1 PALAVRAS INICIAIS
A História da Educação pode ser reconhecida como um “território” da investigação histórica, que se articula em sua pluralidade em diversos níveis: “macro” ou “micro”, que “se inter-relacionam e se entrecruzam para formar um saber magmático” (CAMBI, 1999, p. 33): teorias, instituições, práticas, processos formativos, políticas educacionais, sociais e do imaginário. Este estudo insere-se na perspectiva da História Cultural, campo da história que, ao longo do século XX, tem expandido suas áreas de estudo e as formas de compreender e construir a história. Nessa perspectiva, a história cultural “tem por principal objeto identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p.16-17).
A memória sobre as trajetórias dos grupos sociais, nesse caso com enfoque na região rural2, permite vislumbrar as práticas sociais constituídas pelos professores e alunos de escolas isoladas e nos auxiliam no trabalho historiográfico de construção do passado. Nas narrativas sobre os sentidos e formas de viver em comunidade é possível a percepção de como uma comunidade carrega dentro de si histórias, de formas de trabalhar, de se relacionar e estabelecer vínculos identitários.
Para Escolano Benito (2015), a cultura escolar em sua dimensão patrimonial tem possibilitado o estudo do cotidiano e das práticas a partir das memórias que nos chegam “el primero, el más expuesto a esta posibilidad [...] por las cosas u objetos físicos que nos há legado el passado de la escuela [...] el segundo, también visible [...] los rituales que pautan la sociabilidade de los atores [...]” (ESCOLANO BENITO, 2015, p. 45). É pela investigação das práticas e representações que se pretendem identificar o modo como à realidade é socialmente construída, como se operacionalizaram nos fazeres da escola; como professores e alunos significaram às suas experiências, suas vidas, seus mundos.
Nesse sentido, o objetivo é analisar como a Escola Isolada contribuiu para os processos de escolarização em Novo Hamburgo, município gaúcho do Rio Grande do Sul, a partir de memórias de professores e alunos de duas escolas isoladas situadas no bairro Lomba Grande, evidenciando as práticas e culturas escolares construídas por diferentes sujeitos nessa localidade.
2 A ESCOLARIZAÇÃO NO MEIO RURAL3
Entre as décadas de 1930 a 1950, aproximadamente 70% da população brasileira vivia no espaço rural. Porém, com o crescimento e a diversificação da economia, o Estado brasileiro também se ajustou aos novos padrões econômicos e sociais. A escola acompanhou essas mudanças; nesse sentido, a escola da cidade passou a ter importância, e isso refletiu “tanto nas políticas públicas quanto nas iniciativas privadas” (ALMEIDA, 2007, p. 86).
A primeira metade do século XX será conhecida como período de continuidade da expansão da educação pública, manifestação da propaganda republicana. Para Bastos (2005), na década de 1930, a escola assumiu um caráter estratégico na obra da reconstrução nacional. Como política social, a escola seria a instituição legítima para imprimir na sociedade “certa unidade de pensamento”. Portanto contribuiria para que se consolidasse a ideia de um “Estado forte, autoritário e marcadamente nacionalista”. O nacionalismo estava presente nas discussões, debates e realizações do governo Estadual desde o início do século XX, visível, por exemplo, nas subvenções escolares que contribuem para esse projeto de governo. Contudo a política introduzida no período de 1930 a 1945 pretendia conduzir os indivíduos às novas exigências da realidade urbano-industrial, como resume Bastos (2005, p. 16):
A formação do “novo” homem está a exigir uma “nova” educação e “novas instituições escolares”. [...] as realizações do governo são dirigidas a preparar o homem completo, isto é, como pessoa, como cidadão e como trabalhador, a fim de que realize integralmente - no plano moral, político e econômico - a sua vida, para servir à Nação. Para implementação dessa meta, é fundamental a elaboração de um código das diretrizes da Educação Nacional, no qual o Estado deve assumir a sua suprema direção, fixando-lhe os princípios fundamentais e controlando a sua execução. O ensino primário - “a alfabetização das massas” - como o verdadeiro instrumento de modelação do ser humano, deve despertar e acentuar na criança as qualidades e aptidões de ordem física, intelectual e moral, que a tornem rica de personalidade e, ao mesmo tempo, dotada de disciplina e eficiência - dois atributos essenciais ao cidadão e ao trabalhador. (BASTOS, 2005, p. 16).
