1. Introdução
A educação superior no Brasil vem passando por diversos processos de mudanças e transformações ao longo das últimas décadas. Ressaltam-se as transformações colocadas em ação a partir da década de 1990 (BRASIL, 1996). Transformações estas explicitadas na aprovação das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (lei federal n. 9.394/1996), pelo processo de elaboração e implantação destas mesmas diretrizes, acrescidas de uma série de resoluções oficiais que norteariam as orientações teórico-pedagógicas para a formação superior no Brasil (BRASIL, 1996; HERDY, 2016; SILVA et al. 2017).
Especificamente na área da saúde, programas governamentais foram idealizados e instrumentalizados tendo como perspectiva essa finalidade reformuladora, dentre os quais podemos citar: a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) (BRASIL, 2005). Programas pautados pela implementação de vultosos recursos, tanto humanos quanto financeiros, a fim de harmonizar a prática exercida e a teoria ministrada que outrora seria aplicada nos cursos de graduação, tendo como contexto e realidade do Sistema Único de Saúde - SUS (BRASIL, 2005; HERDY, 2016).
Observou-se com preocupação urgente a necessidade de reformulação curricular dentro das ciências da saúde, objetivando aprimorar o processo de formação profissional, superando recursos pedagógicos que agora eram tomados como tradicionais e inadequados a atender às exigências das Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN (BRASIL, 2014). Neste cenário, as Instituições de Ensino Superior (IES) deveriam obrigatoriamente modificar seus currículos e programas políticos pedagógicos, a fim de promover uma nova organização do conteúdo e, fundamentalmente, uma incorporação de novos referenciais pedagógicos pautados pelas metodologias ativas de ensino, tidas como inovadoras e mais harmonizadas com os princípios das DCN. Neste sentido, os preceitos contidos na MFC estariam em visível sintonia com os princípios contidos nas resoluções das DCN que passariam a reger a graduação nos cursos de medicina, a partir de 2014 (BRASIL, 2014; OPAS/OMS 2002; HERDY, 2016; SILVA et al. 2017).
Os programas de pós-graduação, especificamente os programas de residência médica, têm por finalidade primordial desenvolver o potencial intelectual, a capacidade analítica, o julgamento e a avaliação crítica por parte de seus alunos. O que se evidencia nas propostas mais atuais de ensino e aprendizagem, é a condição imprescindível da associação do conteúdo teórico com sua aplicabilidade prática (COSTA, 2007; HERDY, 2016).
Nesse contexto, os programas de residência médica viram-se encorajados a acompanhar todas essas reformulações que estavam em curso, tanto no sistema de ensino superior, quanto no sistema de saúde. Uma vez que compunham uma modalidade de ensino de pós-graduação destinada a médicos, sob a forma de curso de especialização (BRASIL, 2015; FALK, 2005; HERDY, 2016; VIANA et al. 2013).
As exigências das DCN, orientadas a estes projetos pedagógicos, objetivam superar o modelo de formação puramente especializada e fragmentada, centralizada no órgão doente e não no doente, dependente de tecnologia e elegendo o hospital como espaço principal de formação (MISSAKA; RIBEIRO, 2011; HERDY, 2016).
Essa necessidade de mudança, de fato, ficou consolidada prioritariamente dentro do programa de residência médica de Medicina de Família e Comunidade (MFC) a partir do advento da Lei 12.871 que instituiu o Programa “Mais Médicos” (PMM). Esse programa objetivava entre outras questões, ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira, assim como, fortalecer a política de educação permanente com a integração ensino-serviço, por meio da atuação das instituições de educação superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas por médicos (BRASL, 2013; BRASIL, 2015).
Mesmo com todos esses processos oportunizando propostas de transformações nos currículos e no ensino médico, muitas das mudanças têm se mostrado pouco eficazes ou não têm sido adequadamente implementadas por diversas IES. A prática docente em medicina tem-se mostrado resistente a mudanças, visto que, um considerável contingente de docentes continua a ensinar da forma como aprenderam ou da forma como já exercem a docência, resistindo em adotar novas metodologias de ensino-aprendizagem (FEUERWERKER, 2003; MISSAKA; RIBEIRO, 2011).
Diante desta realidade, torna-se imprescindível a necessidade de estudos voltados à análise das diversas metodologias de ensino e aprendizagem aplicadas pelos preceptores, nos diversos programas de residência médica. Destaque-se, especialmente, o programa de residência médica de MFC. Nesta lógica, é importante caracterizar os preceptores desse programa de residência médica e a forma como estes desenvolvem suas atividades dentro do programa de residência, apontando as metodologias aplicadas e oportunizando a elaboração de propostas de capacitação em metodologias de ensino como, por exemplo, as contempladas no modelo do PET-Saúde, capazes de promover incremento pedagógico e aprimoramento do programa de ensino.
2. PET-saúde
O PET-Saúde surgiu para auxiliar a formação de profissionais da área da saúde, moldados para satisfazer ao perfil sócio epidemiológico da população brasileira. Seu fundamento pedagógico está baseado na integração ensino-serviço-comunidade. Através de ações intersetoriais, o PET-Saúde trabalha na lógica do fortalecimento da Atenção Básica e suas estratégias, efetivamente, contribuem para a implementação das DCN (FALK, 2005; FARIAS-SANTOS; NORO, 2017; HERDY, 2016; LIMA et al. 2016; MORAIS et al. 2012).
Recebendo o apoio do Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), o PET-Saúde se propõe a oferecer uma abordagem de perfil integral, em relação ao processo saúde-doença. Sua ênfase está direcionada à Atenção Básica, com prioridade ao trabalho junto às equipes de ESF. O PET-Saúde contempla um caráter multiprofissional, integrando alunos oriundos de diversos cursos da área da saúde tais como: Medicina, Enfermagem e Odontologia, mas sem se limitar a apenas estes cursos (BRASIL, 2005; LEITE; AGUIAR; DANTAS, 2016).
