Introdução
Os anos 1960 no Brasil despertam interesse não só pelo ato de descontinuidade do regime democrático mas também pelo cenário de profunda riqueza cultural, num protagonismo de intelectuais que formularam, antes mesmo dessa década, um acervo de produções nas ciências sociais, na literatura e nas artes, promoveram olhares diversos sobre o país e, na perspectiva de um despertamento, propuseram em seus debates e reflexões um projeto nacional de desenvolvimento.
Na economia, na sociologia-antropologia e na educação, intelectuais do status de Celso Furtado e Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Anísio Teixeira, como operadores de governo e de Estado1 ou como autores de obras sobre o país que são até hoje referências de análise da formação da sociedade brasileira, sinalizaram possibilidades de um processo civilizatório autônomo latino-americano e, em especial, brasileiro. Esses intelectuais que marcaram as suas presenças em ideias e projetos políticos transitaram em espaços de atuação comuns, lugares que frequentaram e conceberam como expressão de um tempo histórico em que o desenvolvimentismo comprometia-se com um projeto de poder de caráter nacional.
O desenvolvimentismo como ideia que agregava um arco heterogêneo em suas matrizes de pensamento sintetizava, entre os anos 1950-1960, uma base doutrinário-ideológica com base na influência de duas instituições, a Comissão Econômica para a América Latina - Cepal, em nível de atuação no continente sul-americano, e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), em território nacional.
Um dos propósitos deste artigo é discutir as influências do desenvolvimentismo na educação brasileira, em seu planejamento educacional na década de 1960, no Plano Nacional de Educação de 1962 (Teixeira, 1962) e no Plano Trienal de 1963, percebendo os debates dessas correntes de pensamento e de seu projeto de poder e de seus intelectuais, buscando entender a variação de um nacionalismo-desenvolvimentista naqueles que estiveram à frente da educação no país, envolvidos direta ou indiretamente no curto governo de João Goulart, e perceber como os pensamentos de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire foram concebidos sob a influência desse nacionalismo-desenvolvimentista, suas atuações e concepções sobre a educação na década de 1960.
Matrizes do desenvolvimentismo no Brasil
Os movimentos de centralização do poder no período Vargas fizeram com que o Estado brasileiro inaugurasse um conjunto de agências, coletivos institucionais e temáticos, articulando os eixos infraestruturais para a modernização capitalista, bem como as câmaras setoriais com o objetivo de acompanhar as complexidades da economia e de seu projeto. Setores de planejamento compuseram as origens do planejamento estatal no Brasil, tais como o Departamento Administrativo do Serviço Público, a Câmara Federal do Comércio Exterior, o Conselho Nacional do Petróleo, o Conselho Nacional das Águas e Energia. Segundo Bielschowsky (2016), um coletivo de intelectuais, empresários e lideranças políticas formou o embrião da corrente nacionalista, a partir dos anos de 1950. Dentre eles, Barbosa Carneiro, Horta Barbosa, Macedo Soares e Anápio Gomes, que defenderam o projeto de um capitalismo modernizante, via ampliação dos parques industriais no país2.
Esperança, reformismo, distributivismo e nacionalismo foram princípios integradores de uma utopia desenvolvimentista, que, nas palavras de Lucília de Almeida Neves (2010), representou esse tempo histórico da conjuntura que vai dos anos 1940 até a década de 1960 em suas crises políticas e institucionais no Brasil. O que se constituiu como período da república, como expressão de um projeto, apresentou-se também de forma plural, oriunda de vários lugares e concepções, num ecletismo de ideias e propostas. Pode-se, então, compreender o nacionalismo-desenvolvimentista como a expressão de um conjunto de proposições, fundamentos ideológicos e doutrinários como projeto de poder, abarcando um leque de singularidades em termos de concepção diante da gestão do Estado, da economia, numa agenda política em defesa dos interesses nacionais, resguardando as riquezas naturais do território como fontes estratégicas garantidoras da modernização do país3.
Como pensamento econômico-social, concentrando expressões como reformismo-nacionalista, modernização-industrializante, dirigismo-estatizante, esse movimento comporta o período entre o pós-Segunda Guerra e o golpe civil-militar, aglutinando um campo de reflexão sobre as alternativas para que o país superasse suas características do mundo agrário e de seus fundamentos econômicos e políticos numa transição que levasse o Brasil às etapas de modernização do capitalismo nacional, dando-lhe um caráter de desenvolvimento da própria sociedade.
