Introdução
Lorenzo Luzuriaga1, internacionalmente reconhecido como um dos importantes educadores e pensadores educacionais do mundo hispânico no século XX, vem sendo estudado no Brasil, no campo da história da educação2, especialmente em função do modelo de escrita de que marcou alguns dos títulos publicados quando de sua fase argentina, entre os anos de 1940 a 19603, parte deles traduzidos para a língua portuguesa e que intensa circulação alcançaram em nosso meio acadêmico, notadamente nos cursos de pedagogia e de formação de professores (Gatti Júnior, 2011). Neste artigo, propõe-se a analisar um desses títulos, Historia de la educación pública, vindo a estampa pela Editorial Losada4, de Buenos Aires, em 1946, em volume integrante da ‘Biblioteca del Maestro’, coleção organizada pelo mesmo Luzuriaga na editora criada pelo compatriota Gonzalo Losada5.
Conforme assinala Luzuriaga no livro em tela, a educação pública antes que uma ideia geral ou configuração unívoca da transmissão de saberes e formação humana no correr dos tempos, assumiu feições próprias ao ‘espírito’ de cada período histórico, inclusive, com respostas relativamente idiossincráticas de cada povo ou ‘cultura nacional’ em decorrência da maneira como se apropriaram dos modelos pedagógicos e educacionais. Na reflexão que se propõe nas páginas que seguem tentar-se-á encetar uma análise internalista da obra, atentando para as possíveis vinculações do seu teor com a trama política e intelectual concernente ao período inicial do exílio do autor (1936) até sua morte (1959). Ganha relevo, igualmente, a dimensão assumida na obra pela escala nacional de observação, num contexto em que, com o recente término da Segunda Guerra Mundial, os nacionalismos cediam o passo a visões mais universalistas de cultura.
A dimensão da educação pública na pedagogia e nas ações do intelectual Luzuriaga
Luzuriaga integrou uma geração inteira de espanhóis que se viu obrigada a deixar o país com a guerra civil, a España peregrina, como passou a ficar conhecida a plêiade de exilados contrários e/ou perseguidos pelo regime de Franco. O conflito interrompe bruscamente a atividade política e o labor intelectual do pedagogo manchego6, trazendo implicações diretas para sua obra. O caráter, em grande medida experimental e pragmático, da ação, escrita e da produção de Luzuriaga, que marcaram sua trajetória na Espanha desde que assoma ao proscênio pedagógico com sua atuação na Institución Libre de Enseñanza (ILE)7, na ‘Escuela Superior del Magisterio’8, no ‘Museo Pedagógico Nacional’9 e com a criação da Revista de Pedagogía10, teriam cedido o passo, conforme Barreiro Rodríguez (1989), a uma inflexão em torno a problemas mais acentuadamente de matiz teórico - em demasia na avaliação deste último - o que, ainda que se possam reconhecer elementos de continuidade nos cometimentos a que se entrega em solo argentino, demarcariam duas etapas distintas no seu itinerário11 (Barreiro Rodríguez, 1989).
Luzuriaga deixa a Espanha com a eclosão da guerra civil, no outono de 1936, levando consigo sua esposa, Maria Luisa Navarro, e seus filhos, à exceção do mais velho, Jorge Luzuriaga, que permaneceu na Espanha lutando ao lado dos republicanos (Seijas, 2001). Dirige-se num primeiro momento a Londres, transferindo-se depois para Glasgow, na Escócia. Mantém-se ministrando aulas de espanhol, atua como ‘lector’ na Universidade de Glasgow e profere conferências em diferentes localidades da Grã-Bretanha (Menezes, 2014).
A permanência na Grã-Bretanha dura três anos. Em 1939 é convidado a trabalhar na Universidade Nacional de Tucumán, Argentina, onde efetivamente chega em março de 1939, como noticia a imprensa local.
Procedente de Buenos Aires, chegou ontem ao meio-dia a nossa cidade o professor Lorenzo Luzuriaga, contratado pela Universidade Nacional de Tucumán para ocupar a cátedra de Pedagogia do Departamento de Filosofia e Letras. O professor Lorenzo Luzuriaga, que vem diretamente da Universidade de Glasgow, Inglaterra, foi professor de pedagogia da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Madri e diretor-fundador da Revista de Pedagogia, a qual se publicou de 1922 a 1936, considerada como una das publicações periódicas mais importantes em nossa língua (Recorte de jornal constante do arquivo pessoal de Lorenzo Luzuriaga apud Barreiro Rodríguez, 1989, p. 39, tradução nossa)12.
