Introdução
Um restaurador ao deparar-se com uma pintura procura estudá-la meticulosamente, procurando resgatar seus tons originais. Não raro, restauradores descobrem que camadas de tintas foram sendo colocadas uma sobre outra distorcendo a imagem original, dificultando ainda mais saber qual seria a pintura inicial. Ao remover essas camadas, de forma lenta, pacientemente, o restaurador permite que novamente a pintura retome suas características e dialogue com a realidade onde ora se encontra.
O restaurador não está isento de também falhar no processo de retirada das supostas camadas superficiais. Ao mexer em cada uma ele mexe também consigo, com os seus antecessores, com os seus sucessores, com o próprio pintor. Não se tiram apenas resíduos sobre o passado, mas se permite ao passado mostrar-se… Ao se procurar conservar as intenções originais do pintor entram em cena diversos estudos sobre a época, sua formação, sua escola de pintura, comparações com outras de suas obras.
Escolhemos essa imagem da ação do restaurador para nos situar naquilo que temos por objetivo neste artigo. Queremos mexer no passado e sabemos que ao fazê-lo estaremos mexendo conosco mesmos, com aquilo que acreditamos e acreditávamos, com aquilo que hoje se nos apresenta como problematização. Há demãos de tinta a serem retiradas, há camadas a serem raspadas, há um caminho a ser novamente percorrido. Seguimos a intuição de Foucault: “Não tento descobrir um outro sentido que estaria dissimulado nas coisas ou nos discursos. Não, tento simplesmente fazer aparecer o que está muito imediatamente presente e ao mesmo tempo invisível” (Foucault, 2016, p. 69).
Neste artigo apresentamos num primeiro momento, os congressos do final do século XIX a fim de situar a seção dos surdos no Congresso Internacional para Estudo das Questões de Educação e de Assistência de Surdos Mudos1 realizado em de Paris em 1900. Vale a pena ressaltar que na coleção histórica editada pelo Instituto de Educação de Surdos (INES/RJ) contém apenas a tradução para o português da seção dos ouvintes deste congresso (De Lacharriére, 2013). O que nos deixou intrigados sobre a seção dos surdos e nos fez, como arqueólogos, procurar esse documento-monumento.
Ao encontrar, e ler as 20 resoluções da seção dos surdos ficamos atravessados sobre o quanto delas vemos ainda hoje na educação dos surdos. As resoluções dos surdos discutidas e votadas no Congresso de Paris (1900), foram marcantes, mostrando que o imperativo de Milão que determinava o ‘método oral puro’ como o ‘melhor método’ estava sendo discutido e debatido, inclusive pelos surdos.
As 20 resoluções votadas e discutidas na seção dos surdos, mostram-nos que os surdos, ainda no final do século XIX eram protagonistas e jamais perderam esse lugar na discussão da educação dos surdos como muitas vezes nos faz pensar a narrativa hegemônica sobre o Congresso de Milão (1880). De acordo com a narrativa hegemônica, as resoluções de Milão (1880) foram determinantes para uma espécie de ‘extinção’ das línguas de sinais e do próprio protagonismo surdo nas discussões sobre a educação voltada a eles próprios.
Em relação à metodologia utilizada, podemos afirmar que se trata de uma pesquisa documental que, aproximando-se de uma fonte primária ainda pouco conhecida no Brasil, procura problematizar suas informações. O documento-monumento em questão é o registro oficial da Seção de surdos do Congresso Internacional para Estudo das Questões de Educação e de Assistência de Surdos Mudos, dado em Paris no período de 06 a 08 de outubro de 1900. O processo de tradução dos trechos citados, especificamente aqueles das deliberações, procurou respeitar o conteúdo proposto, a linguagem e os vocabulários utilizados à época, sendo esta tradução revisada por uma tradutora francesa.
Baseados em Le Goff (1990), consideramos o documento a ser analisado como um documento-monumento. No texto se expressa uma compreensão de história, de sociedade, de realidade. Nele, aparece de forma intencional ou não uma série de elementos que nos permitem investigar uma imagem que se escolheu como aquela a ser usada e conhecida pelas gerações futuras. Na sua relação com jogos de poder, o documento é monumento à medida em que apresenta também como foram utilizados por determinados grupos, especificamente, aquele dos surdos, proposições que tinham por fim instituir também uma dada verdade.
Ainda sobre a compreensão do documento-monumento, recordamos com Foucault que a história deve ser questionada. Le Goff (1990) nos aponta para o fato de o documento trazer em si inúmeras marcas, não se constituindo numa fonte asséptica ou passível de uma compreensão positivista da história:
O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. (Le Goff, 1990, p. 547-548)
Para nos aproximarmos do documento-monumento Congresso de Surdos de Paris (1900), consideramos ser relevante uma breve aproximação com outro documento-monumento. O Congresso Internacional de Milão, realizado em 1880, torna-se uma espécie de ‘lugar de memória’ no sentido que dá Pierre Nora (1993). Para o autor, os lugares de memória são “[...] momentos da história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos” (Nora, 1993, p. 13). Como um momento sem fluxo, sem movimento, como algo único.
Ainda segundo Nora, os ‘lugares de memória’ nascem e vivem da sensação de que é necessário criar arquivos, manter elogios fúnebres, criar aniversários, notoriar atas em detrimento da memória espontânea. Essas operações não são naturais.
São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem eles seriam inúteis. E se, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória (Nora, 1993, p. 13).
Por isso, concordamos com o autor, que, quando interrogamos uma tradição por mais venerável que seja,
[...] é não mais se reconhecer como seu único portador. [...] interrogando-se sobre seus meios materiais e conceituais, sobre seus procedimentos de sua própria produção e as etapas sociais de sua difusão, sobre sua própria constituição em tradição, toda a história entrou em sua idade historiográfica, consumindo sua desindentificação com a memória (Nora, 1993, p. 11).
