Introdução
Um domínio completo das falanges, do pulso e da chave da mão, uma firmeza absoluta tanto nas linhas curvas como nas linhas retas, um quase instintivo sentido dos grossos e dos finos, uma noção perfeita do grau de fluidez e viscosidade das tintas
(Saramago, 1997, p. 56).
No trecho utilizado como epígrafe, retirado de Todos os nomes, Saramago (1997) descreve uma assinatura e mostra que este traço único de identificação pode revelar muitas habilidades. Suas palavras dizem respeito ao domínio da capacidade de escrever, enfatizam o que não foi propositalmente registrado pelo assinante e remetem a um tempo antigo, no qual era preciso ter intimidade com a pena e o tinteiro. Levam a pensar em outros contextos históricos e trazem à mente uma questão que se encontra na origem deste artigo: nos séculos que nos antecederam, quem era capaz de dominar a palavra escrita?1 Pesquisar a disseminação das habilidades de ler/escrever e os usos do escrito em períodos históricos para os quais esses temas não eram tomados como uma questão social é tarefa árdua, considerando a inexistência de fontes criadas com o objetivo específico de registrar essas informações. Sabe-se que foram realizados recenseamentos nos Oitocentos e, segundo Carvalho (1980), em 1872, 15,75% da população brasileira era alfabetizada - dentre estes, 34,31% eram livres. Para o ano de 1890, foram identificados 14,80% como alfabetizados. Essas informações são interessantes, mas cabe questionar o que significava o termo alfabetizado no período em que estes censos foram realizados. Segundo Chagas e Galvão (2017, p. 2),
[...] a expressão analfabeto, embora já dicionarizada desde a primeira década dos oitocentos, começa a ser utilizada na imprensa, ainda de maneira muito esporádica, na década de 1830, tornando-se mais recorrente a partir dos anos 1860. A palavra analfabetismo, por sua vez, emerge posteriormente, a partir da República, sobretudo no século XX.
Ainda conforme as mesmas autoras, é recente em nossa história a visão do analfabetismo como problema social. Destarte, ao investigar períodos anteriores a 1850, faz-se fundamental superar a dicotomia ‘alfabetizado’ versus ‘analfabeto’. Kleiman (1995) sublinha que essa oposição foi criada pela escola, durante longo e conflituoso desapossamento do direito de ensinar, e sugere, em vez dessa oposição, o conceito de ‘letramento’ para se pensar os usos sociais das habilidades de leitura e escrita. De acordo com Soares (2004), o conceito de letramento se tornou foco de pesquisas das áreas de Educação e de Linguagem em vários países do Ocidente na década de 1980. Ao estabelecer uma diferenciação entre alfabetização e letramento, a autora define a primeira como “[...] aquisição do sistema convencional de escrita [...]” e o segundo conceito como o “[...] desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (Soares, 2004, p. 14). Afirma, além disso, que seria um equívoco tomar esses processos como antagônicos, pois compreende ambos como interdependentes, indissociáveis e simultâneos. O conceito de letramento, portanto, diz respeito aos usos sociais da leitura e da escrita, em determinado contexto social, mesmo entre aqueles que não sabem ler e escrever. Considerando a noção de letramento sob o ponto de vista da História, Soares (1995) relaciona uma diversidade de elementos que podem ser tomados como objeto de estudo, desde os processos de difusão e circulação da escrita até as consequências sociais da imprensa, o perfil dos leitores, as práticas de leitura e escrita etc.
Na primeira década do século XXI, observou-se uma ampliação de horizontes nas pesquisas relacionadas à leitura e à escrita, marcada pela utilização do termo ‘cultura escrita’. De acordo com Castillo Gómez (2003), a História da Cultura Escrita, tributária da História Cultural, busca estudar a leitura e a escrita, os diferentes suportes e as práticas variadas de produção e apropriação do escrito.
Trabalhos mais recentes definem a noção de cultura escrita “[...] como o lugar simbólico e material que o escrito ocupa em determinados grupos sociais, comunidades e sociedades, em épocas distintas” (Galvão & Frade, 2016, p. 207)2. O conceito de cultura escrita tem sido tomado em uma concepção antropológica, considerando toda a produção humana, buscando compreender os diversos lugares que o escrito ocupa em uma dada sociedade. Dessa forma, a expressão cultura escrita compreende um conjunto amplo de objetos de estudo e engloba as investigações sobre os usos sociais da leitura e da escrita, mas vai além (Jinzenji, Galvão, & Melo, 2017; Antunes, 2020). Os estudiosos que se baseiam nessa noção buscam interface com outras áreas, da História do Livro e da Leitura à História da Educação e da Alfabetização. Há um consenso na necessidade de superação de dicotomias. Dentre as dicotomias a serem suplantadas, destacam-se: “[...] oralidade ‘e’ escrita, estudos históricos, sociológicos ‘e’ históricos e práticas pedagógicas, prescrições ‘e’ usos; idealizações e materialidade” (Galvão & Frade, 2016, p. 209, grifo do autor; Galvão, Melo, Souza, & Resende, 2007).
Este artigo se insere, portanto, no campo da História da Educação em diálogo com o da História da Cultura Escrita, tomando como referência as práticas de letramento - entendidas como intimamente inscritas nos contextos históricos nos quais se estabelecem. Assim, tenho como objetivo analisar a difusão e o lugar simbólico da palavra escrita no contexto da vida em sociedade da Vila e Termo de São João del-Rei.