Outro aspecto que pode ser observado na utilização do PET-Saúde como ferramenta pedagógica é sua capacidade de conciliar diversos modelos de metodologias ativas de ensino, dentre elas pode-se destacar o Planejamento Estratégico Situacional (PES) e o Método Altadir de Planificação Popular (MAPP).
O planejamento estratégico é uma ferramenta de gestão muito útil, pois permite determinar e enunciar objetivos factíveis de serem alcançados e envolve a participação ativa dos atores afetados pela ação. Pode ser aplicado como instrumento de ação governamental para a produção de políticas; Como instrumento do processo de gestão das organizações e prática social; Neste contexto, a figura do "planejador" deve ser compreendida como o sujeito que atue como facilitador do processo de planejamento. Nesse aspecto o facilitador pode ser perfeitamente personificado na figura do preceptor (MEHRY, 1994).
Uma das habilidades e competências que se espera dos alunos pertencentes aos programas de ensino, voltados para a área da saúde é sua capacidade de tomar iniciativa, gerir e administrar a força de trabalho e os recursos dos serviços onde estiverem inseridos. Da mesma forma, espera-se que esses alunos sejam aptos a atuar como líderes numa equipe de saúde. Neste sentido, o Método Altadir de Planejamento Popular (MAPP) é utilizado dentro do PET-Saúde como uma ferramenta que permite a aplicação de conceitos de planejamento para contextualizar situações-problema e selecionar operações de solução. O MAPP apresenta-se como uma ferramenta efetiva para o ensino-aprendizagem e para a integração ensino-serviço, articulando diferentes fases e permitindo um planejamento compartilhado entre as partes interessadas. Destaque-se que as contribuições do MAPP dentro do PET-Saúde, vão além das questões simplesmente locais e comunitárias. Sua importância não se restringe a uma determinada condição de uso ou ambiente, podendo ser aplicada em diferentes níveis de saúde (BALDISSERA; GOES, 2012; BRASIL, 2001).
O MAPP pressupõe uma análise da realidade social de forma dinâmica, criativa e a trata com um processo em construção ao invés de finalizado. Ele lida com o conceito de “poderes compartilhados entre os atores sociais” e do limite na utilização deste recurso como forma de promover a transformação da realidade de uma comunidade (DE TONI; SALERNO; BERTINI, 2008).
Os estudos, neste sentido, afirmam que PET-Saúde tem contribuído positivamente na formação dos alunos de medicina, através de sua capacidade de produzir um conhecimento socialmente compartilhado, característica que o diferencia de outros programas de ensino. Além disso, o PET-Saúde enseja a possibilidade de permitir o desenvolvimento de um trabalho pedagógico que envolva ensino, pesquisa de intervenção e propostas de execução co-participativa; Estratégias capazes de estreitar os laços com a comunidade assistida e consolidar parcerias entre as IES e as unidades de saúde (FARIAS-SANTOS; NORO, 2017; FERRAZ, 2012)
3. Metodologia da pesquisa
Este trabalho é um estudo exploratório da natureza qualitativa, no qual foram pesquisadas e analisadas as descrições das percepções dos participantes, através de suas respostas às questões aplicadas em um instrumento de pesquisa na forma de entrevista.
Esta pesquisa resguarda seu caráter exploratório, na condição de ser orientada no sentido de obter um panorama da realidade do programa de Residência Médica em MFC na UEPA e sua relação com os processos de ensino e aprendizagem. Utilizou ferramentas que abordavam as questões numa dimensão qualitativa. Analisando significados sociais, cognitivos e subjetivos, subjacentes à relação entre a preceptoria do programa de residência médica, a formação dos médicos residentes e o processo de ensino e trabalho (MINAYO, 2007; TURATO, 2013).
Todos os participantes envolvidos na presente pesquisa foram abordados observando os preceitos da Declaração de Helsinque e do Código de Nuremberg, respeitando as Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Res. CNS 466/12) do Conselho Nacional de Saúde, após a submissão e aprovação de projeto pelo comitê de ética em pesquisa e mediante assinatura por parte dos entrevistados do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.
A pesquisa foi executada no Centro de Ciências Biológicas e da Saúde - Campus II - UEPA, precisamente junto ao corpo docente de preceptoria do programa de Residência Médica de Medicina de Família e Comunidade. Os participantes da pesquisa foram elencados junto ao cadastro da COREME da UEPA, os quais desempenhavam, ativamente, a atividade docente como preceptoria de acordo com a resolução do Conselho Nacional de Residência Médica - CNRM (BRASIL, 2006) e apresentavam carga horária mínima de 20 horas semanais vinculadas à residência médica da UEPA.
A casuística final para as entrevistas contou com a participação dos 05 preceptores, que correspondiam à totalidade do número de preceptores atuando junto ao COREME, no programa de residência médica de MFC até dezembro de 2016, data em que se encerraram as coletas de entrevistas. Ressalta-se, que delimitar o campo de pesquisa, restringindo-o a um programa de residência médica específico, no caso o programa de residência médica de Medicina de Família e Comunidade da UEPA, não representou a perda de abrangência no estudo, mas esta iniciativa permitiu aprofundar a compreensão mais pormenorizada do grupo social em questão, o de preceptores do programa de residência médica de MFC (MINAYO, 2007; TURATO, 2013).
A coleta de dados se deu através de entrevista estruturada, com perguntas abertas e fechadas, sem identificação pessoal do participante da pesquisa e sendo inferido ao roteiro de cada entrevista um código identificador. O conteúdo da entrevista foi gravado em dispositivo de áudio e, posteriormente, transcrito integralmente permitindo a análise e inferências posteriores.