Sabemos que é um empreendimento arriscado, é como abrir a ‘caixa de pandora’ e produzir outras formas de pensar sobre a história da educação dos surdos, olhar para outros movimentos pois quando um lugar de memória é constituído, sua principal consequência é o apagamento do movimento da história. O apagamento da própria memória.
Sitiando o famoso Congresso Internacional de Educação de Surdos, ocorrido em Milão (1880): olhar em torno da narrativa hegemônica
Vários trabalhos que abordam a história da educação de surdos mencionam o Congresso de Milão2 (1880) como marco fundante do domínio do método oral puro e supressão definitiva da ‘linguagem gestual’3. Entretanto, após uma análise de outras fontes históricas próximas ao evento de Milão, podemos problematizar o quanto as decisões desse congresso se configuram a partir da produção de uma verdade acerca do método oral puro como o melhor para a educação dos surdos.
As resoluções discutidas e decididas no Congresso Internacional de Educação para Surdos, realizado em Milão em 1880, observavam os desejos específicos de grupos de especialistas e algumas instituições que praticavam o método, denominado de ‘método oral puro alemão’. Além do que as práticas de sucesso nas instituições educacionais que atendiam os estudantes surdos eram sempre questionadas.
Desta forma, podemos questionar também se a tão proclamada proibição das línguas gestuais definida em ‘Milão’ foi de fato o principal motivo de seu acontecimento e se, ao fim e ao cabo, ocasionou um quase extermínio dessas línguas como ecoa nas narrativas hegemônicas. ‘Milão’4 parece-nos ser o documento mais conhecido e veiculado como verdade absoluta em meio a outros documentos dos demais congressos de educação de surdos ocorridos no final do século XIX.
Essa repercussão de ‘Milão’ o coloca como um lugar de memória e, por isso, cria-se a invisibilidade de outros eventos que circundam essa narrativa. Milão como arquivo, impossibilita, muitas vezes, a produção de outras leituras e outras verdades acerca da educação de surdos. Por isso, segundo Nora (1993, p. 12-13),
Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. [...] é a desritualização do nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação.
Acreditamos que este congresso ocupa a função de ‘lugar de memória’, pois, segundo o autor, a noção pertence a um duplo: simples/ambíguo; naturais/artificiais; dado a uma sensível experiência/sujeito a uma abstração elaborada (Nora, 1993). E também, estes lugares podem produzir efeitos tanto materiais, como simbólicos e funcionais e fundamentalmente são revestidos de uma imaginação, de uma aura simbólica “[...] mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento [...], só entra nessa categoria se for objeto de um ritual” (Nora, 1993, p. 21).
Quantos manuais, textos produzidos, cartilhas, desenhos, dramatizações teatrais que narram a educação dos surdos tendo como início da história a narrativa de ‘Milão’ e automaticamente o apagamento de tudo que o circundou.
Por isso, metodologicamente nossa aposta na destruição da noção de ‘lugar de memória’ que ocupa o Congresso Internacional de Educação de Surdos ocorrido em Milão (1880) se dará a partir das leituras dos outros congressos que o circundam, mostrando que o mesmo não ocorreu isoladamente e que foi produto de uma trama cultural, política e histórica que o produziu.
Sendo assim, podemos afirmar que outras verdades também foram anunciadas e se dão a conhecer, fazendo-nos rever muito dessa história.
Empreender a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído (Foucault, 2000a, p. 140).
Um primeiro equívoco a ser sanado diz respeito à compreensão do Congresso de Milão (1880) como evento único que tratou da educação de surdos no século XIX. Antes mesmo dos congressos queremos recordar que a educação de surdos, no início do século XIX, se relaciona diretamente aos movimentos dos surdos que, em homenagem ao aniversário de morte do abade L'Épée, congregavam surdos em banquetes. Ferdinand Berthier foi figura central neste processo ao se servir de uma brecha da legislação francesa que proibia reuniões políticas e propor banquetes que, a bem da verdade, tornaram-se espaço para debates e encaminhamentos das demandas dos surdos na França. Benvenuto e Séguillon nos ajudam a compreender este período.
De 1834 a 1838, os banquetes dos surdos-mudos foram organizados pelo Comitê dos Surdos-Mudos e posteriormente pela Sociedade Central dos Surdos-Mudos que, a partir de 1867, tornou-se Sociedade Universal dos Surdos-Mudos (1867-1887). Essas associações não tinham exclusividade sob os banquetes e, em 1850, a Sociedade Geral de Educação do doutor Blanchet organiza, então, um banquete com duzentos e dezesseis convidados. Por sua vez, o Instituto de Paris também organizou um banquete em 1865 e outro é organizado pela Sociedade de Apoio Fraternal dos Surdos-Mudos em 1880 (Benvenuto & Séguillon, 2016, p. 65)
Na segunda metade do século XIX começam a surgir os encaminhamentos para os primeiros congressos sobre educação de surdos. Milão (1880) foi precedido pelo Congresso Universal para o Melhoramento do Destino dos Surdos-Mudos, dado em Paris de 23 a 30 de setembro de 1878. Este congresso foi organizado por professores de surdos e sua realização, bem como a de outros congressos, coincide com a Exposição Universal de Paris (La Rochelle, 1879).
Propunha-se discutir ali, em cinco momentos, várias temáticas: a) necessidade de uma estatística sobre a educação de surdos; estudos psicológicos sobre os surdos; b) possibilidade ou não do ingresso dos jovens surdos em escolas de ouvintes; c) necessidade de unificação de métodos e procedimentos; d) estudo sobre as causas dos insucessos na educação de surdos; e) como garantir a independência dos surdos após saírem das instituições; como superar a mendicância entre os surdos (La Rochelle, 1879).
