INTRODUÇÃO
Presentes num complexo mosaico de forças e tensões, as leis são resultantes de negociações e disputas que envolvem diferentes interesses. Dessa perspectiva, as leis, bem como suas práticas, constituem elementos significativos de estudos da realidade social, política e educacional. Exemplarmente as Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 instituem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira, indígena e uma educação das relações étnico-raciais no Brasil. Elas refletem a tensão presente na história das políticas educacionais do país, pois de um lado há políticas que visam à permanência do racismo estrutural que se revela pela invisibilidade da raça e pelo mito da democracia e, de outro, políticas frutos de lutas sociais que buscam romper com as primeiras.
Nas últimas décadas, o Estado brasileiro veio se movimentando no sentido de atender antigas demandas da comunidade. Exemplo disso são as ações específicas, direcionadas à camada da população que, em virtude de sua origem étnico-racial, vivencia privações diversas. Nesse sentido, o Estado veio implementando políticas públicas com vistas à superação das desigualdades étnico-raciais no país. Políticas públicas, segundo Saravia (2006, p. 28 e 29) podem ser consideradas “como estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que participam do processo decisório”.
Para uma melhor compreensão desse processo, tendo em vista a busca por referenciais analíticos, se fez necessária a troca teórica entre as diversas áreas do conhecimento, da História à Administração Pública, passando pelas ciências Política; Sociais; Educacionais. Henriques (2001), no texto publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90” explicita as diversas dimensões da desigualdade racial no Brasil, reconhece o peso que o pertencimento racial exerce na explicação das desigualdades socioeconômicas no país e aponta a necessidade de se desenvolverem políticas públicas de inclusão social e econômica com preferência racial explícita, de ação afirmativa, que contribuam para romper com a excessiva desigualdade.
É importante destacar que uma política pública não vem a existir pela simples vontade das autoridades competentes. Diferentemente, uma política pública está envolvida em um processo mais amplo, que envolve diversas etapas, desde a inclusão de determinado problema ou necessidade social na agenda de prioridades do poder público, até sua implementação, acompanhamento e avaliação (SARAVIA, 2006). As prioridades não são determinadas pela razão técnica, “o poder político dos diferentes setores da vida social e sua capacidade de articulação dentro do sistema político são os que realmente determinam as prioridades” (SARAVIA, 2006, p. 35).
Desse modo, podemos apreender que o Estado só age na resolução de problemas que façam parte de sua agenda formal. Vale ressaltar que uma questão só entra para a agenda formal dos governantes quando ela é considerada um problema. Porém, o fato de constar da agenda formal não é garantia de que o problema será alvo de política pública (FUKS, 2000). Ainda no que se refere ao processo político que envolve a formulação de políticas públicas, Lobato (2006) esclarece que a possibilidade de que as condições que determinam direta e/ou indiretamente uma dada política pública, se perpetuem ou sejam modificadas, é expressa na forma de demandas e através de grupos e/ou movimentos específicos da sociedade, dependendo dos interesses das partes envolvidas.
Segundo Ferrarezi (2006, p. 10), “no caso específico das políticas públicas, o conhecimento científico ainda é, reconhecidamente, incompleto e o campo relativamente novo”. No entanto, Conceição (2010) explica que, no que se refere à superação das desigualdades raciais, pode ser considerada uma política pública, a ação estatal que busque soluções para o problema das disparidades sociais que separam os diferentes grupos raciais que integram uma sociedade.
As desigualdades, sobretudo, quando elas surgem como reflexo de práticas sociais discriminatórias e representam um obstáculo à superação das relações que se estabelecem de forma assimétrica, quando a parcela da população alvo dessas práticas as sofre pelo simples fato de pertencer a determinado grupo étnico-racial, a ação afirmativa se apresenta como importante instrumento para a anulação dos efeitos dessa discriminação e superação das assimetrias sociais por ela geradas.
Utilizada por diversos países do mundo, as ações afirmativas assumem um papel relevante no enfrentamento das desigualdades sociais. Vale lembrar que as políticas de ações afirmativas, também chamadas de políticas compensatórias, fazem parte das discussões internas do Movimento Negro desde a década de 1980 e, paulatinamente, passaram a ocupar um lugar de destaque em sua pauta de reivindicações, provocando discordâncias entre setores políticos e intelectuais, que divergiam e divergem dessa orientação (FRY et al., 2007).