Celso Furtado: educação e o fator humano para o desenvolvimento
O lócus privilegiado de formulação do pensamento social de Celso Furtado foi a Comissão Econômica para a América Latina -Cepal, mas também atuou na militância das entidades corporativas de economistas e intelectuais que abraçavam as teses do desenvolvimentismo tanto como opção teórica como de projeto político. Sua presença acadêmica, fortalecida pela trajetória e respeito conquistado por conta de suas reflexões e publicações, fez com que criasse uma imagem de ‘técnico’ nas funções que exerceu no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE)e, em seus tempos de Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), nutriu com os seus pares essa imagem, talvez buscando uma blindagem em relação às disputas políticas internas, características da vivência dos partidos políticos e dos grupos de interesse.
Sendo um dos formuladores do pensamento econômico latino-americano, Furtado dialogou com os intelectuais brasileiros, muitos do Iseb, tecendo possíveis consensos diante do que se denomina agora de ‘ideologia desenvolvimentista’. A sua trajetória na Cepal fez com que ampliasse suas reflexões sobre o problema brasileiro, propondo os aspectos teóricos de seus estudos no binômio subdesenvolvimento/desenvolvimento. Sua aproximação e diálogo com Raul Prebisch, um dos fundadores da Cepal, entre os anos 1940-1960, trouxeram-lhe um olhar que articulou o problema da economia brasileira nos contextos históricos da América Latina e do mundo capitalista4.
A Cepal concebeu uma base teórica que interpretava a formação econômica da América Latina com base no enfoque histórico estruturalista, discutindo a ideia de centro (mundo capitalista desenvolvido) e de periferia (o mundo subdesenvolvido latino-americano). Furtado elaborou as teses que pautaram a interpretação da economia brasileira e suas complexidades, mas foi a partir dos estudos de Raul Prebisch que a entidade estabeleceu um diálogo com os governos do Cone Sul e da América Latina.
Dessa forma, compreende-se a Cepal como um dos espaços originais que deram sustentação teórica à formação do movimento político-ideológico denominado ‘nacionalismo-desenvolvimentista’ entre os anos de 1945-1964. Sob as diretrizes teóricas dos seus intelectuais orgânicos5e, em especial, de Celso Furtado como formulador e operador do Estado em suas experiências na Sudene, BNDE e no Ministério do Planejamento, o ideário cepalino ofereceu uma interpretação sobre as questões econômicas da América Latina e de suas relações de dependência econômica diante do centro do capitalismo, trazendo como consequência a subordinação política, num contexto de subdesenvolvimento dos povos do continente.
Na sequência dos anos de 1962 e 1963, Furtado exerceu o cargo de ministro Extraordinário de Planejamento, sendo o responsável, junto com San Tiago Dantas, por elaborar e conduzir o Plano Trienal, documento que tinha como objetivo oferecer ao país o caminho para o desenvolvimento econômico e social e ao mesmo tempo controlar os indicadores inflacionários daquele período, além de estabelecer as reformas defendidas pelo governo Jango. Sua experiência na Sudene o credenciou para ser alçado ao posto de ministro, pois desde os governos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros atuara como o condutor dos planos e das obras estratégicas desse órgão no Nordeste brasileiro.
No contexto das reformas de base propostas no governo de João Goulart, a educação apresentava-se como uma das ações a serem consideradas como elemento fundamental para o desenvolvimento social do país. As contradições evidentes da modernização capitalista no Brasil, iniciadas a partir de 1930, quando a população, desprovida de acesso universalizado à educação básica, trazia como resultado um fator humano que, nas palavras de Furtado, não atendia às exigências do projeto de desenvolvimento.
Para Furtado, o investimento no fator humano via educação, no longo prazo, criaria as condições necessárias para o desenvolvimento nacional. Ele faz questão de conceber esse fator humano não simplesmente como elemento de aprimoramento de mão de obra especializada ao projeto de industrialização país, mas como a inclusão das massas trabalhadoras, garantindo-lhes acesso às riquezas produzidas. Essa perspectiva difere o pensamento furtadiano daqueles que compreendem o desenvolvimento distanciado dos interesses sociais.