Barreiro Rodríguez (1999) considera, sob determinada perspectiva, que a fase argentina da experiência intelectual e política de Luzuriaga tenha carecido do ânimo de transformação e envolvimento com a realidade que teria caracterizado sua trajetória anterior ao exílio, como assinala a fim de iluminar sua importância para a renovação pedagógica em Espanha no primeiro terço do século XX.
Por isso, Luzuriaga, que já deixava uma obra sedimentada na Espanha, terá suas dúvidas e vacilações no exílio. Dificilmente podia haver una linha de continuidade investigadora - sobretudo no âmbito das ciências sociais, tão no coração de nossa própria vida - depois de viver acontecimentos tão duros. Uma derrota como aquela [menciona aqui o desfecho da Guerra Civil] transforma qualquer projeto pessoal de vida - como diria Ortega [o filósofo espanhol José Ortega y Gasset]. Por essa razão, a produção pedagógica de Luzuriaga no exílio continua, aparentemente, em idêntica progressão que na Espanha - ou até se acelera -, porém, será na verdade uma produção substancialmente distinta. Faltará a ela o contato com a realidade prática, tão conhecida e peculiar. Faltar-lhe-á os nutrientes naturais. Faltar-lhe-á alma. Faltar-lhe-á vida. (Barreiro Rodríguez, 1999, p. 34, tradução nossa)13.
Ainda conforme o mesmo autor, “[...] as coordenadas pelas quais se movia o mundo da educação já seriam outras com o término da Segunda Guerra Mundial” (Barreiro Rodríguez, 1989, p. 36) e, embora os pilares do pensamento pedagógico de Luzuriaga se mantivessem no período pós-1945, o enquadre das motivações já era outro, sendo também diferentes muitas das demandas e das aspirações de desenvolvimento educacional que encontra na Argentina.
Talvez tenha sido essa nova atmosfera que contribuiu para que Luzuriaga vivesse ‘com muito entusiasmo’ seus primeiros anos na Universidade de Tucumán, em função do convívio ali experimentado, notadamente na Faculdade de Letras, onde estava lotado Lorenzo Luzuriaga logo em seu ingresso (Mendez, 2014). Aí ocupou, inicialmente, as cadeiras de pedagogia e psicologia aplicada à educação para só depois, em 1941, por concurso, assumir a cadeira de história da educação. Apesar do cenário alvissareiro, o golpe militar de 1943 restringiu a autonomia das universidades nacionais argentinas, contribuindo decisivamente para Luzuriaga deixar seu posto em Tucumán e rumar para Buenos Aires, onde retoma o trabalho como editor. De 1944 até o final da primeira década seguinte permaneceu fora da universidade, dedicando-se ao trabalho editorial, tanto na Losada quanto nos empreendimentos a que se entregou, como em Realidad - Revista de Ideas14 e colaborações para a imprensa - tornou-se colaborador dominical do La Nación, publicando em sua ‘Sección Literaria’ (Barreiro Rodríguez, 1989). Adicionalmente à Realidad e às contribuições ao La Nación, colaborou com algumas revistas educativas, como La Prensa e Sur (Dabusti de Muñoz, 1999-2000).
As viagens ao exterior também fizeram parte da fase que se segue ao renúncio da cátedra na Universidade Nacional de Tucumán. Tais viagens incluem o Chile, onde participa da Escola de Verão na Universidade do Chile, em Santiago, convidado pela escritora e educadora Amanda Labarca, e a Venezuela, onde profere conferências e ensina na Universidad Central de Venezuela, em Caracas, além de efetuar algumas viagens à Europa (Seijas, 2001). Até que, no início de 1956, logo após o golpe militar que derrubou o governo de Juan Domingo Perón, “[...] assumiu por concurso as cadeiras de Didática e História da Educação na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires” (Mendez, 2014, p. 241).