Nesta direção, em “Ação Afirmativa: um produto genuinamente nacional”, Silva Júnior (2012) identifica que, no início da era Vargas, em 1931, o Brasil aprovou a primeira lei de cotas, a Lei da Nacionalização do Trabalho, a qual determinava que dois terços dos trabalhadores das empresas deveriam ser brasileiros. Mas somente a partir da década de 1990 é que as ações afirmativas assumem no Brasil lugar central na promoção de medidas governamentais que visam à superação da desigualdade racial. Por um lado, impulsionadas pelas demandas políticas específicas voltadas para a população negra, item central das reivindicações do Movimento Negro e, por outro, pela preparação da conferência de Durban, que intensificou os debates sobre o tema e estimulou a apresentação de propostas em torno de políticas afirmativas (JACCOUD, 2008).
De acordo com a definição assumida pelo GTI População Negra, as ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros (BRASIL, 1996).
Uma das principais políticas públicas para a superação das desigualdades étnico-raciais no país refere-se às Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, as quais assumem a forma de políticas educacionais de reconhecimento e de valorização dos povos nos conteúdos de ensino.
Sobre a emergência das Leis 10.639/03 e 11.645/08
As análises críticas relativas à identidade nacional apontam para discursos centrados em narrativas eurocêntricas, sem a devida consideração pela história e pela cultura das populações afrodescendentes e indígenas, estabelecidas no território nacional desde a descoberta do Brasil. Contribuíram para a construção de uma mentalidade de inferiorização dessas populações a ideologia do branqueamento, o mito da democracia racial e o elogio da mestiçagem, no sentido de desvalorizar e apagar a diversidade e as particularidades das populações, indígenas e negras, historicamente dominadas que, embora tenham contribuído à história nacional, seu acesso aos direitos fundamentais foram negados por muito tempo evidenciando desigualdades (JACCOUD, 2008).
Nas duas últimas décadas, o combate ao racismo, à discriminação racial, a xenofobia e as mais diversas formas de intolerância compareceram às agendas de diferentes países e fóruns mundiais, fortalecendo as agendas antirracistas e inclusivas mundial e local, no Brasil, amparadas por um debate público envolvendo organizações governamentais, não-governamentais e movimentos sociais interessados em analisar as dinâmicas das relações raciais no país e elaborar propostas com vistas à superação das desigualdades (CAVALLEIRO, 2006).
Nesse sentido, as Leis 10.639/03 e 11.645/08 representam avanços. Elas alteram a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. A primeira, Lei 10.639/03, estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, nas redes pública e privada, cujo calendário escolar inclui o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Visando resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil, torna obrigatória a inclusão do estudo da História da África e dos Africanos, sua cultura e sua contribuição na formação da sociedade nacional, no conteúdo programático, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História brasileiras. De acordo com Rocha; Silva (2013, p.79)
(…) nunca é demais afirmar que as transformações na Educação se constituem em uma luta coletiva que, para seu pleno êxito, necesssitam do envolvimento e compromisso de gestores públicos e privados, profissionais da educação, ativistas sociais, entre outros sujeitos políticos, para a efetivação de uma política de Estado, visando à construção de um país mais democrático e equânime, que reconheça os Direitos Humanos da população negra, ou ainda como é mais comum afirmar na atualidade, que se promova a igualdade racial no Brasil.
A segunda, Lei 11.645/08, mantém a obrigatoriedade da primeira e acrescenta o ensino da temática História e Cultura Indígena. Traçar historicamente o complexo processo da emergência dessas duas leis é o objetivo da próxima seção. As referidas Leis, seguem sendo investigadas por diferentes pesquisadores na sociedade brasileira (LIPPOLD, 2008; RUSSO; PALADINO, 2016; GRASSO, 2016; COELHO, 2017; ROCHA, 2019).
Relações de dominação e ideologias das desigualdades raciais no Brasil
A contribuição de grupos étnicos distintos, com culturas, valores, visões de mundo, línguas e organizações sociais específicas à formação do Brasil, confere ao país características multiculturais. Isso implica falar do manejo da diferença e de situações conflitantes nas relações sociais no país.
