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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 15-Jan-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e250 

Artigo Original

Apropriações da geometria de José Augusto Coelho na formação de professor primário do Brasil e de Portugal (passagem do século XIX e século XX)

Appropriations of José Augusto Coelho's geometry in the training of primary teacher in Brazil and Portugal (passage of the 19th and 20th centuries)

Apropiaciones de la geometría de José Augusto Coelho en la formación del docente primario en Brasil y Portugal (pasaje de los siglos XIX y XX)

Maria Célia Leme da Silva1  * 
http://orcid.org/0000-0001-6029-0490

1Universidade Federal de São Paulo, Diadema, SP, Brasil.


Resumo:

No presente artigo, problematizamos as apropriações para o ensino de geometria elaboradas por José Augusto Coelho, na passagem do século XIX para o XX, no Brasil e em Portugal. Mobilizamos manuais pedagógicos de Portugal, normativas e pesquisas sobre a formação de professores portugueses e brasileiros, para a análise, diálogo e cotejamento das fontes. Como conclusões, destacamos que as divergências e tensões entre as abordagens dos ‘saberes a ensinar e para ensinar’ contribuem para elucidar a apropriação de Coelho no processo formativo de professores nos dois países. O alargamento no processo analítico, de modo a incluir outras disciplinas que participaram da formação do professor primário, como a de Desenho, permite melhor compreender os saberes profissionais em questão, seja no contexto de Portugal, seja no do Brasil.

Palavras-chave: José Augusto Coelho; história da geometria escolar; método intuitivo; manuais de pedagogia

Abstract:

In this article, we problematize the appropriations for the teaching of geometry developed by José Augusto Coelho, in the turn of the 19th to the 20th century, in Brazil and Portugal. We mobilized pedagogical manuals from Portugal, regulations and research on the training of Portuguese and Brazilian teachers, for analysis, dialogue and comparison of sources. As conclusions, we emphasize that the divergences and tensions between the approaches of the ‘knowledge to teach’ and ‘knowledge for teaching’ contribute to elucidate the appropriation of Coelho in the training process of teachers in both countries. The expansion of the analytical process to include other disciplines that participated in the training of primary teachers, such as Drawing, allows a better understanding of the professional knowledge in question, whether in the context of Portugal or Brazil.

Keywords: José Augusto Coelho; history of school geometry; intuitive method; pedagogy manuals

Resumen:

En este artículo, problematizamos las apropiaciones para la enseñanza de la geometría desarrolladas por José Augusto Coelho, en el cambio del siglo XIX al XX, en Brasil y Portugal. Movilizamos manuales pedagógicos de Portugal, normativas e investigaciones sobre la formación de profesores portugueses y brasileños, para análisis, diálogo y comparación de fuentes. Como conclusiones, destacamos que las divergencias y tensiones entre los enfoques del ‘saber a enseñar’ y el ‘saber para enseñar’ contribuyen a dilucidar la apropiación de Coelho en el proceso de formación de docentes en ambos países. La ampliación del proceso analítico, para incluir otras disciplinas que participaron en la formación de profesores de primaria, como el Dibujo, permite una mejor comprensión del saber profesional en cuestión, ya sea en el contexto de Portugal o Brasil.

Palabras clave: José Augusto Coelho; historia de la geometría escolar; método intuitivo; manuales de pedagogía

Introdução

As pesquisas sobre a História da Educação e, mais especificamente, da História da Educação Matemática, têm apontado a importância das pesquisas sobre a circulação de ideias e propostas pedagógicas entre as nações. O entendimento de que certos países centrais elaboraram modelos educacionais que foram exportados para os periféricos foi posto em cheque nas últimas investigações. O livro do Matasci (2015), ao inserir novas fontes para a produção da história da construção do modelo pedagógico francês, desde a segunda metade do século XIX, evidenciou a relevância dos contatos e interações que a França manteve com o exterior. Destacamos, em particular, o papel das missões pedagógicas, que correspondiam ao envio de profissionais da educação para conhecer os sistemas de ensino estrangeiros; as exposições universais, que passaram a inserir espaço para a troca e o debate acerca de materiais didáticos, modelos pedagógicos, entre outros intercâmbios e transferências de agentes culturais. Podemos indicar que a situação analisada por Matasci na França não foi isolada, as interações entre as nações eram incentivadas por inúmeros países, ao menos desde a metade do século XIX.

De outra parte, os manuais escolares ou pedagógicos constituíram-se como exemplos relevantes de agentes culturais num movimento de ideias pedagógicas internacionais, em especial, no processo de organização de um sistema educacional público, na segunda metade do século XIX e início do século XX. Todavia, as diferenças entre os contextos não podem nem devem ser desconsideradas, seja em termos econômicos, políticos ou sociais. O Brasil, por sua dimensão e inúmeras conexões com o estrangeiro, participou, de acordo com a região, de interações com o exterior, como podemos constatar na pesquisa que analisou sete manuais de geometria e de pedagogia utilizados no Brasil no final do século XIX e início do século XX, manuais esses produzidos no Brasil, na França, nos Estados Unidos e na Alemanha (Silva & Leme da Silva, 2020).