O questionário utilizado na entrevista compunha um instrumento de pesquisa contendo perguntas abertas e fechadas, abordando questões acerca da caracterização dos participantes do estudo e sua atuação profissional; seus conhecimentos e práticas metodológicas de ensino, com ênfase em metodologias ativas de ensino; questões relativas ao seu interesse e/ou necessidade de capacitação em metodologias ativas de ensino e aprendizagem;
A análise dos dados obtidos através das entrevistas foi feita através da técnica descrita por Bardin (2011), a análise de Conteúdo, que possui características de natureza qualitativa, utilizando-se da apropriação de informações através da comunicação com o objetivo de realizar análise de expressão, representação e enunciação ou análise temática.
Os resultados obtidos foram compartimentados e analisados para a confecção de dados e tabelas utilizando o software Microsoft Excel 2010.
4. Resultados e discussão
As informações colhidas a partir das entrevistas foram distribuídas em 04 eixos temáticos principais, a citar:
4.1 Caracterização dos participantes da pesquisa;
4.2 Atuação profissional dos preceptores;
4.3 Conhecimentos e práticas metodológicas de ensino;
4.4 Capacitações em metodologias de ensino;
4.1 Caracterização dos participantes da pesquisa
O quadro e o conjunto de tabelas a seguir apresentam os dados sócio demográficos obtidos a partir das respostas dos participantes:
Faixa Etária | Gênero | Experiência Profissional | Experiência c/ preceptoria | Área de Especialização | Titulação Acadêmica |
34 anos | Masc. | 7 anos | 1 ano | MFC | Mestrando |
42 anos | Fem. | 14 anos | 1 ano | MCF/Pediatria | Especialista |
42 anos | Masc. | 8 anos | 4 anos | MFC | Mestre |
43 anos | Fem. | 18 anos | 2 anos | MFC | Especialista |
40 anos | Fem. | 8 anos | 5 anos | MFC/Geriatria | Mestre |
Fonte: roteiro de entrevista.
A caracterização dos participantes da pesquisa destacou que a maioria dos preceptores pertence ao gênero feminino. Estes dados concordam com levantamentos feitos por Carvalho et al (2013), num inquérito realizado durante o DCPPRM-RN que apontaram cerca de 58% de preceptores do sexo feminino, também concorda com Souza (2015) que apontou um leve predomínio de preceptores do sexo feminino num grupo de preceptores da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA). Porém, estes dados não concordam com os dados levantados por Botti (2009) que apontaram um predomínio de preceptores do gênero masculino, no grupo de preceptores, das áreas clínicas pesquisadas em seu estudo. Tal fato destaca a heterogeneidade na distribuição de gênero da preceptoria dentro dos diversos programas de residência médica.
A faixa etária de 40,2 anos representava a idade média dos preceptores que compõem o programa de residência médica de MFC da UEPA entrevistados neste estudo. Estes dados concordam com os elencados por Botti (2009), Carvalho et al (2013) e por Souza (2015) onde apontavam que a maioria dos preceptores dos programas de residência médica entrevistados nestes respectivos estudos estavam inseridos numa faixa etária superior a 40 anos.
À exceção de apenas um sujeito entrevistado, todos os demais preceptores declararam seu estado civil como sendo casados.
Em relação à experiência profissional, 11 anos em média, representava a quantidade de anos de atuação profissional dos participantes da pesquisa, destacando-se a coincidente diferença de 11 anos entre o preceptor de maior tempo experiência profissional em relação ao preceptor de menor tempo de experiência profissional. Isso corresponde a uma diferença de duas vezes e meia à quantidade de anos de atuação profissional entre eles. Esses dados são ligeiramente inferiores aos dados levantados por Carvalho et al (2013) que indicaram uma experiência no campo da medicina, de 15 anos em média.
Especificamente, em relação ao tempo de experiência profissional na atuação como preceptor, a totalidade dos entrevistados referiu possuir experiência menor ou igual a 5 anos. Estes dados contrastam com os levantamentos de Botti (2009) e de Souza (2015) que indicavam em seus estudos uma experiência como preceptor em anos superior a 10 anos.
Em relação à área de especialização dos preceptores, ressalta-se que absolutamente todos possuem o título de especialistas em MFC, sendo que, dois deles possuem ainda uma segunda área de especialização, um em pediatria e outro em geriatria, respectivamente. Possuir o título de especialista atende a exigência do CNRM - Lei nº 6.932 de 7 de julho de 1981.
Finalmente, em relação à titulação acadêmica, pode-se constatar que a maioria dos preceptores de MFC da UEPA participou de programa de pós-graduação acadêmica, configurada sob a forma de Mestrado, possuindo dois deles, o título de Mestre e um deles, na ocasião da pesquisa, referiu participava de programa de Mestrado, na qualidade de mestrando.
A critério de comparação com outros estudos relacionados a questões que envolvam o perfil da preceptoria, dentro dos programas de residência médica, destaca-se o fato de, não figurarem no quadro de preceptores que compõem o programa de residência médica de MFC da UEPA, nenhum profissional com titulação de Doutorado. Essa informação contrasta com os dados levantados no Rio Grande do Norte que indicaram uma incidência de 14% de preceptores com titulação de Doutorado, dados muito semelhantes aos estudos referentes a programas de residência médica como os da FSCMPA, que apresentam uma percentagem de aproximadamente 15% de preceptores com titulação de Doutorado. Ainda assim, números muito inferiores, quando comparados a uma proporção de cerca de 47% de Doutores pertencendo aos quadros de preceptorias, em programas de residência médica na região Sudeste. (BOTTI, 2009; CARVALHO et al. 2013; SOUZA, 2015).