Conquanto a variedade das empresas a que se dedicou na América do Sul, o que mais distinguiu e absorveu Luzuriaga nas duas décadas em que viveu no Novo Mundo foi o trabalho dedicado às funções de escritor, tradutor e editor na Losada Editorial. Sua produção na editora de Gonzalo Losada foi bastante fecunda, transcendendo as fronteiras do país, pela circulação das obras nas repúblicas vizinhas. Além de integrante do Conselho Editorial e membro da direção, coube a Luzuriaga organizar toda a publicação concernente ao campo pedagógico na Losada Editorial, dando vazão não apenas aos seus próprios escritos - ao todo 12 títulos autorais -, bem como de importantes nomes da educação em língua espanhola, além de levar adiante um vigoroso trabalho de compilação (as antologias de Johann F. Herbart e Johann H. Pestalozzi) e tradução dos originais (do inglês e do alemão) de grandes nomes do pensamento pedagógico, a exemplo de Dewey, Kilpatrick, Nohl, Rohracher e Dilthey. Dentre as coleções das quais assumiu a direção figuraram: ‘Biblioteca Pedagógica, Biblioteca del Maestro, Escuela Activa, Cuadernos de Trabajo, La Nueva Educación e Antologías’ (Dabusti de Muñoz, 1999-2000).
Estritamente no que tange aos temas pedagógicos de eleição de Luzuriaga na Losada, pode-se observar que, conquanto vasta a obra, a temática da Escola Nova continuou a interessar em primeiro plano o autor, seja como objeto central ou pano de fundo que orientava o telos de alguns títulos. O que fica mais nítido, contudo, é a maior variedade pelo qual interpela domínios caros às ciências da educação, como as tendências contemporâneas da pedagogia e dos estudos educacionais, as reformas educativas e, no caso de suas obras relacionadas à história da educação, o aprofundamento teórico da ciência educacional de maneira a extrair as inteligibilidades que orientaram o pensamento e as ações no campo da educação e da pedagogia e o que eles indicam aos coevos quanto às possibilidades e necessidades do presente.
Sensíveis a essa operação, passa-se à investigação da presença do tema ‘educação pública’, atento ao tratamento que ela recebeu na escrita da história da educação de Luzuriaga e ainda interessado em examinar como tal presença e as tensões entre os referentes nacional e supranacional se expressaram no título Historia de la educación pública.
A historicização da temática ‘educação pública’
Historia de la educación pública foi publicada originalmente em 194615, pela Losada Editorial, constituindo o volume 17 da ‘Biblioteca del Maestro’. Foram localizadas mais três edições: em 1950, 1954 e 1964, todas pela mesma editora. Da segunda edição em diante a numeração das páginas se altera - e, consequentemente, o tamanho do livro fica menor - em função da maior concentração dos caracteres por página. Porém, não há mudança das partes e seções e nem do conteúdo. Na tradução que recebeu para o português, realizada pela editora brasileira Companhia Editora Nacional, de São Paulo, identificou-se apenas uma edição, em 195916.
Observa-se em Historia de la educación pública o mesmo padrão de desenvolvimento da narrativa, a partir de uma linearidade cronológica, padrão encontrado em outras publicações de Luzuriaga e também uma tônica dos manuais de história da educação pelo menos desde a passagem do século XIX para o XX. Outra similaridade em relação a outros títulos do autor é a ausência de ilustrações. Em decorrência da especificidade temática - a educação pública, compreendida no livro quase que integralmente pela sua realização na forma escolar - a baliza cronológica inicial principia com as iniciativas de educação pública que transcorrem durante o Renascimento europeu. Distintamente, por exemplo, de Historia de la educación y de la pedagogía, em que o fenômeno educacional e pedagógico é examinado desde suas manifestações naquela que ficou conhecida como a ‘Antiguidade Oriental’, englobando desde o ‘Oriente Próximo’ até a China, no volume 17 da Biblioteca del Maestro a ‘aventura histórica’ da educação pública está circunscrita ao continente europeu e a um único país das Américas, os Estados Unidos.