Nesse sentido, consideramos os manuais escolares do final do século XIX e início do século XX como fontes preciosas para a compreensão do que Matasci (2015) designou como primeira globalização. A tese, intitulada Uma geometria para ensinar: elementos do saber profissional do professor que ensina matemática (1870-1920), de Fortaleza (2021) é mais uma contribuição que toma como fonte de investigação manuais de Pedagogia direcionados à formação de professores dos primeiros anos escolares no Brasil entre 1870 e 1920. O objetivo dessa pesquisa foi caracterizar uma ‘geometria para ensinar’, considerando o conjunto formado por oito manuais pedagógicos identificados em certas regiões do Brasil, conforme a Tabela 1:

Tabela 1 Manuais de Pedagogia que compõe o corpus de fontes de pesquisa 

Ano de publicação Autor País do autor Manual Onde esteve presente
1872 Thomas Braun Bélgica Cours théorique e pratique de pédagogie et de méthodologie Escola Normal do RJ
1873 Antonio Marciano da Silva Pontes Brasil Compêndio de pedagogia Escola Normal de SC, SP, RJ
1890 José Maria Graça Affreixo e Henrique Freire Portugal Elementos de pedagogia Escola Normal da Corte, Niterói e Campos (RJ)
1892 José Augusto Coelho Portugal Princípios de pedagogia Escola Normal de SP, PA
s/d (1892 - 1907) José Augusto Coelho Portugal Manual prático de pedagogia Escola Normal de Piracicaba (SP), SP
1907 José Augusto Coelho Portugal Noções de pedagogia elementar Escolas Normais
1907 Sem autor Sem referência Lições de pedagogia Escola Normal de SP
1920 Irénée Carré e Roger Liquier França Traité de pédagogie scolaire Escola Normal de SP, RJ

Fonte: Tabela adaptada de Fortaleza (2021, p. 80).

Acrescentamos a tabela de Fortaleza (2021), o país de origem do autor, supostamente local onde o manual foi produzido. Destacamos, em relação a Tabela 1, que o primeiro manual foi escrito por um autor belga (1872); o segundo tem autoria de um brasileiro de Minas Gerais (1873); quatro deles foram produzidos por autores portugueses (1890, 1892, s/d, 1907); um, não traz autoria (1907); e o último foi elaborado por um autor francês (1920). A pesquisa buscou consensos e convergências de propostas que tiveram sua produção em contextos distintos ao do Brasil. Chamou a nossa atenção a predominância dos manuais produzidos por autores portugueses. A tese concluiu que:

[...] essa geometria para ensinar está pautada na articulação e mútua dependência entre a geometria a ensinar mobilizada e os saberes para ensinar geometria, de modo que a maneira como acontecem essas articulações e mobilizações caracteriza essa geometria como intuitiva, o que nos permite sustentar que entre 1870 e 1920 a cultura escolar elaborou e manteve estável na formação dos professores dos primeiros anos escolares uma ferramenta de trabalho do professor relativamente à docência em geometria que pode ser caracterizada como geometria intuitiva para ensinar (Fortaleza, 2021, p. 9).

Como salientado anteriormente, a cultura escolar teve papel predominante no processo de elaboração e sistematização das ferramentas necessárias para que um professor ensinasse geometria no período, do mesmo modo que a articulação entre a geometria a ensinar e para ensinar. Para analisar os complexos movimentos curriculares da formação, Valente, Bertini & Morais (2021) destacam projetos coletivos que reúnem e problematizam uma multiplicidade de informações originárias de documentos diversos.

No presente artigo, temos, portanto, o intuito de problematizar as apropriações para o ensino de geometria presente nos três manuais portugueses escritos por José Augusto Coelho1. Escolhemos esses manuais por abarcarem um período amplo (entre 1892 e 1907), bem como pelo fato de haver evidências de que eles estiveram presentes na Escola Normal de São Paulo, de Piracicaba (interior do estado de São Paulo, região sudeste do Brasil) e do estado do Pará, região norte do país (Fortaleza, 2021).

Para tanto, mobilizamos os manuais pedagógicos produzidos em Portugal e indicados para Escolas Normais do Brasil, os resultados de pesquisas desenvolvidas em Portugal sobre a matemática presente na formação de professores portugueses e investigações brasileiras que analisam outras fontes, como relatórios de viajantes brasileiros que realizaram missão pedagógica em Portugal, além de normas e programas curriculares para a formação do professor no Brasil, entre outros materiais. Nossa intenção foi alargar o espectro de análise ao cotejar e problematizar um conjunto amplo de fontes.

Geometria e desenho na formação de professores do primário

As pesquisas sobre a História da Educação Matemática em Portugal e no Brasil vêm sendo produzidas com parcerias, em particular, intensificadas depois de projeto de pesquisa de Cooperação Internacional2 desenvolvido entre os dois países. Essas atividades certamente estreitaram os espaços de produção, de trocas e de interações entre pesquisadores brasileiros e portugueses.

A matemática e o seu ensino na formação de professores: uma abordagem histórica é o título da obra coordenada por José Manuel Matos e publicada pela APM - Associação de Professores de Matemática - em dois volumes, em 2018. O cenário que procuramos contextualizar para este artigo foi sintetizado do capítulo do livro ‘A matemática na formação dos professores do ensino primário em Portugal da reforma pombalina de 1722 até 1910’ (Candeias, 2018), de modo a enfocar o período de publicações dos manuais pedagógicos produzidos por José Augusto Coelho, que compreende o intervalo entre 1892 e 1907.

Para compreender a estrutura do ensino primário português durante o século XIX, Candeias (2018) destaca a Reforma de 1844, que separou pela primeira vez o ensino primário em dois graus sequenciais (o 1.o e o 2.o grau), com os seus respectivos professores. Essa distinção foi mantida por vários anos, recebendo, por vezes, a denominação alterada, sendo o 1.o grau designado por ensino primário elementar; e o 2.o grau, por ensino primário complementar.

Sobre a formação de professores primários, Candeias (2018) sinalizou que, até o final da década de 1860, o ensino normal em Portugal se reduzia à Lisboa e a poucas escolas normais de ensino mútuo. No início de 1869, procurou-se associar o ensino normal a alguns liceus, criando, nesses, cadeiras de Pedagogia. No final desse mesmo ano, optou-se por outro caminho, o de criar escolas normais em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Viseu, extinguindo as escolas de ensino mútuo existentes.