Procedimentos de pesquisa e documentos
A periodização da pesquisa, que vai de 1750 a 1850, foi estabelecida considerando que nesse período, no Brasil, testamentos e inventários estão entre os poucos documentos que possuem séries completas e marcas de letramento, como as assinaturas. No decorrer desse período, houve debates políticos e a promulgação de leis voltadas para a escolarização. Destaco o Alvará Régio de Regulamentação dos Estudos Menores, assinado por D. José I em 1759, que expulsou os jesuítas de todos os domínios lusitanos e secularizou o ensino, criando as aulas de Humanidades (Gramática Latina, Grego, Hebraico, Retórica e Poética). Em 1772, houve uma segunda fase dessa reforma, tendo sido estabelecidas as aulas de Primeiras Letras, nas quais se aprendia a ler, escrever, as quatro operações básicas da Matemática e o Catecismo Católico. As aulas régias eram voltadas para uma pequena parte dos súditos, pois a educação escolar no período colonial tinha como finalidade reproduzir a ordem estamental. Com a Independência do Brasil em 1822, a estrutura escolar colonial foi em grande medida herdada, mesmo com o estabelecimento da primeira Lei Geral da Educação, ou Lei de 15 de outubro de 1827, que previa a adoção do Método Lancasteriano de ensino nos lugares mais populosos. No Império, a escola pública elementar era considerada capaz de criar cidadãos civilizados, minimamente letrados e sobretudo que se submetessem à ordem pública (Morais, 2009).
No recorte histórico de 100 anos empregado neste artigo, não se pode afirmar que a promulgação de leis relacionadas à escolarização tenha causado grandes impactos no contexto estudado. Faz-se necessário considerar que o tempo das reformas políticas é diferente do tempo das transformações culturais, pois os processos de difusão da leitura e da escrita em uma sociedade basicamente iletrada se encontram profundamente marcados pelas permanências. Privilegiar um tempo longo possibilita a observação de fenômenos socioculturais que se modificam lentamente e, dessa maneira, o contexto cultural de ensino da leitura e da escrita foi tomado como principal referência para o estabelecimento do recorte cronológico investigado. Até meados do século XIX, os aprendizados da leitura e da escrita se davam em momentos dissociados e sucessivos. Historicamente, a leitura se disseminou de modo mais rápido, pois primeiramente se aprendia a ler e depois passava-se ao aprendizado da escrita, conforme Viñao Frago (1993, p. 66):
[...] no século XIX, uma das principais inovações pedagógicas foi a aprendizagem da leitura feita ao mesmo tempo que a da escrita, ao contrário do que acontecia tempos anteriores, quando o aprendizado da escrita era feito - se o aluno tivesse condições de seguir sua vida escolar - dois anos após seu ingresso na escola, quando já dominava um pouco a leitura.
Recomendações para seguir essas etapas de ensino foram observadas em manuais de caligrafia lusitanos, dentre os quais destaco o de Jerônimo Soares Barbosa:
[...] os meninos não se devem ‘ensinar a Escrever’, senão depois de terem já alguma firmeza nos musculos da mão [...] e ‘depois de saberem lêr desembaraçadamente’ a letra impressa tanto redonda como bastarda; e antes de entrarem na leitura da letra de mão ou diplomatica ([Barbosa], 1796, p. 2, grifo nosso).
Tais etapas eram recomendadas seja pelo fato de a leitura se tratar de uma aprendizagem mais fácil e acessível financeiramente, seja ainda por questões morais naquele contexto - especialmente para a condição feminina -. Logo, as taxas de assinaturas não permitem mensurar a população que somente sabia ler, deixando escapar aqueles que se encontravam reduzidos ao papel de leitores, o que denota um limite deste estudo (Chartier, 2016). Ao longo do século XIX, a aprendizagem da leitura e da escrita de forma simultânea no contexto escolar aumentou o número daqueles que podiam assinar seus nomes, mas que não sabiam ler. Essa realidade disseminada pela escola inviabiliza que as escalas de assinaturas sejam aplicadas a períodos posteriores a 1850.
No que se refere ao recorte geográfico, São João del-Rei caracterizava-se pelo dinamismo econômico, a princípio com a descoberta do ouro e posteriormente com o desenvolvimento de atividades econômicas diversificadas. Sua posição geográfica privilegiada permitiu que se estabelecessem complexas articulações entre a produção agrícola e o comércio (Lenharo, 1979; Graça Filho, 2002). Os dados demográficos do período oferecem uma estimativa que revela grande contingente populacional: 31.029 habitantes em 1821 e 22.135 em 1823-1835 (Brügger, 2007). A Vila era ainda a cabeça da Comarca do Rio das Mortes, possuindo expressiva vida política e cultural.
Sob o ponto de vista metodológico, as assinaturas contidas em testamentos são as principais fontes documentais deste estudo. Inicialmente as capacidades autográficas foram classificadas de acordo com os dados disponíveis: a) os que assinam (considerando as rubricas e as assinaturas completas); b) os que não puderam assinar; c) os que não sabiam assinar; d) os que fizeram um sinal. Nestes casos, todos marcaram uma cruz - significado que será discutido posteriormente -. As assinaturas encontradas em testamentos foram indexadas em um banco de dados, assim como outras informações que me permitiram traçar o perfil sociocultural dos assinantes. As assinaturas foram fotografadas uma a uma, sendo posteriormente comparadas e qualificadas, a partir da escala elaborada por Magalhães (1994). Destarte, qualificar as assinaturas por meio de uma escala foi a principal ferramenta metodológica para averiguar indicadores de letramento dos assinantes.
Outros historiadores se utilizaram de escalas em investigações sobre assinaturas (Viñao Frago, 1993; Marquilhas, 2003). Neste artigo, utilizei a escala proposta por Magalhães (1994), com cinco níveis, a qual será apresentada em pormenores na última seção deste artigo. Tal escala foi escolhida por permitir possibilidades de análise mais refinadas e, além disso, nossa tradição de escrita está intimamente ligada à portuguesa. A escala de Magalhães foi empregada, outrossim, por Alves (2003), Rachi (2016) e Paula (2016).
A produção de testamentos remonta a práticas medievais, ligadas ao ato de morrer e à crença no purgatório (Rodrigues, 2005). Paulatinamente, foram estabelecidos modelos para sua escrita, tendo sido publicados ‘manuais para bem morrer’, que expressam a composição dos testamentos (Oliveira & Oliveira, 2012). Geralmente, eram “[...] escritos a rogo”, ou seja, ditados pelo testador a outrem capaz de escrever. Trata-se de documento constituído a partir da relação complexa entre a oralidade e a escrita (Rachi, 2016). Deve-se ter em mente que, em um contexto marcado pela oralidade, ao se produzir um testamento, a palavra oral era tensionada por uma estrutura de texto que remonta a séculos. Dentre os 787 testamentos aqui analisados, não foram encontradas mulheres redatoras. Apenas 40 homens (5%) escreveram seus próprios testamentos, sendo os demais 747 (95%) escritos ‘a rogo’. Esses documentos trazem dados que extrapolam as intenções originais da época de sua produção, oferecendo indícios que permitem perceber a dimensão simbólica atribuída ao escrito, bem como os usos da palavra escrita.
