O modernista Mário de Andrade faleceu em 25 fevereiro de 1945, sem ver publicada Contos Novos, sua derradeira coletânea de contos praticamente finalizada. A obra foi considerada pela crítica contemporânea como o mais bem acabado trabalho do escritor, tanto na perspectiva estilística como nas temáticas ali presentes, o que se deu a partir de apurado talento do autor na decifração da sociedade paulistana dos anos de sua escritura, iniciada em 1927 e concluída em 1944 ( LOPES, 1995; RABELLO, 2011).
A sofisticação empregada na perspectiva temática e estilística em Contos Novos decorreu, sobretudo, de seu reposicionamento crítico ao abandonar ideias do início de carreira, discursos que ele mesmo classificou como “moda de passeio”, para dar lugar a uma arte saturada de angústias, tornando-se voz de resistência ante o estado de coisas no cenário político, econômico e social brasileiro e mundial. Isso nos faz lembrar da importante lição de Foucault ([1979]/2006, p. 71), a de que os intelectuais - assim tomando como, por exemplo, Mário de Andrade -, exerciam função de agentes não só de discurso, mas da consciência, devido sua aptidão de mobilizar seus saberes. Para o filósofo francês, tal mobilização é também uma forma de expressar poder.
Considerando que a literatura é artefato cultural passível de ser analisada pelos historiadores do presente, põe-se aqui como evidência o conto “Atrás da Catedral de Ruão”, doravante 1 denominado simplesmente “Ruão”, que faz parte do compêndio Contos Novos, escolha que se dá em razão de ser o único dentre os nove contos que tematiza questões pedagógicas. Nesse específico escrito, Mário de Andrade expôs os dramas vividos por uma professora estrangeira, designada como Mademoiselle, em passagem pela casa de uma família rica paulistana para dar lições de língua francesa a duas adolescentes, revelando não só as dificuldades de uma mulher trabalhadora no cenário urbano do início do século XX, mas também representando a emblemática condição social que reprimia a sexualidade da mulher aos trinta e cinco anos de idade, ridicularizando-a.
Nessa direção, a partir do conto em referência, cotejando com outras fontes, buscamos analisar as possíveis representações de professoras em uma determinada época e sociedade, considerando fazer sentido a compreensão de que “ficção e realidade não são os lados opostos da mesma moeda; ao contrário, em alguns momentos, uma pode servir de reflexo para a outra” ( OLIVEIRA; SILVA, 2008, p. 358). Assim, os fatos vistos e experienciados na literatura atravessam o imaginário dos escritores e eles, de algum modo, são motivados a externalizar e tomar posição acerca de situações testemunhadas num tempo e espaço, de modo que os acontecimentos ao derredor podem constituir matéria-prima canalizada em suas obras ficcionais.
Tais expedientes criativos e estéticos não deixam de ser uma maneira peculiar de se registrar a história, cabendo aos intérpretes do presente identificar onde estão as plausibilidades e o que é verossímil ao se acionar o procedimento de operação historiográfica ensinada por Michel de Certeau (2020).
Do processo criativo do autor em Atrás da Catedral de Ruão
[...] a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente ( TODOROV, 2020, p. 23-24).
Se estudar literatura resulta numa experiência enriquecedora, como infere Tzvetan Todorov, conjugá-la com reflexão histórica parece ativar importantes possibilidades ao pesquisador. Assim, antes de adentrar na caracterização e na análise do conto “Ruão” é necessário esclarecer que nele vislumbramos ato educativo (ensino de francês), processo educacional (prática do ensino do idioma) e sujeito educacional (a professora Mademoiselle como agente de educação doméstica).
Conto, a partir do século XIX, consiste num gênero literário de narrativa concisa que, segundo Piglia (2004, p. 89), normalmente possui duas narrativas, uma na superfície e outra que aparece de forma secreta, que se encontra nas entrelinhas do episódio. É também um texto narrativo que condensa conflito, tempo e espaço. Percebe-se, todavia, que o gênero conto foi pouco praticado pelos modernistas, que tiveram predileção pela modalidade lírica na forma de poemas.