Saraiva (2010) adota a tipologia proposta pelo sociólogo Michel Wieviorka para explicar as experiências vividas pelos três grupos formadores da sociedade brasileira e sua inserção nela: os indígenas; os negros; os brancos. O autor explica que no Brasil vivem populações descendentes das minorias primárias, involuntárias e de populações procedentes da imigração voluntária. Assim, as populações indígenas compõem as minorias primárias, sobre as quais, a partir da “descoberta” do Brasil, os europeus impuseram sua civilidade. A atitude do Estado para com essas populações é marcada, no decorrer dos séculos, sobretudo pela negação de sua identidade. As minorias involuntárias, compostas pela população negra (pretos e pardos) provêm dos africanos trazidos à força das costas africanas a partir de 1538 para servir como mão-de-obra escrava nas lavouras de açúcar, cacau, algodão e nas minas, além da exploração, os africanos foram convertidos em bens materiais.
A abolição da escravatura em 1888 não lhes garantiu melhora das condições de vida, tampouco assegurou sua dignidade, ao contrário, relegou-os à zona rural e à marginalização urbana, negou trabalho e educação, contribuindo sobremaneira para a visão racista resultante da escravidão e suas consequências. Já as populações procedentes da imigração voluntária referem-se aos povos vindos de Portugal e de outros países da Europa, mas também da Ásia e do Oriente médio, atraídos por uma perspectiva de vida melhor. Ao contrário do que ocorreu com os primeiros, estes experimentaram uma ascensão social tal que favoreceu o estabelecimento de relações e processos de conflitos, pautados pelas desigualdades entre os três grupos, marca profunda “nas relações socioculturais e nas estruturas sociais e políticas” do país (SARAIVA, 2010, p. 92).
Ao analisar “a herança e os horizontes da discriminação educacional”, Henriques (2001, p. 27) aponta que, “em termos do projeto de sociedade que o país está construindo, o mais inquietante é a evolução histórica e a tendência de longo prazo dessa discriminação”. Nesse sentido, a escola, “principal instrumento da violência simbólica institucionalizada” configura-se como espaço social marcado por desigualdades pela presença concreta de seus frequentadores: indígenas, negros, brancos, tendo em vista o acesso e o tipo de educação destinado a cada grupo em determinado contexto histórico (SARAIVA, 2010, p. 92).
Assim, no período colonial, a escola foi empregada aos indígenas como meio para aculturá-los, fazendo com que negassem e esquecessem sua língua, cultura e religião. Posteriormente, no início do século XX, a ideologia do branqueamento providenciou o apagamento físico e cultural da matriz negra de povoamento procurando transformar progressivamente o Brasil em uma nação branca, condição sine qua non para seu desenvolvimento, o que para D´avila (2005 apud SARAIVA, 2011, p. 92, grifos do autor),
Trata-se, pela universalização do acesso à educação e por meio da ciência, da medicina e da cultura, de “branquear” a população negra e pobre, vista como portadora de patologias degenerativas, inculcando-lhe, através de práticas escolares paternalistas e autoritárias, normas culturais, de higiene e de comportamento consideradas como adequadas para o modelo eurocentrado de nação desejada.
Diversos estudos sobre o racismo (ROCHA, 2006; CARONE; BENTO, 2002) denunciam que, além do objetivo de justificar a escravidão e o método de administração de escravizados, a ideologia de dominação racial compôs as bases para as teorias que propunham a necessidade do branqueamento da população brasileira. Na tentativa de esconder ou minimizar os efeitos da escravidão, a elite brasileira deu origem a uma ideologia de Estado baseada na mestiçagem, cuja ideia era a harmonia entre as três raças, pilar da constituição do mito da democracia racial.
As estratégias do Estado para constituir o mito foram desde a queima de documentos relacionados à escravidão até a omissão da composição étnico-racial nos recenseamentos demográficos, dando lugar à constituição de uma história oficial na qual as lutas de resistência dos negros à escravidão; as revoltas e lutas populares, bem como suas identidades política e cultural foram reduzidas, descaracterizadas, quando não apagadas (ROCHA, 2006).