Em 1890, assistiu-se a um processo de diferenciação entre as escolas normais. Nessa época, existiam as escolas de habilitação para o magistério de professores do ensino primário, as quais ofereciam uma formação simplificada e com caráter regional; e as consideradas de referência, em Lisboa, Porto e Coimbra. Vale salientarmos que o manual intitulado Princípios de pedagogia, produzido por José Augusto Coelho, data de 1892, período que coincide com a reorganização das escolas normais em Portugal e com a criação da cadeira de Pedagogia. Tudo indica que o referido manual tenha sido produzido justamente como demanda à nova cadeira para a formação de professores.

O exame de habilitação ao magistério primário representou outro marco para o período, em particular depois de 1896, em que ele passa a ser obrigatório para que a pessoa possa exercer a profissão. Ainda de acordo com Candeias (2018), os programas para os exames dos concorrentes ao magistério primário de 1870, em relação aos candidatos dos dois sexos, apesar de muitas semelhanças, distinguiam-se em alguns aspectos nas áreas de língua portuguesa, aritmética, história e geografia, agricultura e desenho linear. Os temas de matemática, para as candidatas, eram menos avançados e tinham um peso de cerca de 20% nas provas escritas e menos de 10% nas provas orais. Observamos que os temas presentes nos exames não incluíam a geometria e sim o desenho linear. A esse respeito, o pesquisador português detalha como o desenho linear era examinado:

O Desenho Linear apresentava-se dividido em Desenho Geométrico e Desenho à Vista. Na primeira parte, apenas destinada aos candidatos do sexo masculino, eram incluídos conteúdos relacionados com a matemática, como traçar duas retas paralelas, traçar um ângulo reto, agudo, obtuso ou de um determinado número de graus e avaliar as áreas e os volumes das figuras (Candeias, 2018, p. 22).

O historiador indicou um regulamento de 1881; porém observou que as suas regras eram muito menos detalhadas do que as de 1870 e que, aparentemente, estiveram em vigor até 1896. Os conteúdos dos exames tornaram-se semelhantes aos do curso das escolas normais, nos quais constavam: Provas escritas; resolução de dois problemas aritméticos e desenho geométrico à vista (Candeias, 2018).

A próxima mudança significativa foi feita com a Reforma do ensino primário e do ensino normal de 1901, que estabeleceu que a habilitação para a prática do ensino primário passava a depender da aprovação obrigatória no curso das escolas normais, ou das escolas de habilitação para o magistério primário, terminando com a possibilidade de pessoas sem um desses cursos poderem exercer a profissão. O exame de acesso foi regulamentado em 1902 e as provas escritas, que eram eliminatórias, envolviam a resolução de um problema de aritmética e um de geometria. Na tabela construída por Candeias (2018), em relação aos temas dos exames de acesso às escolas normais entre 1844 e 1902, somente em 1902, identificamos a resolução de um problema de geometria. Nos anos anteriores, a descrição dos problemas referenciara-se à aritmética elementar, ao sistema legal de pesos e medidas etc., sem fazer menção à geometria.

No que diz respeito às disciplinas com conteúdos de matemática que participavam dos cursos de formação dos professores do ensino primário, a tabela 2 construída por Candeias (2018) indica a designação das disciplinas relacionadas à geometria:

Tabela 2: Disciplinas nos cursos de formação de professor primário português 

Ano Disciplinas (relacionadas à Geometria)
1860 Desenho linear e suas aplicações na vida comum. Exercícios de aplicação da geometria à agrimensura.
1870 Noções de geometria e suas aplicações práticas. Desenho linear.
1881 Geometria elementar e suas aplicações mais usuais. Desenho
1896 Noções de geometria elementar.
1901 Geometria elementar.

Fonte: Tabela construída de Candeias (2018, p. 35).

Como já observado nos exames, identificamos nas disciplinas uma proximidade entre conteúdos referentes à Geometria e ao Desenho (ou Desenho linear); somente entre o final do século XIX e o início do século XX, a Geometria tornou-se mais independente, sem vínculos explícitos com o Desenho ou com o Desenho linear.

Finalmente, a análise realizada por Candeias (2018) dos programas das disciplinas dos cursos das escolas normais ou de habilitação para o magistério primário indicou que a disciplina de Geometria propriamente dita surgiu em 1881 (conforme a Tabela 1) e era composta dos seguintes conteúdos: no 1o. ano, os principais tópicos eram linha reta, circunferência e círculo, arcos, ângulos, perpendiculares, obliquas e paralelas e proporcionalidade das retas; no 2o. ano, círculos que cortam retas, triângulos, quadriláteros, polígonos, perímetros e áreas das figuras planas, noções de agrimensura e prática com instrumentos; no 3o. ano, problemas práticos sobre áreas, noções gerais de geometria no espaço, ângulos poliedros e triedros, teoremas fundamentais dos poliedros, superfícies cônicas, cilíndricas e esféricas, áreas e volumes de poliedros e de corpos limitados por superfícies curvas, cartonagem. Não há indicação de livros ou manuais para o ensino de Geometria; mas a sequência dos conteúdos distribuídos nos anos escolares evidencia uma abordagem clássica da Geometria Euclidiana, em que se inicia com a geometria plana, para, depois, apresentar a geometria espacial de acordo com a estrutura lógica-dedutiva.

Mesmo com espaço de uma disciplina própria, a Geometria ainda era identificada na disciplina de Desenho no regulamento de 1881, em que era trabalhada a representação das figuras geométricas. No 2o. ano, trabalhava-se o desenho geométrico das figuras estudadas no 1o. ano juntamente com as representações das figuras geométricas planas. No 3o. ano, o desenho geométrico abordava os poliedros e os exercícios sobre as perspectivas. A mesma estrutura foi mantida nos programas entre 1896 e 1902. Em 1910, com a implantação da República, novamente o contexto escolar e das escolas de formação de professores do ensino primário sofre mudanças (Candeias, 2018).