No entanto, Mário de Andrade utilizou tal forma em Primeiro Andar (1926) e Contos de Belazarte (1933) que, em síntese, retrataram as angústias vividas por paulistanos da periferia da cidade no início do século XX, inclusive pelos recém chegados imigrantes, evidenciando a miséria tanto econômica quanto humana dos mais pobres. Esse segundo conjunto de contos demonstra a infelicidade, denuncia a ausência de direitos e os arraigados meios de subordinação ( LOPES, 1995; CANDIDO, 2011).
Não bastasse, por meio de Contos de Belazarte, Mário de Andrade veio, em certa medida, impugnar, por figuração 2, o mito da alegria 3, ao demonstrar que a realidade social da década de 1920 infirma a ideia de povo inteiramente feliz, por entender que tal engodo escondia a perversidade de uma gente, na maioria, analfabeta 4, empobrecida e tão arraigada num formato de sociabilidade baseada no paternalismo. Essas questões preliminares ajudarão compreender “Ruão” e seus contos pares.
Aliás, assim como ocorreu com outras obras, como os romances Amar, verbo intransitivo: idílio (1927) e Macunaíma (1928), Mário de Andrade exerceu estratégico cuidado para nomear sua coletânea de contos que abrange “Ruão”, considerando, por exemplo que no romance de 1927, aparenta ter desafiado a gramática normativa ao dispor que amar seria um verbo intransitivo, quando de fato amar, na forma nominal sequer se conjuga (o amar). Não bastasse, empregou um subtítulo (Idílio) que serviu como ironia, já que tal romance contém enredo que exprime o contrário de uma relação de ternura e dispõe sobre uma docência idealizada, porém subvertida.
Contos Novos foi obra escrita devagar. Iniciada em julho de 1927, recebeu derradeira 5 revisão pelo autor apenas em julho de 1944, contudo sem contemplar seu projeto inicial de serem doze contos, em decorrência do falecimento ocorrido em 25 de fevereiro de 1945, sendo considerada pela crítica literária como a produção mais bem acabada de Mário ( RABELLO, 1993, 1999).
A Figura 1 contém apontamentos feitos pelo próprio autor, quanto ao andamento da escritura da coletânea. Dos “capítulos” planejados, a legenda indica que apenas oito contos estavam finalizados: “Vestida de preto”, “O ladrão”, “Primeiro de Maio”, “Por trás da Catedral de Ruão”, “O poço”, “O peru de Natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo de camisolinha”. Além desses, pelos apontamentos do autor, somente um estava por consertar: “Nelson”. Dessa forma, efetivamente, a obra reuniu o montante de nove contos.
Contos Novos foi obra publicada de forma póstuma, em 1947, pela editora Martins, num esforço de Antonio Candido, que obedeceu a mesma ordem planejada pelo intelectual, com exceção do conto de número cinco: “por trás da Catedral de Ruão”, que teve alteração em seu título para “atrás da Catedral de Ruão”.
Ainda convém destacar que o título pensado inicialmente como Contos Piores sofreu alteração pelo autor antes de sua efetiva publicação para Contos Novos. Essa ideia inicial de chamar a coletânea de “piores” tem a ver com o estilo irreverente do autor em nominar seus trabalhos. Assim, o importante crítico literário Fábio Lucas, ao analisar tal questão, explicou que “Mário foi quase sempre muito feliz nos seus títulos: escolhia-os admiràvelmente ( sic), fazia-os sugestivos, sintéticos, originais, dotados de comunicação rápida e de alta dose de impacto” ( LUCAS, 1971, p. 95).
