Introdução
O grande peccado dos catholicos hodiernos é 'não saberem conquistar o seu logar ao sol' e deixar as calumnias e a conspiração do silencio attribuir ao campo adverso todas as iniciativas fecundas e as benemerenciaseducacionaes (Peeters & Cooman, 1937, p. 11, grifo do autor).
Ha, no coração humano recursos incríveis. O que, no tempo de educação, os nossos discipulos não comprehendem, a vida lhes ensinará pelas desillusões que hão de vir; se no educandario que frequentaram estiveram em contacto com mestres vivendo para o ideal christão, as lições então recebidas ficarão no seu sub-consciente e voltarão, com tanto que as nossas orações os acompanhem sempre no caminho que os deve conduzir ao céu (Peeters & Cooman, 1937, p. 177).
Durante a primeira metade do século XX, o combate em torno de concepções de mundo e de sociedade no Brasilera visível. Eram ideias liberais, católicas, protestantes, anarquistas, comunistas que estavam presentes, sendo que os movimentos mais consistentes, sobretudo no campo institucional, eram os de liberais e católicos, que alcançava, mas instituições escolares, dada a centralidade que se considerava que elas tinham nas agendas de formação humana.
Esse quadro de disputa institucional não é plenamente visível em termos legais, dado que, no contexto brasileiro, as instituições escolares, não importando a qual instância promotora do ensino estivessem vinculadas, deveriam respeitar a legislação nacional. Assim, a liberdade de ensino no Brasil correspondia ao respeito às diretrizes gerais emanadas da República. Todavia, a percepção das perdas que poderiam advir do predomínio exclusivo de ideias do campo liberal mais ilustrado, próximas do cientificismo, do civismo, do estatismo e da laicização, levou setores da Igreja Católica nacional a aproximarem-se de ideias religiosas, marcadas pela oposição ao liberalismo e à modernidade, nas quais o papel da Igreja, como exemplo de sociedade perfeita, deveria prevalecer.
Este combate de setores da Igreja Católica às ideias liberais em voga ganhou forma e conteúdo na estruturação de centros de formação e de revistas, mas, também, no estímulo à produção de manuais disciplinares focados na formação de professores, que foram largamente utilizados nas escolas normais brasileiras vinculadas ao catolicismo.
Nesse sentido é que se coloca o objetivo deste texto, que busca compreender os processos sócio-históricos que deram o contorno geral aos combates ideológicos travados na primeira metade do século XX no Brasil, com aprofundamento na forma tomada pela ação de setores católicos, no que se refere à divulgação de ideias junto à população e, principalmente, junto às futuras professoras, que frequentavam o grande número de Escolas Normais vinculadas à Igreja Católica em todo o país, o que foi feito, particularmente, por meio da eleição para exame de dois manuais disciplinares muito disseminados na época, Noções de sociologia, publicado em 1935, com autoria da Madre Francisca Peeters, e Educação (história da pedagogia). Problemas actuaes, publicado em 1937, em coautoria das Madres Francisca Peeters e Maria Augusta de Cooman, ambas religiosas de Santo André1.
As reações de setores católicos as ameaças de radicalização liberal no Brasil
O embate no campo educacional de católicos e liberais foi travado basicamente em torno da possibilidade de predominar uma visão de laicização da educação escolar no país, o que se deu, principalmente, no período de 1891 a 1932. De um lado, estavam os liberais que propugnavam a obrigatoriedade, a laicidade e a gratuidade de instrução e, de outro, a Igreja, defendendo a sua permanência e influência sobre a sociedade brasileira, por meio também de suas ações e projetos educacionais.
Todavia, ante a separação da Igreja e do Estado, advinda da legislação republicana do final do século XX, setores católicos buscaram estabelecer uma estratégia de ação política cujos meios seriam a educação do povo pela religião e doutrina cristã, utilizando, como uma das estratégias, a formação de professoras nas Escolas Normais católicas, sendo que as professoras formadas nestas instituições, posteriormente, atuariam em escolas primárias de todo o país.
Essa movimentação de setores católicos importantes fazia parte das propostas de restauração da Igreja, conforme salienta Azzi (1994), de não aceitação de novas perspectivas ou orientações que não aquelas que estivessem presentes na história da Igreja, manifestando o desejo de reconduzir a instituição eclesiástica a um modelo antigo, no qual se integrava consciência da hierarquia eclesiástica à intenção de ser o poder espiritual que colaborava com o Estado. Esse movimento nacional da Igreja corresponde principalmente às encíclicas papais veiculadas no período compreendido entre 1895 e1940, às quais tinham o propósito de dar unidade à Igreja em Cristo e de fortalecer a Igreja Romana, por meio dos ensinamentos da fé, que aspiravam à reconstrução, caso ainda possível, do ensino religioso na administração e no currículo, caminhando paralelamente com o Estado. Nessa direção, de acordo com Zagheni (1999), a finalidade da Igreja do século XIX em sua relação com os Estados liberais consistiria na defesa dos valores cristãos, tendo como meta a sua permanência na sociedade.
No caso brasileiro, há antecedentes importantes, pois a restauração católica nacional foi implantada, a partir do final do século XIX, motivada pela Questão Religiosa, que teve a participação de lideranças católicas importantes, Dom Vital e Dom Macedo Costa, conservadores, intimamente ligados a Roma, adeptos dos ensinamentos do papa Pio IX, com intolerância à maçonaria e aos grupos religiosos rivais, bem como com insistência na obediência à hierarquia no âmbito da Igreja. Essa nova orientação gerou conflito no interior da Igreja e, também, levou a um dos mais sérios desentendimentos entre esta e o Estado, pelo estímulo, a partir de Roma, para que se desenvolvessem práticas pastorais mais plausíveis, com parte do clero brasileiro buscando afirmar sua autonomia frente ao Estado (Mainwaring, 2004).