Valem aqui duas ressalvas: em primeiro lugar a Europa compreendida envolve também a Rússia17, mas tão somente no interior do período que Luzuriaga denomina de ‘A educação pública democrática’, ou seja, no lapso temporal entre a vitória bolchevique de 1917 e o início da Segunda Guerra Mundial, abrangendo, assim, exclusivamente a experiência comunista. Vale pontuar que, de 1922 em diante, a Rússia é uma das 14 repúblicas que compunham a URSS; em segundo, no caso do Novo Mundo, Luzuriaga não incluiu, como fez com Historia de la educación y de la pedagogia, o exemplo das repúblicas originárias da decomposição do império espanhol nas Américas, o que certamente suscita a dúvida de sua não inclusão na ‘aventura da educação pública’, notadamente pelo fato de em algumas dessas repúblicas, como a própria Argentina onde vivia, apresentar um desenvolvimento considerável da ‘educação pública’ naquela década de 1940.
Luzuriaga estruturou a obra em cinco partes, adicionando ao final uma breve ‘Conclusão’.
Introducción, totalizando quatro páginas, na qual o autor justifica os limites inicial e final da cronologia e fornece alguns traços genéricos do que comporia a organicidade de cada uma das etapas em função da natureza da cultura pedagógica e educacional peculiar de cada uma delas. Aliado a essa operação, Luzuriaga justifica o proveito e mesmo originalidade do livro ao criticar a ausência de esforços da historiografia educacional em produzir sínteses que ultrapassem as fronteiras das histórias nacionais, não se observando, segundo o autor nos idos de 1946, trabalhos que permitissem uma visão conjunta do problema para além das especificidades do quadro do Estado-nação.
La educación pública religiosa, totalizando 18 páginas, conformada nos marcos da ascensão da oferta de escola pelas sociedades que sofreram os efeitos das reformas protestante e católica, desde o início do século XVI até a passagem do século XVII ao XVIII. Ainda que a ação escolar seja aqui desempenhada quase que integralmente por sujeitos e instituições religiosos, o que justifica o qualitativo de ‘pública’ a essa educação é o aspecto secular que ela adquire. Trata-se, indubitavelmente, da ruptura educacional que se engendra com a dissolução de muitas instituições da Idade Média e o substrato humanista que permeia a ação educacional de protestantes e católicos dos mais variados matizes, estendendo-se pelo século XVII, período em que Luzuriaga acompanha o que a historiografia educacional celebrizou como ‘o nascimento da Didática’, ao destacar a obra e a ação pedagógica de Ratke e Comênio e as apropriações dos métodos de ensinar criados por esses pelos Estados e autoridades públicas. O espectro espacial da análise abarca toda a Europa continental, as ilhas britânicas, atingindo até as 13colônias inglesas originais na América do Norte, embrião dos Estados Unidos.
La educación pública estatal, totalizando 17 páginas, abrange basicamente o século XVIII, centúria em que continua o processo de secularização da educação iniciado no século XVI, agora com a presença de um ator novo: o Estado central. A educação pública aqui a encontramos na progressiva subordinação da educação secularizada ao Estado. É a era dos déspotas esclarecidos: Frederico II, na Prússia; Maria Teresa e José II, na Áustria; Catarina, na Rússia; Carlos III, na Espanha, todos monarcas citados na obra por Luzuriaga, quadro ao qual poderíamos acrescentar Gustavo II da Suécia e, no caso português, conquanto não tenha sido rei, o Marquêsde Pombal, principal ministro do reinado de D. José I e ícone do despotismo esclarecido em Portugal. No âmbito pedagógico a etapa é dominada pelo racionalismo, pela crença na capacidade de aprimoramento humano via educação, a qual se processaria mais em consonância com os elementos da natureza que exclusivamente com os desígnios da Providência.