Essa informação aponta a necessidade pujante de um maior incentivo na investidura de esforços, na participação em programas de qualificação acadêmica. Uma necessidade que, de fato, não é nenhuma novidade, e já representava uma preocupação real, desde a elaboração de projetos como o PROMED, o PRO-SAÚDE, o Pró-Residência. Iniciativas que visavam inicialmente o aprimoramento do currículo pedagógico, mas que abriram espaço para programas mais ousados e dinâmicos, como é o caso do PET-Saúde, que ambicionava uma integração entre ensino-serviço-comunidade e que estruturava novas perspectivas aos seus participantes, como a possibilidade de receber um incentivo financeiro, sob a forma de bolsa de estudo, tanto para o aluno, quanto para o preceptor e o tutor cadastrados nos programas (BRASIL, 2001; BRASIL, 2005; CARVALHO et al. 2013; LEITE, AGUIAR; DANTAS, 2016; LIMA et al. 2013).
4.2 Atuação profissional do preceptor
Conhecimento das exigências das resoluções da CNRM
Infelizmente, no que tange ao conhecimento a respeito das exigências das resoluções da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) para o desenvolvimento da preceptoria em seu campo de atuação, a imensa maioria dos preceptores entrevistados respondeu desconhecer com propriedade tais dispositivos. À exceção de apenas 01 (um) entrevistado que referiu conhecer, ainda que de forma não aprofundada, as exigências das resoluções da CNRM, todos os demais preceptores referiram desconhecerem tais exigências.
Além da importância óbvia das resoluções da CNRM, foi a partir delas que se passaram a designar os primeiros programas de residência médica em MFC em meados de 2001. A construção destes programas de pós-graduação, em particular, representava uma significativa ruptura na mentalidade hospitalocêntrica que orientava as políticas de saúde e educação vigente à época. O foco da atenção apresentado pela MFC representa uma forma de superação de um foco anterior que fora marcado pela fragilidade e precariedade ao lidar com as questões relacionadas à estrutura da APS, acrescido ao fato deste apresentar um padrão global de menor eficácia e resolutividade. Outro marco dessa conduta pregressa, se devia ao fato dela se caracterizar pela utilização, sem um critério definido de razoabilidade, dos recursos e tecnologias aplicados na investigação, confirmação ou exclusão de uma hipótese diagnóstica (ANDERSON; RODRIGUES, 2008).
Ratifica-se, desse modo, a importância das exigências das resoluções da CNRM, no fato de que o aperfeiçoamento técnico dentro dos sistemas de atenção à saúde perpassa pela implementação dos programas de residência médica. A observância das resoluções da CNRM no âmbito da MFC oferece a perspectiva de treinamento prático, da realização de projetos de iniciação científica e do desenvolvimento de novos conceitos e tecnologias no campo de atuação da APS (ANDERSON; RODRIGUES, 2008; BOTTI, 2009; MICHEL; OLIVEIRA; NUNES, 2011; VIANA et al. 2013).
E em respeito a este preceito, não existe forma mais adequada de valorizar esse processo de construção, do que torná-lo de forma ampla e profundamente conhecido por todos os preceptores do programa de residência médica, em MFC da UEPA, para que desta forma, possa ser devidamente transmitido a seus residentes.
Percepção do papel do preceptor na formação do médico residente
Nesse aspecto, a análise das respostas deste quesito destaca a noção dos preceptores entrevistados, evidenciando-se a importância do papel exercido pelo preceptor, como elemento que tem a responsabilidade de acompanhar e supervisionar os médicos residentes.
Também se destaca a importância da orientação exercida pela preceptoria, em relação aos diversos elementos que compõem o contexto da educação em saúde: a questão do ensino em saúde; da atuação prática inserida na assistência à saúde; dos elementos relativos à gestão dos serviços e recursos na saúde.
Outro aspecto ressaltado neste contexto é a importância da atuação de preceptores que estejam intimamente familiarizados com a realidade da atenção básica, no contexto da MFC. Evidenciando o fato de que, preferencialmente, os programas de preceptoria nesse cenário deveriam ser conduzidos por médicos especialistas em MFC (DEMARZO et al. 2012; LIMA et al. 2013).
A seguir, destacamos algumas colocações que embasaram a análise deste aspecto:
[...] O papel do preceptor é acompanhar esse residente na sua atividade. Orientá-lo com relação aos princípios que regem essa especialização; tanto com relação à educação, com relação à assistência, com relação a orientações de gestão em saúde (E01).
[...] É de fundamental importância. Porque sem uma orientação básica, uma preceptoria, de uma pessoa já que tem uma experiência, o que vem pra formação, geralmente não vai ter aquela qualificação. Ou seja, a gente vai ter que modular esse residente que vem pra gente, na tentativa de mostrar como se deve fazer o exercício da profissão (E02).
[...] A preceptoria chegou na vida da maioria dos profissionais que estão atuando na área, assim, quase que de surpresa. O sujeito era médico da unidade, e de um dia para o outro ele de repente começa a receber alunos. E aí ele vai ter que atuar como preceptor da unidade, ou seja, fazendo o serviço e o ensino. Então, conciliar essas duas coisas requer não apenas experiência profissional no serviço, mas você precisa também dominar determinadas técnicas de transmissão de conhecimentos (E03).
[...] Eles precisam ter preceptores que sejam especialistas nessa especialidade (MFC). Porque o foco do médico de família, ele é totalmente diferente do foco de outros especialistas. Pra gente formar um médico de família, nada melhor do que alguém que tenha essa experiência. Tenha esse foco. Tenha essa visão, que é uma visão diferenciada. É uma visão diferente. O olhar é diferente. O cuidar é diferente. Sem contar que o próprio aluno tem que ter contato com a comunidade. Ele tem que ir à área dele, conhecer o mapa dele. Então é extremamente importante a presença do especialista em MFC (E05).
Conteúdos semânticos de relevância:
1) Acompanhamento dos residentes pelo do preceptor;
2) Atuação do preceptor como orientador do ensino;
3) Experiência profissional do preceptor em MFC;
A análise de conteúdo dos trechos selecionados ratifica a importância do papel da preceptoria na residência médica. Destacando o fato da residência médica fornecer, em cada campo de especialização, uma visão prática da medicina e dos problemas do setor da saúde, sendo pragmaticamente a forma mais eficiente de se inserir os médicos no mercado de trabalho (LIMA et al. 2013; NUNES, 2010).