Exemplos dos reflexos dessas ideologias podem ser encontrados nos estudos sobre livros didáticos que, desde 1950, vêm contribuindo para a problematização do mito da democracia racial. Em muitos desses livros a presença do negro foi marcada como escravizado passivo, sem mencionar seu passado de pessoa livre antes da escravidão, sua história de resistência e luta por direitos de cidadania que desenvolve até hoje (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003).
Também são motivo de preocupação dos estudiosos sobre os livros didáticos, as formas de abordagem da história e culturas indígenas (RIBEIRO, 2019). Os livros didáticos de História do Brasil, geralmente, ensinaram que os colonizadores europeus foram conquistadores e os índios aparecem como povos de cultura comum entre si, como se todos se comportassem igualmente, não importando qual região habitavam ou qual o seu povo, embora os estudos sobre os povos indígenas revelem a diversidade e pluralidade das sociedades nativas encontradas pelos colonizadores.
A ideia da harmonia entre as três raças e a imagem de um país sem racismo começaram a ser desmontadas a partir de 1950, quando as pesquisas sobre relações raciais, encomendadas pela UNESCO e coordenadas por Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Roger Bastide revelaram os dados das desigualdades sociais e raciais existentes no Brasil (ROCHA, 2006).
A partir da denúncia do mito da democracia, especialmente na década de 1970, o país testemunhou uma ampla mobilização em torno da questão racial, com destaque das diversas entidades do Movimento Negro, trazendo o tema de volta à arena política, fazendo com que os governantes que até então não tinham demonstrado a devida atenção, se atentassem aos problemas das desigualdades raciais (SILVA, 2016).
Reações dos movimentos sociais às ideologias e medidas de combate à desigualdade racial nos governos FHC e Lula
A partir da denúncia do mito da democracia racial, especialmente na década de 1970, o país testemunhou uma ampla mobilização em torno da questão, com destaque das diversas entidades do Movimento Negro, trazendo o tema de volta à arena política, fazendo com que os governantes que até então não tinham demonstrado a devida atenção, se atentassem aos problemas das desigualdades raciais.
Os anos 1980 marcam o avanço nas lutas dos trabalhadores por direitos sociais, quando as reivindicações do movimento social negro começam a ecoar na sociedade. Como resultado dos ativismos social e político do Movimento Negro, no âmbito da Constituição Federal de 1988, podem ser destacadas as seguintes conquistas:
o reconhecimento das contribuições culturais dos diferentes segmentos étnicos; [...] a criminalização do racismo e o direito das comunidades remanescentes de quilombos ao reconhecimento da propriedade definitiva de suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos de propriedade (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 17).
A partir da segunda metade da década de 1990, uma série de medidas começou a ser tomada pelo poder público federal, impulsionada pela “Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela Cidadania e a Vida”, realizada em 20 de novembro de 1995, quando seus organizadores entregaram ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC), um documento sobre a situação da população negra no país, bem como um programa cujas ações estavam voltadas para a superação do racismo e das desigualdades raciais. Na data, por decreto presidencial, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra), cuja instalação ocorreu em 1996. Nesse mesmo ano, o Ministério da Justiça lançou o I Programa Nacional dos Direitos Humanos (IPNDH), que contém um tópico dirigido à população negra, propondo a conquista efetiva da igualdade de oportunidades (JACCOUD; BEGHIN, 2008).
A pressão dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada também impulsionou o atendimento por uma educação diferenciada à população indígena, que adquiriu o direito a uma educação diferenciada, intercultural, bilíngue. Em 1999 foram fixadas as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas. Nesse período o Estado de São Paulo criou o Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra com o objetivo de desenhar e implementar políticas de valorização que facilitem a inserção qualificada da população negra. A partir dessa iniciativa, outros estados (Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul) também criaram conselhos similares (JACCOUD; BEGHIN, 2002).