Notamos, pois, que, em Paris (1878), está já de modo bastante explícito aquilo que será definido em Milão (1880), podendo ser compreendido como uma preparação imediata para o evento italiano.
Um evento nacional ocorrido em Lyon, na França, no ano de 1879, também parece ter sido fundamental para o desembocar de Milão (1880). O Primeiro Congresso Nacional para o Melhoramento das Condições dos Surdos-Mudos, cujo relatório oficial só foi publicado seis anos após o evento, foi ocasião em que se debateu fortemente o papel da língua de sinais na educação dos surdos diante de uma clara propaganda das vantagens do método oral (Hugentobler & La Rochelle, 1885). O texto do Congresso de Lyon, ainda não traduzido para o português, é uma das fontes que nos permite questionar a visão de que Milão (1880) seria um monolito.
Acerca do Congresso de Milão (1880), cuja decisão foi bastante propalada, mas acreditamos que os textos que apresentam as atas carecem ainda de reflexão, desejamos retomar alguns aspectos. O material, geralmente, utilizado no Brasil é uma tradução elaborada pelo INES que compõe a Série Histórica.
Essa versão do Congresso de Milão é apenas uma das quatro mais conhecidas que existem sobre o evento, permitindo o contato com o relatório redigido por A. A. Kinsey (2011), um dos secretários do congresso. Além desta, temos os relatórios de P. Fornari (1881), tido como documento oficial do evento; o de Ernest La Rochelle, endereçado a Eugene Pereire e o relatório para o ministro do Interior, elaborado por A. Franck (1880). Talvez, apenas isso fosse suficiente para nos fazer pensar sobre o quanto Milão está também por ser redescoberto. São as três versões uníssonas com aquela traduzida no Brasil? Como explicitam a própria organização de Milão? Recordamos que Milão foi um congresso destinado a professores e patrocinado por grupos simpatizantes do método oral puro alemão, já com certo sucesso na Itália.
É, curioso o fato de que, como relatamos anteriormente, ao se enfatizar ‘Milão’ (1880) deixa-se eclipsar os congressos que o sucederam e que, inclusive, tiveram objetivo de retomá-lo. Se foi preciso retomar Milão, compreendemos que, possivelmente, podemos pensar em certa inaplicabilidade da decisão tomada em 1880.
Após Milão? Sim, após Milão…
Três anos após ‘Milão’ temos o Congresso realizado em Bruxelas no período de 13 a 18 de outubro. Também organizado por professores de surdos cujas reflexões giravam em torno de seis temáticas: 1) a formação de professores para atuar junto aos surdos; 2) a percepção da dificuldade de se encontrar professores que soubessem ensinar o ‘método oral puro’ e quando se deveria usar o método mútuo; 3) se os surdos deveriam ser confiados a um único professor durante sua formação; 4) como se poderia organizar com mais sucesso a formação industrial dos surdos; 5) criação de obras e asilos para o benefício dos surdos; 6) a instituição e organização de comitês de patrocínios para as escolas de surdos (Cyrille & Houdin, 1883).
A segunda temática já nos aponta para o fato de que não houve unanimidade no uso do método oral puro. A menção ao método mútuo parece vincular-se ao desejo de rápida propagação. Assim, coexistem métodos a despeito da decisão de Milão (1880). Consideramos que as discussões realizadas no Congresso de Bruxelas podem ser compreendidas como uma avaliação das decisões de Milão.
Em 1889, como reação dos surdos, começam a acontecer congressos organizados não mais por professores de surdos, mas pelas associações de surdos-mudos. Em Paris, no período de 10 a 18 de julho, os surdos procuravam rever as decisões tomadas em Milão e foi formulada então uma solicitação de restauração da linguagem gestual nas escolas de surdos-mudos. Considerando os surdos num contexto mais amplo, as reflexões partiram de uma visão sobre o surdo na sociedade, no trabalho, na família e diante da legislação. Paris (1889) retoma a figura do abade L’Epeè e, sob sua inspiração, um incentivo ao uso da língua gestual como elemento identitário para os surdos (Chambellan, 1890).
Saindo do ambiente europeu, o Congresso de Chicago (EUA), também organizado por associações de surdos, se deu no período de 18 a 23 de julho de 1893. Tendo os Estados Unidos como nação em pleno desenvolvimento, este congresso conseguiu agregar um número grandioso de participantes.
O compêndio do congresso aponta para uma reflexão dividida em duas partes: uma sociológica e outra ligada ao trabalho. Este congresso não polarizou reflexões acerca do uso do método oral ou da linguagem gestual, permitindo que os representantes das diversas partes do mundo pudessem narrar suas experiências e expressar a força e organização das associações de surdos (Gaillard, 1893).
Destaca-se a figura de Gaillard como defensor de que os surdos são as pessoas ideais para discutir os assuntos dos surdos. Notamos também como relevante a participação de Victor-Gomer Chambellan que ao apresentar um relatório sobre o método oral o faz por meio de mímica (Gaillard, 1893). Não estaria ali certa contraconduta ao refletir sobre um método, ideologicamente imposto, justamente numa linguagem rejeitada por tal método?
Ainda fruto da organização da associação de surdos, temos o Congresso de Genebra, ocorrido entre 19 e 21 de agosto de 1896. De forma contundente aparecem críticas ao método oral puro e várias sugestões de retorno ao método misto que combinava tanto o uso de sinais quanto da oralidade de acordo com a necessidade de cada surdo. Junto com as discussões, Genebra foi ocasião de prática da língua gestual, tomando este fato publicidade nos jornais locais. Temerosos de que as decisões do congresso não tivessem aplicabilidade, foi formada uma comissão que tinha por objetivo executar as decisões e organizar os próximos congressos. Há forte preocupação com a inserção dos surdos no mundo do trabalho e severas críticas ao que o método oral permitia enquanto empregabilidade dos surdos (Gaillard, 1898).