Percebe-se, nessa investigação, que as representações de professores sobre o papel do Estado, como “Estado Forte”, é o de provedor e regulador das práticas sociais. A relação de interdependência entre as esferas federal, estadual e local pretendia consolidar, juridicamente, a garantia da expansão, da obrigatoriedade e da gratuidade do ensino público, principalmente o primário.
No Rio Grande do Sul, entre 1930 a 1945, ocorreu crescimento do número de escolas públicas, ora pelo aspecto da subvenção, em função do processo de nacionalização do ensino, como já foi referido anteriormente, ora pela criação de novas instituições de ensino. Além disso, outras ações que envolveram a instância educativa contribuíram para qualificar o ensino público gaúcho. Para Bastos (2005), essas ações se referem à tentativa de organizar administrativamente para melhor legislar nesse assunto. Em 1935, foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública, ocupada por Otelo Rosa, entre 1935 a 1937; posteriormente, ocupada por José Pereira Coelho de Souza, entre 1937-1945. Esse órgão incluía as seguintes diretorias/instituições: Diretoria Geral da Instrução Pública; Assistência a Alienados; Higiene e Saúde Pública; Museu Júlio de Castilhos; Biblioteca Pública; Universidade de Porto Alegre e Conselho Estadual de Educação.
Quanto às políticas públicas locais que subsidiaram a educação pública, desde a Constituição Estadual de 1935, as Câmaras Municipais, sob a organização de suas Leis Orgânicas, mantinham conselhos que legislavam sob os recursos aplicados ao ensino4, cabendo a cada municipalidade, através de sua Câmara, examinar e julgar a prestação de contas do Poder Executivo, bem como aprovar e votar leis e o orçamento para o exercício do ano seguinte.
O investimento no setor educacional repercutiu na forma de escola implantada e/ou adaptada entre as décadas de 1930 a 1950, ou seja, o Grupo Escolar. Tomando como referência os dados estatísticos produzidos pelo Almanak Escolar do Rio Grande do Sul, os qual registra que, em 1935, contabilizavam-se 350 escolas estaduais com 350 professores e 510 aulas isoladas subvencionadas estaduais com 510 professores, 30 aulas reunidas, com 92 professores e 6 escolas complementares com 60 professores, 104 Grupos Escolares e 1.007 Colégios Complementares, além da Escola Normal de Porto Alegre (ALMANACK, 1935, p. 53).
Esse crescimento a partir da década de 1930 associa-se às ações de nacionalização, o que exigiu inicialmente medidas que orientaram e regulamentaram a rede de atendimento das escolas particulares. Para Freitas e Biccas (2009), o número de escolas particulares fechadas em 1938 foi de 103 instituições, enquanto 238 foram oficialmente abertas5. Bastos (2005) acrescenta que a ampliação da rede pública de atendimento educacional refletiu também na esfera pública municipal. Em 1937, havia 2.830 escolas isoladas municipais e, em 1941, esse número havia saltado para 3.325. Quanto às escolas isoladas sob a gestão estadual, o número de 732 em 1937 diminuiu para 360 em 1942, em virtude da implantação dos grupos escolares elas passaram de 170, em 1937, para 518, em 1942.
Na década de 1940, a escolarização primária estava dividida em duas possibilidades: fundamental e supletiva. A fundamental era destinada a crianças de 7 a 12 anos, com duração de 4 anos para o curso elementar e um ano de curso complementar preparatório ao exame de admissão ao ginásio (BRASIL, 1947). O ensino primário, basilar e indispensável para a formação humana, acontecia nas “Escolas Isoladas; Escolas Reunidas ou nos Grupos Escolares”, com previsão de quatro anos de escolaridade, complementadas por mais dois anos de ensino preparatório ou complementar, que deveria acontecer no grupo escolar. A estrutura do ensino, com a proposta Capanema, contribuía para o afunilamento “natural” da escolarização. É só no início dos anos 60 que se desenvolvem procedimentos administrativos tendentes à descentralização do ensino primário.