Tal concepção permite uma reflexão a respeito da relevância do papel da docência e de como esta representaria o reflexo do modelo de formação vivenciado pelos preceptores enquanto alunos. Enaltecendo a importância da aplicação de metodologias educacionais adequadas e capazes de mitigar eventuais concepções equivocadas em relação à transmissão da informação e do ensino (SILVA et al. 2017).
Particularmente, em relação a um corpo de preceptoria focado no campo da MFC, fica evidente a importância dessa experiência particularizada quando se pondera que a MFC constitui uma especialidade que se apropria de uma visão mais ampla em relação ao conceito de saúde. Destaque-se o fato da MFC precisar entender, de forma indistinta, os indivíduos por ela atendidos, suas relações familiares, e também seu contexto social e comunitário. O que ressalta sobremaneira a relevância que exerce uma preceptoria que possua experiência especializada em MFC (BRAGA et al. 2013; CARVALHO et al. 2013; DEMARZO et al. 2012; HERDY, 2016).
Em relação ao processo de ensino-aprendizagem dentro do programa de residência médica, a orientação oferecida pela preceptoria apresenta-se como a ferramenta fundamental, para que essa prática educativa não seja confundida com o mero "trabalho mecânico" dentro do serviço. Objetivamente, para atingir sua finalidade, a atuação dos residentes dentro dos programas de pós-graduação deve, obrigatoriamente, estar alicerçada sob a ótica de uma supervisão profissionalizada, experiente e especializada no campo de atuação do programa, como é o caso da MFC da UEPA (CARVALHO et al. 2013; HERDY, 2016; NUNES et al. 2011; VIANA et al. 2013).
Fatores que dificultam a atuação como preceptor
No que tange aos fatores que dificultariam a atuação como preceptor no programa de residência médica de MFC da UEPA, um dos principais fatores citados pelos entrevistados, faz referência ao fato do preceptor geralmente não atuar na mesma unidade de saúde que seus residentes:
[...] O residente atua em uma unidade de saúde e o preceptor trabalha em outra unidade. E a gente tem que se deslocar da nossa atividade, da nossa unidade pra unidade do residente. O ideal seria que o residente fosse da mesma unidade do seu preceptor pra atuarem em conjunto, mas por essas questões de estrutura, realmente fica difícil (E01).
[...] Os residentes que eu estou como responsável pela preceptoria, eu não estou acompanhando a atuação deles na prática, de fato. E isso é uma lacuna grande. Tanto pra eles enquanto residentes, quanto pra mim que tenho o dever de acompanhar, mas que acaba sendo uma coisa limitada a visitas, dentro da minha agenda, quando dá para ir ver atuação deles na prática realmente (E04).
Conteúdos semânticos de relevância:
1) Dissociação entre o ambiente de trabalho do preceptor e o ambiente de trabalho do residente;
2) Incipiência na supervisão pelo preceptor;
Esses aspectos semânticos ilustram uma das características que diferencia o programa de residência médica em MFC, dos programas de residência médica que se concentram no interior de um ambiente eminentemente hospitalar bem delimitado. Esse caráter "pulverizado" da distribuição dos cenários de prática na APS é uma qualidade ímpar da MFC. Entretanto, por vezes, essa característica acarreta considerável dificuldade na supervisão que deve ser desempenhada por parte dos preceptores inseridos no programa.
O que se percebe na prática cotidiana dos programas de residência médica é um panorama de "informalidade" nas relações de trabalho junto à preceptoria, onde o preceptor realiza sua atividade em suas "horas vagas", de forma empírica, desdobrando-se entre sua atuação majoritária, na assistência e seu apoio ao ensino dentro do programa de residência médica em que está inserido. Apesar da ampliação do debate em torno do planejamento, definição e orientação do papel do preceptor. De fato, pouco se avançou em relação ao seu reconhecimento formal (VIANA et al. 2013).
Neste sentido, é flagrante a resultante de um acompanhamento incipiente por parte da preceptoria. Tal comportamento acaba por acarretar o surgimento dúvidas e inseguranças, por parte dos residentes, na condução dos casos clínicos por eles vivenciados. Adicionado ao estresse inerente ao exercício da profissão, a falta de uma supervisão adequada favorece um sentimento de responsabilidade excessiva que por consequência desencorajaria a permanência dos residentes nos programas de residência médica em MFC (SPONHOLZ, 2016).
O sentimento de frustração e culpa, por parte dos médicos residentes, poderia ser mitigado ou no mínimo atenuado, mediante uma presença mais constante por parte do preceptor. Ressalte-se que essa “sensação de abando” não é exclusividade do programa de residência médica de MFC da UEPA. Estudos como o de Nogueira-Martins (2005) desfraldam um panorama no qual mais da metade (58,4%) dos residentes de Clínica Médica afirmavam se sentirem “sempre” ou “quase sempre” desamparados, em relação à presença da figura do preceptor. Esse percentual diminuía para 40% em relação aos residentes de Cirurgia Geral, 33,3% nos programas de Ginecologia e obstetrícia e apenas 8%, em relação aos residentes de Pediatria (NOGUEIRA-MARTINS, 2005).
Outra controvérsia faz referência ao fato de que programas de pós-graduação, que “fogem à regra” dos demais, ou que apresentem características, em certo grau “distanciadas”, das práticas hegemônicas aplicadas pela maioria dos programas, seja em seu aspecto acadêmico, seja em seu aspecto assistencial como, por exemplo, os da MFC. Tornem-se alvos recorrentes de críticas e questionamentos, em relação a sua relevância e a respeito da necessidade de sua manutenção, como programas de ensino e capacitação. É, consideravelmente, preocupante quando tais questionamentos e indagações partem, exatamente, dos segmentos diretamente relacionados aos processos de trabalho e ensino dentro das IES que os oferece suporte (ANDERSON; DEMARZO; RODRIGUES, 2007).