Em síntese, concluímos que a presença do desenho de figuras geométricas acompanha a marcha dos conteúdos propostos para a disciplina de Geometria, em outras palavras, nos dois primeiros anos, figuras geométricas planas são desenhadas, para, somente no terceiro ano, as figuras espaciais serem introduzidas. As disciplinas de Geometria e de Desenho se inter-relacionam, mantêm a mesma abordagem e a ordem lógica-dedutiva da Geometria Euclidiana, partindo da geometria plana nos primeiros anos, para, depois, realizar o estudo da geometria espacial.

No Brasil, a formação de professores durante o século XIX foi muito irregular, com exemplos de Escolas Normais que foram criadas e fechadas logo em seguida. Somente no final do século, os espaços de formação foram consolidados nos estados do país (Tanuri, 2000). Entretanto, referenciamos dois resultados que corroboram com as conclusões apontadas quanto ao contexto português.

Uma pesquisa realizada sobre manuais do ensino primário brasileiro referentes ao século XIX e os programas dos grupos escolares de São Paulo, no início do século XX, indicou que:

Em relação aos manuais escolares que orientam o ensino de Geometria e de Desenho, as primeiras produções de autores brasileiros datam do final do século XIX. Diferentes pesquisas analisaram os manuais produzidos neste contexto, em particular considerando os livros de Borges (1876), Gama (1880), Pacheco (1881) e Freire (1894). A característica comum ao grupo de manuais brasileiros é a inserção do desenho linear, visto como desenho geométrico, em que as construções das figuras são feitas com o auxílio de instrumentos, como a régua e o compasso; sendo que para alguns autores o desenho linear se apresenta de maneira explícita e para outros, implicitamente (Valente & Leme da Silva, 2020, p. 15-16).

Do lado da formação dos professores primários, a pesquisadora Cristina Oliveira (2015) analisou as disciplinas de Geometria e de Desenho, que participaram da formação de professores primários no período de 1890 a 1930, nos estados brasileiros de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, durante a Primeira República e concluiu que:

A geometria vai se estabilizar nos cursos normais brasileiros no período da Primeira República, em termos de conteúdos programáticos, é a geometria plana e espacial. O desenho linear parece ser o modelo que vai predominar, ocupando um papel de destaque na formação e participando como matéria de praticamente todos os anos do curso normal. O desenho desempenha uma função prática relevante de educar a vista e adestrar a mão - em muitos casos o desenho vem junto à caligrafia como disciplina (Oliveira, 2015, p. 52).

Há uma interação evidente entre ensino de Geometria e de Desenho identificada no contexto brasileiro, tanto nas escolas primárias e nos manuais escolares, quanto nas escolas normais de formação de professores. Movimento similar podemos também observar nas disciplinas de Geometria e Desenho nas normativas portuguesas.

Outra investigação que reitera os vínculos entre Geometria e Desenho foi defendida na tese de Conceição (2019). A pesquisa analisou os relatórios produzidos pelos professores viajantes brasileiros - Luiz Reis, Manoel Frazão e Amélia Costa -, ao realizarem missões pedagógicas para a Europa no final do século XIX. Eles viajaram com o objetivo de tomar contato e conhecer novas ideias pedagógicas e, ao retornarem, produziram relatórios descrevendo os contextos visitados: Portugal; Espanha; França; Suíça; Suécia; Inglaterra; e Bélgica.

O relatório de Luiz Reis, elaborado em 1892, apresentou a sua visita a Portugal3, descreveu os programas do ensino primário elementar do país e não identificou a matéria Geometria, mas a de Desenho Linear. Para a 1a. Classe, era proposto traçar linhas retas e realizar cópia de desenhos simples com o auxílio do papel quadriculado; para a 2a. Classe, traçavam-se linhas curvas, mistas e paralelas e objetos comuns eram desenhados; e, para a 3a. Classe, era indicada a denominação e o conhecimento das principais figuras geométricas, bem como os processos para construir perpendiculares com o uso de instrumentos, como transferidor e compasso.

Conceição (2019) salientou o percurso das construções no programa que foram caracterizadas pelo desenho à mão livre nas séries iniciais e, somente na terceira série, havia a indicação de uso de instrumentos. O pesquisador também analisou os programas das Escolas primárias dos outros países nos quais os viajantes brasileiros estiveram na busca pela matéria de Geometria, e elaborou uma síntese, conforme a Tabela 3:

Tabela 3: Programas da Escola Primária [ênfases adicionadas] 

País Matérias Geometria
Itália Leitura, Contabilidade, Escrita, Noções de coisas, Sistema métrico, ‘Desenho’ É inserida nas classes ‘posteriores’ ao primário elementar
Suíça Língua materna, Aritmética, Língua alemã, ‘Geometria’, Geografia, História, ‘Desenho’, Caligrafia, Ginástica e jogos, canto, ‘Trabalhos Manuais’ A partir da ‘terceira classe’
Inglaterra Leitura, Escrita, Contabilidade, ‘Desenho, Trabalhos Manuais’ ‘Geometria’ fica a cargo de critério de cada escola
Suécia Religião e moral, Língua nacional, Escrita, Aritmética, Geografia, História, ‘Slodj’, Canto e música vocal, ‘Desenho’, Ginástica ‘Geometria’ entra nas duas classes finais
Bélgica Leitura, Escrita, Cálculo (Matemáticas), Sistema métrico, Elementos de língua francesa, Elementos de língua flamenga, Geografia, História, ‘Elementos de desenho’, canto, Ginástica, ‘Trabalhos Manuais, Formas Geométricas’.
França Instrução moral e cívica, Leitura e escrita, Língua nacional, Cálculo e sistema métrico, História e geografia, Lições de coisas, ‘Elementos de desenho, Trabalhos Manuais’, Ginástica ‘Geometria’ aparece na instrução primária superior
Portugal Leitura, escrita, Quatro operações sobre números inteiros e fracionários, Elementos de gramática portuguesa, Princípios do sistema métrico decimal, ‘Princípio de desenho’, Doutrina cristã ‘Geometria’ aparece na instrução primária complementar
Espanha Leitura e escrita, Aritmética, Língua espanhola, Sistema métrico, ‘Desenho, Trabalhos Manuais’, História e Geografia, Ginástica.