3 OS PROCESSOS DE EXPANSÃO DO ENSINO EM LOMBA GRANDE, NOVO HAMBURGO
A escolarização aqui investigada refere-se a um lugar específico de Novo Hamburgo, o espaço rural d;lo município de Novo Hamburgo, já emancipado desde 1927.
As escolas isoladas, ou multisseriadas, como também são conhecidas, existiram nos espaços urbanos e rurais, embora o “interior” parece ter se configurado como lugar privilegiado dessa prática, considerando o reduzido número de alunos das comunidades rurais. Nesse sentido, o enfoque central deste estudo foi conhecer e analisar práticas associadas ao processo de escolarização constituído em Escola Pública Isolada Municipal, no meio rural de Lomba Grande, tendo como referência duas instituições remanescentes no modo de organização multisseriado -a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Bento Gonçalves e EMEF Tiradentes, situadas em duas diferentes localidades do bairro.
Na localidade do Morro dos Bois, está situada a EMEF Tiradentes, que foi fundada em 1º de setembro de 1933, pela professora Maria Hilda Scherer, em cuja residência a aula funcionava. Na localidade de Taimbé, situa-se a EMEF Bento Gonçalves. As Aulas dessa escola iniciaram de forma domiciliar em 5 de março de 1884, em residência particular.
Como referimos anteriormente, o processo e a forma de organização escolar, em especial o tipo de escola instituída em Lomba Grande, relacionam-se à presença dos imigrantes europeus, nesse lugar desde o século XIX. O desenvolvimento da escolarização nessas escolas associa-se à elaboração de uma tradução cultural, que levou em conta, em sua constituição, práticas conhecidas e construídas, bem como reconheceu ações particulares, comunitárias e das políticas desenvolvidas em prol da escolarização.
Em Lomba Grande, a experiência escolar, de forma organizada e institucionalizada, iniciou-se com a escola da Comunidade Evangélica-Luterana, oficialmente fundada em 08 de fevereiro de 1842. Contudo a primeira Aula Pública do lugar foi instalada só em 1859. E mesmo que a escola pública estivesse presente desde a segunda metade do século XIX, é apenas com advento da república que seu processo de ampliação começou a acontecer.
Para Werle (2005), na legislação educacional no nosso Estado, a categorização das escolas estava conjugada a uma ordem espacial, cujo ponto de referência era a cidade. E mesmo que a maior concentração populacional estivesse situada no meio rural, a preferência para construção dos grandiosos e imponentes prédios dos Grupos Escolares6 era o espaço urbano. A Escola Isolada surge em contraposição aos Grupos Escolares. Nesse sentido, após a primeira década do século XX, a legislação e os regulamentos de ensino passam a relacionar as Classes de Instrução Primária como Escolas Isoladas.
Entre 1940 a 1952, havia oito Escolas Públicas municipais em Lomba Grande, além das Escolas Isoladas Estaduais, das Aulas Reunidas que, posteriormente, originaram o Grupo Escolar.
Na pesquisa mais ampla, desenvolvida anteriormente7, valendo-se da História Oral, dez sujeitos foram entrevistados. A saber: as professoras Maria do Carmo Schaab, Lúcia Plentz e Maria Lorena Pires; os alunos João Bernardes, Helenita e José dos Reis da EMEF Bento Gonçalves. Em relação à EMEF Tiradentes: o professor Sérgio e seus alunos Clari Winck, Lucilda e Tomaz Thiesen.
Para chegar aos sujeitos, utilizou-se a prática da indicação ou “snowball sampling” que compreende a diversificação e a saturação da amostra. Bogdan e Biklen (1994) argumentam que a saturação é o ponto da recolha de dados a partir do qual a aquisição de informação se torna redundante.