O caráter estatal da educação pública, em que pese Luzuriaga, para seus propósitos didáticos, cingir aos três primeiros quartéis do século XVIII, poder-se-ia com facilidade ser estendido para o século XIX, dada não apenas à flexibilidade das temporalidades históricas, mas, sobretudo, a desigualdade das histórias educacionais das sociedades organizadas em Estados. Obviamente que aqui o significado do termo estatal ganha contornos mais definidos na contraposição à tipologia que o sucede, isto é, o ‘nacional’, dimensão que se enraíza e é sobretudo buscada pelos Estados que se afirmam ou que surgem ao longo do século seguinte. Como se sabe, a história da educação na Europa, nas Américas e em outras partes do globo, atingidas pelo processo de ocidentalização, assinala a destinação de um lugar proeminente - em alguns casos muito mais no plano discursivo que prático - conferido à educação, em larga medida pela constituição das malhas ou redes de ensino elementar, com significativo aumento da oferta de instrução primária, instrumento entendido indispensável por vasta parcela das autoridades públicas e das elites econômicas, sociais e culturais para a consecução de um determinado estatuto de civilização e grau de desenvolvimento material e intelectual das ‘nações’, não dissociado, requer que se sublinhe, das finalidades de controle e disciplinamento dos corpos e populações. Além do papel preponderante dos philosophes para que se constituísse uma ideia mais precisa de educação pública estatal, bem como do papel destacado que tiveram por influir direta e indiretamente junto à realeza no processo de configuração de uma educação promovida pelo Estado, não mais subordinada às igrejas, no período compreendido pela educação estatal pública ocorre a publicação do Emílio, obra fundamental para a história da educação e da pedagogia, que introduz a orientação individualista na educação. A filosofia da educação de Rousseau dominaria, conforme Luzuriaga, o espírito dessa etapa. Luzuriaga nessa seção abarca a educação estatal pública apenas na Europa continental, sem menção à Inglaterra.
La educación nacional, totalizando 59 páginas, a seção mais extensa do volume, temporalmente abrange o final dos Setecentos e todo o século XIX. Há uma nítida correia de transmissão entre a educação que se hegemoniza nos Oitocentos, levada a cabo pelos Estados nacionais, com o legado deixado pela Revolução Francesa, e os conceitos de pátria e cidadania aí exarados, sintetizada na passagem: “A Convenção deixou, no entanto, assentadas as bases da educação nacional, que haviam de se realizar no século XIX” (Luzuriaga, 1946, p. 85, tradução nossa)18. Aliás, o ‘nacional’ acoplado à educação pública remete exatamente à substituição da formação do súdito pela formação do cidadão. Tal formulação ocupa toda a apresentação relativa à ‘educação pública nacional’ no século XVIII, 16 páginas, já que Luzuriaga se atém quase que exclusivamente aos projetos de reforma da educação empreendidos pelos homens da Revolução em suas três fases, reservando menos de quatro páginas para as experiências britânica e estadunidense. A ‘educação pública nacional’ no século XIX não possuiria uma forma monolítica, mas cindida, cujas expressões corresponderiam a dois momentos do desenvolvimento histórico na centúria: a que emerge até 1848 - marco das revoluções liberais radicais que grassavam pela Europa - responderia pela tentativa de desenvolver e confirmar “[...]os princípios da educação nacional iniciada com a Revolução francesa” (Luzuriaga, 1946, p. 95, tradução nossa)19; sendo a que a sucede, até o final dos Oitocentos, remeteria à tentativa dos Estados-nação em estabelecer seus sistemas nacionais de ensino. A partir desse ponto Luzuriaga passa a segmentar a análise por país, privilegiando a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha e os Estados Unidos. Como um reconhecimento dos ritmos desiguais no desenvolvimento do ensino, a par dos diferentes caminhos trilhados pelos países acima com vistas à consolidação de seus sistemas de ensino nacionais e dos modelos institucionais para esse fito adotados, ressalta na avaliação de Luzuriaga o reconhecimento de que a ‘educação pública democrática’, símbolo da organização dos sistemas de ensino no século XX, precocemente pode ser encontrada com a efetivação da escola de massas nos Estados Unidos, e também pelo avanço nesse país da pedagogia moderna, notadamente do ideário pestalozziano, traduzindo-se numa estrutura educacional que de fato conseguiu a massificação do ensino elementar e franqueou a educação infantil, o secundário e, em determinada medida, até o ensino superior a faixas menos restritas da população. Nesse sentido, os Estados Unidos se tornaram, na visão do autor, precursores da educação democrática, antes mesmo de inaugurado o século XX.