Esse episódio conteve, segundo Bruneau (1974), três motivos para que o governo republicano afastasse a Igreja da autoridade pública. O primeiro seria a mencionada Questão Religiosa, que demonstrou aos governantes que a união entre Igreja e Estado não lhes era favorável, pois aquela participara de um regime que havia acabado de ser destituído, o império. O segundo motivo era que a Igreja tinha influência frágil durante o império, não tendo sido capaz de inovar, não apresentando, pois, interesse para os republicanos. E, por fim, por duas correntes que tinham especial importância para o novo regime, o positivismo e o cientificismo, que não possuíam congruências históricas com o catolicismo ou com a Igreja.
Esse contexto que favorecia a separação entre Igreja e Estado a levaria a mesma a lutar contra o processo de laicização, o que faria por meio das seguintes estratégias principais: a organização e ampliação de dioceses e arquidioceses, pois, em um país de vasto território, a cobertura da Igreja consistia fisicamente impossível, sobretudo, com apenas 11 dioceses e uma arquidiocese; a fundação de novos seminários, com auxílio da Santa Sé, estimulando as atividades dos vicentinos, jesuítas e lazaristas, pela falta de vocação no país que impedia o crescimento dos seminários.
Além disso, com a crise de muitas congregações religiosas na Europa, decorrente do progresso do laicismo e do liberalismo, a Igreja encorajou diretamente as ordens religiosas a encaminharem padres, freiras, irmãos e irmãs para o Brasil, sendo que uma dessas congregações religiosas foi a Congregação Santo André, da qual faziam parte as Madres Peeters e Cooman, autoras dos manuais disciplinares que são o objeto privilegiado neste texto.
Outro fator importante para a Igreja Católica foi a publicação das 11 cartas pastorais lançadas entre 1900 e 1945, em uma fase de organização e constituição de um grande projeto da Igreja, que se dava por meio da divulgação dessas cartas pela imprensa, pois que elas consistiriam em instrumentos de difusão, instrução, educação, respondendo à necessidade de espalhar a semente da doutrina, em um país onde não existiam outros meios com eficiência semelhante. Com isso, buscava-se conquistar a autonomia em relação ao Estado e modernizar-se, de acordo com os princípios e as orientações de Roma.
No intuito de tornar real a reação católica no Brasil, foram implementados, em 1921, a revista A Ordem e, em 1922, o 'Centro Dom Vital'2. Empreendimentos estes que receberam a contribuição de intelectuais do clero e da sociedade brasileira, com a função de divulgação da doutrina e da projeção da construção de uma cultura católica, o que foi feito por meio da criação de uma biblioteca e de um serviço de informações bibliográficas, bem como da publicação de livros de apologia e outros títulos coerentes com os interesses católicos. Desse modo, o impresso era difundido com vistas à eternização dos valores, dos comportamentos, dos discursos que vivificaram e formaram as sociedades. À frente desse movimento, estavam Dom Sebastião Leme, o clérigo Júlio Maria, Jackson Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, todos eles com atuação relevante no seio das estratégias de reação e de restauração católica na época3.
No contexto da pretendida restauração católica, como contraponto direto, havia os liberais, intencionados na promoção de reformas do ensino que buscariam a obrigatoriedade, a laicidade, a cientificação e a gratuidade do ensino. Eles acreditavam na educação como fator de progresso da sociedade e de controle da população, visto que a escola poderia tornar-se um instrumento perigoso; ao redefinir seu estatuto, seria possível superar os obstáculos que estariam impedindo a caminhada da sociedade para a nova ordem (Carvalho, 1989). Ao dar ênfase à importância do processo de escolarização, os liberais preparavam o terreno para que determinados intelectuais e educadores, em especial os educadores profissionais que apareceram na década de 1920, formassem um programa mais amplo de ação social, no qual a escolarização era concebida como a mais eficaz alavanca modernizadora da história brasileira.
A constituição de um campo educacional, na década 1920, foi marcada por grandes iniciativas na área do ensino, tais como as reformas educacionais em diversos Estados da federação: em São Paulo, em 1920; no Ceará, entre 1922 e 1923; na Bahia, em 1924; no Rio Grande do Norte, entre 1925 e 1928; no Paraná, entre 1927 e 1928; em Minas Gerias, em 1927; no Distrito Federal, entre 1927 e 1930.
Conforme Paiva (2003), esses profissionais da educação estavam preocupados com a remodelação dos sistemas estaduais de ensino, buscavam a melhoria da qualidade de ensino, defendiam uma educação norteada pelos princípios da Pedagogia Nova e com uma adequada administração de ensino. À frente desse movimento de renovação estavam, principalmente, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
Como forma de organização associativa dos educadores, desde 1924, existia no cenário brasileiro a Associação Brasileira de Educação (ABE) que representava, de maneira institucionalizada, a discussão dos problemas da escolarização em âmbito nacional, cujas reuniões pressionavam o Estado para implementar suas propostas. De acordo com Saviani (2007), a proposta da ABE era ser um órgão apolítico, dedicado a congregar os interessados na causa da educação, independentemente de doutrinas filosóficas ou religiosas ou de posições políticas. Como não tinha vínculo político, a associação contribuiu em termos intelectuais para dar oportunidades a debates sobre reformas, para estudos sobre problemas educacionais, constituindo, também, um instrumento de difusão dos pensamentos pedagógicos europeu e norte-americano no Brasil4.