De 27 a 29 de outubro de 1898, na cidade de Dijon, outro congresso foi organizado tendo como ponto de partida as reflexões acerca da instrução dos surdos e sobre qual o método ideal para educá-los (oral, mímica ou misto). Ampliava-se a discussão para a formação de sociedades de ajuda mútua dos surdos-mudos e a Federação das Sociedades de Surdos-Mudos da França (Chazal, 1899).
Se novamente a questão do método é colocada em pauta, de forma coerente é pensada como algo a ser direcionado de acordo com as possibilidades de proveito de cada surdo. Há, pois, uma continuidade do deslocamento já assinalado nos congressos anteriores em relação à centralidade do método, tendo agora o surdo como o centro do processo de ensino-aprendizagem. Essa abertura também se verifica na formulação de três possibilidades metodológicas, evidenciando que o grande interesse dos surdos não era simplesmente abolir o método oral, mas compreender quais dos métodos os tornariam mais capazes para atuar na sociedade.
Esse retrospecto dos congressos e dos banquetes que os antecederam nos permite compreender que a história da educação de surdos extrapola a polarização oralismo versus língua de sinais. Essa história, aqui brevemente retomada, lança-nos em contato com um processo em que estão em jogo forças ambivalentes, desejos diversos, realidades em movimento de superação, mas também de sedimentação de práticas, enfim, construção de verdades de um dado tempo que ecoam em novas re-des-construções de outras verdades e apontam para a coexistência de métodos.
O Congresso de Paris (1900): um duplo único
De 06 a 08 de agosto de 1900, durante a Exposição Universal de Paris, aconteceu o Congresso Internacional para Estudos de Questões de Educação e de Assistência de Surdos Mudos. Algumas peculiaridades circundam o evento, como o fato de, ao mesmo tempo ocorrerem duas seções, uma de ouvintes e outra de surdos; a organização ter sido distinta desde o início; as decisões serem bastante diferentes e o fato de não serem compartilhadas ao final do evento.
A importância do Congresso de Paris (1900) também se coloca porque é o evento que, após 20 anos de Milão e tendo a participação tanto de ouvintes quanto de surdos, se debruçará sobre a questão da assistência, sugerindo um rompimento dessa prática para uma implementação de uma educação de surdos. Comparem-se os títulos dos congressos anteriores organizados por professores de surdos e fica evidente como se passa do ‘melhoramento do destino dos surdos’ para a reflexão em torno da educação.
Apesar de organizado em seções distintas, algumas pessoas, como Edward Gallaudet, defensor da retomada do método misto, parecem ter transitado pelas duas. De maneira muito sintética, podemos afirmar que a seção de ouvintes, dirigida por Ladreit de Lacharriére (1833-1903), médico do Instituto de Surdos de Paris, destina-se a uma forte retomada do método oral e suas deliberações giram em torno de reflexões metodológicas para aperfeiçoamento de tal método. A preocupação dos ouvintes concentra-se sobre o diagnóstico de resquícios de audição que permitissem aos ‘surdos’ serem ensinados com o método oral.
Os trabalhos apresentados na seção de ouvintes corroboram a tese de que é preciso abandonar a prática caritativa, típica das instituições de assistência aos surdos, e se promover uma educação que conduzisse os surdos ao mercado de trabalho. A aproximação entre medicina e pedagogia sela, na seção dos ouvintes, a aliança entre um modo de pensar a educação de surdos que se baseia no diagnóstico, na clínica, na possibilidade de recuperação da audição. Também consideramos importante recordar que nesta seção há sensível preocupação com certa unificação da língua de cada nação, elemento que contribui para críticas à linguagem gestual.
Mas o que se passou na seção dos surdos? Como este grupo, que se reorganiza pós-Milão (1880), vivencia o Congresso de Paris (1900)? O texto das atas da seção de surdos nos conduz ao contato com os surdos de então, com seus pensamentos, com suas angústias e problemáticas, com suas reflexões.
Pelo documento-monumento, pessoas se fazem hoje presentes e nos dão a conhecer aquela realidade. Não que simplesmente se tenha um acesso isento ao passado ou um texto asséptico, mas por ele podemos interagir com aquela realidade e permitir que ela nos questione. O texto permanece, portanto, vivo e permitindo que aqueles participantes também se coloquem no nosso presente.
A seção de surdos, desde sua organização, manifesta um forte desejo de que se retome a prática do uso de sinais nas instituições. Teria sido totalmente extinta essa prática? Cremos que não, pois a solicitação é que se retome o uso da linguagem gestual na prática educacional. Ela, certamente, coexistiu com o método oral.
Ao longo do congresso tal reivindicação se amplia numa defesa de uma educação dos surdos que considere este sujeito desde sua particularidade, permitindo seu acesso a diversas áreas de trabalho, bem como recuperando a possibilidade de os surdos se tornarem professores.
Após uma série de apresentação de estudos, os surdos consignam 20 resoluções, distintas dos direcionamentos sugeridos pela seção de ouvintes, numa clara manifestação de organização e manifestação de poder diante dos ouvintes.
Um elemento comum a ambas as seções é o desejo de que as instituições de educação de surdos passem a ser administradas pelo Ministério da Educação e não mais pelo Ministério do Interior. Essa questão que caminhava em discussão já de longa data é bravamente defendida e nela se explicita certo desejo de rompimento com uma prática de pastorado, marcadamente católico. Tanto surdos como ouvintes manifestam certa descrença diante do discurso caritativo e consideram que a educação se apresenta como a melhor resposta a ser dada diante das demandas dos surdos.