Não se descarta a hipótese de “piores” ser também rótulo estratégico para driblar e provocar o olhar da crítica literária quanto às suas sucessivas publicações, como pode ser percebido nas informações fornecidas durante entrevista cedida a Mário da Silva Brito 6:
Muito embora doente, Mário de Andrade é um trabalhador infatigável. Tem um livro de contos em preparo. - Os Contos piores? Indago. - Não. Não tem nome ainda - esclarece o escritor. Houve um jornalista que lhe deu aquele título, mas não é verdade. Pretendia chama-lo assim, porque, quando publico um livro novo, dizem que o anterior era melhor... Mas já passou o tempo dos nomes “blagues” 7 ( ANDRADE, [1943]/1983, p. 96, grifo nosso).
“Piores”, no entanto, parece não ter a ver com valoração própria, mas com o destaque ao tempo histórico de sua construção, marcada pela crise econômica global eclodida em 1929, pela ditadura Vargas no Brasil e, ainda, pela Segunda Guerra Mundial e seus desastrosos impactos, ocasião que o autor reconhece que lhe faltou - e também a seus pares intelectuais - contundente posicionamento político de denúncia e resistência, conforme seu texto lido na conferência Movimento Modernista, de 1942:
Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. [...] Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna (sic) não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais êle foi tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois ( ANDRADE, 1942, p. 74-81).
O lamento do modernista entoa em Contos novos que a vida pode ser marcada pelos recomeços, talvez por isso tenha tratado no conto de variados temas sombrios e de desesperança envolvendo pessoas comuns, numa espécie de acertamento de contas com sua consciência modernista de compreender a política e as questões sociais do Brasil das décadas de 1930 e 1940 de maneira mais combativa. Desse modo, destacou-se que de fato Contos Novos eram contos da novidade, mas obra publicada num tempo bastante hostil, dada a conjuntura bélica mundial, razão pela qual Rabello (2011, p. 107) asseverou que o lançamento da obra na década de 1940 remete a ideia de serem “Novos contos em tempos piores”.
Elementos intrínsecos e contextuais do conto “Ruão”
O texto discorre sobre o cotidiano da brasileira Dona Lúcia e suas filhas adolescentes: Lúcia, com dezesseis anos; e Alba, com quinze anos, todas recém-chegadas à capital paulista, vindas da Europa. Mesmo abandonada 8 pelo marido, a “ricaça” 9 Dona Lúcia integrava a dileta burguesia paulistana e, paradoxalmente, é revelada pelo autor como não pertencente à representação preponderante de mãe idealizada, considerada como caseira, zelosa e tão presente na vida dos filhos ( PERROT, 2019). “Dona Lúcia voltava de alma fatigada, maternidade incorreta que aquele vaivém de colégios e hotéis transformara quase num dever. Adorava as filhas, mas era o êxtase inerte das adorações nacionais” ( ANDRADE, [1947]/2017, p. 46).
Embora radicadas na cidade de São Paulo, o conto indica que Dona Lúcia e as filhas tiveram diversas experiências com viagens internacionais e dominavam outros idiomas, como alemão, inglês e francês. Todavia, mesmo com tais habilidades, Dona Lúcia resolveu contratar Mademoiselle para fazer companhia às garotas em ocasiões de visitas, encontros sociais e, sobretudo, na educação voltada para aprendizagem da língua francesa.
Mas, para quê aprender algo que se sabe bem? Parece que tal artifício consistia em mera justificativa para que a mãe tivesse menos preocupação com a educação das filhas, e não necessariamente com a transmissão de saberes especializados, já que no conto há informações de que as meninas conheciam um francês moderno e tinham vocabulário sofisticado, contrastante com o da professora “estagnada no ensino e nas suas metáforas suspeitas” ( ANDRADE, 2017, p. 44).
Nisso, a teoria do conto de Ricardo Piglia (2004) - de ser gênero literário composto por dupla narrativa - se amolda a “Ruão”, por ter na superfície o modo de vida da família e, por trás, um dos aspectos mais importantes: Mademoiselle é uma professora desiludida na vida, tanto por sua condição profissional quanto por ser uma mulher envelhecida, estrangeira e frustrada sexualmente. A ordem social lhe adoecia, e o resultado eram as alucinações das quais não podia fugir.