Todavia, nesse contexto, de aproximação e, depois, de embate entre católicos e liberais, adentramos na Revolução de 1930, que daria início à era Vargas. De fato, Getúlio Vargas percebeu a força dos movimentos católicos, bem como o apoio que poderia ser angariado ao projeto de poder que ele representava. Para Velloso (1978, p. 22), “[...] ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou povo não reconhecerá o Estado”. Por outro lado, a Igreja pretendia ter maior relevância no conjunto das demais instituições, pois que ela representaria os interesses da maioria.
Em 1932, os liberais em prol da educação obrigatória, do ensino leigo, da escola única e da coeducação dos sexos lançaram o Manifesto dos pioneiros da educação nova, com o propósito de orientar 'A população e o Governo' sobre 'a reconstrução educacional no Brasil'. Dessa forma, eles buscavam delinear as diretrizes de uma política nacional de educação e ensino, compreendendo os principais aspectos, modalidades e níveis.
Os católicos, por sua vez, continuavam a influenciar o sistema educacional, tendo obtido ganhos consideráveis no texto da Constituição de 1934, por meio das 'emendas religiosas', tais como a indissolubilidade e os efeitos civis do casamento; a presença de capelães nas Forças Armadas; os subsídios do Estado para as escolas católicas; a inclusão do ensino religioso de frequência facultativa e ministrada conforme os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis5.
A Igreja Católica, desse modo, firmava uma aliança com o poder instituído, centralizado na figura emblemática de Getúlio Vargas, o que desembocaria no Estado Novo, que perdurou de 1937 a 1945, com consequências importantes para as instituições escolares que, mesmo estando vinculadas ao Estado ou à sociedade civil, tinham o ensino religioso presente no cotidiano escolar.
A Congregação Santo André: as Madres Peeters e Cooman no Brasil
As irmãs de Santo André são uma antiga congregação católica que foi fundada em 1231, na cidade de Tournai, na época sobre domínio da coroa francesa, e que, atualmente, está situada na Bélgica. Foi criada a partir da iniciativa de duas irmãs, que, ao fazerem votos de pobreza, decidiram abrir uma estalagem em Saint Nicolas Du Bruille, vizinha da Igreja com o mesmo nome, com o intuito de hospedar romeiros pobres que se dirigiam à Terra Santa, dando-lhes alojamento e comida6.
As irmãs da Congregação Santo André foram influenciadas pela doutrina pedagógica de Fénelon, na qual a educação das mulheres deveria ser realizada nos mosteiros, tendo como princípios a privação e a repressão. Portanto, o ato de aprender a ler, a escrever, as regras elementares de aritmética, a poesia e a música teriam tríplice função: ser mulher, ser doméstica, ser mãe, por conseguinte, exclusivamente voltada à moral particular e não coletiva, mas com finalidade social. Fénelon recomendava ainda que a formação da mulher seguisse os princípios e dogmas da religião católica, por meio de histórias sagradas, da leitura da Bíblia, tornando-a forte e cristã, destinando seu coração para Deus, com simplicidade. Seguindo o princípio de Fénelon, as irmãs religiosas passaram a viver enclausuradas e adotaram as orientações da Regra de Santo Agostinho - pobreza, castidade, obediência, desapego do mundo, repartição do trabalho, dever mútuo de superiores e irmãos, caridade fraterna, oração, abstinência comum e proporcional à força do indivíduo, cuidado aos doentes, silêncio, leitura e vida em fraternidade7.
Além dos princípios de Fénelon, as irmãs religiosas de Santo André buscaram, em 1837, seguir as regras da Constituição de Santo Inácio, tornando-se missionárias da 'Companhia de Jesus', tendo como fundamento serem missionárias 'ao serviço divino e ajuda às almas' e como meta e lema 'a maior glória de Deus'. Numa visão inaciana, a figura de Maria serve de exemplo - para o trabalho de acolhimento, com generosidade e fortificação de Deus, e com o propósito de contribuir em sua obra redentora, reconhecendo a atuação libertadora na análise que faz da realidade e, sustentada nos discípulos, na crise desencadeada pela paixão de seu filho (Constituição da Companhia de Jesus, 1997). Para os inacianos, o campo educacional e as instituições educativas consistiriam em colaboração da missão de Cristo e da Igreja, buscando a excelência humana e técnica, com oferta do melhor ofício, pelas metas, atitudes e procedimentos. No apostolado educativo dos jesuítas há compreensão do trabalho educativo como tarefa evangelizadora, que impulsiona o novo sujeito apostólico a impregnar-se do sentido de missão que poderia encontrar na vivência dos exercícios espirituais.
Com essa tarefa evangelizadora, em 16 de setembro de 1913, a Madre Superiora Geral das Religiosas de Santo André recebeu uma carta por intermédio do padre Antônio de Menezes, que foi encarregado pelo bispo de São Carlos do Pinhal, no Estado de São Paulo, D. José Marcondes Homem de Mello, de solicitar a abertura de colégios em sua diocese e lhe determinava o encarregava de buscar na Europa duas congregações que aceitassem o convite.