As resoluções dos surdos em Paris (1900)... ressonâncias e dissonâncias
Voltemos agora nossos olhares sobre as resoluções dos surdos. Uma análise de cada uma delas se destinaria a um trabalho mais amplo já começado (Rodrigues, 2018), mas que se coloca como pintura a ser mexida, contemplada, burilada pelos nossos olhos, pelas nossas mais diversas lentes, propiciando ao que aqueles surdos elaboraram uma visibilidade no século XXI e proporcionam que contemplemos sua atualidade.
As resoluções foram propostas por diversas pessoas. Por este motivo, acontecem repetições de ideias. Como nosso intuito é socializar o texto das resoluções, procuramos aproximar algumas resoluções que tinham ideias comuns ou que reforçavam determinadas práticas. Porém, isso não prejudica a compreensão do conjunto das resoluções, posto que a sequência apresentada nas atas se refere apenas à organização das votações e não de uma lógica ou de didática dos conteúdos propostos. Como essas resoluções não foram ainda suficientemente abordadas em pesquisas brasileiras, fazemos aqui uma apresentação mais descritiva que analítica, permitindo diversas leituras. Desta maneira, temos por objetivo que nossa tradução destas resoluções permita outros estudos.
A primeira resolução aborda a questão do método a ser utilizado na educação de surdos e sugere que se observe a aptidão do surdo na escolha do método. Desta maneira, não há por parte da proposição uma definição de que apenas o método mímico seja utilizado, mas uma abertura para que se perceba entre o oral e o mímico o que melhor se adequa a cada surdo, ou mesmo que se utilize os dois.
1ª Resolução: O Congresso, considerando que os surdos-mudos não estão todos em um mesmo nível de habilidades intelectuais e físicas para a aquisição de fala e leitura nos lábios, expressa o desejo que o ensino dessas crianças não deve limitar-se à aplicação rigorosa de um único método, mas devemos escolher o método de acordo com a aptidão do aluno e fazer uso de todos os meios que possam contribuir para o melhor desenvolvimento intelectual e moral de cada indivíduo; O Congresso, considerando o valor da fala e da leitura nos lábios, expressa o desejo de que devamos ensinar a palavra a todas as crianças surdas-mudas quando entram na escola, e devemos continuar este ensino para todos os que o conseguem, e empregar a mímica para aqueles que não o conseguem (Gaillard, 1900, p. 236, tradução nossa)5.
A segunda e a terceira resoluções continuam nesta perspectiva de centralidade do surdo e não do método, propondo que se retomasse o método misto. Na formulação da proposição se evidencia que o método misto fora praticado oficialmente, mas que, após Milão (1880) teria sido preterido. A formulação ainda nos sugere certa disposição em acolher aquilo em que o método oral poderia oferecer como avanço metodológico, ao mesmo tempo que o critica e mostra seus limites.
2ª Resolução: Considerando a insuficiência do método oral puro, ao mesmo tempo, reconhecendo sua utilidade, o Congresso expressa o desejo de que o método oral e o método de mímica sejam combinados e que, consequentemente, o método misto seja restabelecido (Gaillard, 1900, p. 237, tradução nossa)6.
3ª Resolução: O Congresso dos Surdos-Mudos, admite a utilidade do método oral puro, mas exige a aplicação do sistema combinado como único meio de aperfeiçoar a educação dos surdos-mudos, mesmo com o método oral (Gaillard, 1900, p. 237, tradução nossa)7.
A quarta resolução foi rejeitada pelo congresso, todavia parece-nos importante considerá-la aqui pois ela sinaliza que também entre os surdos não havia um consenso sobre o melhor método nem tampouco um antagonismo. Além disso, pode-se ver na resolução rejeitada uma compreensão do lugar da família na continuidade dos estudos do surdo oralizado.
4ª Resolução: __ Que se adote nas escolas de surdos-mudos o método oral, o único método pelo qual os surdos se familiarizarão naturalmente com a língua francesa para evitar de os aluno confundir com os sinais. Que o método oral esteja em vigor nas escolas de surdos-mudos, que tenha por base a escrita, vindo após a leitura dos lábios; Os pais devem ser informados de que, quando saem da escola, a continuidade do ensinamento da palavra para seu filho, e isso em família, é uma das primeiras necessidades. Que se dê às famílias as instruções necessárias para realizar esta tarefa a bom termo (Gaillard, 1900, p. 237, tradução nossa)8.
Na quinta resolução aparece formalmente a solicitação da obrigatoriedade da educação de surdos sob a jurisdição do Estado (proposição reafirmada na 10ª e na 11ª resoluções). Propõe-se a idade de ingresso escolar, a centralidade do aluno, a valorização da mímica, a relevância do surdo professor (proposta também na 6ª resolução), o ensino profissionalizante (reafirmado na 17ª resolução), a possibilidade de estudos de nível superior em diversas áreas (aspecto ressaltado na 8ª resolução), a formação religiosa, a criação de asilos para amparo dos surdos idosos e doentes (reafirmada na 16ª resolução). A 19ª resolução também dialoga com essa quinta ao propor o papel do inspetor de escolas de surdos. Optamos por expô-las na sequência para valorizar o vínculo existente entre as resoluções sexta, oitava, décima, 11ª, 16ª, 17ª e 19ª com o apresentado na quinta resolução.