Nesse sentido, o grupo social investigado constitui o que Dominique Borne (1998) chama de “comunidade de memória”, a partir do modo como os sujeitos revisitaram o passado e traduziram uma forma para que as práticas culturais fossem narradas. Essas memórias, unidas, possibilitaram construir um “Tempo Social” comum (HALBWACHS, 2006). Um tempo localizado geograficamente na zona rural.
4 MEMÓRIAS DAS AULAS NAS ESCOLAS ISOLADAS EM LOMBA GRANDE
A percepção do tempo auxilia os sujeitos e os grupos sociais na organização das percepções cognitivas da temporalidade, na concretização e integralização de valores e rituais, bem como na aplicação e regularidades de práticas (ESCOLANO BENITO, 2001). Nesse sentido, o tempo é tomado como símbolo social que representa um processo de aprendizagem, de tradução cultural.
Kreutz (2010) argumenta que, ao se deparar com situações novas e diferentes, os sujeitos agem a partir dos sentidos e relações simbólicas adquiridas e inventam novas formas de pensar e se relacionar, reutilizando saberes e adaptando práticas que se traduzem numa forma possível de manifestação da cultura.
A relevância social da escolarização é um processo que agregou elementos de diferentes construções identitárias em relação aos seus contextos originais, como a importância da instituição escolar, da presença ao culto ou à missa, às festas e quermesses do lugar. A tradução cultural da integração, promovida pela convivência desses diferentes grupos sociais, instituiu e reatualizou tradições e hábitos que se revestiram em representações que priorizaram a escola como um legado necessário para os filhos dos colonos.
A tradução cultural permitiu que as normas, inscritas nos objetos e práticas, assumissem uma forma dinâmica no cotidiano da vida escolar. Vidal (2011), apoiada em Certeau, acrescenta que as práticas, como manifestação criativa dos sujeitos, são revestidas de “inteligências imemoriais, astúcias milenares”. Portanto a funcionalidade das práticas é circunscrita de modo privilegiado no campo das táticas com a realização, ou não, do que prescrever as estratégias. No conjunto de criações, que caracterizam as escolas isoladas, o trajeto até a escola se insere nas culturas escolares também como um campo privilegiado para construção de táticas. No interior das localidades, os alunos costumavam caminhar até cinco quilômetros para chegarem ao seu destino, como rememora Clari (2013):
Olha, era longe! Era ir até lá em cima. Quando chovia a gente não ia na escola. Naquela época não tinha capa. Quando chovia pouco tinha sombrinha. Ia de tamanquinho, levava assim no dedo, ia de pé no chão. Chegava na escola lavava os pés e deixava todos os tamancos na porta da escola. E aí entrava [...] ficava de pés descalços. (Clari, 2013).
Caminhar descalço, passar pinguelas, as pontes de madeira, percorrer os “trilhos”, abertos pelos pais e moradores, cruzando as propriedades dos vizinhos, também foi lembrança de João (2013), José (2014), Tomaz (2014) e Lucilda (2014), que acrescenta: “[...] vinha uma turma aqui de baixo, a gente ia esperando um e outro e ia juntando. E [...] nós voltava junto também. [...] vinha uma turma grande [...] Clari, o Marino, os irmãos da Clari”. As paradas no trajeto eram oportunidade para iniciar uma brincadeira, ensaiava-se e preparava-se para as lições que a professora “iria tomar naquele dia”. Alimentava-se expectativa de continuar as brincadeiras iniciadas no trajeto até a escola no momento do recreio. João (2013) enfatiza que havia uma “vontade” muito grande de chegar até a escola, mas os alunos costumavam se alegrar com o final da aula, pois podiam retornar para casa brincando. Sobre isso resume Tomaz (2014): “a gente gostava da aula, mas a gente gostava de sair da aula!”.
Ao chegar à escola, os alunos aguardavam um tempo até que a professora chamava os alunos ou usava a sineta para anunciar que já era “hora da aula”. Nesse sentido, geralmente, utilizava-se o período da manhã para as aulas nas Escolas Isoladas. Sobre isso, Lucilda (2014) recorda, “dava a sineta. A gente entrava e começa o tema. Aí tinha o recreio. A gente brincava e aí nos tudo rezava e vinha pra casa”. No espaço da sala de aula, cada um tinha o seu lugar certo, não costumavam pedir ou mudar de lugar, complementa Lucilda (2014), “[...] ficávamos brincando, aí tinha a sineta e aí ela tocava. Brincava, às vezes separado, ou tudo misturado. Ai a gente entrava, cada um ia pra sua classe e começa a aula [...]”.