Acrescente-se a esses fatores citados anteriormente, a deficiência em diversos graus relacionada à infraestrutura dos cenários de prática na APS, principalmente, no que concerne à falta de espaços em quantidade e com características devidamente adequadas para se prestarem a servir como ambientes de ensino:
[...] Tem também a questão da estrutura das unidades, que são muito deficitárias. Mesmo se tu tivesses a possibilidade de receber o teu residente na tua unidade, a tua unidade não tem condições de ficar com dois médicos ao mesmo tempo. Normalmente a gente só tem um consultório médico pra atendimento. Realmente isso dificulta muito (E01).
[...] A gente tendo alunos dentro da nossa instituição, às vezes eles querem exigir determinadas melhorias do ambiente em que a gente trabalha. Então a gente mostra para eles que a gente trabalha de acordo com o que é possível. Com o que a gente tem... (E02).
[...] Porque a gente tem muita carência no ambiente de trabalho. Envolve insegurança. Envolve uma série de fatores bem conhecidos de todos. Falta de recursos humanos qualificados, falta de um ambiente de trabalho agradável para se trabalhar (E03).
Conteúdos semânticos de relevância:
As questões estruturais das unidades de saúde exercem um impacto inequívoco na forma negativa, com a quais acadêmicos e internos perceberiam a medicina praticada na APS. Essa percepção negativa alimenta concepções que rotulavam a medicina observada nesses espaços, como uma prática de pouco "brilho tecnológico", a ser desempenhada por profissionais pouco qualificados e apresentando-se, de maneira geral, pouco resolutiva (JUSTINO; OLIVER; MELO, 2016).
A necessidade de uma melhor infraestrutura, ou da oferta de uma estrutura minimamente adequada, já seria suficiente para estimular nos discentes a adoção de uma postura proativa, no âmbito da busca do conhecimento. Ressaltando que tais fatores só funcionariam como um estímulo definitivamente positivo, desde que fossem devidamente orientados através de um corpo docente de preceptoria, pedagogicamente capacitado (MISSAKA; RIBEIRO, 2011).
Em relação aos recursos humanos envolvidos na APS, muitos levantamentos destacam que os serviços de saúde não estariam satisfatoriamente dotados para oferecer capacitação técnica adequada à sua própria mão de obra. Esse fator configura um entrave significativo no sentido de implementar mudanças profissionais capazes de favorecerem a qualificação dos quadros relacionados à saúde. Aliado a este fator, observa-se o fenômeno da alta rotatividade de profissionais dentro da APS. Esse fenômeno se correlaciona com fatores inerentes aos processos de precarização das relações de trabalho e com a falta de perspectivas concretas de crescimento e realização profissional, dentro da área da saúde na APS (NÓBREGA-THERRIEN et al. 2015).
4.3 Conhecimentos e práticas metodológicas de ensino
Todos os preceptores entrevistados aludiram a respeito da importância do modelo de metodologia de ensino dentro de um programa de residência médica. E em relação a este questionamento, todos afirmaram conhecer como metodologias ativas de ensino a aprendizagem baseada em problemas (Problem. Base Learning - PBL) e a aprendizagem baseada em grupos (Team Base Learning - TBL). Infelizmente, nem todos afirmaram utilizar a problematização ou demais metodologias ativas de ensino em suas práticas cotidianas. Dos entrevistados, 02 (dois) afirmaram utilizarem apenas metodologias tradicionais de ensino.
Destacou-se dentre as respostas analisadas, as inferências a respeito do desafio que é conciliar a metodologia de ensino com a estrutura do serviço. E por fim, foi explicitada a percepção acerca da transformação de paradigma que vem se desenvolvendo no curso de medicina da UEPA, envolvendo a transição do modelo de metodologia tradicional de ensino em direção às metodologias ativas de ensino e seu reflexo no programa de residência médica, como se pode observar nos trechos abaixo:
[...] Se for utilizada realmente a problematização, vai fazer muita diferença na atuação desse residente. Na metodologia ativa, você vai associar a teoria com a prática, você vai por exemplo, na problematização, você vai observar um problema em uma comunidade, a partir desse problema você vai estudar, vai pesquisar. Aí você vai procurar uma solução para esse problema e depois você vai intervir na comunidade. Ou se você for utilizar o PBL, você vai associar um problema teórico e a partir desse problema teórico você vai analisa-lo, estuda-lo, procurar soluções que queira ou não queira, vão te ajudar quando você for pra sua prática, a partir desse estudo teórico (E01).
[...] A metodologia ativa de ensino e aprendizagem favorece com que você tenha esclarecimento e a preocupação de você estudar muito mais aquilo que você une, tanto na teoria quanto na prática. E aí consegue fortalecer. Consegue fazer um diagnóstico. Consegue melhorar a qualidade de vida do paciente e consegue, ao mesmo tempo, ganhar conhecimento a respeito do que você estudou ou então tentou identificar com o diagnóstico (E02).
[...] Na realidade a gente tenta fazer uma “mistura”, uma mesclagem, uma adaptação. Porque o ambiente do serviço, ele tem as suas peculiaridades. Você tem uma demanda para atender, etc. Então dá pra você atuar com esses alunos tentando ao máximo utilizar metodologias ativas. Não dá para você aplicar totalmente, com todos os pré-requisitos, os seus tempos de acontecimento. Mas dá para você agir de uma forma a instigar o aluno a pensar sozinho, a questionar, a buscar. Eu acho que é esse o grande papel do facilitador. É tu não entregar o conhecimento pronto, mas construir o conhecimento junto com o aluno (E03).