Para compreendermos os motivos ea aceitação desse convite, é necessário abordar dois pontos fundamentais. O primeiro está relacionado aos acontecimentos na França, onde houve a consolidação de um Estado laico, sobretudo, a partir da instituição das propostas dos ministros Pierre Waldick-Rousseau e Émile Combes, entre 1899 e 1905, que levariam ao fechamento de inúmeras instituições de ensino católicas. Conforme Zagheni (1999), desde 1904 e, sobretudo, a partir da lei de 1905, o Estado francês impôs gravíssimos impedimentos às atividades da Igreja, tais como a abolição do ensino católico, o fechamento de 12 mil escolas católicas, a exclusão de congregações religiosas, o confisco dos bens da Igreja (até mesmo Igrejas e casas paroquiais tiveram que entregar os locais de culto para associações) e a ruptura das relações diplomáticas com a Igreja romana. Isso culminou com muitas congregações religiosas buscando continuidade em outros países.
O segundo ponto está relacionado à política expansionista da Igreja Católica no Brasil, que no período buscava levar a termo um processo de descentralização do poder eclesiástico, sobretudo, diante da perda dos privilégios que eram mantidos pelos proventos governamentais no período imperial, o que tornava importante que a Igreja Católica se expandisse por todo o território brasileiro, por meio de uma organização eclesiástica que fosse bem sucedida, com características sociais e princípios doutrinários e iniciativas, tais como sacramentar formaturas, inaugurações, benzer prédios públicos, gerir hospitais, dispensários e asilos.
Assim, sem o respaldo do novo regime republicano, a hierarquia da Igreja Católica resolveu concentrar seus esforços e investimentos na área social que estivesse mais próxima de sua influência. Por essa política, a Igreja Católica buscava implantar em todos os Estados brasileiros pelo menos uma diocese e dispor de um sistema interno de governo que se pautasse no atendimento ao requisito mínimo para o funcionamento de uma diocese e na concentração de recursos organizacionais: dignitários, seminários, escola e funcionários (Miceli, 1988).
Nesse sentido, a atuação de D. José Marcondes Homem de Mello foi marcante, por meio de sua ação político-social e histórico-eclesial, ao perceber que a cidade de Jaboticabal, em São Paulo, estava em pleno desenvolvimento com a chegada da ferrovia e a produção do café, o que possibilitava a produção agrícola e a criação de gado, com a circulação de mercadorias nas cidades mais próximas e mesmo em cidades de Minais Gerais. Constatados o progresso e o desenvolvimento, viu-se a possibilidade de recursos disponíveis dos fazendeiros e industriais para a manutenção e construção de suas obras de caridade. O costume era que, ao realizar festas ou cerimônias pelas municipalidades locais, os representantes da Igreja Católica recebessem as pessoas abastadas e, na ocasião, divulgassem as obras da Igreja, para, em seguida, angariar donativos.
Nesse contexto, a Madre Superiora Geral das Religiosas de Santo André aceitou o convite e encaminhou para o Brasil, em 22 de janeiro de 1914, Madre Lúcia Maria Doyle (Angelina Doyle), irlandesa, e as irmãsreligiosas Francisca Peeters (Elizabeth Peeters), Lucy Chopinet, Ana Schockaert (Elisa Shockaert), belgas, e a irmã religiosa Alice Corradini (AdéleCorradini), que chegaram a Santos, no Estado de São Paulo, em 11 de fevereiro de 19148.
De acordo com matéria publicada em 1914, pelo Jornal Colombo, da cidade de Jaboticabal, no Estado de São Paulo, a instituição de ensino tinha sua razão de ser: “Os Paes que não podem mandar as suas filhas para colegios longínquos, afastadas do seu afectto e da sua orientação directa, já não soffrerão mais o martyrio de vê-las com os espíritos estiolados a míngua de uma provida e útil cultura mental [...]” (1914, p. 1). Dessa maneira, o colégio, para as famílias dessas moças, consistiria em investimento na preservação de seu capital moral e na garantia da educação de suas filhas com boas maneiras, em boas companhias e em um local considerado uma extensão do ambiente doméstico.
O colégio iniciou suas atividades em 02 de março de 1914, em uma casa alugada, acolhendo 13 alunas, com uma educação voltada para a formação dos cidadãos no caminho do bem e da fé cristã. A construção do prédio próprio (atual colégio) teve início em 1920, para onde se mudaram as religiosas em 1923, com maior número de alunas. Em 1925, o colégio solicitou a concessão da Escola Normal e, em 1928, recebeu a aprovação, conforme foi publicado no Diário Oficial de 29 de fevereiro de 1928.
Na Escola Normal, Madre Francisca Peeters9 assumiria a competência de várias disciplinas, tais como, Francês, Geografia, História Geral, Inglês, Matemática, Biologia e Sociologia. Além disso, ela secretariava a escola. Madre Maria Augusta de Cooman10, por seu turno, veio para Brasil, em 1916, no4 grupo de irmãs religiosas, atuando como professora de Latim, Matemática, Francês, História, Natural, Química e Sociologia e, ainda, exercendo as funções de contadora, secretária e bibliotecária, bem como o cuidado das alunas em regime de internato.
Madre Peeters foi autora do manual disciplinar destinado à Escola Normal, intitulado Noções de sociologia, publicado em 1935, e coautora de outro manual também destinado à Escola Normal, intitulado, em sua primeira edição, de 1937, Educação(história da pedagogia). Problemas actuaes, em parceria com Madre Cooman. Além disso, Madre Peeters foi autora do livro de meditação intitulado Sereis minhas testemunhas, publicado pela Companhia Melhoramentos, em 1939. Este último livro refere-se à vida cristã que alunas de colégios católicos deveriam seguir, demonstrando a importância para a formação da alma dessas moças que estudavam em colégio católico. Como um manual de piedade, trazia fórmulas breves que não provocavam uma reflexão mais profunda das educandas, mas que serviam à formação do caráter. Servia como guia para meditação no dia a dia das moças e de suas famílias.