O caminho até a escola constitui-se para esse grupo de sujeitos em espaço não formal para aquisição de saberes, momento em que se aprendia, sobretudo, no contato entre as diferentes manifestações identitárias trazidas da convivência do seio familiar de cada aluno, bem como, instituíam-se momentos em que fora possível reelaborar conceitos, sobre valores, tradições, costumes. O reconhecimento de pertencer a um determinado grupo e, ao mesmo tempo, ter a possibilidade de circular em outro um tanto quanto distinto evidenciou-se também nas situações formais de escolarização... no tempo da aula, no espaço escolar.
As aulas seguiam um ritual, que geralmente incluía oração, as lições, temas e realização de atividades, como se observa no quadro 01 abaixo. A proposta para um dia de aula como, por exemplo,
Estrutura de um dia de aula | |
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1º | Oração (Pai Nosso, Ave-Maria, Santo Anjo) |
2º | Chamada |
3º | Lição no quadro Português, Matemática, História, Geografia e Ciências |
4º | Ditados |
5º | Oração para recreio (merenda/lanche) |
6º | Outras lições sobre as matérias Português, Matemática, História, Geografia e Ciências (tema de casa) |
7º | Oração de despedida |
Fonte: Elaborado pelo autor, 2014.
A prática da oração, realizada em diferentes momentos do turno de aula, reforça o aspecto da associação da escola como ambiente que reforça a fé cristã. De acordo com Cunha (2013), as práticas litúrgicas e icônicas pretendiam disseminar a ideia e o espírito de justiça, caridade para com os pobres, uma forma de fabricar sujeitos embebidos de valores católicos. A ênfase dada pelos professores dos bons comportamentos também formaria espiritualmente os alunos.
Carlota Boto (2014) acrescenta que a escola foi utilizada pelo Estado e pela Igreja para desenvolver um “controle de conduta”, modos de se portar, responder e agir em sociedade, e que passou a ser instilado no indivíduo desde os seus primeiros anos. Tudo indica que os professores de Escolas Isoladas cumpriam bem o papel de inscreverem a orientação cristã católica como religião “oficial do Estado”, o que fica evidente nesse outro relato:
A primeira coisa que eu fazia - Posso ser franca! Dava bom dia pros alunos. Rezava um Pai Nosso e uma Ave-maria - não sei se o senhor é católico -. Pois é, rezava um Pai Nosso e uma Ave-Maria e aí começava a aula. Cada um sentava na sua classe e eu dava a lição. Tinha meia hora de recreio. Dava duas horas de aula, porque era quatro horas de aula. Aí dava o recreio e daí continuava depois. (Maria Lorena, 2014).
Rezar era uma prática utilizada no início e término das aulas, bem como antes da realização do lanche. As orações escolhidas pelos professores e as lembradas pelos alunos consistia no “Pai Nosso”, na “Ave-Maria” e no “Santo Anjo do Senhor”. Alguns alunos, como Lúcia (2014), se recordam de testes de leituras que também traziam os motivos religiosos como temática para memorização e recitação.
Lúcia (2014), Maria Lorena (2014) e Maria do Carmo (2013) referem que essa prática foi aprendida na escola, na condição de alunas de Escolas Isoladas e também no Colégio Auxiliadora, de Canoas, no caso de Maria do Carmo. Lúcia (2014) reafirma que a professora Aracy Paradeda Schmitt, na Escola Isolada de São João do Deserto,
[...] chegava e dizia: - vai começar a aula. Aí a criançada toda entrava. E entrava na sala de aula. Então, a professora era muito religiosa. A primeira coisa que fazia ela. Pedia ela, era pra nós se levantar e fazer uma oração pro nosso pai do céu. Acho eu que não fazem mais isso. Isso que está faltando [ela se mostra inconformada com a falta dessa prática nas escolas atuais]. (Lucia, 2014).