5ª Resolução: O Congresso expressa o desejo: A - Do ponto de vista intelectual e profissional: 1º Que ensino seja, como para os ouvintes, obrigatório e gratuito para todos os surdos-mudos a partir de 8 anos de idade; 2° Que a educação profissional seja dada em paralelo ao ensino clássico, porque, geralmente, o ganha-pão dos surdos-mudos depende mais de suas capacidades manuais que de suas capacidades intelectuais; 3º Que os surdos reconhecidos inaptos para receber a instrução pelo método oral sejam ensinados pelo método do abade L‘Épée, quer dizer o mimetismo e a escrita, e que esse ensinamento seja confiado a mestres surdos-mudos, que por suas enfermidades estão em melhores condições do que os mestres ouvintes para assimilar-se aos seus alunos; 4º Que escolas secundárias e superiores sejam estabelecidas por admitir os surdos-mudos de destaque capazes de seguir uma carreira nas ciências, nas letras e nas artes. 5º Que a instrução religiosa nunca seja removida do programa de educação dos surdos-mudos, porque se um homem pudesse mais do que outros precisar do conhecimento de Deus e da religião, esse seria o surdo-mudo. B - Do ponto de vista social: 1° Que sempre e em todos os lugares os surdos-mudos sejam tratados como outros cidadãos; que, portanto, os portões das administrações estejam abertos aos surdos-mudos de acordo com suas habilidades e que sejam admitidos a empregos civis ao seu alcance; 2° Que asilos sejam criados para recolher todos os surdos-mudos inválidos e incapazes de obter o sustento necessário à existência (Gaillard, 1900, p. 237-238, tradução nossa)9.
6ª Resolução: O Congresso, exprime o desejo de que os surdos-mudos sejam sempre chamados para a carreira de professores de surdos-mudos, sobretudo quando suas próprias habilidades aumentam devido à simpatia que sentem por seus próprios irmãos (Gaillard, 1900, p. 238, tradução nossa)10.
8ª Resolução: O Congresso, solicita a criação de um estabelecimento de formação superior na França onde serão enviados os melhores alunos das escolas comuns capazes de se destinarem frutuosamente às carreiras liberais (Gaillard, 1900, p. 239, tradução nossa)11.
10ª Resolução: O Congresso expressa o desejo de que as escolas de surdos-mudos sejam transferidas para o Ministério da Educação (Gaillard, 1900, p. 240, tradução nossa)12.
11ª Resolução: O Congresso para o Estudo das Questões de Educação e Assistência para os Surdos-Mudos, reunido nas sessões de 06, 07 e 08 de agosto, no Palácio dos Congressos, considerando: - Que a situação dos surdos-mudos na França, do ponto de vista educacional, longe de ter melhorado, permaneceu estagnada; - Que milhares deles, por causa da falta de escolas especiais para o seu uso, vivem na ignorância; expressa o voto: Que o governo, se inspirando nos princípios humanitários que são a principal razão de ser de um governo republicano, complete o trabalho iniciado pela primeira República ao aplicar rigorosamente a lei sobre a instrução obrigatória, para crianças surdas-mudas a partir de seis anos e que tome a iniciativa de criar várias escolas regionais em centros onde existem grandes aglomerações (Gaillard, 1900, p. 240, tradução nossa)13.
16ª Resolução: O Congresso vota os propósitos: 1° - Que seja criado na França uma casa de aposentadoria especial para os surdos-mudos de ambos os sexos idosos ou inválidos, à custa do Estado; 2° - Uma petição será enviada pelo Congresso ao Ministro do Interior, aos senadores e aos deputados, amigos e protetores dos surdos-mudos; 3º - A Federação das Sociedades Francesas dos Surdos-Mudos será convidada pelo Congresso a se ocupar ativamente da pronta realização da idéia de se criar uma casa de idosos e estabelecer relações com todas as Sociedades de Mútua-ajuda ligadas aos surdos-mudos para que contribuam na arrecadação dos fundos necessários à manutenção dos residentes da casa de idosos de uma maneira bem definida (Gaillard, 1900, p. 241-242, tradução nossa)14.
17ª Resolução: O Congresso dos Surdos-mudos emite o desejo: 1º- Que a educação profissional seja apoiada tanto quanto possível em todas as escolas e que os estudantes sejam colocados, uma vez completado o seu tempo de estudo, nas oficinas comuns no âmbito da sociedade civil (em geral), onde seu aprendizado será mais prático e melhor relacionado às habilidades individuais; 2°- Que, enquanto aguarda-se uma escola de ensino secundário, se criem, na medida do possível, classes onde as disciplinas comerciais e administrativas serão ensinadas aos sujeitos mais dotados para a carreira de funcionário; 3°- Que uma agência de surdos-mudos (assessoria de colocação, recomendações e informações), seja instituído, seja pelo Conselho Municipal de Paris na Bolsa do Trabalho, seja pelo Ministério do Comércio na Agência do Trabalho; 4°- Que um subsídio retirado dos fundos do Pari-Mutuel seja concedido pelo Governo da República em vista das necessidades desta agência no caso de ser a Federação das Sociedades francesas dos surdos-mudos que tomaria a iniciativa de sua criação. O Congresso, além disso, chama a atenção benevolente dos senhores Senadores, Deputados e Conselheiros Municipais sobre a importância das questões da empregabilidade dos surdos-mudos, os únicos capazes de inseri-los na vida social (Gaillard, 1900, p. 242, tradução nossa)15.
19ª Resolução: O Congresso solicita a criação de um cargo de inspetor para a supervisão e o controle exclusivo da educação nas escolas de surdos-mudos. Este inspetor terá que ser um professor de carreira, ou uma pessoa que bem conheça as questões relativas aos surdos-mudos (Gaillard, 1900, p. 243, tradução nossa)16.
Vistas em seu conjunto essas resoluções apontam para questões que ainda hoje suscitam debates e questionamentos acerca da educação de surdos como, por exemplo, sua clara relação com a questão da empregabilidade dos surdos.
A sétima resolução nos aproxima de uma questão curricular. Propõe-se o ensino de arte em todas as escolas de surdos, sendo a disciplina ministrada por professores surdos. Há um claro desejo de recuperação do papel do surdo como professor, ao mesmo tempo, incentivando-se a prática da arte. Recordamos a profusão de artistas surdos na França do século XIX e como os ex-alunos do Instituto de Paris tinham oficinas que lhes habilitaram para esse tipo de atividade.