A decadência profissional está representada na imagem de uma professora aviltada, que se vê obrigada a ter que adular as alunas voluntariosas, além de ter sua dignidade como trabalhadora substituída pela piedade da família, dada sua condição de “[...] vida mesquinha de lições e pão incerto [...]” ( ANDRADE, 2017, p. 44); que a sujeitava à benevolência alheia para sobreviver: “E assim ajudava Mademoiselle, coitada” (p. 46).
Comparando a preceptora do conto com outra preceptora famosa - personagem criada por Mário de Andrade, Fräulein, de Amar, Verbo Intransitivo -, observamos que esta vivia em condições materiais mais confortáveis do que Mademoiselle. No romance, doravante 10 designado simplesmente Amar, a requintada professora estrangeira foi contratada por uma família rica para dar lições de iniciação sentimental e sexual (na evidência), mas na aparência, lições de língua alemã em velado mecanismo para o método da sedução. A empreitada especial custou à família Sousa Costa Rs. 8:000$000 (oito contos de réis) 11, que não parece caracterizar baixa remuneração. Por outro lado, em “Ruão”, Mademoiselle, vivia a dinâmica da desvalorização salarial. Isso se amolda à ideia de que: “A princípio a preceptora foi valorizada, pois era necessária. Mais tarde, ainda que necessária, foi desdenhada, tornando-se um miasma social” ( MONTEIRO, 2000, p. 13).
Fora do campo ficcional, parece verossímil que a queda remuneratória das preceptoras que atuavam nas casas tenha se acentuado na capital paulista, à medida que a demanda por preceptoras se reduz drasticamente, a partir dos anos 1920, num cenário em que se consolidam os formatos de educação formal, sejam escolas públicas ou colégios privados (VASCONCELOS, 2004; CURY, 2006).
Nesse sentido, apesar da tormentosa condição social da governanta, no conto - com narrador onisciente em terceira pessoa - , os holofotes foram postos por Mário de Andrade na sexualidade reprimida da professora e na forma com que as alunas estimulavam suas reações, as quais achavam graça, cientes que produziriam miragens como vazão às inquietações sexuais que a preceptora carregava.
Nesse cenário, o autor não economizou em teorias freudianas para demonstrar os conflitos, os traumas e as inseguranças da professora envolvendo o sexo. Parece que Mário de Andrade, em “Ruão”, não se furtou ao que Foucault ([1976]/1999) sustentava ao dizer que, a partir do século XIX, o sexo passou a ocupar lugar central na sociedade ocidental, que não negava a sexualidade, mas elevava o assunto à condição de suspeita, como se a sociedade capitalista estivesse desconfiando que o sexo estaria a abrigar um segredo fundamental.
Na trama em questão, a professora, diferentemente de Fräulein, do Amar, mantinha alguns pertences guardados numa pensão, mas passava boa parte do tempo na casa das alunas de francês. Entretanto, as aulas desse idioma são distorcidas pelo fato de que, enquanto as alunas já púberes estavam na fase da descoberta da sexualidade e do desejo, Mademoiselle, ainda virgem, encontrava-se atormentada por não ter passado por nenhuma experiência amorosa, não obstante seus quarenta e três anos de idade vividos. Da aurora, a professora alcançou o poente da vida, em que vivia seu ocaso sexual sem, contudo, experimentar os resultados das pulsões, a não ser pelo delírio.