Para Fischer (2005), muito mais do que transmitir os tradicionais saberes, a professora primária era um “ser quase divino”, que assumia o compromisso e missão da transcendência como propagadora de verdades relacionadas à moral e aos bons costumes, identificadas, muitas vezes, como o evangelho. O caráter e a moral, que estavam associados a essas professoras, imprimiam maior valor e responsabilidade pelo ensinar e contribuir para a providência divina. José (2014) recorda que os alunos também rezavam em fila, quando chegavam e quando se despediam da professora: “quando chegava e quando saía a gente tinha que fazer uma fila pra gente rezar [...]. Tinha o recreio, acho que, antes de ir brincar, também a gente rezava [...]” (José, 2014).
As atividades da aula incluíam a chamada que era feita pela professora. João (2013) lembra que a professora Mariquinha já conhecia todo mundo e costumava não fazer a chamada. Clari (2013) recorda que a professora Maria Hilda sentava e abria um livro grande - livro de frequência, “[...] e chamava um por um. Quem tava era o presente e se não era o ausente”. O dia de aula seguia com a realização das lições e atividades. Após a oração, a professora passava lições no quadro-negro para os três primeiros anos e entregava as lições marcadas nos livros para os demais alunos. Nem sempre havia aluno no 5º ano, e a professora costumava circular pela sala ou espaço que era utilizado para escola para corrigir as lições, como rememora Maria Lorena (2014):
Abria a sala e dizia pros alunos. Vamos entrar. Aí todo mundo entrava. Aí fazia oração. Daí todo mundo pegava seus cadernos e os livros. E aí eu já tinha. A maioria do tempo tava tudo pronto. E aí eu já passava no quadro e eles copiavam do quadro. Eles iam fazendo e eu ia corrigindo. Aí depois tinha a outra parte, depois do recreio que faziam a parte do que não tinham feito. (Maria Lorena, 2014).
Outra estratégia utilizada pelas professoras era permanecer sentada no seu lugar e solicitar que o aluno viesse até sua classe para que fossem corrigidas as tarefas, para que ela “tomasse a lição” - de modo individual, atendendo especificidade da série para não envolver toda a turma. A professora costumava ocupar-se mais tempo da aula com os alunos do primeiro ano, com a alfabetização. Havia uma divisão invisível no primeiro ano, prática utilizada pelas professoras para garantir sucesso nos exames finais. Os alunos do primeiro ano, que já sabiam ler e/ou já chegavam à escola com algum conhecimento sobre a escrita, formavam um grupo distinto em relação àqueles que não apresentavam alguma experiência com o mundo letrado.
O modo de organizar o espaço escolar da escola isolada correspondia, em alguns casos, a posicionar os alunos em fileiras, estruturadas por níveis de adiantamento. Os alunos do primeiro ano, do segundo, sucessivamente, até os poucos alunos que realizavam o quinto ano. Maria do Carmo enfatiza que fazia a divisão entre os que tinham dificuldades e os que não tinham, bem como o tipo de atividade que era preparada para cada grupo de alunos, considerando que os maiores costumavam copiar e realizar as atividades que eram separadas dos livros didáticos. Essa prática parece ter sido comum no contexto das duas instituições estudadas, como recorda Tomaz (2014):
[...] Escrevia coisa no quadro, como tinha turma diferente ela dividia o quadro. Ah, separava o quadro por matérias específicas. Isso é pro primeiro, isso pro segundo ano. Tinha que copiar o que estava no quadro. Depois [...] me lembro muito bem Ditado, isso era uma coisa que sempre tinha muito. Tabuada, tinha que saber de cor. A do mais, do menos e a de vezes. [pausa] Me lembro muito bem do recreio. Chegava na aula com a expectativa do recreio e depois do recreio ficava na expectativa de ir embora [risos]. (Tomaz, 2014).