Usos da palavra escrita
Apesar de muitos testadores não saberem ler nem escrever, 140 (17,7%) ouviram seus testamentos serem lidos. Dentre estes, Antônia Martins Ferreira, preta forra de Angola, que em 1807 afirmou: “[...] por ser molher e não saber ler nem escrever pedi ao Reverendo João Luiz Coelho que este testamento por mim fizesse e a meu rogo assignace depois de elle me ser lido e o achar conforme o dictei” (Ferreira, 1807)3. Essas informações corroboram o fato de que a prática da leitura em voz alta ou “leitura de oitiva” no período em análise era difundida (Villalta, 1999; Morais, 2002). A linguagem escrita possui uma lógica interna própria, não se tratando da simples transcrição da oralidade. Além disso, para que um texto lido em voz alta seja compreendido, aquele que escuta precisa possuir alguma intimidade com a lógica escrita, o que revela um grau de letramento.
Os testamentos registram a condição das pessoas que não puderam assinar. Permitem que se separem os que sabiam - mas não podiam - daqueles que não detinham essa capacidade. Dentre os testadores, 42 (5,3%) não puderam assinar, dos quais 23 (2,9%) eram homens e 19 (2,4%) mulheres. Dentre estas, estava Maria Eulina Carmo, solteira, moradora e natural da Vila de São João del-Rei. Afirmou que não pôde assinar porque não conseguia enxergar, em 1825: “[...] posto saiba ler, e escrever, contudo pelo motivo acima relatado de falha de vistas, pedi e roguei a José Maria da Camara que este por mim fizesse, e assinasse” (Carmo, 1825). Registrar a impossibilidade física era importante para a lisura da testamentaria, permitindo conferir autenticidade a algum documento assinado anteriormente e que porventura surgisse após a morte do testador. Outrossim, firmar o próprio testamento era uma forma de engrandecimento social, o que corrobora a conjectura sobre o valor simbólico atribuído ao saber assinar em ocasiões solenes, como batizados e casamentos (Petitat, 1994).
Outro caso exemplar é Francisco Coelho Souza, forro, banguela, vivia dos ofícios de barbeiro e sangrador em São João del-Rei. Não assinou seu testamento, tendo feito uma cruz. Mas se utilizava da palavra escrita, assim como outros escravizados e forros daquele contexto (Morais, 2007), pois mantinha um livro de contas. Não declarou quem realizava as anotações, conforme ditou em 1828:
Tenho servido das Artes de Barbeiro e sangrador, e tenho muitos freguezes, com os quaes as minhas contas saõ de = Deve, e Hadever, e meo Testamenteiro pelos meos assentos as ajustará, ressebendo o que elles me deverem, e pagando o que eu dever, sem figura alguma de Juizo, bastando para as contas, as declaraçoens de meo Testamenteiro em hum simples requerimento em que exponha e jure qualquer ajuste de contas (Souza, 1828).
A produção manuscrita aludida nomeava-se como ‘livro de contas’ ou ‘livro de razão’. Eram manuscritos disseminados desde século XVII, utilizados para organizar a vida e a contabilidade, mesmo entre os incapazes de ler e escrever (Hébrard, 2000). Os testamenteiros deviam tomar posse destes manuscritos para cumprir legados, cobrar ou pagar as dívidas dos testadores, e nenhum escrito dessa natureza foi encontrado em anexo aos testamentos analisados.
Conforme Magalhães (1994), os que firmavam com uma cruz não sabiam ler ou escrever, o que pode ser corroborado nos testamentos produzidos em São João del-Rei. Todos os 54 sujeitos que fizeram uma cruz no lugar da assinatura (6,8% de 787) disseram não saber ler nem escrever, assim como Antônia Silva Jesus, em 1794. Essa mulher, que foi ministra na Ordem Terceira de São Francisco, justificou que “[...] por não saber ler nem escrever pedi ao Padre Marçal Cunha Matos que este escrevesse e eu me assinei com o meu sinal costumado que he huma cruz” (Jesus, 1794). A partir desses casos exemplares, cabe registrar o quanto os testamentos são relevantes para se ter acesso aos valores atribuídos e aos usos cotidianos da palavra escrita, mesmo por pessoas incapazes de ler e escrever.
Com base em uma perspectiva quantitativa, uma análise longitudinal pode ser realizada a partir da Tabela 1, que apresenta as assinaturas em testamentos ao longo das décadas4:
Décadas | Testamentos transcritos em códices (1759-1848) | Testamentos originais (1750-1850) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Quantidade de testamentos | Testadores assinantes | Quantidade de testamentos | Testadores assinantes | |||
Nº absoluto | % | Nº absoluto | % | |||
1750-1760 | 01 | 01 | 100% | 17 | 07 | 41% |
1761-1770 | 16 | 14 | 87,5% | 16 | 12 | 75% |
1771-1780 | 65 | 47 | 72% | 28 | 22 | 78% |
1781-1790 | 118 | 76 | 64% | 36 | 27 | 75% |
1791-1800 | 85 | 52 | 61% | 54 | 32 | 59% |
1801-1810 | 170 | 118 | 69% | 126 | 83 | 65% |
1811-1820 | 157 | 109 | 69% | 132 | 90 | 68% |
1821-1830 | 187 | 131 | 70% | 165 | 116 | 70% |
1831-1840 | 164 | 97 | 59% | 137 | 79 | 57,6% |
1841-1850 | 48 | 28 | 58% | 76 | 51 | 67% |
Total | 1.011 | 673 | - | 787 | 519 | - |
Fontes: Livros de testamentos (1759-1848) e testamentos originais (1750-1850) da Vila e Termo de São João del-Rei.