A importância de discutir as redes de reciprocidade, de construção dos planos educacionais uniu a trajetória de Furtado às de Darcy e Anísio Teixeira a partir da construção de suas ideias, num tempo histórico singular na república brasileira, no ambiente de reformas educacionais e nos embates que perpassam a aprovação da lei nº 4.024/61, a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e o primeiro Plano Nacional de Educação, de 1962, ambos na gestão do presidente João Goulart.
Pensamento educacional e o nacionalismo-desenvolvimentista
Cabe considerar que o centro irradiador da ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista foi o Iseb. Sua origem vem do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (Ibesp), baseado, principalmente, nas ideias divulgadas a partir da publicação Cadernos do Nosso Tempo. A reunião de um grupo de intelectuais, principalmente do eixo Rio-São Paulo, denominado no primeiro momento de Grupo de Itatiaia, local onde ocorriam as reuniões periódicas, no Estado do Rio de Janeiro.
Destacaram-se nesse grupo figuras como Hélio Jaguaribe, Roland Corbusier, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e Cândido Mendes de Almeida, dentre outros. Vinculado ao MEC, o ISEB foi criado em 1955 pelo presidente da República Café Filho (Santos, 2011).
Do pensamento isebiano são as categorias de desenvolvimento, nacionalismo e a crítica ao capital estrangeiro, privilegiando a burguesia nacional como condutora do desenvolvimento econômico brasileiro. Foram, então, com as influências oriundas da Europa entre os anos de 1950 com a reconstrução do pós-guerra e a organização dentro de uma perspectiva keynesiana e ainda sob a presença de ideias cepalinas que o Iseb concebia o Estado, dando-lhe uma função preponderante como núcleo coordenador do desenvolvimento, síntese dos interesses de classe (Santos, 2011).
Na agenda política e social dos anos 1960, levantavam-se como bandeira a superação do subdesenvolvimento a partir do combate ao analfabetismo e a ampliação de vagas ao ensino básico, elementos que viriam a traduzir o emblema “[...] educação para a democracia [...]”, evidências da utopia europeia pós-fascismo (Paiva, 2000, p. 23).
As teses desenvolvimentistas, em seus elementos internos de recomposição da economia a partir das políticas de substituição de importações, da valorização dos trabalhadores do campo, na pauta governamental janguista, as ‘reformas de base’, ou em seus elementos externos na política independente e de diálogo multipolar com o mundo, motivaram setores representativos da sociedade, configurando um projeto alternativo para o Brasil6.
No campo da pesquisa histórica que implica a educação como objeto a ser investigado ainda há possibilidades de que o tema do nacionalismo-desenvolvimentista seja proposto como problema e análise, porém deve se considerar que uma das principais obras da história da educação brasileira e que expõe o tema de forma precisa e acurada é de autoria de Vanilda Paiva (2000), Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Traçando as linhagens e tendências filosóficas que viriam a influenciar a pedagogia freiriana, em que a chave de reflexão considerava que um dos fundamentos do pensamento do educador pernambucano estaria nas raízes isebianas, no caráter interpretativo da transição do arcaico-rural para o moderno-urbano-industrial contido na obra clássica de Freire, Educação como prática de liberdade(1967), na presença de Álvaro Vieira Pinto contribuindo para o método de alfabetização a partir da categoria da consciência crítica (Paiva, 2000)7.
Ao examinar a linhagem intelectual freiriana, Paiva observou um movimento ambíguo, ora marcadamente articulado com o nacionalismo-desenvolvimentista, ora plasmando-se em forte base popular, uma construção de um ‘consenso humanista e democrático’ entre o ‘dirigismo e o não dirigismo pedagógico’ de suas teses sobre a educação e, em especial, a alfabetização de adultos. Em Paulo Freire, observam-se as ramificações de um conjunto de conceitos, visões de mundo, percepções sobre a existência humana - variações do pós-guerra. O Concílio Vaticano II e as orientações do papa João XXIII, contidas principalmente na encíclica Mater et Magistra, que apresentava a revisão da doutrina social da Igreja, foram associados à pedagogia de Freire.