Nos anos da escrita de “Ruão” era comum que, em ocasião das celebrações religiosas, os jovens aproveitassem a oportunidade para se encontrarem nas praças e imediações dos templos, longe dos olhos dos pais ( CAMPOS, 2004). Tal prática parece ser o mote para que o autor associe os pátios externos das catedrais como locais de “prática de pecado”, razão pela qual foi escolhido o título desse conto, pois as maiores alucinações sexuais da professora se deram ao redor da Igreja de Santa Cecília, na cidade de São Paulo, numa alusão, também, a uma catedral localizada na cidade francesa de Rouen.
Valter Cesar Pinheiro (2014), ao estudar como a França aparece na obra marioandradiana, esclarece que “Ruão” dialoga com o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, por conter passagens que remontam para “aventuras” nas imediações da Cathédrale Notre-Dame de Rouen. Entretanto, as tramas, as motivações e as sociedades são diferentes. A personagem Emma Bovary era casada e suas frustrações giravam também em torno do seu desejo de expansão social, ao passo que o motivo preponderante do sofrimento de Mademoiselle era a falta de experiência sexual.
Dito isso, convém esclarecer que, baseado na ideia de antropofagia e emulação 12, “Ruão” (conto) não é cópia de Madame Bovary (romance). São textos completamente diferentes no conteúdo e na forma e, assim como também ocorreu no romance Amar, Mário de Andrade tão somente revigorou e reposicionou sua estética para algo diferente, a fim de expressar a fatalidade da vida das mulheres preceptoras, considerando que a escritura das obras partiu da ideia que “ninguém é original. Semelhanças e diferenças se entrelaçam no tecido de que somos feitos” ( SCHÜLER, 2013, p. 86).
Voltando à trama de “Ruão”, nos diálogos da professora com as alunas, tornou-se cada vez mais evidente o afloramento de desejos de forma tardia, os quais se manifestavam a partir das conversas em francês. Tal língua oportunizava esse elo de ambiguidade dos entendimentos alucinados da governanta, acrescida por uma espécie de código conhecido apenas pelas interlocutoras (professora e alunas), excluída a mãe, Dona Lúcia:
Il y a des jours où je sens à tout moment qu’un... “personage” me frôle!
E acentuava o “personnage”, que repetia sempre num nojo despeitado. Mas Lúcia:
− Ça vous fait mal!
− “Mâle”, ma chère enfant, “mâ-le”. N’égratignez pas vos mots comme çà. “Mâ-le”.
Mas logo um gritinho de surpresa:
− Oh! je vous demande pardon, Lúcia! Je me suis trompée de lisière! Vous avez parlé du Bien et du Mal, j’ai pensé que vous parliez du maléfice des hommes, ah! ah! ah!... 13
E ria bem-aventurada.
( ANDRADE, 2017, p. 43).
Na passagem acima está presente um trocadilho das palavras francesas mâle (macho) e mal (advérbio de modo, contrário de bem), de pronúncia bastante similar, demonstrando uma consciência cada vez mais cativa dos instintos e desejos da professora.
Isso não a constrange ao tempo que revela a vazão dada às suas perturbações sexuais através da imaginação externalizada, coisa que, sem corar, não consegue mais esconder: “às vezes, até mesmo com pessoas presentes, lhe acontecia aquela sensação afrosa 14 [...]” ( ANDRADE, 2017, p. 42). Tal efeito se torna patológico em Mademoiselle, ao ponto de, entre diálogos sempre em francês, risos e brincadeiras, a situação se agravar quando, ao final do conto, a professora, ao caminhar pelas ruas paulistanas, traz à memória um episódio ficcional, em que uma mulher teria sido violentada atrás da Cathédrale Notre-Dame de Rouen, e supõe que lhe aconteceria o mesmo após ser perseguida. Desse modo, ao final do conto, a professora, de forma imaginária, teria sucumbido às fortes mãos de dois homens, “justamente atrás” da Igreja de Santa Cecília, em São Paulo, mas tudo isso não passava de devaneios, de desejo que as alucinações se concretizassem.