[...] A UEPA, de um modo geral o curso de medicina, ele vem passando por uma mudança dentro da instituição. Daquela metodologia tradicional para a (metodologia) ativa, então isso ainda não está bem sedimentado dentro da instituição. Então, se estende também para o programa de residência (médica). Ainda existe muito a prática tradicional e a gente ainda tentando inserir essas metodologias ativas na formação dos residentes (E04).
[...] É que a gente tem que entender que todo mundo tem seu conhecimento prévio, tem seu saber. Então o residente tem que estar no ambiente, para ele conhecer. Para ele ir ativamente atrás do conhecimento dele. Mas lógico, tendo o apoio do preceptor. Porque como a gente fica às vezes distante, dificulta para ele (residente). Então como é que a gente vai direciona-lo? As metodologias ativas são muito importantes se a gente souber emprega-las (E05).
Todas essas reflexões concordam com estudos como o de Costa (2007) e Silva et al. (2017) que apontavam as metodologias ativas de ensino como alternativas capazes de promoverem uma transformação no ensino no campo da área médica, e em especial na especialidade de MFC.
A aprendizagem baseada em problemas (PBL), introduzida desde 1997 no Brasil, tem demonstrado bastante êxito neste aspecto dentro dos cursos de medicina. Além dela, podem-se destacar outras propostas metodológicas como, por exemplo, a Aprendizagem Baseada em Tarefas (Task Based Learning), o Ensino Orientado para a Aprendizagem (Learning Oriented Teaching), a aula expositiva dialogada, a problematização, o julgamento simulado, os seminários, a Mini-Avaliação Clínica (Mini-Cex), o Exame Estruturado de Habilidades Clínicas (OSCE) e o Trabalho em Pequenos Grupos, entre outros. Uma vez estando de acordo com a proposta pedagógica do programa, o docente tem toda a liberdade de optar pela utilização de metodologia em que possua maior segurança familiaridade (COSTA, 2007; SILVA et al. 2017).
Entretanto, especificamente no contexto da MFC e sua atuação dentro da APS, não basta que o médico de família apenas aplique sua capacidade de anamnese e diagnóstico nosológico, é imprescindível o desenvolvimento de competências que o tornem capaz de compreender o binômio saúde-doença, como um processo relacionado a diversos fenômenos que envolvem aspectos biopsicossociais. Estabelecendo uma medicina baseada na narrativa, centrada na pessoa, mas orientada para a família e a comunidade (ANDERSON; RODRIGUES, 2008; BONET, 2003).
A natureza dialógica das práticas aplicadas na MFC combina perfeitamente com metodologias inovadoras que se utilizem de uma estrutura problematizadora, como é o caso das “sessões de reflexão” e “das rodas de conversa”. Nesse sentido, programas como o Pró-Saúde e o PET-Saúde se destacam por se apropriarem de práticas metodológicas inovadoras exatamente com esse perfil. Sendo programas capazes de responder às necessidades de transformações exigidas pelas DCNs de 2014, ao mesmo tempo em que se mantêm compromissados com as políticas de reorganização do SUS e do fortalecimento da APS (ANDERSON; RODRIGUES, 2008; HERDY, 2016; SILVA et al. 2015).
As preceptorias dos programas de residência médica em MFC podem se beneficiar amplamente dos elementos contidos no PET-Saúde e, a partir dele, construírem espaços democráticos de discussão de ideias e interação social. Espaços esses que não precisam ficar restritos à interação entre preceptores e alunos, mas que pelas próprias características do PET-Saúde, incentivam a socialização dessas propostas com os sujeitos participantes dos serviços e/ou da comunidade. Favorecendo a construção coletiva das definições ou redefinições dos objetivos e práticas aplicadas nesse contexto (SILVA et al. 2015).
Propostas como o PET-Saúde fomentam a atuação multiprofissional num modelo de metodologia ativa de ensino que permite desenvolver suas atividades tanto no campo da educação, quanto no campo da preceptoria, assim como no campo da docência, simultaneamente. Ressignificando os processos de trabalho e as rotinas dos serviços. Convertendo o sujeito inserido num amálgama do contexto onde ele observa, apreende, interfere, aprende e ensina (HERDY, 2016; SILVA et al. 2015).
Desta forma, o PET-Saúde oferece uma perspectiva de ampliação dos horizontes do conhecimento em relação aos conceitos mais atuais de saúde. Sem perder de vista seus preceitos ancorados e consolidados nos princípios do SUS. Ele imprime de maneira indelével o conceito de "bem público"/“aspecto coletivo” às concepções de ensino e de saúde, partes imprescindíveis da vida em sociedade e obrigação assegurada pela figura do Estado. Essa peculiar configuração deste programa é perfeitamente passível de ser aplicada aos programas de residência médica de MFC (KOVALESKI et al. 2016; HERDY, 2016).
4.4 Capacitações em metodologias de ensino
Nesta etapa da entrevista os participantes foram interrogados a respeito de seu interesse em participar de algum projeto de educação e treinamento nas metodologias de ensino. Especificamente, foram oferecidas modalidades de capacitação pedagógica, configuradas nas propostas que compõem o PET-Saúde. Também foram indagados a respeito de qual modelo de oficina seria, em sua opinião, mais interessante para participarem. Neste quesito, de maneira unânime, os participantes indicaram as oficinas semipresenciais como estratégia de capacitação preferível. Destaque-se o interesse e o comprometimento de todos os entrevistados em participarem dessas atividades, por considerarem relevantes para o aprimoramento do programa de preceptoria em MFC da UEPA.
A seguir, está destacado um recorte narrativo que representa o ideário acerca da necessidade de capacitação por parte da preceptoria do programa de residência médica em MFC:
[...] O que a gente ouve é geralmente a necessidade de fazer cursos de formação. Cursos de preceptoria. Treinamentos. Atualização. Enfim, inerentes à preceptoria, e a maior necessidade, a carência dos nossos professores-médicos que estão atuando na preceptoria é justamente essa atualização. O problema está na gestão de poder oferecer mais cursos, num tempo mais prolongado para os professores (E03).