Fonte: Tabela adaptada de Conceição (2019).

A conclusão da análise da Tabela 3 foi que a Geometria não está presente nos primeiros anos escolares dos programas do contexto europeu, mas era inserida nas séries posteriores (Conceição, 2022). Entretanto, as designações Desenho, Elementos de Desenho ou Princípios de Desenho eram frequentes, assim como os Trabalhos Manuais, que comentaremos em seguida.

A não presença da matéria de Geometria como um espaço específico de matéria escolar no início da formação das crianças pode indicar duas interpretações: a de que a sua proposta não era adequada para a introdução ou a chegada dos alunos no processo de escolarização, talvez, por suas características abstratas e formais; ou ainda, a necessidade de iniciar os processos de aprendizagem de maneira exploratória, intuitiva e, nesse sentido, apoiada em outras matérias, por exemplo, o Desenho e os Trabalhos Manuais.

Destacamos os resultados de pesquisas que sinalizaram a passagem do século XIX para o século XX como um período marcado pela circulação de novas metodologias e reformas educacionais para o ensino de geometria no cenário internacional (Barbin & Menghini, 2014). Além disso, todavia não haja um espaço específico para a Geometria como uma matéria escolar nos primeiros anos, os conceitos geométricos mostraram-se presentes em matérias afins. Os manuais de Pedagogia de José Augusto Coelho possuíam uma seção específica para abordar o ensino de Geometria no ensino primário, sem distinguir em que matéria esse saber deveria ser ministrado. Tudo nos levar a crer, porém, que os manuais de Pedagogia deveriam subsidiar as cadeiras ou disciplinas da formação do professor vinculadas à Pedagogia.

Do mesmo modo, os manuais de Coelho foram localizados na Biblioteca da Faculdade de Educação da Universidade São Paulo, e, assim, apontam fortes indícios de que esses manuais estiveram presentes na Escola Normal de São Paulo, como em escola do interior do estado e na região norte do país, no Pará. Ou seja, para além das matérias com foco na Geometria e no Desenho, também participaram da formação de futuros professores brasileiros as disciplinas com abordagem metodológica.

A pesquisa de Oliveira (2015) indicou que a preocupação com cunho profissional da formação das normalistas se intensificou no Brasil na década de 1910, quando começaram a surgir as disciplinas de metodologia em vários estados. Provavelmente, os manuais de Coelho, apesar de serem publicados no final do século XIX, talvez tenham circulado e se incorporado na formação docente no Brasil um ponto mais tarde, já nas primeiras décadas do século XX, como norteadores das disciplinas relacionadas à didática. Em Portugal, Candeias (2018) assinalou que, no início de 1869, procurou-se associar o ensino normal a alguns liceus, criando, nesses, cadeiras de Pedagogia. Quer dizer, tudo leva a crer que os manuais de Pedagogia de Coelho foram produzidos com o objetivo de subsidiar as cadeiras de Pedagogia presentes nas formações do professor primário português. Por fim, podemos inferir que o mesmo deve ter ocorrido no Brasil, pois os manuais devem ter sido mobilizados nas disciplinas de cunho profissional, como mencionou Oliveira (2015).

Manuais pedagógicos de José Augusto Coelho

A análise realizada por Fortaleza (2021) nos três manuais de Coelho de 1892, s/d e 1907, identificados em certas regiões do Brasil, trouxe vários resultados que apontam pequenas alterações entre as três publicações. No entanto, os principais destaques, comuns ao conjunto, podem ser sintetizados em: a) no que deve ser ensinado de geometria, a autora indica “Elementos da geometria espacial e da geometria plana, incluindo comprimento, áreas e volumes” (Fortaleza, 2021, p. 160-161); b) em relação ao que o professor deve saber para ensinar geometria, como (1) o uso das formas geométricas concretas em madeira, (2) o uso do sentido deve ser estimulado, (3) a ordem do ensino das formas geométricas deve partir do espaço para o plano, do todo para as partes, através de decomposições e recomposições que devem ser feitas paralelamente e (4) o ensino das medidas (comprimento, área e volume) deve ser iniciado na prática e, gradualmente, chegar às fórmulas dos cálculos.

A proposta pedagógica para o ensino de Geometria nos manuais de Coelho, supostamente desenvolvida nas cadeiras de Pedagogia, diferencia-se dos programas das disciplinas de Geometria e de Desenho, todas presentes na formação do professor primário português. O primeiro destaque é a não articulação das figuras geométricas com o desenho; o segundo ponto diz respeito à inversão da ordem do ensino, que, segundo Coelho, deveria ser iniciado pelos sólidos geométricos, em processos de decomposição e recomposição de figuras espaciais e planas (nas disciplinas de Geometria e de Desenho, a ordem é: das partes para todo, como visto anteriormente); e, terceiro e último, a inserção das medidas de maneira prática desde o início, e não ao final, como é proposto no programa de Geometria. O destaque para o papel do uso de materiais concretos como ponto de partida também distingue as duas abordagens, já que, no programa de Geometria em Portugal, a cartonagem, que poderia ser interpretada como um material concreto, é inserida no último tópico do 3o. ano.

Essas análises trazem indícios de que a inserção de novas abordagens metodológicas para o ensino primário na formação de professores, pautadas no método intuitivo no final do século XIX, foi realizada através das disciplinas de Pedagogia ou de Didática, desvinculadas das disciplinas que tinham como foco os saberes científicos. Em nosso exemplo, podemos observar um descompasso entre a abordagem tradicional da Geometria Euclidiana, lógica-dedutiva dos conceitos geométricos distribuídos e propostos nas disciplinas de Geometria e de Desenho, comparativamente às propostas veiculadas pelos manuais pedagógicos, as quais subsidiavam a formação das disciplinas vinculadas às Ciências da Educação.