Observa-se uma intensificação dos debates dentro do governo federal a partir dos anos 2000, em virtude da realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, promovida pela ONU, realizada no período de 31 de agosto a 07 de setembro de 2001, em Durban - África do Sul. A Conferência contou com a participação de mais de seiscentos brasileiros representando instituições governamentais e não-governamentais. Destaca-se o reconhecimento, por parte do governo, as imensas distâncias existentes entre brancos e negros, com base em documentos estatísticos oficiais brasileiros (Ipea). Nessa esteira o Supremo Tribunal Federal passa a considerar constitucional o princípio da ação afirmativa. É instalada uma Comissão Especial cuja missão era apreciar e proferir pareceres acerca do Projeto de Lei 3.198/2000 que “institui o Estatuto da Igualdade Racial em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências”. Vale ainda lembrar que em 2002 o Tribunal Superior do Trabalho implementou reserva legal de vagas nos contratos com serviços de terceiros, com garantia de, no mínimo, 20% de trabalhadores afrodescendentes. Também houve o lançamento do II Plano Nacional de Direitos Humanos, com ações voltadas sobretudo para as áreas da justiça, trabalho e educação e foi criado, por meio de decreto presidencial, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, com o objetivo de implementar uma série de medidas específicas no âmbito da administração pública federal que privilegie a participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência (JACCOUD; BEGHIN, 2002).
O início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), em 2003, marca uma mudança profunda não só na condução das políticas de combate à desigualdade racial, reflexo da conferência de Durban, mas também na relação do Movimento Negro com o Partido dos Trabalhadores (PT) e, posteriormente, com o Estado. A atuação do movimento social negro produziu efeitos significativos no programa e na execução do governo Lula. Pela primeira vez na história do país é criada uma Secretaria Especial, com status de ministério, responsável pela implementação de políticas públicas para a superação das desigualdades raciais no Brasil.
A trajetória do novo presidente e do seu partido político sempre esteve ligada aos movimentos populares de questionamento da ordem vigente. Segundo Rocha (2006, p. 63), “a atuação de lideranças desse movimento dentro do Partido dos Trabalhadores foi decisiva para que a questão da desigualdade racial estivesse presente no programa partidário”. O autor relata que documentos internos do PT comprovam a atuação de setores do movimento social negro brasileiro, evidenciando que o reconhecimento da importância da questão racial dentro das instâncias do partido se deu de forma ativa; foram necessários vários debates para que se constituísse na estrutura partidária a Secretaria de Combate ao Racismo.
É nesse governo que se realiza também a Primeira Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, precedida de Conferências Regionais em todos os estados da Federação, com a participação de militantes, organizações, entidades representativas dos negros, indígenas, amarelos, árabes e ciganos. Avança também o processo de tramitação do Estatuto da Igualdade Racial de autoria do Senador Paulo Paim (PT), antiga aspiração do movimento social negro. No entanto, como dito anteriormente, isso não se deve à benevolência do governo, uma vez que a intervenção política do movimento social negro brasileiro, dentro das forças políticas de apoio ao novo governo, foi decisiva (ROCHA, 2006).
A promulgação da Lei 10.639/03 foi um dos primeiros atos do governo Lula, sancionada pelo referido Presidente e pelo então Ministro da Educação Cristovam Buarque, em 09 de janeiro de 2003. Ela altera a Lei 9.394/96, no seu artigo 26, tornando obrigatória a inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, abrangendo a luta dos negros no Brasil, sua cultura e sua contribuição na formação da sociedade nacional (áreas social, econômica e política) e no artigo 79, o qual tratava apenas dos indígenas, inclui um item referente aos negros: Calendário escolar incluindo o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. No dia 10 de março de 2005, o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer 03/04, que além de regulamentar a lei, institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
De acordo com Saraiva (2010, p. 102), a concepção que emana do Parecer 03/04 “assume o fato de que as diferentes culturas são o produto de relações de poder desiguais e assimétricas e que, nesse sentido, elas não devem ser somente respeitadas ou toleradas, mas também questionadas”.
Como dito anteriormente, uma política pública está envolvida em um processo mais amplo, que envolve diversas etapas, desde a inclusão de determinado problema ou necessidade social na agenda de prioridades do poder público, até sua implementação, acompanhamento e avaliação.
Segundo Cobb e Elder (1995, apud CONCEIÇÃO, 2010, p. 90), os tomadores de decisão utilizam-se da pseudoagenda para aplacar frustrações de grupos de eleitores, ou para evitar consequências políticas advindas de falhas no reconhecimento de algumas demandas, situação que ocorre, por exemplo, para abrandar grupos de ativistas, quando ações inseridas na agenda não são implementadas.