Na concepção isebiana e nos fundamentos de análise sobre a realidade brasileira, a ideia de transição, de passagem de uma fase a outra, entre o arcaico e o moderno, do rural para o urbano, seria desencadeada pelo projeto nacional de desenvolvimento econômico, acentuando as proposições cepalinas de investimentos na indústria e tecnologia nacional. Freire, em Educação como prática da liberdade, em seu primeiro capítulo, ‘A sociedade brasileira em transição’, compôs o seu pensamento, traduzindo a ideia da fase do ‘trânsito’ (Freire, 2006).
Perceber, então, em Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Celso Furtado sinais de uma aproximação de um projeto para o Brasil, não é, cabe aqui a advertência, inseri-los linear e automaticamente no mesmo campo ideológico do nacionalismo-desenvolvimentista, mas compreendê-los como intelectuais e operadores do Estado encontrando-se num contexto em que o olhar singular contribuiu, de certa forma, para firmar o movimento entre as décadas de 1950-60.
Em 1959, foi publicado o manifesto ‘Mais uma vez convocados’, assinado por uma pluralidade de intelectuais das mais variadas concepções políticas, dado o debate entre os que defendiam o financiamento público à escola privada e aqueles que consideravam a escola pública principal expressão para a universalização da educação no Brasil. Nesse manifesto, as palavras-chave denotam no documento o ideário do nacionalismo-desenvolvimentista: a função estratégica do Estado no desenvolvimento econômico, elementos que destacam a importância do nacionalismo e o entendimento de que a educação articula-se num projeto maior de país8.
Anísio Teixeira, que demarcou sua atuação e pensamento com princípios liberais sociais, assumiu e exprimiu politicamente posições muito próximas daqueles que consideravam a necessidade de um progresso industrial e tecnológico, uma economia capitalista autônoma rompendo com a dependência subalterna às principais potências internacionais e um projeto de país calcado em bases de proteção das riquezas nacionais, somando a isso a democracia como valor intrínseco a esse projeto.
No artigo ‘Educação e nacionalismo’, Anísio Teixeira (1960) expôs sua posição diante do termo ‘nacionalismo’ e de suas implicações com a educação. Da maneira como dissertou sobre o tema, ficou a impressão de que desejava esclarecer seu posicionamento político diante das polêmicas que faziam parte dos debates da época. Acusado de ser comunista por várias vezes, o intelectual baiano constantemente reafirmava em discursos, artigos e livros o seu pensamento em defesa da escola pública universalizada, o Estado laico e a democracia liberal. Publicado em 1960, o texto auxilia a localizar o pensamento educacional de Anísio nesse tempo histórico.
Discorrendo sobre qual nacionalismo defender, Anísio citou o monopólio estatal do petróleo como expressão da consciência brasileira e o verdadeiro símbolo desse sentimento nacionalista. Ao final do artigo, propôs uma definição bem própria do nacionalismo como projeto para o país:
Nacionalismo é, fundamentalmente, a tomada de consciência pela nação de sua existência, de sua personalidade e dos interesses dos seus filhos. Pelo nacionalismo, os indivíduos da nação se fazem verdadeiramente irmãos e tudo que atinja a cada um passa a atingir a todos. Por isso mesmo, antes de mais nada, o nacionalismo aguça em cada um o sentimento de justiça para com os demais habitantes do país, impondo a participação de todos na vida nacional e fazendo crescer a coesão e a consciência de igualdade entre eles. Passam todos, efetivamente, a se sentir cidadãos da mesma pátria, com direito à mútua solidariedade e a certa igualdade fundamental (Teixeira, 1960, p. 207).
Nessa referência, Teixeira (1960, p. 207) aproximou-se do projeto do nacionalismo-desenvolvimentista quando defendeu que o nacionalismo, mais do que uma unidade em defesa dos inimigos externos, é “[...] um movimento de consciência da Nação contra a divisão, o parcelamento dos seus filhos entre favorecidos e desfavorecidos [...]”, integrando a pátria comum “[...] com um mínimo de justiça social”. A utilização permanente do termo ‘consciência’ aproxima-se muito do que Álvaro Vieira Pinto usara em seus estudos sobre a conscientização da sociedade, elementos utilizados também por Paulo Freire em suas obras. Dessa forma, frases como “[...] a consciência da nação [...]”, a “[...] plena consciência de um desígnio coletivo [...]”, “[...] tomada de consciência [...]”, “[...] dar-lhes consciência do seu futuro [...]”, “[...] tomada de consciência dos que prejudicam a nação [...]”, “[...] consciência de nossa atual pobreza [...]”, “[...] aguda consciência [...]” são termos usuais no artigo ‘Educação e nacionalismo’(Teixeira, 1960, p. 207) e anunciam de certa forma um diálogo entre intelectuais na conformação de um discurso político de defesa de um projeto para o país9.
