da função social da educação. Na breve matéria, concluíam asseverando que o jornal se felicitava por ter provocado tais questionamentos para a “felicidade dos verdadeiros cultores da Pedagogia e da Filosofia no Brasil”. Já fora anunciado no primeiro Editorial o viés conservador do jornal quando destacavam o “espírito inteligentemente conservador e ao mesmo tempo consciente das necessidades novas do momento nacional”. Aquela era apenas a confirmação de que a Igreja Católica queria mais uma vez, por intermédio da imprensa, se “manter presente na organização da sociedade, por diferentes vias, para compensar o espaço oficial perdido junto ao Estado, no Brasil” (ORLANDO, 2018, p. 60). O inquérito propiciava, assim, intervir no debate para propagar a fé, formar a elite e educar o povo.
No A Nação Cecília publicou trinta e sete (37) crônicas intituladas “Commentario” e apenas uma entrevista com Anísio Teixeira, além de pequenas notícias em dias em que as crônicas não eram veiculadas. Depois do desgaste ao tentar rebater os equívocos e as provocações dos militantes católicos, mais cinco (5) crônicas surgiram (MEIRELES, 07/08/10/11 e 14 /03/1933). A partir do dia 14 de março o espaço “Educação” permanece, mas sem Cecília. Segue com algumas notas de cursos, aulas, concursos, nomeações e cerimônias relacionadas a diferentes instituições, até finalmente desaparecer de vez. Todo esse esforço argumentativo pareceu exaurir e desanimar a educadora. Em 1º de abril de 1933, escreveu mais uma vez ao embaixador Alfonso Reyes informando no post scriptum:
Desde o dia 15 não trabalho mais na Nação, onde uma política deplorável tentou derrubar a própria obra educacional a que estou ligada. Querendo, porém, servir-se daquele endereço, basta que encomende a remessa a meu marido, que continua desenhando lá. Nesse caso, far-me-á o obséquio de servir-se do nome de Correia Dias (Carta - MEIRELES, 01/04/1933).
Ainda que afrontasse os conservadores com suas ideias pedagógicas, era reconhecida a sua competência como artista plástica. Tanto que nas mesmas edições onde se desdobrava a polêmica e onde procurava evidenciar e promover uma discussão alentada sobre a educação renovada (e que era relegada e sobreposta pelos reiterados elogios e destaques das reflexões dos seus contendores), publicaram na primeira página do Suplemento Cultural, em especial para o jornal A Nação, o texto de Nóbrega da Cunha intitulado “Interpretação dos motivos da Arte Popular: os ritmos do samba, do batuque e da macumba fixados, no desenho, a lápis, a nanquim e a aquarela por Cecília Meireles” (CUNHA, 19/02/1933, p. 23). A matéria de página inteira trouxe seis desenhos onde estão retratadas cenas dos três ritmos típicos do samba, observadas durante a dança, o passo de batuque e da macumba. Nóbrega da Cunha reflete sobre a importância da arte popular, o desinteresse, o esquecimento e o desprezo que despertava nas “chamadas classes cultas”, que não “sabendo compreender, julgavam que se tratasse de manifestações desprovidas de valor próprio, quando, o que ainda era pior, não as consideravam como expressões de um espírito inferior, incompatíveis com o refinamento do gosto civilizado” (NÓBREGA DA CUNHA, 19/02/1933, p. 23). Informava que eram desenhos feitos por Cecília em 1923, 1926 e 1930 que se destacava como “intérprete perfeita dos motivos originários dessas três importantes fontes da arte popular brasileira”. Mais à frente, em treze de abril, o jornal noticiou a “Noite de Samba” que aconteceria no Sábado de Aleluia, dia 15 de abril de 1933, com a presença da Escola de Samba Portela e a exposição de trabalhos da “original pintora”, na sede da Pró-Arte, no Rio de Janeiro (A Nação, 13/04/1933, p. 5).
Considerações Finais
Assim como no Diário de Notícias, em A Nação, Cecília Meireles se manteve fiel às concepções educacionais e aos compromissos assumidos em relação ao grupo do “Manifesto” do qual foi uma das signatárias e mais ardorosas defensoras, sem esquecer de apontar as injunções que sobrevieram dessa sua defesa quase que irredutível ao ideário educacional renovador.
Em uma sociedade pouco afeita a conceber a presença das mulheres e suas possibilidades de participar, contribuir, argumentar e intervir de forma igualitária como intelectuais em cenários constituídos e dominados pelos homens, foi possível acompanhar parte dos diálogos que manteve nos dois impressos cariocas, a determinação na difusão das suas concepções de educadora, a explicitação de suas matrizes pedagógicas, políticas e ideológicas que visavam a formação de opinião, bem como a sua participação em uma extensa rede de sociabilidade que lhe possibilitou construir parcerias relevantes e angariar simpatias e afetos, mas também antagonismos e adversários, como também a obra pedagógica que afiançava e referendava.
Se as questões debatidas no Diário de Notícias são bastante conhecidas e estudadas pelos pesquisadores brasileiros, com as crônicas do jornal A Nação é possível observar que o diálogo estabelecido entre a jornalista e as forças conservadoras católicas se manteve e as divergências se aprofundaram no ano seguinte ao lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. As disputas na cena pública permaneceram após a divulgação desse documento, um divisor de águas entre educadores de grupos políticos distintos que discordaram do papel do estado na Educação e da escola na sociedade brasileira.
Cecília Meireles voltou-se para a poesia, as viagens, o folclore e a direção da Biblioteca do Pavilhão Mourisco11 que também não escapou das críticas das forças conservadoras católicas que disputavam corações e mentes das futuras gerações.