Nesse sentido, vale ressaltar duas importantes questões: a primeira é que se tratava de um projeto de lei de autoria de Ester Grossi (educadora) e de Bem-Hur Ferreira (do Movimento Negro), respectivamente deputada e deputado do PT, apresentado à Câmara dos Deputados sob o nº 259 em 11 de março de 1999, quando o projeto é aprovado e remetido ao Senado, no dia 05 de abril de 20021, ou seja, um projeto que já tramitava nas instâncias do governo. A segunda diz respeito à explicação de Dias (2004, p. 5 e 6) quanto ao fato da promulgação da Lei 10.639/03 ocorrer logo no início do novo governo. A autora explica que tal fato está relacionado a dois fatores: “o primeiro é que o então candidato havia assumido compromissos públicos de apoio à luta da população negra e o segundo é que anunciadas as pastas, não havia nenhuma que tratasse, especificamente, desta população”. Para a autora, a imediata apresentação da Lei 10.639/03, embora tenha respondido a antigas reivindicações do Movimento Negro, ao mesmo tempo teve a função de “distraí-lo com novas preocupações principalmente com a implantação da mesma”.
Contudo, diante das pressões internas e externas, foi cumprida a promessa de criar um órgão responsável por promover a igualdade racial no país. Assim, em 21 de março de 2003, data de comemoração ao Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, cria-se na estrutura do governo, a Seppir - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, transformada em Ministério em fevereiro de 2008, tendo como principais atribuições formular, coordenar e, articular com os demais ministérios e suas respectivas secretarias e órgãos do poder Executivo, bem como parcerias com governos estaduais e municipais, sociedade civil e órgãos internacionais, procurando garantir a transversalidade da questão racial, políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial com vistas à consolidação da temática.
Com base nas pesquisas sobre programas e ações federais com recorte racial é possível afirmar que a área de educação é uma das que mais tem ações consolidadas e, os exemplos aqui apresentados evidenciam um esforço de democratização do ensino no Brasil.
Dentre as ações, merecem destaque as I e II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, cujas propostas serviram de base para a constituição do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Planapir), aprovado por Decreto em junho de 2009. Organizado em doze eixos de atuação, visa apoiar, fomentar, promover e estimular ações para grupos específicos (populações negra, indígena, quilombola e cigana) e segmentos ainda mais específicos dentro desses grupos. É considerado um documento que oficializa demandas passíveis de serem contempladas nas ações e programas implantados pelo governo federal (LIMA, 2010).
Se o primeiro mandato do governo Lula é marcado pela promulgação da Lei 10.639/03, destaca-se no segundo, a promulgação da Lei 11.645, de 10 de março de 2008, a qual acrescenta, ao lado da obrigatoriedade do ensino de história e da cultura afro-brasileira e africana, a obrigatoriedade do ensino de história e de cultura dos povos indígenas, reconhecendo assim, a semelhança de suas experiências históricas e sociais.
Moehlecke (2009) identifica dois momentos distintos no modo como a temática da diversidade cultural na educação foi trabalhada na primeira gestão do governo Lula:
Um primeiro vincula-se à gestão do ministro Cristovam Buarque, em que a diversidade é associada a uma preocupação mais geral com a ideia de “inclusão social”. Um segundo momento pode ser atribuído à gestão de Tarso Genro, quando é criada uma secretaria específica para tratar das políticas de diversidade na educação, mantida pela gestão seguinte, de Fernando Haddad, cuja marca em relação à diversidade foi de continuidade do trabalho desenvolvido por Genro (MOEHLECKE, 2009, p. 467).
A Lei 10.639/03 destaca-se dentre as principais políticas de âmbito federal com recorte racial na educação. Nota-se que grande parte das políticas direcionadas à temática da diversidade cultural estão voltadas para essa lei. Seus desdobramentos contemplam a implantação de ações e programas para efetivá-la nas redes de ensino, cuja implementação está organizada em seis eixos: 1) fortalecimento do marco legal; 2) política de formação para gestores e profissionais de educação; 3) política de material didático e paradidático; 4) gestão democrática e mecanismo de participação social; 5) avaliação e monitoramento; 6) condições institucionais (SECAD, 2005).