Fortaleza (2021, p. 133) pontuou que Coelho “[...] não se alinha à rotina do ensino tradicional mas elabora uma apresentação pedagógica das formas geométricas na qual observamos interdependência entre saberes a ensinar e para ensinar para a constituição do saber profissional do professor”. Em nossa interpretação, foi mais do que interdependência, tratavam-se de abordagens distintas, por vezes, contraditórias; nas disciplinas científicas, imperava o caráter lógico-dedutivo, abstrato, formal e conceitual ditado pela ciência Matemática, a Geometria Euclidiana; enquanto nas disciplinas pedagógicas, estava em jogo o processo de aprendizagem do aluno e a chegada das teorias pedagógicas ao ensino, as quais evidenciavam que a abstração deve ser o ponto de chegada no processo educativo, não o de partida.

Os dois enfoques divergentes geraram tensões no processo de constituição e institucionalização dos saberes profissionais docentes, evidenciados na presente análise, entre o campo científico da Matemática e o campo da Educação. A pesquisadora Valérie Borer (2017) destaca que, de um lado, estão os ‘saberes para ensinar’, saberes constitutivos do campo profissional, na qual a referência é a expertise profissional, o como se deve ensinar; e, de outro lado, os ‘saberes a ensinar’, saberes emanados dos campos disciplinares de referência produzidos pelas disciplinas universitárias, os objetos de ensino, no nosso caso, do campo da Geometria.

No Brasil, Valente et al. (2021, p. 12) reiteram a relevância das relações e tensões entre os campos disciplinares e profissional:

Primeiramente, vale dizer que as relações entre os campos disciplinares e profissional são objeto nuclear de análise, que envolve a investigação sobre o saber profissional do professor que ensina matemática. Em termos das tensões existentes entre campos disciplinar e profissional, caberia a análise das relações entre o campo disciplinar da matemática e o campo profissional da docência dessa disciplina. [...] Tais tensões têm importância basilar na produção matemática a estar presente nos primeiros anos escolares e aquela que deverá participar da formação de futuros professores.

Por concordarmos com os pesquisadores supracitados, consideramos que o processo de análise de elementos do saber profissional, como proposto por Fortaleza (2021), envolve, obrigatoriamente, articular e problematizar os processos de sistematização de ‘saberes para ensinar’, juntamente com os ‘saberes a ensinar’. De outra parte, se não há um alinhamento dos manuais pedagógicos de Coelho com as cadeiras de Geometria e de Desenho, os aspectos apontados na análise de Fortaleza (2021) indicaram fortemente a presença, ou pelo menos a sugestão, de trabalhos manuais, que sustentavam a confecção e o uso dos materiais concretos, como o processo de decomposição e recomposição de figuras.

Fortaleza ainda destacou as referências que Coelho toma em seus manuais, de propostas de Froebel4. O professor brasileiro Luiz Reis visitou, em Portugal, a Escola Froebel, para crianças de 3 a 7 anos e comentou em seu relatório: “Não vi na Espanha, na França e na Bélgica um jardim infantil superior ao jardim Froebel da ‘Estrella’ em Lisboa, quer pelo prédio, quer pelo asseio, quer pela ordem e regularidade nos trabalhos. É o que se pode desejar de útil, de elegante e de belo” (Reis, 1892, p. 91).

De acordo com a historiadora Maria Cândida Proença (1997), a Reforma de Ensino em Portugal de 1894/1895, conhecida como ‘Reforma de Jaime Moniz’, sob o ponto de vista da filosofia da educação, apresentou nítida inspiração alemã. Jaime Moniz foi um intelectual que realizou missões pedagógicas na Alemanha, esteve no país três vezes e que, ao projetar uma reforma de ensino, colocou em prática os princípios defendidos pelos pedagogos germânicos. Uma vez mais, salientamos o papel das interações entre Portugal e Alemanha no processo de constituição da formação docente.

Retomamos as normativas portuguesas para a formação de professores primários e constatamos que foi somente em 1911, na reforma do regime republicano, que ampliou-se a formação nas escolas normais de Portugal para três cursos: curso geral (comum aos dois sexos); curso especial para cada sexo; e cursos complementares. Novas disciplinas foram introduzidas a partir dessa reforma: “No curso especial para a preparação das professoras constava ainda de ‘Trabalhos Manuais e Economia Doméstica’ e para o sexo masculino havia ‘Trabalhos Manuais e Agrícolas’, onde podiam ser abordadas matérias relacionadas com a matemática” (Santiago, Matos, & Candeias, 2018, p. 66-67, grifo do autor). Entretanto, na reforma de Jaime Moniz, de 1894, para o ensino primário elementar do 1o grau, constava a matéria de ‘Trabalhos Manuaes’. Tudo indica que a criação da disciplina de Trabalhos Manuais, tanto no curso primário, quanto na formação de professores, em Portugal, corroborou como suporte de materiais para colocar em prática a proposta de Coelho.

No Brasil, Frizzarini (2018) sinalizou que a matéria escolar com a designação de Trabalhos Manuais foi introduzida no Rio de Janeiro (Distrito Federal), em 1890, por meio do primeiro programa republicano para o ensino primário para o sexo masculino. Para as meninas, a matéria era chamada de Trabalhos de Agulha e, logo em seguida, em 1894, no estado de São Paulo, foi criada a matéria Trabalhos Manuais para ambos os sexos. Depois, os estados brasileiros, lentamente, passaram a adotar a matéria de Trabalhos Manuais nos respectivos programas, pois, até meados do século XX, os estados brasileiros tinham programas distintos e autônomos.