Escrever no quadro e pedir para os alunos realizarem as atividades propostas, usar o espaço do quadro para um grupo de alunos, divididos por série, se caracterizam como estratégias dos professores. Quando havia um quadro-negro apenas, as atividades poderiam ser pensadas para o 1º e 2º ano e outra para o 3º e 4º ano, enquanto a professora atendia individualmente os alunos do primeiro ano que apresentavam muita dificuldade para se alfabetizarem. Quando havia alunos do 5º ano, geralmente, utilizava-se de livros para realizarem as tarefas escolares.
As práticas das Culturas Escolares estão inseridas não só no modo como os alunos apropriaram-se de saberes, valores, normas e condutas, mas também está presente nos métodos pedagógicos que se mesclam nas estratégias escolhidas pelos professores. Nesse sentido, constata-se que os professores se utilizaram das formas simultâneas e individuais para desenvolver as demandas formativas da Escola Isolada. Algumas atividades eram coletivas, para todos, como as aulas de História, Geografia, Ciências e os ditados, como relembra Maria do Carmo (2013).
A atividade docente comum dessas escolas consistia em repassar atividades que eram copiadas ou montadas a partir de livros e manuscritos que estavam em poder dos professores. Lúcia (2014) recorda-se que “ensinava tudo. Mas tudo coisa simples [...] fração, eu não ensinava, não passava porque ninguém sabia”. A ênfase das disciplinas escolares estava na alfabetização, como lembra, também, Maria do Carmo (2013), e tudo indica que, na Escola Bento Gonçalves, a parte da Geometria, das frações de Aritmética, geralmente, não eram aprofundadas, entre as décadas de 1940 a 1950, que, pelo modo como narra Maria do Carmo (2013), não se associam unicamente a uma dificuldade do professor, pois o contingente de alunos dificultava um melhor desenvolvimento de conteúdos muito complexos.
Ai eu ia distribuindo as tarefas. Primeiro e segundo ano é isso aqui, agora! Pega o caderno. A professora vai passar no quadro umas frasezinhas, vocês vão ter que sublinhar agora. E cada um tinha que sentar e fazer. Porque lá não dava... tinha segundo, terceiro, quarto e quinto ano tudo junto. (Maria do Carmo, 2013).
A prática da cópia, da memorização e da reprodução dos conteúdos que estavam nos livros, como admissão ao ginásio foi utilizado pelos professores para prepara atividades para os alunos, bem como, a seleta. Sérgio (2014), Tomaz (2014) e Lucilda (2014) se recordam que, às vezes, a professora Maria Hilda usava para os alunos do 4º e 5º ano atividades desses livros:
O nome eu não sei. Ela, a maioria das coisas ela tirava de um livrão grande assim que ela tinha. E ela marcava dentro a matéria e dava a matéria pra gente copiar. Era um livro grande, grosso assim [mostra com as mãos] [...] Ela dava as frações, essas coisas tudo. E copiava dali (Lucilda, 2014).
As situações matemáticas correspondiam a situações práticas do cotidiano do lugar, remetiam a preparação para o cálculo mental e para o rápido e ágil raciocínio lógico. Sobre isso, Tomaz (2014) refere com orgulho que a professora Maria Hilda era muito exigente, pois aqueles que no futuro fossem “fazer as feiras” necessitariam da “firmeza nos cálculos”, como se constata nesse depoimento:
Ela tinha uns livros, de conta, geografia. Era uns livros assim [mostra com a mão o tamanho] que a prefeitura deu pra ela. E dali ela tirava partes do que ela ia dá pra nós. E passava no quadro. Era diferente a aula. Ela chegava lá. Um quilo de açúcar custa tanto, um quilo e duzentas gramas, quanto gastou? Aí a gente tinha que calcular. Assim a gente aprendeu, mas ela ensinava ler, escrever e fazer umas contas. Embora, não tinha muitas coisas pra fazer mesmo. (Tomaz, 2014).