Mas qual é a perspectiva de desenvolvimento em Anísio Teixeira? Perceber a educação e a escola como fatores de inclusão social, de construção de uma nacionalidade cidadã e ao mesmo tempo de respeito às diversidades inerentes ao povo brasileiro que difere das perspectivas de um nacionalismo totalitário e segregacionista, tão presente entre os anos de 1930-1940, nos regimes nazifascistas.
A vocação para a política a partir de conceber o Brasil e o seu desenvolvimento civilizatório fez com que Celso Furtado, Darcy e Anísio atravessassem os três governos em sequência - JK (1956-1960), Jânio Quadros (janeiro-agosto 1961) e João Goulart (setembro 1961-março 1964) -no auxílio aos projetos de âmbito nacional, estruturantes, na lógica de gerar o desenvolvimento na busca do progresso, este percebido com base em sua soberania nas tentativas do fortalecimento da economia interna, investimentos na ciência e tecnologia e na universalização da educação. Darcy conversou com JK sobre os ideais da Universidade em Brasília (UnB), Furtado elaborou e coordenou a Sudene nos governos JK e Jânio e foi ministro do Planejamento, criando o Plano Trienal no governo João Goulart. Anísio Teixeira coordenou o Inep e a Capes no período de JK, recebeu incumbência de Jânio para elaborar um programa educacional para o país e foi o relator do primeiro Plano Nacional de Educação, no Conselho Federal de Educação, e reitor da UnB quando na presidência estava João Goulart.
A experiência de Paulo Freire no governo João Goulart, de julho de 1963 até a imposição do regime civil-militar em março de 1964, quando aceitou o convite do ministro da Educação Paulo de Tarso Santos para presidir a Comissão Nacional de Cultura Popular, marcou a presença do educador popular que já se consolidava como um nome nacional a favor da alfabetização de jovens e adultos. Essa comissão, subordinada ao MEC, teria a incumbência de elaborar e implantar o Plano Nacional de Alfabetização com base no projeto popular de educação ocorrido em Angicos-PE10.
A atuação de Darcy e Anísio no processo de criação da UnB expressou, nas ideias originais e na convergência de intelectuais e cientistas brasileiros, o sentimento de um país que conquistaria sua soberania pela promoção da ciência e tecnologia concebidas em território nacional. O projeto de uma universidade no planalto central surgiu no governo de JK, em tratativas que circulavam entre um grupo politicamente articulado, convencendo o presidente da importância, para Brasília, de um centro universitário avançado e que representasse o país moderno e vocacionado ao desenvolvimento nacional. Desse grupo, além de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, faziam parte Victor Nunes Leal, ministro do Gabinete Civil, Cyro dos Anjos e Clóvis Salgado, ministro da Educação11.
O planejamento educacional no contexto do nacionalismo-desenvolvimentista
Um dos pilares da política econômica do governo Juscelino Kubitschek centrou-se no estímulo aos investimentos do capital internacional, incentivando principalmente o ingresso da indústria automobilística no país, ao mesmo tempo, abraçou os princípios da planificação desenvolvimentista. Essa ambiguidade do governo JK demonstrava o desejo da autoridade mineira de buscar alternativas de governabilidade, tal era a fragilidade das instituições e com os embates ideológicos desdobrando-se na sociedade que já apontavam para a desestabilização do regime democrático no país.
O Plano de Metas vem na esteira dos acontecimentos do pós-Segunda Guerra e das influências keynesianas na reorganização do capitalismo e na recuperação dos mercados, principalmente a partir do continente europeu. As ênfases da planificação e da racionalização, pautadas sob a bandeira do desenvolvimento, tiveram ressonância, desde a organização da ONU em 1945 e de suas iniciativas na constituição de agências internacionais de monitoramento das economias continentais.