Os dados coligidos na Tabela 1 revelam aumento na produção de testamentos nas quatro primeiras décadas do século XIX. Esse período foi, de acordo com Graça Filho (2002), de intenso comércio da Comarca do Rio das Mortes com o Rio de Janeiro. Em certa medida, o crescimento econômico poderia estimular o aumento no número de testamentos. O maior poder econômico das pessoas ligadas ao comércio interprovincial certamente gerou maior acumulação de bens e fortunas e, dessa maneira, ampliação dos registros de testamentos, o que facilitaria, por exemplo, a partilha entre herdeiros. Há, dentre os testamentos originais, 77 testadores (9,7%) que se ocupavam de ‘negociar’. Alguns especificavam seus negócios (comércio de fazendas secas, molhados da terra e do Reino, tecidos e louças), outros limitavam-se a afirmar ‘vivo do meu negócio’ e, no contexto, da expressão ‘viver de negócio’ se originou o termo ‘negociante’ (Brügger, 2007).
Em estudo sobre Vila Rica, Silveira (1997) afirma a importância dos negócios para a escrita em Minas Gerais, que possuía uma organização socioeconômica diversificada, na qual se articulavam várias atividades, da mineração à agricultura, dos ofícios mecânicos ao comércio. Nesse mercado desenvolvido, os pagamentos a prazo eram comuns e a escrita tinha papel fundamental. Os agentes ligados ao comércio necessitavam saber ler/escrever/calcular e produziram testemunhos escritos ao selar seus compromissos. Apesar de os fatores econômicos serem importantes para a compreensão das relações com o escrito, não se pretende, neste artigo, lhes atribuir um papel de determinante único. Mas é provável que a elevação nas taxas de assinantes no período de 1821 a 1830, verificada na Tabela 1, se relacione com a expansão das atividades econômicas.
Deve-se ter em mente que os testamentos são documentos que indicam o temor pela morte (Rodrigues, 2005). Assim, é importante lembrar que o Brasil apresentava muitas epidemias nas primeiras décadas do século XIX. Houve no Rio de Janeiro as epidemias de febre amarela entre 1828-1840, de sarampo entre 1834-1835 e de gripe (1835), seguida pela de febre tifoide em 1836 (Ferreira, 2000). Nessa conjuntura de temor diante da morte, também se deve pensar o aumento do número de testamentos em São João del-Rei. Considerando essas epidemias que assolavam a Corte e dada a sua proximidade com a Vila de São João, não é de se admirar que houvesse um aumento no número de testamentos na década de 1830, cf. Tabela 1.
Desde o período colonial, Minas Gerais se destacava pela urbanização e circulação crescente da palavra escrita, seja impressa ou manuscrita. Villalta (2007b, p. 292) analisou 911 inventários de Mariana (1714-1822) e constatou que “[...] 570 inventariantes (62,5%) foram capazes de assinar, enquanto 45 (4,9%) recorreram a um sinal; 296 (32,5%) indivíduos nada conseguiram registrar”. Do universo de 787 testamentos de São João del-Rei, 519 testadores assinaram (65,9%), 214 (27%) não assinaram e 54 fizeram cruzes (6,8%). Quando comparados os dois estudos, em números relativos, observa-se que mais de 60% dos sujeitos foram capazes de assinar.
Deve-se ainda avaliar que, no período posterior à Independência do Brasil, houve um expressivo aumento da publicação e circulação de materiais impressos, como os periódicos e folhetos políticos. Foram também inauguradas bibliotecas públicas e propostas sociedades de leitura. Minas Gerais teve sua história marcada pela presença de aulas públicas e de mestres particulares, em todo o período em análise (Morais, 2002; Moreira, 2006; Jinzenji, 2010b). A articulação das variáveis econômicas e culturais pode ter contribuído para tornar mais expressivo o número de assinantes entre os testamentos analisados justamente no período de ampliação do campo da leitura em Minas.
De volta à Tabela 1, esta evidencia número menor de documentos para o século XVIII, com as porcentagens de testadores assinantes superiores nas décadas posteriores a 1760, acima dos 70%. Outro aumento significativo do número de assinantes foi observado, como disse, entre 1821-1830, chegando a 70%. Para que essas taxas de concentração de assinantes nas últimas décadas dos Setecentos e no período de 1821-1830 possam ser compreendidas, faz-se necessário incluir outras variáveis na análise, o que se verá na sequência.
Difusão das assinaturas: homens, mulheres e nacionalidades
Dados sobre os testadores de São João del-Rei, conforme suas origens, sexo e capacidades autográficas, podem ser visualizados a partir do Gráfico 1:
Dentre os 787 testadores de São João del-Rei, contabilizei 477 homens (60%) e 310 mulheres (39%). Dentre os que assinaram, há 198 brasileiros (25% do total de testadores e 41,5% dos homens), 166 portugueses (21% e 34,8%) e 3 africanos (0,3% e 0,6%). As mulheres assinantes somam 92 brasileiras (11% do total e 29% do grupo feminino) e 1 africana (0,12% e 0,32%). Aqueles que não puderam assinar, apesar de asseverar sabê-lo, compreendem 10 portugueses (1% e 2%), 9 brasileiros (1% e 1,8%) e 12 brasileiras (1,5% e 3,8%). Não foram encontradas portuguesas e africanos de ambos os sexos na situação de assinantes e tampouco dentre os que não puderam assinar. Os que não sabiam assinar totalizam 5 brasileiros (0,6% e 1%), 3 portugueses (0,3% e 0,6%) e 3 africanos (0,3% e 0,6%); 113 brasileiras (14% e 36%), 18 africanas (2% e 5,8%) e 4 portuguesas (0,5% e 1,2%). Os que não sabiam ler e escrever, mas marcaram uma cruz, incluem 17 portugueses (2% e 3,5%), 9 africanos (1% e 1,8%) e 7 brasileiros (0,8% e 1,4%); 10 brasileiras (1% e 3%) e 4 africanas (0,5% e 1%). Também não foram encontradas portuguesas nessa amostra. De todos os grupos, destaca-se o das mulheres brasileiras que não sabiam assinar, representando 14% do total e 36% do grupo das mulheres, contrastando com os brasileiros nessa mesma condição (0,6% do total e 1% do grupo masculino).