7ª Resolução: O Congresso, expressa o desejo de que as ciências da arte sejam ensinadas em todas as escolas de surdos-mudos da França e que os cursos sejam organizados por professores artistas surdos-mudos ou ouvintes-falantes conhecedores dos surdos-mudos e que possam com eles se comunicar (Gaillard, 1900, p. 238-239, tradução nossa)17.
A nona resolução retoma a questão do método para, em seguida, apresentar o pressuposto de que os surdos devem ser considerados como qualquer outro cidadão e, portanto, devem receber os mesmos benefícios que os ouvintes. Esta resolução ainda propõe que a direção dos institutos de educação de surdos seja feita por professores de carreira e não mais por pessoas designadas para a função, como, por exemplo, religiosos que não tinham a prática docente.
9ª Resolução: O Congresso expressa os desejos: 1°- O Congresso, reconhecendo a utilidade do método oral, vota a manutenção da educação geral dos surdos-mudos, mas solicita a consideração de certas categorias para as quais ensinar por sinais é muito apropriado; 2°- O Congresso, considerando que os surdos-mudos são cidadãos como os outros; Considerando que eles têm o direito de serem tratados como ouvintes-falantes e reivindicar como eles os benefícios da assistência que a pátria prevê a todos os seus filhos através da instrução e da educação; considerando que a organização atual de suas escolas é defeituosa, e não responde ao plano elaborado pela Convenção Nacional de 1793; considerando que essas escolas produzirão todos os seus frutos apenas quando estiverem nas mãos de homens competentes e dirigidas por uma autoridade competente; o Congresso expressa o desejo de que doravante o governo chame exclusivamente professores de carreira para a direção de nossas escolas nacionais (Gaillard, 1900, p. 239, tradução nossa)18.
A 12ª resolução propõe a destinação de vagas de trabalho para os surdos e menciona a escassez de vagas na indústria privada.
12ª Resolução: O Congresso, considerando a dificuldade de admissão da maioria dos surdos-mudos nas oficinas da indústria privada, expressa o desejo de que o governo reserve aos surdos-mudos lugares em oficinas, fábricas, administrações pertencentes ao Estado, especialmente nos Correios e Telégrafos (Gaillard, 1900, p. 240, tradução nossa)19.
As 13ª, 14ª e 15ª resoluções têm como objetivo incentivar a criação de associações e sociedades de surdos. As três resoluções apontam para o contexto francês de organização dos surdos em grupos para reivindicar direitos e se apoiarem financeiramente, sanando as carências das ações do Estado.
13ª Resolução: O Congresso expressa o desejo: 1º- Que, em todos os centros do país da França, sejam fundadas Sociedades, seções e subseções de Sociedades de surdos-mudos; 2º- Que, pelos cuidados da Federação das Sociedades Francesas de Surdo-mudos, o governo francês, sempre que a ocasião se apresente, encoraja a formação desses grupos e efetivamente os proteja (Gaillard, 1900, p. 240, tradução nossa)20.
14ª Resolução: Os surdos-mudos de diferentes países do mundo reunidos no Congresso em Paris, em 8 de agosto de 1900, considerando: que a utilidade das sociedades surdos-mudos é incontestável; que qualquer tendência adversa na formação dessas sociedades é contrária ao interesse dos surdos-mudos, mesmo quando o ensino da fala teria, por impossível, alcançado o grau desejado da perfeição; que é de extrema importância desenvolver sociedades de surdos-mudos em condições muito sérias, para propagar o mesmo espírito de mutualidade em toda a França através da Federação das Sociedades; que os trabalhadores honestos surdos-mudos, ansiosos para formar uma sociedade para eles, susceptível de lhes oferecer vantagens, muitas vezes desistem, devido a esse fato de que nenhuma marca de caridade venha a apoiá-los. Expressam os desejos: que os pais e os amigos de jovens surdos-mudos, os encorajem a fazer parte da sociedade local, os incitem assim à prática do axioma: __ Ajude-se a si mesmo, o céu irá ajudá-lo! (Gaillard, 1900, p. 241, tradução nossa)21.
15ª Resolução: O Congresso expressa o desejo: 1°- Que a Federação das Sociedades de surdos-mudos de França faça parte do Conselho Superior de Mutualidade; 2°- Que assegure a concordância das personalidades ouvintes-falantes que se interessem pelo desenvolvimento dos surdos-mudos (Gaillard, 1900, p. 241 - tradução nossa)22.
A 18ª resolução formula uma proposta de unificação da língua de sinais. “A linguagem está ligada não mais ao conhecimento das coisas, mas à liberdade dos homens” (Foucault, 2000b, p. 401). Importante notar como o texto sugere toda uma metodologia para se alcançar a unificação da língua, contemplando-se as variações nacionais, fazendo uso das tecnologias a que tinham acesso em 1900.
18ª Resolução: Considerando a imensa utilidade que representa uma uniformidade generalizada da linguagem mímica em todos os países do mundo, uniformidade que gradualmente levaria à adoção de uma linguagem única e universal, o Congresso propõe às Associações locais de surdos-mudos as seguintes medidas: 1º- Dentro de cada Associação, um Comitê Especial será responsável pela elaboração de uma coleção de sinais usados por seus membros; esta coleção incluiria, em primeiro lugar, a reprodução gráfica dos sinais; 2º- Cada país enviará ao próximo Congresso Internacional de surdos-mudos um ou mais representantes muito conscientes de diferentes sistemas de linguagem utilizados em seus respectivos países e a quem caberia indagar em que medida os governantes estarão dispostos a subsidiar uma Comissão Internacional Geral para o estudo posterior da questão; 3º- Caberia a esta Comissão Internacional que se encontraria, quer conjuntamente em cada um dos congressos internacionais de surdos-mudos, quer separadamente, introduzir gradualmente e sucessivamente, uma uniformidade cada vez maior entre os sistemas nacionais para a adoção dos sinais mais característicos de cada idioma. Estes sinais adotados e aprovados pela Comissão seriam então comunicados pelo processo cinematográfico23 para todas as associações locais; 4°- Ademais a Comissão se encarregaria de preparar manuais da linguagem universal assim adotada. 5°- A esta mesma Comissão poderia, ser mais tarde, confiada a tarefa de elaborar um alfabeto internacional para o uso dos surdos-mudos (Gaillard, 1900, p. 242-243, tradução nossa)24.