Na análise da pesquisadora brasileira, no primeiro momento da criação e consolidação da disciplina de Trabalhos Manuais (1890 até a década de 1920) no ensino primário e também nos cursos normais do Brasil, foram poucas as articulações das tarefas práticas com os saberes matemáticos. Isso, porque as finalidades da disciplina centravam-se nos aspectos artístico, profissional e prático e, somente num segundo momento, na década de 1920, puderam ser identificadas as articulações das tarefas de trabalhos manuais com os processos de aprendizagem dos alunos, aproximando-se de uma metodologia para o ensino de matemática. Nesse segundo momento, a confecção de figuras geométricas, como as planificações dos sólidos estudados, vinculou-se à matéria de Geometria como material de suporte para o seu estudo. Assim, parece-nos pertinente estudar com mais detalhes os programas da cadeira de Trabalhos Manuais propostos em Portugal, para compreender a existência, ou não, de interconexões com as apropriações de Geometria presente nos manuais de Coelho.

A criação dos Trabalhos Manuais como cadeira na formação de professores e também como matéria escolar nos cursos primários não foi uma iniciativa singular no Brasil e em Portugal; mas sim parte de um movimento de cenário internacional. Como exposto na introdução, as missões pedagógicas de educadores para o estrangeiro constituíram momentos ricos de trocas e interações entre as nações e, no Brasil, três professores visitaram a Europa no final do século XIX. Em 1891, o brasileiro Manoel Frazão5 realizou um curso na Escola Nääs, escola de formação de professores na Suécia e a considerou “[...] o berço do trabalho manual educativo, se não quisermos considera-lo desde Froebel. Foi na Suécia que ele se propagou mais rapidamente” (Frazão, 1893, p. 416). A Escola de Nääs oferecia cursos de formação para professores estrangeiros. No curso de verão realizado por Frazão, em 1891, havia mais de 20 países representados; Portugal não constava de sua lista (Conceição, 2019).

Luiz Reis visitou muitas escolas de Portugal e, em seu relatório, descreveu a existência de oficinas de trabalhos manuais em muitas delas, como no caso da Escola Rodrigues Sampaio, em Lisboa, em relação à qual ele incluiu ainda o programa detalhado das oficinas de trabalhos manuais (1892). Reis relatou ter enviado para o Brasil, ao Museu Pedagogium6, no Rio de Janeiro, uma coleção de trabalhos manuais de Portugal.

Por fim, outro aspecto de destaque sobre os manuais de Coelho na análise de Fortaleza (2021), que pode ser aprofundado, diz respeito ao ensino das medidas de maneira prática e desde o início do programa de Geometria. Essa proposta encontra eco na chamada Taquimetria, um método de ensino para a Geometria que possibilita uma ‘medida rápida’, criada na França, que circulou por outros países e chegou ao Brasil. O método, apesar de surgir de uma necessidade prática da formação profissional, encontrou proximidade com o movimento intuitivo que circulava no final do século XIX, em especial, ao ser apropriado e reinterpretado como método para o ensino de geometria nos primeiros anos escolares (Leme da Silva & Moyon, 2020).

A Escola Normal de São Paulo, onde os manuais de Coelho foram localizados, teve como diretor Gabriel Prestes no final do século XIX, autor do manual Noções intuitivas de geometria elementar, em 1895. Prestes foi um defensor da taquimetria e da inserção das medidas de comprimento, superfícies e volumes em conjunto no segundo ano do ensino primário.

Pesquisas realizadas por Leme da Silva (2019) apontaram tanto no livro como nos artigos publicados nas revistas pedagógicas de São Paulo, que Prestes elaborou propostas de como articular o ensino de Geometria com as medidas, que deveriam ser iniciadas pelas medidas diretas, consideradas por ele como aquelas medidas realizadas por processos espontâneos com procedimentos práticos de comparação. Já as medidas indiretas, com o emprego de fórmulas, deveriam ser empregadas somente no terceiro ano e com tarefas práticas para a compreensão das equivalências, como no caso das fórmulas de áreas de quadriláteros e triângulos. Novamente, a inserção das medidas antecipada e articuladamente com as figuras geométricas foi uma proposta ampla, de caráter internacional, no sentido de valorizar os estudos experimentais do final do século XIX e início do século XX.

Considerações finais

Neste artigo, buscamos, como dito na introdução, trazer ao debate outras fontes de pesquisa e resultados de modo a alargar e problematizar as apropriações para o ensino de Geometria presentes nos manuais de José Augusto Coelho. A tese de Fortaleza (2021) trouxe contribuições no sentido de sintetizar as propostas dos Manuais de Pedagogia como fonte relevante de participação no processo de formação de professores do primário no final do século XIX e início do século XX. Como resultado, essa pesquisadora destaca a apropriação do método intuitivo para o ensino de Geometria pelo autor José Augusto Coelho.

O diálogo com outras fontes e resultados de pesquisa destacou dois elementos anteriormente apontados por Fortaleza (2021) na sua caracterização de uma ‘geometria para ensinar’: a relevância do papel de objetos concretos para o ensino e a inserção do das medidas em paralelo à geometria. Esses elementos não são evidenciados como componentes dos objetos de ensino do professor, caracterizados pela ‘geometria a ensinar’. A manipulação de materiais concretos vincula-se aos aspectos metodológicos do ensino e não ao seu objeto em si, como a incorporação das medidas desde o início não está presente na Geometria Euclidiana. As divergências entre as abordagens dos ‘saberes a ensinar e para ensinar’ contribuem para elucidar os processos de apropriação de Coelho na formação de professores em Portugal e no Brasil.

A vanguarda dos movimentos pedagógicos, ao ser traduzida em orientações pedagógicas para o ensino de Geometria, como no caso de Coelho, encontra entraves na cultura escolar pré-estabelecida e cria tensões e relações conflituosas (nos dizeres de Julia, 2001) decorrentes, em grande medida, das divergências entre o campo científico e campo pedagógico. Em particular, a cultura escolar dos primeiros anos escolares e a formação do corpo profissional para esse segmento carregam características específicas (distintas da do professor de matemática), pois não tem em seu ofício e nem em sua formação um curso de matemática, mas tem como função tratar de variados saberes não organizados de forma disciplinar (Valente, 2014). Nesse sentido, nos parece pertinente ampliar o diálogo com outras disciplinas que participaram da formação do professor para além da Geometria, como na análise realizada, que cotejou as disciplinas de Geometria e de Desenho, para melhor compreender os saberes profissionais em questão, seja no contexto de Portugal, seja no do Brasil.