Outros sujeitos que deixaram assinaturas são os testamenteiros, ou seja: aqueles que faziam cumprir a vontade dos mortos5. Sua indicação pelos testadores pautava-se sobretudo pela confiança, parentesco e suas habilidades de leitura e escrita. Dentre os 656 testamenteiros, foram identificados 501 homens (76%) e 155 mulheres (23,6%). Sua distribuição conforme o sexo e as capacidades autográficas foi coligida no Gráfico 2:
Os que assinaram somam 447 homens (68% do total de testamenteiros e 89% dos homens) e 68 mulheres (10% do total e 43,8% das mulheres). Houve grande disparidade entre essas amostras, chegando a 58% (do total) a favor dos homens. A disparidade entre os que não sabiam assinar também chama a atenção: 11 homens (1,6% do total e 2% dos homens) e 59 mulheres (8,9% e 38%). Fizeram sinais 15 homens (2% e 3%) e nenhuma mulher. Dentre os testamenteiros que asseveraram não poder assinar, encontram-se 3 mulheres (0,4% e 1,9%).
Ao comparar as quatro amostras de homens e mulheres, o destaque positivo fica para os homens na situação de testamenteiros, seguidos dos homens testadores; depois, estão as mulheres testamenteiras e, por fim, as testadoras. Provavelmente porque, no processo de testamentaria, do cumprimento dos legados até a comprovação de que as disposições do falecido foram executadas, tudo deveria ser realizado por escrito e apresentado em juízo.
Em relação aos homens, cruzando as informações contidas na Tabela 1 com o Gráfico 1, percebe-se uma concentração de assinantes portugueses no fim do século XVIII. Tal fenômeno pode ser entendido quando se considera que, desde o período das grandes navegações, a escrita era ferramenta útil para os que saíam de sua terra natal, uma vez que a emigração pode ser tomada como estímulo para a aquisição da palavra escrita. A escrita epistolar foi um importante meio de comunicação entre os dois lados do Atlântico (Castilho Gómez, 2002; Furtado, 2005). Dessa maneira, a administração dos negócios e o desejo de manter relações familiares por meio da correspondência podem ser considerados estímulos para o domínio da palavra escrita pelos portugueses que se dirigiram ao Novo Mundo.
Outro aumento significativo do número de assinantes foi observado entre 1821-1830, conforme a Tabela 1. O Gráfico 1 revela expressivo número de brasileiros capazes de assinar: 63 dentre 787 testamentos originais (o que equivale a 31,8% do total de brasileiros assinantes, 15,6% do total de homens assinantes e 8% do total de testamentos originais). Como afirmei, nas três primeiras décadas dos Oitocentos, a Vila de São João del-Rei vivia um momento próspero com o comércio intraprovincial. Dentre os ‘negociantes’ que habitavam São João del-Rei, 57 (74%) fizeram seus testamentos entre os anos de 1801 e 1839, período que corresponde à ampliação do comércio intraprovincial, ao aumento da quantidade de testamentos registrados e a uma expressiva quantidade de assinantes. Para uma sociedade com comércio desenvolvido e que considerava que aos homens cabia a administração dos negócios, a aquisição da escrita era relevante para o sexo masculino.
Os indícios sobre a menor ocorrência de assinaturas entre mulheres e a quantidade expressiva daquelas que não sabiam assinar corroboram uma constatação comum para o período pesquisado, mesmo em outros recortes geográficos: não havia um processo uniforme de difusão do letramento. Havia uma construção seletiva na disseminação da palavra escrita, a qual se desenvolvia sob a lógica da diferenciação social e cultural. O sexo masculino possuía maior participação nessa cultura, sendo esse fenômeno naturalizado historicamente e, portanto, não questionado (Fernandes, 1994; Magalhães, 1994; Alves, 2003; Marquilhas, 2003). Estudos sobre diversos países europeus afirmam que a educação feminina se encontrava, em muitos casos, reduzida à leitura. A escrita poderia se transformar em instrumento moralmente perigoso, o que levou à tradição da mulher leitora e incapaz de escrever. Nesses casos, as assinaturas são indicadores frágeis, e os dados históricos, irrecuperáveis (Viñao Frago, 1993; Chartier, 1996; Roche, 1996). No Brasil, as pesquisas afirmam que as mulheres eram menos letradas que os homens por possuírem uma educação voltada para o mundo doméstico, sendo educadas para se tornarem esposas e mães, quando pertencentes às elites. Além disso, eram destinadas aos trabalhos que não demandavam diretamente o uso da leitura e escrita, no caso das mulheres livres pobres ou das escravizadas e alforriadas. Somente no final do século XIX, houve uma produção literária feminina mais considerável, como poemas, jornais e romances, todavia voltada às mulheres das elites (Telles, 2004; Louro, 2004; Jinzenji, 2010a).
De volta aos dados produzidos em São João del-Rei, apesar da inferioridade de assinaturas das testadoras brasileiras em relação aos homens, quando comparamos mulheres nascidas aqui com mulheres naturais de Portugal, os índices de assinaturas das brasileiras tornam-se instigantes. Ao pesquisar a situação feminina, Magalhães (1994) concluiu que a relação das portuguesas com a escrita ocupava lugar inferior. O estudo de Alves (2003) revela que 9% das mulheres da região de Mafra assinavam. Os dados referentes a São João del-Rei revelam que as quatro portuguesas que viviam na Vila não sabiam assinar, ao passo que as mulheres nascidas no Brasil que sabiam assinar somam 92 (o que corresponde a 11% do total de 787 testamentos e a 29% do grupo feminino). Em pesquisa sobre 557 testamentos de mulheres da Comarca do Rio das Velhas (1780-1822), Rachi (2016, p. 126) constatou que “[...] somente 49 mulheres, isto é, 8,8%, efetivamente grafaram o nome [completo]”6. Dessa maneira, percebe-se que as mulheres sanjoanenses apresentaram cifras ligeiramente superiores em relação às dos demais estudos.