A última resolução tem apenas caráter diplomático.
20ª Resolução: O Congresso Internacional dos Surdos-Mudos felicita os membros dos Conselhos gerais e comissões departamentais que votaram a favor de subvenções para os surdos-mudos pelo envio de delegados ao Congresso e expressa-lhes toda sua gratidão (Gaillard, 1900, p. 243-244, tradução nossa)25.
Considerações finais
Assim encerramos nosso primeiro sítio a ‘Milão’ apresentando os outros congressos que o procederam e apresentamos as 20 resoluções da sessão dos surdos do Congresso Internacional de Paris (1900), mostrando que, de fato, a existência de Milão como lugar de memória tem como efeito notável o apagamento e silenciamento de todo o movimento surdo que se levanta na discussão das decisões ali tomadas.
Levando em consideração que não há tradução para o português das resoluções da seção dos surdos do Congresso de Paris (1900) e a nossa certeza da importância da divulgação delas para a reflexão sobre a história da educação de surdos, a nossa escolha foi de apresentá-las e, por isso, não nos detivemos, neste artigo, numa análise pormenorizada, o que faremos em outros trabalhos.
Contudo, acreditamos que a própria tradução e descrição delas cumpre o objetivo que é mostrar que é possível sim olharmos para a narrativa de Milão de outra forma. E acreditamos que logramos êxito nesta empreitada. Todavia, ainda queremos, pois, trazer para perto de nós algumas questões propostas em Paris (1900). O que pode nos falar um documento-monumento? Quanto ainda há por escutar deste texto? Solange Rocha nos alerta:
Por fim, para que as narrativas históricas sobre os tempos pretéritos não fiquem prejudicadas pelas nossas intenções do tempo presente, penso que devemos, sobretudo, evitar nutrir expectativas relativas ao que passou. Um devir para o passado é uma armadilha para nos perdermos dele ou nele. Para enfrentarmos os processos históricos é preciso, primeiramente, reconhecê-los. Devemos nos despir da tentação do ‘se’ (Rocha, 2010, p. 142, grifo do autor).
Aproximamo-nos dos congressos ocorridos no final do século XIX, sobretudo de Paris (1900), especificamente das resoluções dos surdos e nos deparamos com a atualidade de uma série de proposições. Esta é, possivelmente, a primeira conclusão a que chegamos. O texto dos surdos de então dialoga e muito com várias questões dos surdos de agora.
As questões metodológicas relativas à educação dos surdos continuam hodiernamente em pauta. A recente valorização da libras, inclusive com sua publicidade em âmbito político, mostra que no Brasil ainda estamos distantes de uma prática bilíngue que assegure aos surdos plena participação social. A conquista do direito à educação dos surdos, historicamente, oscilou entre a hipervalorização de um modelo (Vieira, 2016) e permanece com antagonismos que nem sempre têm possibilitado avanço nas conquistas das lutas políticas por parte dos surdos.
As práticas da política de educação inclusiva asseguraram a matrícula dos surdos em escolas comuns, permitiram o acompanhamento da frequência destes alunos, mas estão bastante longe de uma metodologia que garanta o aprendizado dos surdos de forma a que acessem também outros níveis de ensino.
Em Paris (1900), ao se propor a obrigatoriedade da educação de surdos se visa a assegurar a vida profissional e a independência destas pessoas. Em nosso contexto, permanecem lacunas quanto ao acesso dos surdos a empregos, pois, quase sempre, pela pouca formação escolar acabam sendo captados por subempregos. Numa época de advento das tecnologias, de diversas intervenções do corpo numa biopolítica que controla as vidas, prolongando-as, os surdos veem-se sempre desafiados.
Em contraposição a Milão (1880) que por sugerir o método oral puro desencadeou uma série de demissões de professores surdos, Paris (1900) sugere um retorno destes profissionais em diversas disciplinas. A questão da formação do surdo para a docência permanece atual e não é suficiente pensar que a surdez qualifique a pessoa para atuar como professor de outro surdo (Carvalho, 2016) ou de ouvintes. A docência não é uma extensão da condição diferente desse sujeito, mas uma possibilidade de formação que exige um envolvimento que ultrapassa também o pleno domínio da libras, trazendo questões éticas que dizem respeito ao ser um intelectual em atuação.
Percebe-se nas resoluções de Paris (1900) uma ênfase em exigir do Estado um tratamento do surdo condizente com aquele dado aos ouvintes. O ser cidadão se antepõe ao ser surdo ou ser ouvinte. Mais uma vez, somos lançados ao contexto escolar como espaço privilegiado para a formação do cidadão, como lugar em que se podem retirar os preconceitos familiares, das tradições cotidianas e adentrar num tempo de diálogo. A proximidade dos surdos com as questões políticas no presente momento brasileiro sugere uma série de esperanças, mas também nos colocam em sobressalto diante daquilo que se pode compreender como participação cidadã.
Retomando a imagem da ação do restaurador de uma pintura, encerramos este texto com o desejo de que outras mãos e olhares se aventurem sobre o documento-monumento que é o Congresso de Paris (1900), particularmente, na sua seção dos surdos. Que outras demãos de tinta sejam minuciosamente retiradas daquilo que tem se constituído como ‘a’ história da educação de surdos, permitindo ao texto dialogar ainda mais com nosso presente.