As projeções do Plano de Metas buscavam conciliar o investimento para a infraestrutura do país - estradas, portos, fontes de extração mineral para ampliar as bases nacionais de energia - entre recursos públicos e privados para a efetivação dos projetos desdobrados das metas definidas anteriormente. Das 30 metas concebidas, cinco concentravam-se na composição de diretrizes para uma política energética para o país com base nas matrizes elétrica, nuclear, do carvão e do petróleo, além de sete metas para os transportes, seis para a alimentação e 12 para a indústria de base (Vieira, 1985).
Somente na meta 30 há referência à educação: ‘melhorar a educação e implantar cursos técnicos no país’. Essa única menção à educação demonstrava a opção política em não reconhecer, à época, a necessidade de investimentos na área. Por outro lado, ao definir-se pela implantação de cursos técnicos no país, o entendimento explícito era atender às demandas de mercado, concebendo, assim, a lógica formulada na teoria do Capital Humano e o vínculo efetivo dos objetivos educacionais ao preparo de mão de obra adequada à organização dos mercados produtivos. Entende-se, então, que as teses sobre o Capital Humano, articuladas ao ideário da universalização da alfabetização e do ensino no país, atendiam ao projeto do desenvolvimentismo, compreendido nas reformas de base propagadas no governo João Goulart, inserindo o indivíduo como elemento desencadeador do progresso nacional12.
A crise desencadeada pela renúncia de Jânio Quadros e as circunstâncias que levaram à posse de João Goulart tornaram o cenário político brasileiro um acirramento ideológico e de desestabilização institucional que já se anunciara no governo de Juscelino Kubistchek. O período de João Goulart na presidência da República, de 1961 a 1964, pode ser dividido em duas etapas: a primeira, com a implantação do parlamentarismo e a tentativa de acalmar as forças militares e de oposição histórica ao trabalhismo (07/09/1961 a 23/01/1963); a segunda etapa, a partir de Jango reassumir as chefias de Estado e de governo, permanecendo assim até o golpe de Estado, em 31/03/1964.
A breve, mas intensa, passagem de Darcy pelo Ministério da Educação, por quatro meses (de setembro de 1962 a janeiro de 1963), fez com que assumisse as primeiras iniciativas de consolidação da LDB nº 4.024/61 e de homologação do Plano Nacional de Educação. Já exercendo a função de ministro-chefe do Gabinete Civil, participou ativamente da elaboração do Plano Trienal e do Plano Trienal da Educação. No registro de suas memórias, afirmou que em seu tempo de ministro da Educação gastou 12,4% do orçamento federal destinado à pasta, enquanto após a implantação do regime civil-militar os percentuais destinados à educação caíram para algo entre 4% e 5% (Ribeiro, 1997).
O Plano Nacional de Educação (PNE-1962) e o Plano Trienal de Educação (PTE-1963) são representações de um tempo de embates ideológicos e disputas políticas e de aprofundamento da crise institucional que levou o país ao autoritarismo. O Plano Nacional de Educação, relatado por Anísio Teixeira e aprovado no Conselho Federal de Educação (CFE), teve como característica principal a definição das responsabilidades do financiamento público, articulado com os entes federativos, baseada nos Fundos Nacionais do Ensino Primário, do Ensino Médio e do Ensino Superior.
Definido com base em metas qualitativas e quantitativas, o PNE-1962 propôs objetivamente os compromissos das unidades da Federação e suas responsabilidades com a educação nacional. Como metas qualitativas para o ensino primário, estabelecia “[...] matrícula até a 4ª série de 100% da população escolar de 7 a 11 anos e matrícula na 5ª e na 6ª série de 70% da população escolar de 12 a 14 anos” (Teixeira, 1962, meta 1)13.
Observa-se o esforço do plano em reconhecer a urgência de cumprir, até 1970, a universalização da educação, principalmente no ensino primário, para a população escolar dos sete aos 11 anos. Anísio compreendia essa necessidade também a partir da experiência da democracia liberal americana e do compromisso em garantir o acesso de crianças em idade escolar ao sistema público de ensino. Em especial no Brasil, constatava-se uma multidão de jovens e adultos analfabetos no Nordeste e em regiões espalhadas pelo território brasileiro.