As constatações acima sobre a relação das testadoras brasileiras com as assinaturas dos testamentos levam a examinar duas hipóteses. A primeira seria a de que, para o contexto em análise, a escrita feminina talvez não fosse considerada algo tão recriminável, como se vê nos trabalhos que se debruçam sobre diferentes realidades europeias. Minas Gerais, se comparada às demais capitanias do litoral, é uma região de colonização mais recente e extremamente mestiça, na qual dominar a cultura escrita por parte das mulheres poderia ser tomado como um elemento de distinção. A segunda hipótese seria considerar que as mulheres capazes de assinar conquistaram, não se sabe exatamente a partir de que maneiras, a possibilidade de acessar o mundo do escrito. A ideia de que as mulheres eram incapazes de administrar bens há muito tem sido questionada pela historiografia brasileira (Del Priore, 2009). A participação do sexo feminino na cultura escrita, bem como sua capacidade de gerir negócios tem sido cada vez mais observada empiricamente.
A documentação não traz muitos indícios sobre os locais e tampouco as maneiras como e onde as mulheres se apropriaram da palavra escrita. Sobre as escolas públicas, sabe-se que, desde 1830, em Minas Gerais, havia duas escolas públicas femininas - em Ouro Preto e em São João del-Rei (Jinzenji, 2010b). Mesmo sendo poucos os indícios sobre os locais de aprendizado, muitos deles restritos ao ambiente familiar, havia mulheres em São João del-Rei que se tornaram ativas no que se refere à administração de seus bens e ao uso da palavra escrita. Os casos de indicação de tutoras pelos testadores são relevantes. Para períodos anteriores à escolarização, uma possibilidade para que as mulheres aprendessem as letras era com a contratação de professores pelas famílias, para ensinar nos lares (Frias, 2017). A documentação em análise revela que, dos 49 homens indicados como tutores, 33 (67,3%) foram capazes de assinar. Dentre as 17 tutoras, 11 assinavam (64,7%); 5 não sabiam assinar (29,4%) e para uma não foi encontrada informação (5,8%). Também, dentre os tutores, uma característica observada foi a habilidade da escrita. Como exemplo, cito D. Maria Benedita Noronha Negreiros, casada com o Sargento-mor Cândido Álvaro José Lima, com quem teve seis filhos. Em 1814, o marido assegurava em testamento ‘conhecer a sua capacidade’ e, portanto, “[...] a instituo, e nomeio também Tutora dos Nossos Filhos por confiar dela não só a boa educação, e instrução delles, mas a administração de seus bens e legítimas” (Lima, 1814). A historiografia atesta a capacidade das tutoras em administrar os bens dos órfãos a partir de sua familiaridade com o escrito, o que tem sido corroborado para diferentes regiões mineiras (Chequer, 2002; Gorgulho, 2011; Paula, 2016; Julio, 2017). Tal situação se verifica também em São João del-Rei, com destaque para as esposas de comerciantes (Frias, 2017).
Outras variáveis: moradia, posses, cor e condição
Há estudos que sugerem que o letramento irradia dos núcleos urbanos para os meios rurais, segundo uma lógica vertical, que se traduz em diferenciação e hierarquização (Roche, 1996; Magalhães, 1994). Pode-se dizer que, para os que viviam em vilas prósperas e sedes administrativas, o escrito estava presente em uma multiplicidade de formas de acesso. Entre os homens que viviam nas cidades, havia ocupações que requeriam as práticas de leitura, escrita e cálculo: comerciantes, administradores públicos, notários, clérigos, juízes etc. Mas na região e no período analisados neste artigo, a dicotomia urbano versus rural não deve ser tomada de forma radical. Havia uma interpenetração de mundos, em razão da grande possibilidade de circulação das pessoas, favorecida principalmente pelo fato de São João del-Rei ser um entreposto comercial diversificado. Os dados não mostram demasiada diferença entre os testadores que afirmaram em testamento residir na Vila (35,7% assinantes) e os que moravam nas zonas mais rurais, como arraiais, sítios e fazendas, chegando a 28% de assinantes. As cifras são ainda mais próximas quando se analisa aqueles que não sabiam assinar: 75 (ou 9,5% da Vila) e 91 (ou 11,5% de ‘outros locais’).
De acordo com Magalhães (1994), os proprietários de bens móveis ou imóveis estão sempre à frente nas quantificações dos níveis de letramento e há grande relação entre a profissão e as capacidades autográficas, destacando-se os comerciantes. A relação entre as posses ou ‘haveres’ e a apropriação da cultura escrita também foi observada por Villalta (2007a, 2007b).
No caso de São João del-Rei, dentre os testadores assinantes, há 208 proprietários de bens imóveis (40% dos 519 assinantes). Aqueles relacionados a atividades rurais eram mais numerosos do que os mineradores: 116 (22% dos assinantes) exerciam atividades agrícolas, dos quais 98 (19%) possuíam terras de plantio e 43 (8%) criavam gado; 18 (3% dos assinantes) possuíam terras minerais. Os bens móveis foram assim mencionados: 26 pessoas referiram ao ouro (5% dos 519 assinantes), 28 (5%) à prata; 9 (1,7%) a joias; 8 (1,5%) a utensílios de mesa em prata; e 1 (0,1%) referiu a louças. A posse de escravizados foi o bem mais relacionado, pois 338 testadores assinantes possuíam cativos (65%).
É difícil precisar o ramo profissional dos testadores, por não existir, na estrutura do testamento, local para essa informação. Muitos atuavam em mais de um serviço, e identifiquei ocupações para 146 sujeitos (18,5% de 787). Os dados reiteram que os testamentos foram registrados, em sua maioria, a rogo de proprietários de bens imóveis e de escravizados, com ocupações que demandavam participação na cultura escrita. Observam-se capacidades de assinatura elevadas entre os clérigos (100%), magistrados (100%), professores (100%) e negociantes (88% dos que exerciam esta ocupação).