La educación pública democrática, totalizando 49 páginas, representa para Luzuriaga a culminância do desenvolvimento histórico da escola pública, sendo a característica mais saliente da sua contemporaneidade. De maneira idêntica à solução adotada para a ‘educação pública nacional’ no século XIX, Luzuriaga aborda a manifestação da ‘escola pública democrática’ nos marcos da territorialidade representada pelo Estado-nação, selecionando para observação mais detalhada os casos da Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia e Espanha. Em linhas gerais, nessa fase, de um lado, consolida-se em boa parte dos países do ocidentais a escolarização de massas e os sistemas de ensino que começaram a ser organizados na segunda metade do século XIX; e, de outro, presencia-se a maturação histórica dos princípios fundamentais pelas quais se deveria estruturar tais sistemas e, por conseguinte, as unidades escolares que os compõem, princípios esses que são brandidos nos trabalhos de Luzuriaga desde, pelo menos, a década de 1920 na Espanha, ao postular a escola pública, laica, única e ativa. Se a escola principiara a se tornar pública com o século XVI, com as inflexões possibilitadas pelas reformas religiosas e pelo influxo do pensamento humanista; se ela caminha para a laicidade com o século XVIII, no lastro da difusão dos ideais iluministas e do fortalecimento dos Estados centralizados; no século XIX avançam as concepções de integração dos níveis de ensino, como resultado de lutas e também da recusa de parte importante das elites culturais e políticas em relação à dualidade do ensino, o que faria crer não apenas na necessidade, bem como na viabilidade, para Luzuriaga, da criação/efetivação da escola única; e, por fim, já no século XX, em várias das sociedades abrangidas pelo livro aqui examinado, como resultado dos avanços da pedagogia moderna que já se faziam sentir desde as décadas finais do século XIX20 e que se atualizaram ao longo dos primeiros decênios da centúria seguinte em decorrência do movimento escolanovista, agregando, desse modo, à escola, o último adjetivo do célebre aforisma cunhado pelo pedagogo espanhol: ativa21.
Considerações finais
A historicização do tema ‘educação pública’, realizada por Luzuriaga em 1946 com a publicação de Historia de la educación pública, segue, em linhas gerais, um percurso evolucionista que caracteriza seus demais títulos relacionados à história da educação, muitos dos quais ainda estavam por ser publicados. Luzuriaga persegue, à luz da inspiração diltheyana que compartilhava, os esquemas gerais de cada época pelos quais a educação na sua faceta pública, isto é, apartada das iniciativas domésticas e singularizada pela manifestação segundo a forma escolar moderna, apresentava-se. Se é fato que as etapas - ‘educação pública religiosa’, ‘educação pública estatal’, ‘educação pública nacional’ e ‘educação pública democrática’ - em que o livro está estruturado apresentam divisões por século, a introdução de subdivisões a partir do século XIX,subdivisões que correspondiam à realidade ‘observada’ nos países selecionados por Luzuriaga para análise, carregava consigo um balizamento do desenvolvimento pedagógico e educacional de cada etapa, segundo o qual as realidades da ‘aventura da educação pública’ em cada um desses países eram apresentadas ao leitor em função do maior ou menor ‘espelhamento’ face ao ‘espírito geral’. Adicionalmente, tais subdivisões irrompem no texto apenas na etapa correspondente à ‘educação pública nacional’ e no século XIX, momento em que os estados consolidavam uma tendência que se iniciara no século anterior, de transição do protagonismo na organização da oferta de educação escolarizada das igrejas, congregações e células religiosas para os poderes estatais centrais. A organização das diferentes seções que compõem o livro, portanto, apresentam um longo arco temporal - correspondente aos séculos XVI, XVII e até o terceiro quartel do século XVIII - em que as peripécias da educação pública são vistas tendo por pano de fundo um grande bloco político-religioso, traduzido pela cristandade europeia, aí incluídas as sociedades católicas e as protestantes; e outro período de cerca de 170 anos em que, conquanto o aparente paradoxo,o ‘espírito geral’ da ‘educação pública’ adquire fisionomia concreta nas experiências de constituição e consolidação dos Estados nacionais.