Entre as metas qualitativas, o PNE-1962 ressaltou a importância da formação de professores primários diplomados, “[...] 20% em cursos de regentes, 60% em cursos normais e 20% em cursos de nível pós-colegial”. Outro aspecto definido como responsabilidade de cumprimento, a partir das 5as e 6asséries, em seus currículos escolares, era a inclusão de “[...] oficinas adequadas, das artes industriais” (Teixeira, 1962, metas 4 e 5).
A parte principal da estrutura do Plano Nacional de Educação está na definição das ‘normas para a aplicação dos recursos dos fundos instituídos pela Lei de Diretrizes e Bases’, visando atingir, até 1970, as metas estabelecidas. O esforço de redação dessas normas reguladoras dos fundos nacionais (ensinos primário, médio e superior) tinha o objetivo de sistematizar as formas de distribuição de recursos, definindo como esferas de investimento na manutenção, expansão e melhoria do ensino, aperfeiçoamento do magistério, realização de congressos e conferências, mobilização nacional contra o analfabetismo e bolsas de estudos a ‘alunos a serem educados em condições especiais, por falta de escola adequada’.
Segundo Saviani (2007), o texto do PNE-1962 serviu de inspiração para que 34 anos depois, no governo de Fernando Henrique Cardoso, fosse promulgada a lei nº 9.424, de 24/12/1996, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - Fundef. A lógica dos percentuais distribuídos entre os entes federativos, pensada por Anísio Teixeira, manteve-se como orientação também na substituição pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação -Fundeb, lei nº 11.494, de 20/06/2007, promulgada no governo Lula.
O Plano Trienal da Educação (PTE), complemento do Plano Trienal de 1963-65, foi a expressão principal do governo João Goulart como orientação das políticas sociais inseridas nas bandeiras das reformas de base. Concebido por San Thiago Dantas e Celso Furtado, ministros da Fazenda e do Planejamento, respectivamente, teve o desenvolvimentismo como princípio norteador do planejamento, compreendendo a educação como elemento estratégico para a economia do país.
No título introdutório do PTE-1963, ficou evidente a inserção do pensamento de Celso Furtado. Na primeira parte, o plano dedicou-se a um diagnóstico, pautado em dados estatísticos, sobre as condições da educação nacional. Intitulado ‘Pré-investimento para o aperfeiçoamento do fator humano’, analisou a matrícula nos vários níveis de ensino. O detalhamento dos dados sobre ingressantes e concluintes demonstrava as possibilidades de ampliação de matrículas, aspecto também abordado pelo PNE-1962.
Os indicadores do magistério identificavam o crescimento do ‘corpo de professores’, normalistas e leigos, entre as décadas de 1950-1960, o Plano Trienal da Educação acentuava a emergência de superar o que o próprio plano denominou de ‘retardamento em atender o mínimo de necessidades escolares brasileiras’. Em suas diretrizes gerais, o PTE-1962 destacou princípios norteadores para a educação nacional: 1 - A responsabilidade educacional sendo entendida para o desenvolvimento dos recursos humanos da sociedade brasileira; 2 - A escola sendo reconhecida como instituição mantenedora da cultura e promotora do desenvolvimento. Nessa perspectiva, ao se utilizar o termo ‘sociedade em mudança’, revela-se a interpretação de que o Brasil e suas estruturas sociais e econômicas estavam em transição, do subdesenvolvimento para o desenvolvimento, questão já abordada neste artigo.
No capítulo sobre Ciência, o Plano Trienal de Educação sinalizou com maior ênfase as estratégias do nacionalismo-desenvolvimentista no tratamento de uma ação efetiva da ciência e da tecnologia do país: 1 - O MEC deveria influir, ‘de modo decisivo, prioritário e imediato’, a partir das universidades, escolas superiores e institutos técnicos, para o desenvolvimento científico e do ensino de ciências; 2 - A necessidade primordial do aumento do número de cientistas e técnicos qualificados nas escolas superiores e nos estabelecimentos de pesquisa fundamental e aplicada; 3 - A criação de um programa especial de incentivo ao desenvolvimento científico nacional; 4 - A renovação e ampliação dos quadros docentes das escolas superiores via concurso de pesquisadores; 5 - Atenção especial aos cursos de pós-graduação, buscando o financiamento e a manutenção dos equipamentos básicos, o contrato de professores nacionais ou estrangeiros e bolsas para estudantes (Brasil, 1962, p. 15).