Retomamos, para concluir, o processo de crescimento das pesquisas acerca da História da Educação Matemática e as aprendizagens construídas nas investigações com parcerias internacionais. As reflexões, ora trazidas no presente artigo, sobre as interações entre Brasil e Portugal, reforçam a relevância de projetos de cooperação internacionais. Talvez, o termo cunhado no projeto de Cooperação entre Brasil e Portugal (2006-2009), estudos comparativos, possa ser repensado, no sentido de valorizar a circulação e as transferências, como os diversos processos de apropriações que cada país, cada região e ainda os diferentes agentes realizaram ao sintetizar e formular propostas pedagógicas.

Certamente, a inserção de novas fontes de pesquisa, como os manuais produzidos por Coelho, abre outras perspectivas e, inclusive, a possibilidade de problematizar os processos de análise na produção histórica, em uma história que se filia à história cultural e que elege, como fonte, documentos produzidos em culturas distintas. Para além dos apontamentos e convites que, no presente artigo, evidenciamos sobre o tema em questão, isto é, o convite de chamar ao diálogo outras fontes produzidas no Brasil, um aspecto ganha realce: a complexidade em compreender as respostas que cada cultura formula frente aos inúmeros agentes culturais que por ela transitam. Trata-se de um desafio enorme e, para enfrentá-lo, as reflexões aqui arroladas reiteram o papel do estrangeiro, de parcerias, de diálogos e de projetos em conjunto para decifrar o passado do ensino de matemática.

Referências

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1José Augusto Coelho (1850-1925) trabalhou na formação inicial de professores do ensino primário no final do século XIX e início do século XX. Teve um percurso de formação um pouco incaracterístico já que, apesar de ter frequentado o ensino universitário, nunca chegou a concluir qualquer curso superior. Ele desenvolveu atividade profissional ligada à educação como professor no ensino particular e no ensino livre. Foi a notoriedade que ganhou como pedagogo, e não a sua formação acadêmica, que o levou à docência na Escola Normal Primária do Porto e, mais tarde, na Escola Normal Primária de Lisboa. Para além das funções de docência na escola normal primária, exerceu também funções diretivas, tanto na Escola Normal Primária de Lisboa masculina, quanto, posteriormente, na feminina (Candeias, 2021).

2Projeto ‘A matemática moderna nas escolas do Brasil e de Portugal: estudos históricos comparativos’ desenvolvido na cooperação CAPES/GRICES entre os anos de 2006 e 2009, foi coordenado, do lado brasileiro, pelo Dr. Wagner Rodrigues Valente e, do lado português, pelo Dr. José Manuel Matos.

3Luiz Reis descreveu, em seu relatório, ter visitado em Lisboa: Escola Central n.1; Escola Central n.2; Escola Maria Pia; Escola Central n.6; Escola Central n. 10; Escola Rodrigues Sampaio e Museu Pedagógico; Escola Froebel; Escola Modelo Mixta. Em Braga, Escola Primaria na Freguesia de S. Pedro de Maximinos. No Porto, a Officina de S. José, escola de artes e ofícios para crianças pobres e abandonadas, Escola Marquez de Pombal, Escola Parochial e Municipal de Santo Ildefonso, Escola Parochial da Cedofeita, Escola Normal do Porto, Escola Anexa à Escola Normal do sexo masculino (Reis, 1892).

4Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852), pedagogo alemão, publica, em 1826, o livro A educação do homem; em 1837, funda o primeiro jardim de infância (Kindergarten) e uma fábrica de brinquedos. Em 1838, elabora um projeto para a criação do Instituto de Formação de Guias da Infância, inaugurado em 1839. Entre 1848-1852, são criados 31 Jardins de Infância na Alemanha. Em 1856, estabelecem-se os primeiros Jardins de Infância nos EUA. Um estudo sobre Froebel pode ser lido em (Leme da Silva & Camara, 2021).

5Manoel Frazão formou-se no curso superior de Matemáticas e Ciências Naturais pela Academia Militar do Rio de Janeiro. Foi professor primário e diretor de escola. Produziu materiais e livros para uso nas escolas primarias e, em 1863, apresentou ao Conselho de Instrução Publica as Apostilas de aritmética, aprovadas para uso nas escolas primárias (Conceição, 2019).

6Os museus pedagógicos, criados em vários países, foram espaços responsáveis pela circulação e pela propagação de propostas e movimentos educacionais do final do século XIX. No Rio de Janeiro, o Museu Pedagogium foi fundado em 1890, oferecendo cursos para professores, publicando revistas pedagógicas, realizando exposições educacionais, entre outras atividades.

9Agradecimentos: Agradecemos a leitura crítica das colegas brasileiras Maria Cristina Araújo de Oliveira e Luciane de Fátima Bertini e o diálogo com os colegas portugueses José Manuel Matos e Rui Candeias

10Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações recebidas. R1: dois convites; uma avaliação recebida

11Como citar este artigo: Silva, M. C. L. Apropriações da geometria de José Augusto Coelho na formação de professor primário do Brasil e de Portugal (passagem do século XIX e século XX). Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e250

12Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

13Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4)

Recebido: 19 de Fevereiro de 2022; Aceito: 03 de Agosto de 2022; Publicado: 15 de Janeiro de 2023

*E-mail: mcelialeme@gmail.com.

Maria Célia Leme da Silva é Professora Associada no Departamento de Física da Universidade Federal de São Paulo - Campus Diadema. Doutora em Educação (Currículo) pela PUC/SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação para Ciência e em Educação Matemática da UNESP. Membro do GHEMAT/SP. E-mail: mcelialeme@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6029-0490

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury (UFPB) E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2540-2949

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