Todavia, aquele presente em que Luzuriaga produzia seu livro, encerrado ainda nos marcos da ‘educação pública democrática’, assinala para o autor a emergência de nova métrica com que classificar doravante a aventura histórica da ‘educação pública’. Tal métrica dissonava da escala primordial adotada para o estudo das etapas nacional e democrática da mesma ‘educação pública’, ou seja, a aferição de seu itinerário histórico nos marcos do Estado-nação. Muito provavelmente em decorrência das transformações trazidas pela Segunda Guerra Mundial22 e pelo cenário que se descortinava com o término do conflito, a necessidade de uma escala de observação mais ampla, que se convertia pronto nas intencionalidades de Luzuriaga em um instrumento de promoção de um ideal universal de democracia, de oposição aos nacionalismos, apto, portanto, a se sobrepor aos particularismos que de maneira recalcitrante se opunham ao espírito geral do século XX, ganha destaque no fechamento do livro de 1946. O prisma segue sendo o da evolução, próprio da inteligibilidade emprestada pelo autor aos fenômenos estudados nos títulos da área de história da educação que publicou - e publicará - na Losada Editorial, porém, certa noção de aprimoramento da razão humana que se mostra a tônica em muitos dos conteúdos trazidos à baila nesses mesmos livros de história da educação é substituída por uma alegada defesa de reparo, a ser efetuado na obra dos antepassados. Tal leitura é sugerida pelo trecho a seguir:
Porém, ao mesmo tempo temos também que completar e em parte retificar a obra de nossos antepassados. Esta se achava baseada em uma concepção nacional, ou melhor, nacionalista, da educação. Isso trouxe, entre outras, a desastrosa consequência de sofrer o mundo duas guerras espantosas em menos de vinte e cinco anos (Luzuriaga, 1946, p. 234, tradução nossa)23
A colaboração internacional postulada por Luzuriaga nas conclusões de seu trabalho, além de buscar impedir no futuro “[...] os fatos sangrentos do passado” (Luzuriaga, 1946, p. 234, tradução nossa)24, acredita-se aqui intentou também favorecer a disposição que vinha sendo praticada por ele mesmo e seus mentores na ILE e no Museu Pedagógico desde fins dos Oitocentos, procurando por meio da interlocução e da circulação internacional de pessoas, ideias, saberes, materiais e modelos pedagógicos a promoção dos princípios democráticos universais, já, como o próprio nome o diz, não mais exclusividade de grupos ou países isolados.Ela teria visado a erigir, pari passu, uma condição mais favorável, pela qual os educadores e educadoras, homens e mulheres de ciência, poderiam prosseguir com seus projetos, estudos e análises, atualizados em relação às experiências mais frutíferas e, outrossim, de certa maneira mais protegidos pelo fortalecimento de um ‘espírito de corpo’, no caso de especialistas educacionais, em âmbito internacional.
Como corolário dessa colaboração internacional, Luzuriaga alude aos trabalhos de cooperação iniciados na Organização das Nações Unidas (ONU), no âmbito da ‘Organização educacional, científica e cultural’ (Unesco), ambas, recorda-se, criadas no momento em que o autor procedia à escrita do livro aqui explorado. Luzuriaga, pelo que se depreende, não apenas ansiava o estabelecimento de uma organização mundial do porte da Unesco, como acompanhava com interesse os trâmites que levaram ao seu estabelecimento, como se atesta pelas suas colunas no jornal La Nación no final de 1945 e início de 1946 (Luzuriaga, 1946, p. 236). Os particularismos e nacionalismos encontrariam na Unesco, na apreciação de Luzuriaga, uma barreira para seu florescimento. Tão característico de seu otimismo antropológico, ainda que abalado pelos gravíssimos conflitos bélicos do século XX de que foi testemunha viva, Luzuriaga taxativamente apregoava em favor das liberdades individuais, do progresso da ciência e do favorecimento a seu acesso, da cultura e educação e do respeito às instituições democráticas:
Pela primeira vez na história se vai contar com uma instituição mundial de educação, cultura e ciência, que pode ter uma influência extraordinária na vida do futuro. Seu êxito sem dúvida dependerá essencialmente dos acordos políticos a serem adotados pelos países que agora se reúnem para determinar a sorte do mundo. Porém, a longo prazo, a paz e segurança dele dependerão, mais que das circunstâncias políticas, da atmosfera espiritual que venha a se formar nos povos (Luzuriaga, 1946, p. 236, tradução nossa)25.
Inaugurar-se-ia, com isso, um novo estágio da ‘educação pública’, o qual, condizente com a filosofia da história de matriz diltheyana que pontificava em seus trabalhos de história da educação, viria substituir a etapa da ‘educação pública democrática’: chegava-se, pois, ao tempo da educação pública supranacional, universal.