O Plano Trienal da Educação assumiu uma perspectiva desenvolvimentista, prestigiando as possibilidades de definição de uma política de ciência e tecnologia que partisse da formação do fator humano - cientistas e intelectuais, de investimentos em centro tecnológicos que garantissem um ‘fator de impulsão do desenvolvimento’ do país. O PTE-1962 não propõe uma cisão entre a lei nº 4.024/61 e o Plano Nacional de Educação, reconhecendo a trajetória e a preocupação por garantir a educação como elemento fundamental do desenvolvimento.
Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [...] tornou-se possível a coordenação dos esforços federais, estaduais e municipais, nos termos do Plano Nacional de Educação, elaborado pelo Conselho Federal de Educação, homologado pelo Ministério da Educação e aprovado pelo conselho de ministros (Brasil, 1962, p. 14).
Cabe então perceber que, à primeira vista, não há conflito entre as intenções dos planos educacionais, há, sim, enfoques diferenciados. Se o PNE-1962 concentrou suas responsabilidades em estabelecer um sistema de financiamento e de competências das unidades da federação, o PTE-1963 aprofundou o diagnóstico da situação educacional brasileira, propondo diretrizes de governo, considerando as metas definidas pelo PNE-1962 - ampliação das matrículas para o ensino primário e definição de uma política de formação e valorização do magistério, além do cuidado em definir uma política nacional para ciência e tecnologia. Se o PNE estabelecia o tempo de oito anos para o cumprimento das metas, o Plano Trienal da Educação limitava-se ao período de três anos, o tempo previsto constitucionalmente de permanência de João Goulart na presidência da República. Como plano de Estado, o PNE se estenderia por mais tempo do que o Plano Trienal de Educação, este como plano de governo de João Goulart.
Considerações finais
Inserido no contexto do populismo como categoria teórica, o nacionalismo-desenvolvimentista sofreu resquícios interpretativos desse tipo de análise, em que lideranças políticas, sindicais e intelectuais foram reconhecidas numa perspectiva de conciliadores de classe, demagogos interessados em cooptar as classes trabalhadoras aos interesses do capital. Com base nessa visão, personagens como Getúlio Vargas, Ademar de Barros, Jânio Quadros, Jango e Brizola foram encaixados num mesmo fenômeno analítico, reduzindo a capacidade de se estudar as peculiaridades de cada protagonista no cenário republicano, suas identidades, trajetórias e contradições. Para Gomes (2010), o conceito de populismo deve ser revisto, sem os mecanicismos e na recuperação de novas leituras interpretativas14.
Entende-se o nacionalismo-desenvolvimentista como um movimento político que surgiu no Pós-Guerra, que se retroalimentou de princípios teóricos cepalinos e isebianos diante da função do Estado como planejador da economia, sendo concebido numa conjuntura brasileira de uma sequência de crises institucionais e que se apresentava ao país como alternativa de poder identificado com um leque de princípios, como as teses sobre a substituição de importações, valorização da economia interna, industrialização, distribuição de renda, controle e proteção das riquezas naturais.
O esforço deste artigo foi por discutir o nacionalismo-desenvolvimentista e a convergência de intelectuais, influenciando e sendo influenciados por esse movimento. Ao abordar a função do intelectual na sociedade, Edward W. Said (2005, p. 25) propõe a discussão sobre o lugar e a missão do intelectual e como este mantém uma relação simbólica com o seu tempo, representando uma consciência pública, que pode mobilizar as lutas sociais. Assim, quando se encontraram afinidades entre Celso Furtado, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire e que os aproximaram do nacionalismo-desenvolvimentista, a intenção foi recuperar certa linhagem do pensamento social e educacional brasileiro e como esse ideário esteve presente no planejamento educacional da década de 1960. Os planos educacionais desse período representaram a influência de intelectuais que pensavam o Brasil e as suas alternativas civilizatórias e de desenvolvimento para o país.