Quanto ao espaço relacionado ao título do conto, Valter Cesar Pinheiro (2014) considera que o advérbio atrás não funciona simplesmente como identificação da localização de um espaço físico, no qual a professora realizaria seu desejo: “Mais do que isso, representaria por si só o desejo irrealizado. ‘Atrás’ tona-se ‘em busca de’, iluminando as leituras deturpadas da professora de francês, que sonharia desesperadamente em realizar aquilo que só conhecia pela literatura” ( PINHEIRO, 2014, p. 125).
Assim o conto termina. A professora, movida pela ilusão há muito alimentada, expressa gratidão aos homens desconhecidos, oferecendo-lhes algumas moedas para pagar pela conjunção carnal forçada, desejada e festejada, mas não ocorrida. Termina o conto, mas não finaliza a desilusão da professora.
A professora representada em “Ruão”
Pela própria característica estética de narração curta poderíamos, a princípio, pensar que “Ruão” pouco teria a dizer sobre representação de professoras que atuavam em processos educativos nas casas de algumas famílias ricas da capital paulista. No entanto, trata-se de texto sui generis dentro da coletânea Contos Novos, por ser o único que, especificamente, trouxe um enredo envolvendo ensino e aprendizagem e, guardadas suas especificidades, muito tem a revelar sobre as mulheres daquele tempo e espaço.
Oportuno lembrar, como já fizera Luiz Dantas (1987) no ensaio Amar sem aulas práticas, que Amar e “Ruão” envolvem objetos, situações e comportamentos diferentes de professoras estrangeiras na capital paulista. Para fins de cotejo - se considerarmos a preceptora do Amar -, Fräulein tinha objeto contratual definido, qual seja, seduzir e executar a iniciação sexual do primogênito Carlos. Isso se dava, de um lado, pela contingência do Pai, e de outro, pela necessidade 3 de sobrevivência de Fräulein em terras brasileiras, por se submeter ao rito burguês de ensinar lições que protegiam a família e os bens do jovem rico. Conforme Schüler (1992, p. 132), “a submissão dela forma o opressor. Ela precisa dele para ser feliz. Ambos protegem o filho como protegem a propriedade. Não o consultam. Querem-no dócil, infantil, sadio. A inercia prolonga a vigência do sistema”.
Assim, no romance Amar, Carlos parece ter aprendido bem a lição, ao passo que a professora assimilou a lógica desse sistema preservador. Tal constatação se vê no final do romance, quando Fräulein, já em outro emprego, ao passear pelas ruas paulistanas com seu novo aluno, o pupilo Luís, vê o ex-aluno Carlos acompanhado de uma bela jovem. Diante de tal cena, a ex-professora respira fundo compreendendo que “[...] o mundo é tal como é. A gente tem de aceitar sem revolta. Carlos casará rico. Perfeitamente” ( ANDRADE, [1944]/1995, p. 147).
Por sua vez, no conto “Ruão”, temos uma família composta apenas por mulheres: Dona Lúcia e suas duas filhas. Casa ornamentada com riqueza e sem a presença do marido e pai. Parece que nem fazia falta, já que todas as necessidades eram bem supridas por elas e, no campo das relações sociais, a ausência masculina não impedia que a casa fosse frequentada por políticos importantes e suas respectivas esposas.
A professora era gente comum, inominada, considerada até mesmo uma “fracassada” na dinâmica pulsional, conforme Rabello (1993, p. 97). Sua identidade não tinha importância. Era apenas senhorita, descrita como uma ingênua que utilizava método de ensino por repetição, de aprendizagem receptiva e mecânica e que se amoldava com a tendência pedagógica que à época passava a ser denominada como tradicional ( SAVIANI, 2013; BICCAS, 2008). Tal modelo contrastava com o perfil das alunas que já viajaram o mundo, eram capciosas e sabiam tanto ou mais que a professora, a ponto de valerem-se de expressões ambíguas para causar-lhe embaraços e cometimento de atos falhos 16.