Considerando a especificidade do contexto histórico estudado, convém verificar ainda as variáveis ‘cor’ e ‘condição’ dos sujeitos. Trabalhar o critério ‘cor’, contudo, é extremamente complexo, uma vez que as designações da época eram muitas e imprecisas e não remetiam somente à pigmentação da pele, mas, ainda, levavam em conta a condição social e o status dos sujeitos (Faria, 1998; Castro, 1998). Nesta pesquisa, não foi possível estabelecer essa caracterização de modo preciso. As fontes são limitadas, pois em 707 testamentos (90% de 787) não há menção à cor dos testadores. Os dados demográficos referentes à cor evidenciam que a Comarca do Rio das Mortes possuía um contingente populacional de brancos superior a outras comarcas mineiras (Paiva, 1996). Dentre os testamenteiros, todos os identificados nos documentos como brancos eram portugueses (25 ou 3%). Há outros 41 indicados como pretos, todos africanos (5% do total); 6 (0,7%) crioulos; 2 (0,2%) mulatos; 5 (0,6%) pardos; um homem classificado como cabra (0,1%). Dos testadores, 577 afirmaram pertencer a alguma agremiação religiosa. Destes, 250 (43%) pertenciam à Ordem Terceira de São Francisco de Assis, e 225 (39%), à de N. Sra. do Carmo. Esses indícios permitem a seguinte conjectura: 82% de 577 testadores que registraram o pertencimento a uma ordem religiosa eram livres e brancos. Sabe-se que essas ordens não aceitavam ‘pessoas de cor’. A Irmandade de N. Sra. do Rosário, da qual os escravizados participavam maciçamente (Boschi, 2007), foi indicada 60 vezes (10%), e a de N. Sra. das Mercês dos Homens Pardos, 35 vezes (6%).
No período, saber a ‘condição’ significa conhecer qual a situação jurídica dos estudados. Aos escravizados, era proibido o ato de testar. Os alforriados podiam fazê-lo, mas a maior parte dos testamentos foi produzida a rogo de pessoas livres (736 ou 93,5% dos testadores). Em contrapartida, a Comarca do Rio das Mortes era a que contava com o maior contingente cativo das Minas Gerais, principalmente no século XIX (Brügger, 2007; Libby, 1988). Quando comparados os assinantes com os totais de homens e mulheres de cada condição, os números são reveladores. Dentre 457 homens livres, 398 (87%) assinaram e 8 (1,7%) não sabiam assinar. Dos 20 homens forros, 5 (25%) assinaram e outros 5 não sabiam assinar. Das 279 mulheres livres, 114 (40%) assinaram e 135 (48%) não sabiam. As mulheres forras contam 2 (6%) assinantes e 24 (77%) foram incapazes de assinar. As mulheres livres que não sabiam assinar (48%) eram mais numerosas do que os homens forros que também não sabiam (25%), uma disparidade de 23%. Mais uma vez, o fato de se pertencer ao sexo feminino parece expressar o lugar simbólico e a participação na cultura escrita, mesmo entre as mulheres livres. A relação das mulheres com a palavra escrita não parecia simples, pois saber escrever, no caso delas, poderia carregar uma carga de negatividade, sob o aspecto moral.
Assinaturas em escalas: indicadores de letramento
Para a elaboração deste estudo, a qualidade das assinaturas foi analisada a partir da escala proposta por Magalhães (1994). Essa escala possui cinco níveis, aos quais correspondem diferentes graus de letramento. Apresento, a seguir, as características dos níveis e exemplos de assinaturas encontradas nos testamentos, bem como a análise dos dados encontrados para a Vila e Termo de São João del-Rei entre 1750-1850.
O ‘nível 1’ caracteriza-se por sinais. Seus autores não formavam letras, não sabiam ler nem escrever, mas deixaram marcas (cruzes). Esse tipo de registro foi muito comum entre africanos e entre mulheres livres analisados neste estudo. Esses casos são interessantes, pois a pena, o tinteiro e o papel não eram objetos comuns nas ‘moradas de casas’. Naquele contexto, manusear um instrumento de escrita, mesmo que de modo rudimentar, e marcar um sinal no papel demarcavam uma diferenciação social. Grafar uma cruz parecia ser a expressão mais autorizada para as mulheres, como o exemplo a seguir (Figura 1), de um sinal feito por uma mulher sanjoanense, após ditar seu testamento:
Em São João del-Rei, 69 sujeitos fizeram cruzes, sendo 54 testadores (6,8% de 787) e 15 testamenteiros (2% de 656). Com relação à cidade de Mariana, 4,9% fizeram sinais (Villalta, 2007b). Na Freguesia de Mafra, Portugal, a porcentagem de sinais chegava a 48% (Alves, 2003).
A soma de testadores e testamenteiros assinantes de São João del-Rei totaliza 1.034 casos, incluindo os sinais. Destes, 519 (66% de 787) testadores e 515 (78,5% de 656) testamenteiros assinaram. Conforme Villalta (2007b), em Mariana, 62,5% assinaram. De acordo com Alves (2003), em Mafra, 32% foram capazes de assinar. De maneira comparativa, os dados mostram que a inserção na cultura escrita era muito maior nas regiões mineiras aludidas do que em Mafra, em Portugal.
No ‘nível 2’, as assinaturas são rudimentares. Nota-se uso inapropriado de maiúsculas no lugar de minúsculas ou vice-versa. Letras trêmulas, não interligadas e que não seguem uma linha reta, com traços de ‘mão guiada’. Os que se encontravam nesse nível seriam capazes de ler e escrever mal, ou escrever o nome. Considerando-se os 1.034 assinantes, 144 se encontravam no ‘nível 2’ (14% desse total), dos quais 111 testadores (21% de 787) e 33 testamenteiros (5% de 656). Segue um exemplo em que se destacam as letras traçadas de forma insegura e a incapacidade de seguir uma linha reta, que pode ser observada ao se comparar as linhas escritas acima e abaixo da assinatura (Figura 2):
Os que possuíam o ‘nível 3’ eram capazes de ler, de assinar de forma completa e de escrever pequenas mensagens com erros. A chancela possui boa composição, porém o assinante não consegue executar a escrita cursiva com fluidez, havendo ausência de ligação entre as letras. No universo estudado, 386 assinantes se encontravam no ‘nível 3’ (37% de 1.034): 228 testadores (44% de 787) e 158 testamenteiros (30,6% de 656). A assinatura de Maria do Carmo Albina é um bom exemplo. Afirmou que lera e assinara seu testamento em 1829, mas apresentou dificuldade em interligar as letras e em seguir uma linha reta (Figura 3).