A partir do exposto, podemos apreender o importante papel da Seppir e da Secad na consolidação dessa lei, estabelecendo parcerias com diversos órgãos governamentais e não governamentais para a elaboração e execução de projetos para uma educação antirracista, contemplando a diversidade etnicorracial, a exemplo da atenção dispensada ao conteúdo de livros didáticos e a qualificação dos professores como apoio à implantação das leis.
Vale lembrar que a reforma administrativa realizada pelo governo de Michael Temer (12/05/2016 a 31/12/2018), o qual assumiu interinamente o cargo de presidente após o afastamento da presidente Dilma Rousseff, em consequência da aceitação do processo de impeachment pelo Senado Federal, extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, retornando à condição de Secretarias vinculadas ao Ministério da Justiça e Cidadania. A partir daí nota-se que a descontinuidade de programas sociais somada aos cortes orçamentários, à articulação de movimentos conservadores, à crise que afeta a educação pública despontam como retrocessos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que se refere à análise das Leis 10.639/03 e 11.645/08 no âmbito das políticas educacionais das ações afirmativas, a título de conclusão, nesta seção serão expostas duas considerações acerca do objeto deste estudo. A primeira relacionada às definições de ações afirmativas e a segunda ao sistema educacional.
O debate sobre o objeto deste estudo tem se configurado no bojo daquele das políticas afirmativas. A maioria dos envolvidos na temática compreende essas leis como uma política de ação afirmativa, tendo em vista o tratamento dado às questões da população negra e indígena brasileiras.
As ações governamentais com vistas à superação da desigualdade racial, de maneira geral, pairam sob o binômio inclusão/exclusão. O que se pretende é garantir a igualdade, promovendo a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de discriminação. Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas. Há, entanto, que serem feitas algumas considerações, tendo em vista que o combate às desigualdades raciais envolve políticas públicas de diferentes escopos.
Tem-se na atualidade no Brasil, mais de uma década de ações afirmativas desenvolvidas em instituições de ensino superior, visando à garantia de acesso de grupos sub-representados em cursos de graduação, institucionalizada com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), e com a Lei nº 12.711/2012, no que tange às cotas em universidades e institutos técnicos federais (ARTES; UNBEHAUM; SILVÉRIO,2016).
Contamos com avanços, haja vista a adoção de políticas de ação afirmativa na educação superior/pós-graduação. Por exemplo, algumas universidades que adotaram o sistema de cotas na pós-graduação: o Programa de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); o Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB); o Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC-SP (UFABC); o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG); a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb); e a Universidade de São Paulo (USP), com reserva na pós-graduação em Direitos Humanos, entre outras universidades (SILVA, 2016).
De acordo com Jaccoud e Beghin (2010, p. 43), as políticas educacionais para o ensino fundamental demandam a adoção de políticas que visem “ações que têm como objetivo afirmar os princípios da igualdade e da cidadania, reconhecer e valorizar a pluralidade étnica que marca a sociedade brasileira”. Tais políticas devem destacar o papel histórico e a contribuição dos grupos etnicorraciais para a construção nacional.
Diante das definições aqui expostas, é possível considerar que as Leis 10.639/03 e 11.645/08 não configuram no campo das ações afirmativas por duas razões: a primeira é que se trata de políticas de caráter permanente e não transitório; a segunda é que não focalizam apenas a população negra e/ou indígena, mas destinam-se a toda a sociedade.
A diversidade social ocupa as escolas pela presença concreta de seus frequentadores: negros, índios, brancos, adultos e crianças de diferentes idades. Tendo em vista que o compromisso político da educação é um bem público, a igualdade constitui valor fundamental ao ensino. Certamente que a implementação dessas duas leis significou estabelecer novas diretrizes e práticas pedagógicas, reconhecendo a importância e a contribuição das populações negra e indígena no processo de formação da sociedade brasileira. Desse modo, elas devem ser encaradas como parte fundamental do conjunto de políticas que visam uma educação de qualidade e igualitária.
Em janeiro de 2019, a Lei 10.639/2003, completou 16 anos, pode-se considerar que a promulgação desta lei, bem como da lei nº 11.645/08 representam um passo importante na luta contra o racismo. Apesar disso, raramente identifcamos no ensino superior, disciplinas obrigatórias que contemplem as leis.