Dois manuais disciplinares da Escola Normal Católica brasileira
As primeiras edições dos manuais disciplinares Noções de sociologia (1935) e Educação (história da pedagogia). Problemas actuaes (1937) eram apresentadas como 'Edições da Casa' pela Editora-Proprietária Comp. Melhoramentos de S. Paulo (Weiszflog Irmãos Incorporadora) e, portanto, não integravam coleções e séries especiais publicadas pela editora. Na época dos lançamentos, constavam, inclusive, na quarta capa, os preços de venda dos livros, em ambos os casos, 8$000 (08 mil réis). Todavia, a partir da segunda edição, que foi revista, nomeada então Pequena história da educação (Peeters & Cooman, s.n.), constava da capa e da quarta capa do livro que ela pertenceria à Biblioteca de Educação, sob o número 36, que era organizada por Lourenço Filho, da Universidade do Brasil.
O manual Noções de sociologia, redigido por Madre Peeters, teve sua primeira edição em 1935, trazendo na capa S. Thomaz de Aquino. Constam do verso da folha de rosto do manual: o NIHIL OBSTAT, lavrado em Jaboticabal/SP, em 09 de fevereiro de 1935, concedido pelo censor, P. Carlos Rocha; o IMPRIMATUR, lavrado em Jaboticabal/SP, em 09 de fevereiro de 1935, concedido pelo Bispo Diocesano, Arcebispo Antonio; o IMPRIMATUR, lavrado em Jaboticabal/SP, em 13 de junho de 1935, concedido pelo Vigário Geral, Mons. Ernesto de Paula. O prefácio da primeira edição foi assinado por um ex-seminarista, Aurélio Arrobas Martins.
Neste manual há um guia de apresentação e, logo após, há uma advertência preliminar, com uma página e meia. De modo geral, o manual possui uma série de capítulos curtos. Ele é iniciado por uma Introdução, que discorre sobre a sociedade, por meio de quatro capítulos. A primeira parte aborda a sociedade doméstica, especificamente, a questão da família, com cinco capítulos. A segunda parte refere-se à sociologia econômica, com cinco seções: os agentes da produção; a organização da produção; a repartição (do qual consta 01 capítulo intitulado 'Refutação do communismo'); a circulação. A última seção não possui título e tem apenas um único capítulo. Na terceira parte, o assunto é a sociologia política, com oito capítulos. Aparte quarta refere-se à sociedade religiosa, com quatro capítulos. Por último, a quinta parte, quando a temática abordada é a sociologia educacional, com duas seções. A primeira, nomeada 'Os systemas philosophicos e seus processos educacionaes', da qual consta um texto intitulado 'Um socialista radical: John Dewey: suas idéias e seus princípios de educação'. A segunda seção, intitulada 'Grupos Sociaes que collaboram na obra da educação', com uma introdução e cinco capítulos, com destaque para a abordagem de temáticas tais como família; escola; Estado e escola; Igreja e Educação.
Em 1937, foi publicado outro manual disciplinar, desta vez, vinculado à área de História da Pedagogia, sob o título de Educação (história da pedagogia). Problemas actuaes, com autoria das Madres Peeters & Cooman, o que ocorria há apenas quatro anos de distância da publicação, em 1933, do manual intitulado Noções de história da educação, de Afrânio Peixoto, considerado o primeiro manual disciplinar que ganhou ampla circulação na área de História da Educação produzido no Brasil, todavia, com corte analítico laico e cientificista11.
A primeira edição deste manual disciplinar, redigido pelas Madres Peeters e Cooman, trazia na capa a figura de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, cujas normas e diretrizes eram seguidas pela Congregação Santo André. A imagem de Loyola foi suprimida da segunda edição, possivelmente de 1952, que foi revisada e que também trouxe a mudança de título, passando a ser Pequena história da educação.
Sem dúvida, este manual disciplinar teve ampla circulação, dado que houve dez edições do mesmo, com início em 1937e término em meados da década de 1970, sendo adotado nas Escolas Normais e em alguns cursos de formação de professores oferecidos por instituições de educação superior (Bastos, 2006).
Após a folha de rosto, o manual traz o Imprimatur, concedido pelo Arcebispo-Bispo diocesano Antonio, lavrado em Jaboticabal, no Estado de São Paulo, em 14 de dezembro de 193612. Em seguida há um prefácio, que foi redigido pelo padre Lúcio José dos Santos, com data de 17 de março de 1937. Depois, as autoras publicaram um pequeno texto, de uma página, nomeado 'Duas Palavras', do qual destacamos a frase emblemática a seguir:
O grande peccado dos catholicos hodiernos é 'não saberem conquistar o seu logar ao sol' e deixar as calumnias e a conspiração do silêncio attribuir ao campo adverso todas as iniciativas fecundas e as benemerencias educacionais (Peeters & Cooman, 1937, p. 11, grifo do autor).