Não se discute que possuir uma boa bagagem de experiência em MFC e no trabalho junto à APS fornece substrato aos docentes, para desenvolverem encontros altamente produtivos, no sentido de experimentar na prática, situações-problema articuladas com a realidade. Entretanto, tal condição não exime a necessidade imperiosa de investimento na formação da preceptoria que perpassa desde a preparação de um seminário, até a aplicação de um Osce (SILVA, et al. 2017).
É simplesmente impossível discutir o aperfeiçoamento da orientação pedagógica, sem levar em consideração a necessidade de capacitação dos preceptores. Para tanto, é preciso se debruçar sobre as novas metodologias de ensino, ampliar os espaços de trabalho, promover integração nos ciclos de estudo para favorecer a atuação docente nos cenários de prática (CASTANHO, 2002).
Particularmente no âmbito nacional, faz-se necessário reconhecer a relevância das DCNs de 2014 e das resoluções da CNRM, por se tratarem de direcionamentos pedagógicos fundamentais para os programas de graduação e pós-graduação em saúde, além de representarem diretrizes relevantes para o enfrentamento dos desafios inerentes à docência. Sendo elementos que favorecem o desenvolvimento de competências e habilidades, enquanto auxiliam no aprimoramento do raciocínio crítico-reflexivo. Essa capacidade de reflexão é fundamental para a formação dos médicos de família. Desta forma, é imprescindível a adoção de práticas educativas capazes de conciliar os objetivos educacionais com as atividades didáticas direcionadas ao programa de MFC (CADERNOS DA ABEM, 2013; CASTRO E NÓBREGA-THERRIEN, 2009; SOUZA, 2015).
SILVA et al. (2015) afirma que o modelo do PET-Saúde pode ser considerado como uma importante ferramenta indutora de iniciativas e práticas pedagógicas capazes de aprimorar o processo de educação em saúde através do trabalho. Esse processo teria como ponto de partida a inserção dos profissionais já engajados no serviço (preceptores) nos grupos de aprendizagem tutorial vinculados ao PET-Saúde para que recebessem a devida orientação em suas atividades. A configuração dessa estrutura, graças à similaridade de contexto e demanda, poderia naturalmente ser replicada nos programas de Residência Médica de MFC.
5. Considerações finais
A formação médica encontra-se em constante estado de transformação, a exemplo da própria medicina. Nesse sentido, os trabalhos que abordam as questões inerentes aos programas de graduação e pós-graduação na área da saúde são de extrema relevância. A análise das metodologias de ensino e aprendizagem, aplicadas pelos preceptores do programa de residência médica em Medicina de Família e Comunidade, na UEPA foi o elemento central neste estudo. A partir deste referencial, foi possível extrair o perfil dos profissionais e suas percepções a respeito da importância do modelo de metodologia de ensino aplicado por eles em seu contexto de ensino.
Com base nos resultados, pode-se caracterizar o perfil da preceptoria como pertencente em sua maioria ao gênero feminino, possuindo uma faixa etária média de 40,2 anos e apresentando o estado civil de casados. Em relação a experiência profissional, determinou-se 11 anos em média como a quantidade de anos de atuação profissional no campo da medicina. Especificamente, foi destacado que 5 anos ou menos representavam o tempo de experiência profissional de atuação como preceptor, uma experiência um tanto exígua quando comparada aos estudos de outros programas de residência médica.
Destaque-se que absolutamente todos os preceptores entrevistados possuíam o título de especialista em MFC, uma demanda significativamente importante, segundo os entrevistados, e ratificada pelos diversos estudos, no que tange a composição dos programas de residência médica em MFC. Em relação ao aspecto da formação pedagógica complementar, a maioria dos preceptores afirmou ter participado de programa de pós-graduação acadêmica de Mestrado, fator consideravelmente relevante no sentido de embasar os processos de ensino-aprendizagem dentro dos programas pedagógicos aplicados.
Neste exposto, de maneira uniforme todos os preceptores aludiram a respeito da importância do modelo de metodologia de ensino e afirmaram ter conhecimento de diversos modelos de metodologias ativas de ensino. Neste cenário, a maioria referiu se utilizar da problematização ou de algum outro tipo de metodologia ativa em sua prática cotidiana, à exceção de 02 (dois) preceptores que afirmaram utilizarem apenas metodologias tradicionais de ensino em sua atuação.
Considera-se que a estratégia mais eficiente para transformar o paradigma da medicina exercida no âmbito da Atenção Primária à Saúde, perpassa pelo aprimoramento dos programas de residência médica, especialmente, o programa de Medicina de Família e Comunidade. E esse aprimoramento está intrinsecamente atrelado ao aprimoramento dos recursos humanos que atendem a estes programas, mais especificamente, à preceptoria de MFC. Neste sentido, propostas como a da adoção de ferramentas e estratégias mais afinadas às idiossincrasias e particularidades da MFC, como é o caso do PET-Saúde, despontam como condições-chave para alcançar este objetivo.
A aplicação da metodologia de ensino do PET-Saúde pela preceptoria da residência médica de MFC é factível e perfeitamente capaz integrar processos de observação e aplicação teórica na prática cotidiana, permitindo que os residentes sejam capazes de realizar uma reflexão consciente de problemáticas reais, que afligem a comunidade e desenvolvam sua capacidade de elaboração de ações integrativas, que tenham o potencial de transformar o cenário da realidade social, dentro dos ambientes voltados a atenção à saúde onde eles estão inseridos.
Nesse âmbito, cabe recomendar à COREME, uma proposta de capacitação em metodologias ativas de ensino aprendizagem, contempladas no modelo do PET-Saúde para os preceptores do programa de residência médica de MFC da UEPA, como estratégia para o aprimoramento desse programa de pós-graduação.