Interessante notar o “apagamento” da professora ante suas alunas, numa espécie de subversão daquele que aprende em relação ao que ensina. Esses papeis (professora - alunas) são claramente alterados no conto, no sentido de que o mais importante não era a transmissão do conhecimento, e sim o divertimento das alunas sobre as feridas da professora no campo da sexualidade. Seja como for, embora não informado pelo autor o quantum e a forma remuneratória, o texto revela uma professora que não tinha casa própria, nem familiares no Brasil que a pudessem apoiar financeiramente.
A conjuntura profissional na capital paulista parecia não garantir boa rentabilidade nem mesmo estabilidade, já que Mademoiselle, como acompanhante requintada, vivia de casa em casa, numa vida de escassez e pão incerto. Tal situação conflui para a explicação de Vasconcelos (2004), em pesquisa realizada com foco nas preceptoras com recorte até 1889. Embora não tenha avançado para a Primeira República, os achados da pesquisadora mostram oscilação tanto no conteúdo dos anúncios de emprego em jornais, quanto na remuneração oferecida.
Num primeiro momento, a partir de 1839, os anúncios enfatizavam a trajetória dessas educadoras, sobretudo quando haviam passado por espaços de excelência em sua formação. Isso muda com o passar do tempo. Conforme pode ser visto nas Figuras abaixo, as preceptoras que anunciavam seus trabalhos preferiam o anonimato, aplicando o artigo indefinido sobre si mesmas: “uma” professora, governanta ou professora “se oferece para dar aulas”. Isso demonstra que os atributos curriculares das professoras já não mais importavam tanto.
Vasconcelos (2004) esclarece ainda que, inicialmente, a remuneração das preceptoras se mostrava vantajosa em razão das reduzidas alternativas profissionais para mulheres, mas considera que, enquanto o século XIX poderia ser classificado como o século da educação doméstica, o século XX deu fortes sinais de ser o da escola como instituição, conquanto admita ser uma toada lenta de mudanças, permanecendo ainda a demanda por preceptoras, que se alonga para as primeiras décadas daquele novo século. É que, anteriormente, conforme explica Cury (2006), a educação não era obrigatória.
Com a Reforma Couto Ferraz, de 1854, bem como a de Leôncio de Carvalho, de 1879, a educação se torna compulsória, ou seja, “os Paes ( sic) e mais pessoas acima referidas têm o direito de ensinar ou mandar ensinar os meninos em casa, ou em estabelecimentos particulares” ( OLIVEIRA, 1874, p. 1, grifo nosso). Essa questão da educação doméstica é reafirmada no plano normativo, inclusive na época da escritura de “Ruão”, com o Plano Nacional de Educação de 1936/37, que em seu art. 39 dispunha que “a obrigatoriedade da educação primária pode ser satisfeita nas escolas públicas, particulares ou ainda no lar” ( BRASIL, 1936, p. 5).
Vê-se que a educação se tornava obrigatória, mas não teria que ser ofertada, necessariamente, em escola, além disso, por considerar a convivência e a concorrência entre colégios particulares, as escolas públicas e a educação doméstica ministrada nas casas, aliada à menor atuação das preceptoras no decorrer das primeiras décadas do século XX, acionava-se a lógica da oferta e da procura, pondo em queda a remuneração, como parece ter ocorrido com Mademoiselle.
Vale lembrar que os serviços das preceptoras com atuação nas casas, de algum modo, seguiam a necessidade sazonal. Ora, com a conquista do conhecimento pontual, por exemplo, com idioma, piano ou mudança de faixas etárias dos alunos, as famílias não dependiam mais do serviço, cuja dispensa abasteceria um mercado cada vez mais saturado de professoras disponíveis ( VASCONCELOS, 2005). Como pode ser visto nos anúncios de jornais ao tempo de “Ruão”, mesmo em parte do século XX havia demanda profissional para educação doméstica, a qual se enfraquece na medida que a escola se consolida e as famílias de elites buscam cada vez menos esse tipo de serviço.