A primeira parte, intitulada 'Esboço de História da Educação', contém uma introdução e 19 capítulos. A segunda parte recebeu o título de 'Um punhado de problemas educacionaes'. Na primeira parte, foi traçada uma evolução da educação no mundo, com início no Oriente, passando, em seguida, pela Grécia e por Roma antigas; cristianismo; renascença; reforma e contrarreforma; naturalismo rousseniano; estatismo e nacionalismo; psicologismo pedagógico; naturalismo científico; sociologismo educacional radical; escola ativa; reação espiritualista; educação no Brasil. Na segunda parte, foram abordados os problemas educacionais: escala de valores; o eixo da escola (criança, mestre, Deus); psicologismo ou psicologia; escola ativa. Na segunda edição, de 1952, houve algumas alterações, sendo a principal delas o acréscimo de um apêndice, intitulado 'Histórico da educação da mulher nos tempos modernos', e a eliminação 'Um punhado de problemas educacionais', com alguma incorporação ao longo dos diferentes capítulos do texto que corresponderia à segunda parte do texto que constava na primeira edição.
A partir da análise do conteúdo de ambos os manuais, Noções de sociologia e Pequena história da educação, buscamos compreender as críticas realizadas pelas Madres ao liberalismo, em especial, ao vínculo deste com o naturalismo, o cientificismo e o deísmo, com o objetivo de conhecer melhor as formas tomadas pelos combates travados pele Igreja Católica no Brasil para permanecer no campo educacional e, portanto, no campo cultural e na sociedade. Assim, na visão das Madres Peeters & Cooman (1937, p. 54, grifo do autor).
[...] o contato com os pensadores gregos tendia para a deificação do homem que devia tornar-se a medida de tudo. Entre a sua consciencia e Deus, não queria mais intermediario; a Igreja não era mais aos olhos de muitos a interprete das ordens divinas. A personalidade humana encontrava nas obras latinas e gregas a sua consagração. A consequencia desta nova mentalidade foi o ressurgir da 'Educação Liberal'.
Essa constatação da gênese do problema em relação à Igreja Católica, estabelecido no terreno do natural, do científico e do deísmo, encontrou motivação sobretudo, nas grandes navegações, com a abertura pelos europeus de novas fronteiras, por meio das quais conheceram novos continentes, povos e culturas, levando às descobertas de religiões não cristãs. Isso possibilitou que os estudiosos da época pudessem comparar essas novas religiões com o cristianismo, encontrando semelhanças nos princípios e concluindo que não existiria uma religião básica para os homens, dependente da Bíblia e dos sacerdotes (Cairns, 1995).
Segundo consta em Japiassú & Marcondes (1991, p. 66), o deísmo é uma doutrina “[...] fundada na religião natural e admitindo a existência de Deus, não enquanto ele é conhecido por uma revelação ou por qualquer dogma, mas enquanto constitui um ser supremo de atributos totalmente indeterminados”. Como uma das vertentes do deísmo, há o naturalismo, que é muito criticado pelas Madres Peeters & Cooman (1937, p. 106-107, grifo do autor).
O axioma fundamental do naturalismo: 'Não há differença de natureza entre o homem e o animal' inspira toda a doutrina educacional dos seus adeptos. Dora em diante, não será mais o espirito que deve dominar: o corporal subjuga o espiritual. Como consequencia logica, a 'Religião' não tem mais razão de ser, e todo o esforço do Naturalismo convergirá contra todas as 'superstições dogmaticas': creação, existencia de Deus, da alma, de todas as verdades reveladas. A Sciencia (com 'S') é destinada a resolver todos os enigmas da vida! Só ella, segundo Renan, 'terá o direito de redigir Credos'. Com a Religião, deve a Philosophia ser exilada do programa dos estudos: a philosophia apoia-se em princípios; a Sciencia, em factos...aliás a philosophia não é democratica: sua linguagem technica é incomprehensivel, emquanto a Sciencia fala a lingua simples do bom senso. O que a Sciencia não é capaz de resolver, é o desconhecível. Destruido o império da religião e da philosophia, o 'Homem' também fica diminuido: não tem alma; é um animal evoluido, sem liberdade, desde que suas decisões e acções são determinadas pelos reflexos do systema nervoso, pela hereditariedade, pela adaptação ao meio; e a educação reduz-se a favorecer esta adaptação e o desenvolvimento physiologico.
Desse modo, no deísmo, o universo seria como um imenso relógio, o qual Deus, como um relojoeiro, criou, deixando-o funcionar por conta própria. Deus é entendido como um motor, uma força propulsora inicial, semelhante ao primeiro motor imóvel, mas desnecessário e inacessível depois do primeiro impulso. Nesse sentido, as Madres Peeters&Cooman assinalam que um deísmo “[...] vago e sentimental” (1937, p. 105) dos pensadores do século XVIII atacava a religião revelada, tendo como consequência
[...] proclamar a independencia do homem, a autonomia da razão, a bondade nativa delle, para chegar emfim ao liberalismo a progressão era natural. O indifferentismo religioso ia nascer destas tendencias; ora, se o homem pode escolher a religião que lhe aprouver, e manifestar livremente todas as suas opiniões, era natural tambem que o Estado se proclamasse indifferente e deixasse de lado na educação das crianças, nas escolas publicas o que era tão essencial a toda a existencia humana: a idéa de religião (Peeters & Cooman, 1937, p. 105).
As Madres explicitam rejeição ao liberalismo, tendo como contraponto a concepção católica de educação, pois o liberalismo, ao dar independência ao homem na escolha de sua religião, deixa de orientar a vida espiritual da criança no sentido religioso, abandonando o princípio do crescimento interior, a evolução espiritual contínua e a sua punição com rigor por meio dos erros e dos pecados.A crítica ao liberalismo também está presente em Peeters (1935, p. 123), por meio da afirmação de que “A Igreja não pode em absoluto aprrovar as pretensões do homem á completa autonomia [...]”, sendo que a instituição católica deveria recorrer à condenação do liberalismo realizada na época do papa Pio IX, por meio do Syllabus, publicado em 186413.