A assinatura de ‘nível 4’ traduz uma significativa competência motora. Eram pessoas que liam e escreviam, efetuando uma chancela bem distribuída. As letras em estilo cursivo encontram-se interligadas de forma harmoniosa, o que revela prática da escrita. Embora de fácil compreensão, é ‘caligráfica’, ou seja, praticamente copia o estilo da época. Não revela apropriação criativa da habilidade de escrever, não havendo criação de uma assinatura com estilo próprio. As letras assemelham-se às disseminadas pelos manuais de caligrafia do período. Do total de 1.034 assinantes sanjoanenses, 117 estavam no ‘nível 4’ (11%), distribuídos entre 44 testadores (8,4% de 787) e 73 testamenteiros (14% de 656). Para este nível, a assinatura de Antônio Joaquim do Rego Barros é exemplar (Figura 4):
Chegar ao ‘nível 5’ demandava constante treinamento, o que permitia apropriar-se da escrita e executar uma assinatura de modo criativo e inventivo, dominar as linhas curvas e retas, os traços grossos e finos, criar ‘penadas’ (arabescos). Manoel Ignácio de Almeida7, natural da Vila de São José, filho natural de Ana Fernandes Bastos, preta forra, manifestou, em seu testamento, tal desenvoltura com a pena. Abreviou seu nome, mas sua assinatura apresenta extrema firmeza nos traços. Criou ‘penadas’ que alternaram traços finos e grossos, o que indica grande prática de escrita. Seu testamento foi assinado em 1781 e em anexo ao processo encontra-se um comprovante de uma dívida. Trata-se de um bilhete escrito de próprio punho do século XVIII, solicitando itens alimentícios a um comerciante, o que revela a utilização da palavra escrita como forma de comunicação em seu cotidiano (Figura 5). A transcrição do bilhete diz assim:
Senhor Domingos da Costa Cardoso.
Se a Vossa Merce lhe naõ for molesto, mandar-me duas livras [sic] de passas e//
duas de biscoitos, satisfarey a Vossa Merce que Deus Guarde Muitos anos//
De seu Captivo, e obrigado.
Manoel Ignacio de Almeida
Fonte: Bilhete de próprio punho com assinatura de Manoel Ignácio de Almeida (século XVIII), anexo ao processo de testamentaria (Almeida, 1781).
No corpo do testamento, Manoel Ignácio registrou sua atividade como professor, ao afirmar: “[...] deixei hum Rol de dividas que se me devem de emsino os rapazes da minha escola por mim assignado no qual declaro as pessoas que me devem e as quantias”. Daí sua intimidade com a escrita. Chama a atenção o fato de ser descendente de uma preta forra e trabalhar com as letras, um caso raro, considerando o que os dados quantitativos deste estudo revelaram. Os clérigos, magistrados, professores e alguns negociantes eram capazes de efetuar esse nível de assinatura. Dentre os assinantes sanjoanenses, 387 se encontravam no ‘nível 5’ (37% de 1.034). Destes, há 136 testadores (26% de 787) e 251 testamenteiros (48,7%). Entre as mulheres, apenas três testamenteiras realizaram assinaturas de nível 5 (0,2% do total de 1.034).
Considerações finais
Hipóteses que estabelecem íntima relação entre posse de bens, profissões e capacidades de assinar foram confirmadas com os dados dos moradores de São João del-Rei. Considerando a origem, o sexo, as variáveis socioeconômicas e a condição jurídica dos testadores, percebe-se que a pesquisa se restringe a alguns setores economicamente mais favorecidos da sociedade sanjoanense e aos nascidos livres.
A disseminação da capacidade de assinar se organizava, entre os testadores da Vila e Termo de São João del-Rei, de forma similar a outros contextos geográficos: atingindo mais os homens do que as mulheres, principalmente os proprietários e aqueles que desempenhavam ocupações como professores, clérigos e negociantes. Nota-se diferença da população estudada em relação a outras partes da Europa quando analisada a variável local de moradia, uma vez que não houve grande disparidade entre os índices de assinantes daqueles que afirmavam, na hora de testar, que moravam na parte urbana, com relação aos que possuíam propriedades em áreas mais rurais e provavelmente nelas viviam quando do registro de seus testamentos.
Os indícios sobre a menor ocorrência de assinaturas entre mulheres e a quantidade expressiva daquelas que não sabiam assinar são corroborados por outros estudos e ao longo deste artigo, levando a uma constatação comum sob o ponto de vista histórico: até meados dos Oitocentos, o domínio da escrita pelos homens estava sempre à frente, tanto quantitativa quanto qualitativamente.
Mesmo buscando perceber rupturas ou mudanças de padrão ao longo do tempo, com relação às mulheres, foram encontradas continuidades na longa duração, à vista de que não foram identificadas como redatoras de testamentos e seus índices de assinaturas se mostraram inferiores aos dos homens. Conclui-se que, no espaço estudado, entre 1750 e 1850, o mundo das letras era marcadamente ocupado pelas pessoas de posses e que as mãos que assinavam eram sobretudo masculinas e brancas.
Apesar dessa conclusão geral, os testamentos analisados revelam que as mulheres de São João del-Rei apresentavam índices de letramento superiores aos de suas contemporâneas portuguesas e africanas. Mesmo cerceadas, os casos de mulheres tutoras, raros, mas relevantes, comprovam inserção das mulheres na cultura escrita e a capacidade feminina de administrar os bens de seus filhos, especialmente entre esposas de comerciantes.
As análises sobre a cultura escrita em interface com a História da Educação fornecem possibilidades interessantes para pensar as desigualdades culturais que se expressam em realidades regionais, contribuindo para comparações entre espaços e tempos distintos.