Pensando na mulher Mademoiselle, um detalhe se mostra evidente: o lugar onde ocorreu o auge de sua perturbação sexual, ao supor que estaria sendo violentada por dois homens, atrás da Catedral, local atrativo por ser palco de supostas imoralidades. Primeiro vem a ideia de que a explosão de desejos da professora se deu, ainda que mentalmente, na retaguarda do edifício do templo, que simboliza o escondido, o secreto, que sua sexualidade precisava ser omitida, que seria intolerável uma mulher se expor frontalmente num cenário social que interditava manifestações dessa natureza.
A também preceptora Ina Von Binzer ([1956]/2017), já no início da Primeira República, dizia em carta endereçada a sua amiga alemã, que o lugar central das mulheres no Brasil era o espaço privado: “[...] outro dia, num salão de cabeleireiro, onde entrei para mandar ondular meu cabelo, cortado curto. Não sabia que, já por mim, chamava a atenção, pois nenhuma senhora brasileira sai sozinha à rua, nem de maneira alguma vai pentear-se fora de casa” ( BINZER, 2017, p. 103).
Nesse sentido, indo contra a mentalidade da época, o ponto culminante da suposta violação sexual da professora não se deu na pensão onde guardava alguns pertences ou na casa das alunas, mas na rua, em espaço público. Tal constatação não é do acaso, já que casa e rua não indicam meramente lugares geográficos ou coisas corpóreas, mas demarcações morais e domínios culturais arraigados, suficientes para gerar regras jurídicas, canções, sentimentos e preces ( DAMATTA, 1997).
Isso se coaduna com a ideia de “jardim” e de “praça” formulada por Saldanha (2005). Praça ou rua se referem a espaços públicos para circulação dos homens, locais para tomada de decisões importantes, ao passo que a casa e suas dependências (jardins) se destinam às mulheres. Mademoiselle, na forma que foi construída por Mário de Andrade, não é a femme fatale, pelo contrário, representa a sujeição, a fragilidade imposta pelo espaço que está inserida, seja pela condição de estrangeira, mulher e pobre, ou pelo recalque de sua sexualidade. É no espaço público, atrás da Catedral, que a professora experimenta sua maior derrota como mulher, quando sua dor era negligenciada e lhe era negada a realização de sua sexualidade.
Considerações
O conto “Ruão” mostra a letargia capaz de imobilizar a família de Dona Lúcia - como contratante dos serviços pedagógicos da professora francesa -, que representa parte da burguesia paulistana. Tal paralisia também recaiu sobre a culta preceptora Mademoiselle, na contingência da necessidade de sobreviver em terras estranhas.
Além disso, a professora, enquanto personagem do conto, revela uma mulher imigrante cujo destino é exercer atividade itinerante, de casa em casa para fins de sobrevivência. Trata-se, portanto, do exercício de encargo de natureza pública em espaço privado, e essa condição servia também como ameaça ao domínio do espaço público reservado aos homens, já que tais ambientes, supostamente, não poderiam ser ocupados por mulheres comuns.
Por ser estrangeira, essa preceptora simboliza, também, mulheres desejadas pelo que traziam, seja em função do domínio de outras línguas, seja por representarem a sofisticação europeia. Paradoxalmente, elas eram temidas e negadas por reunirem características de antítese à construção social de rainha do lar.
Convém ainda ressaltar que Mário Vário, com seu projeto de modernidade, evidenciou mais que uma personagem feminina, estrangeira, a serviço de uma pedagogia anódina, mas a um discurso crítico a um passado que precisava ser vencido, sobretudo pela francofonia esvaziada, enaltecida pela ideia de que a língua francesa poderia resultar numa melhor experiência do que a literatura vertida no idioma português. Nesse sentido, “Ruão” através da velha professora, fala de cânones desgastados que precisavam ser superados para que se criassem as condições para um novo processo educativo.