De modo bastante amplo, o liberalismo é conceituado por Abbagnano (1998, p. 604) como uma doutrina “[...] que tomou para si a defesa e a realização da liberdade no campo político. Nasceu e afirmou-se na Idade Moderna e pode ser dividida em duas fases: a primeira, do século XVIII, caracterizada pelo individualismo; e a segunda, do século XIX, caracterizada pelo estatismo”. Desse modo, o liberalismo é definido como liberdade, compreendida como ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos; a escolha dessa liberdade é o valor supremo, não dependente de razões religiosas e de natureza metafísica. No que se refere ao individualismo, Silva (1987, p. 689) o define como a “[...] crença de que o indivíduo é um fim em si próprio e, como tal, deve compreender seu ego e cultivar seu próprio julgamento, apesar das pressões sociais no sentido da conformidade”.
Em dado momento, Madre Peeters aborda Rousseau (1712-1778), sendo ele um liberal que tem contrato fundamentado na liberdade, que assegura seu exercício, por meio de dois princípios: o primeiro, o livre consentimento dos homens “[...] é a única fonte de toda autoridade legitima. Assim os cidadãos respeitando a ordem que estabeleceram só obedecerão a si mesmo” (Peeters, 1935, p. 104); o segundo, os poderes públicos “[...] deverão garantir a maior soma possivel de liberdade. A missão do Estado limita-se em assegurar a cada um o livre exercicio dos seus direitos e das suas liberdades” (Peeters, 1935, p. 104). Para a autora, Rousseau era contraditório, o que fazia dele “[...] a um tempo o promotor da liberdade individual ou do absolutismo democratico” (Peeters, 1935, p. 104). Ainda no que se refere a Rousseau, as Madres Peeters & Cooman (1937) o tomavam como um representante da corrente naturalista, que na qualidade de um “[...] genio, romantico e desequilibrado imprimiu, graças ao seu enorme poder de emotividade e á sua sentimental sympathia para o povo, um movimento de revolta contra as desigualdades sociaes” (Peeters & Cooman, 1937, p. 83). Além disso, Rousseau admitia a religião como “[...] uma parte essencial da sociedade humana; mas a baseava unicamente na natureza humana: reverencia para um Ser Supremo, crença na immortalidade da alma, e respeito para a moral pregada pelo Catholicismo, excluindo, todavia, os seus fundamentos sobrenaturaes” (Peeters & Cooman, 1937, p. 84).
Para Madre Peeters, no entanto, somente a tese católica tem o poder de responder à verdade: “[...] a sociedade sendo instituição natural, e por conseguinte a um tempo divina e humana, Deus quer a autoridade sem a qual a propria sociedade não poderia existir” (Peeters, 1935, p. 105). Peeters afirma que “[...] dizer que o poder vem de Deus, quer dizer, pois, que sendo Deus o Autor da natureza humana e da sociedade, a autoridade que é parte essencial desta, faz tambem parte do plano providencial” (Peeters, 1935, p. 105).
Outra frente de críticas diz respeito à ciência, pois, para Madre Peeters (1935, p. 161), tempos atrás aplaudia-se Comte “[...] o qual se propunha estabelecer o templo da Humanidade deificada sobre os pilastres da philosophia positiva, deixando para os sonhadores, as mulheres e os derrotados da vida, a canção lenitiva da fé católica!!!”. Todavia, no início do século XX, Madre Peeters apontava existir maior compreensão entre religião e ciência, mas demonstrava incômodo com a dificuldade de esse espírito também se fazer presente no âmbito da instrução pública, em que “[...] continuam a destillar para as massas o veneno do scepticismo e apregoam para os simples a velha these da incompatibilidade da sciencia e da religião” (Peeters, 1935, p. 162).
John Dewey (1859-1952), por sua vez, era considerado pelas Madres Peeters & Cooman (1937) representante da corrente radical socialista dos Estados Unidos. Para elas, Dewey advogava que “[...] a escola deve acompanhar a triplice revolução pela qual passa a vida moderna: revolução intellectual pelo incremento das sciencias physicas e naturaes; revolução industrial pela technica moderna; revolução social pela democracia” (Peeters & Cooman, 1937, p. 111), sendo que “[...] sua reforma pedagógica consiste em fazer da escola um centro de educação social” (Peeters, 1935, p. 175).
Para Dewey, segundo afirmava a Madre Peeters, “[...] o professor era o centro da escola. A criança deve tornar-se este centro, agir, produzir, e produzir em comum” (Peeters, 1935, p. 175). Dewey estava “[...] persuadido de que, adquirindo o saber pela iniciativa propria, pela experiencia, pelo espirito de cooperação, o methodo de ensino será moralmente formador” (Peeters, 1935, p. 175). Segundo a autora, ele representava havia um tempo o socialismo radical e o americanismo, e sua qualidade de americano se revelava, sobretudo,
[...] pelo 'pragmatismo' e o 'experimentalismo'. 'Pragmático', Dewey considera a verdade como simples instrumento de acção. Não é a theoria que deve dirigir a pratica; é a pratica que precede. 'Experimentalista', se bem que inimigo das experiencias de laboratorio, de que estão abusando agora, - Dewey está convencido de que agir scientificamente é agir experimentalmente. Tudo deve passar pelo crivo da experiencia para ser acceito (Peeters, 1935, p. 175, grifo do autor).
Segundo as Madres Peeters e Cooman, Dewey propunha a superação da escola antiga, na qual, o pensamento era a finalidade mais próxima, com a proposta de que opensamento deveria estar diretamente vinculado ao agir, ou seja, ele seria um meio para se realizar um projeto, o que animava “[...] a orientação dada á escola, o methodo de 'Projetos'” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115, grifo do autor), que era característico do pragmatismo deweyano.
Para Dewey, no que se refere à educação, o “[...] fim que se deve ter em vista é aspiração (notamos a confusão de termos: fim é balisa a attingir, aspiração é a tendencia); este fim implica actividade ordenada, intrinseca” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115). Se a aspiração “[...] vier de fora, só resta à intelligencia recebê-la já preparada ecuidar dos meios mecanicos de a alcançar” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115). Todavia, como essa visão de educação era restrita, “[...] se reduz a uma perpetua adaptação a uma situação presente, e o termo educação (exducere) não tem mais significação. O desenvolvimento em si é o unico fruto que Dewey espera della” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115).
A organização da escola, em Dewey, “[...] deve pautar-se pela organização social. E’ preciso, pois, introduzir nella a vida social, e romper de vez com o passado em que se aprendiam coisas impostas, não pelas circumstancias, mas por motivos alheios ao interesse immediato da criança” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115). Por sua vez, a democracia social seria inserida na escola “[...] pela 'cooperação'. Esta collaboração será alma da educação. O mestre e os livros são secundarios” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115, grifo do autor). O mestre “[...] será consultado ou não, segundo os alumnos o julgarem necessario: é apenas um technico que está á espera de que se recorra a elle” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115). A moral da escola, para Dewey, consistiria em três aspectos: “[...] comprehensão social, poder social, interesse social” (Peeters & Cooman, 1937, p. 115).
Madres Peeters e Cooman manifestavam sua crítica a Dewey e à escola ativa afirmando que havia muitas escolas novas, mas com alguns traços em comum, que seriam um otimismo naturalista em relação à retidão moral da criança e posições que negavam a queda original. Havia, nas escolas novas, segundo as autoras, um idealismo exagerado, que confiava demasiadamente no “[...] criterio dos educandos no domínio do interesse” (Peeters & Cooman, 1937, p. 125). Para elas, “[...] a finalidade da educação é falseada e reduzida a uma serie de adaptações a situações actuaes, sem perceber-se o fim supremo” (Peeters & Cooman, 1937, p. 125).
Considerações finais
Chegamos ao final deste breve texto, que buscou comunicar os resultados de um percurso investigativo levado a termo recentemente, com a clara percepção de que a compreensão dos fenômenos histórico-educacionais demanda investimentos consideráveis na pesquisa e, sobretudo, no difícil processo de perceber as correlações existentes em termos locais, nacionais e mundiais.
As dificuldades enfrentadas pela Igreja Católica, sobretudo, em relação ao avanço de ideias liberais no âmbito da formação cultural, que enfatizavam o cientificismo, o civismo e a laicização, tornaram necessário que ela reagisse, na busca de manter sua relevância, em um contexto no qual o estatismo ganhava força em termos mundiais, como nova forma de gestão do poder e que se impunha na agenda de formação humana, o que, evidentemente, afetava o campo cultural e, nele, as instituições escolares,também, a formação de professores.
Dado o contexto de liberdade religiosa e de liberdade de ensino, é possível compreender a vinda das Irmãs de Santo André para o Brasil, bem como o de inúmeras outras congregações religiosas, que, frente à prevalência do estatismo e da laicização na Europa, deslocam seus membros para países mais receptivos, tais como o Brasil.
É nesse contexto que foi possível compreender que as formas de reação católica em território brasileiro envolveram desde a ação junto aos poderosos até a montagem de uma importante e relevante estrutura de comunicação e de formação ideológica, o que incluía periódicos, centros de formação, instituições e manuais escolares.
Assim, apesar de os manuais disciplinares analisados terem sido redigidos pelas Madres Peeters e Cooman, religiosas da Congregação de Santo André, quando atuavam na Escola Normal do Colégio de Santo André (em Jaboticabal, no Estado de São Paulo), as obras tiveram circulação nacional e foram amplamente utilizadas nas Escolas Normais vinculadas a diferentes confissões religiosas católicas.
Desse modo, um circuito importante da formação cultural e ideológica foi estabelecido por meio da formação de professoras em instituições católicas, sendo que elas atuariam na escolarização inicial de milhares de crianças brasileiras, em escolas estatais, da sociedade civil e das confissões religiosas, em especial, católicas. Sem dúvida, adisseminaçãode conteúdos combativos, como estes que examinamos nos manuais Noções de sociologia e Pequena história da educação, o que, muito provavelmente, aparece também em outros manuais disciplinares, contribuiu de modo significativo na moldagem de uma visão de mundo que colaborava com a reação católica frente às tendências liberais e estatistas que buscavam se impor na época. A forma como são analisadas as ideias de importantes ideólogos do liberalismo, com especial atenção para Rousseau, Comte e Dewey, tomados como paladinos da consciência coletiva e do estatismo e, portanto, como inimigos da consciência individual e do catolicismo, demonstra o esforço das estratégias católicas em um combate que pudesse garantir a manutenção de sua relevância no contexto brasileiro.