Como argumenta Certeau (2011), os praticantes da vida cotidiana desenvolvem ações e constroem formas próprias de consumo puro e simples das práticas. Em relação às atividades matemáticas, a narrativa de Tomaz (2014) ressalta o modo gazeteiro e astuto que ele criou para burlar as regras, transformar-se em um consumidor ativo de um saber fazer que lhe permitiu a mobilidade tática:
Tirar a prova pra ver se a conta tá certa. E um dia ela brigou comigo, porque eu fiz uma prova diferente da dela. E cheguei no mesmo resultado. A dela tinha que fazer uma cruz assim. E eu fazia e não dava certo. E eu faço uma prova real que eu faço hoje ainda. Tu faz a conta. Diminuiu. Soma aquilo tudo ali que vai dar o mesmo do início. Se dá a conta tá certa, se não dá tem algum erro. E tem tudo isso aí. E eu inventei. Depois ela ficou braba comigo. Ela era muito exigente com nós, com o sotaque. Com o b e o r. E a gente puxava muito o r. Eu tinha muito sotaque e agora perdi um pouco. E eu digo, a senhora também tá errada. Brasil, não é com s. A senhora está escrevendo errado. Brazil é de Braza. Como é que a senhora manda a gente escrever Braza com z e Brasil com s. Ah, ela brigou comigo e me xingou. (Tomaz, 2013, grifo nosso).
A diferença, talvez, seja um pretexto para que astúcia se evidencie, nos lances, usos de operações, desenvolvidas pelos alunos, na vida cotidiana escolar, adquirindo uma regra própria na sua forma mais singular de agir e se manifestar. Esse aspecto também se relaciona ao modo como as disciplinas e conteúdo são significados por cada sujeito.
Aprender ler, o traçado das letras, as sílabas e a caligrafia são aspectos recorrentes entre os entrevistados. Além dessas matérias havia ciências, geografia e história como lembra Lúcia (2014), “Tinha história do Brasil. Tinha que ter a caligrafia para ter a letra bonita”. Os aspectos de apresentar uma letra clara, limpa e bem desenhada, era sinônimo de higiene e boa índole, como argumenta Mignot (2008), os cadernos de caligrafia representavam a possibilidade de formar moralmente os cidadãos caprichosos, úteis à pátria e que atendiam ao ideário da modernização escolar. A arte da escrita impõe aos sujeitos ordem, disciplina e estética, aspectos que perpassam a constituição corporal dos sujeitos que a praticam. Nesse sentido, Grazziotin e Gastaud (2010) argumentam que a prática de caligrafia se adentra no universo do modo como a humanidade historicamente processou e adquiriu a competência gráfica.
As atividades escolares, nas Escolas Isoladas, compreendem, predominantemente, o uso do caderno para copiar, escrever, para realizar os temas, montar frases, sublinhar. Os cadernos podem ser um dos produtos culturais mais significativos das práticas que permitiram a transmissão de conhecimentos e a imposição de normas, produzidas pelos diferentes sujeitos num determinado espaço e tempo. Para Vinão Frago (2008), o caderno elucida uma forma de organizar o trabalho, realizado pelos professores, no cotidiano das aulas.
A cultura escolar construída nessas instituições, mesmo diante das singularidades que cada uma das duas escolas apresenta, organiza-se a partir dos artefatos necessários para aprender a ler, escrever e contar; portanto, alfabetizar em linguagem e aritmética. Dos sujeitos entrevistados, poucos foram os alunos que seguiram estudando, mas muitos conseguiram, com facilidade, se colocar no mundo do trabalho. Os entrevistados ainda reiteram que isso foi possível em função da educação voltada para o afeto, o carinho e a religião. Isso os levou, em suas palavras, a “condução do caminho do bem”, mesmo optando pela permanência no meio rural. E quanto aos que se aventuraram na cidade, tinha a referência da “disciplina, ordem e respeito” e souberam aproveitar desses ensinamentos para alcançar posições profissionais que lhes oferecessem melhores condições de vida.
As Escolas Isoladas de Curso Primário, no meio rural de Lomba Grande, entre as décadas de 1940 e 1950, na perspectiva das práticas e representações de alunos e professores, manifestam formas de traduzir saberes, conhecimentos, normas, valores e atitudes que privilegiam as relações estabelecidas pelos grupos sociais como aspecto indispensável para preservar e resignificar hábitos, costumes, tradições e construir identidades de pertencimento, bem como perpetuar um tipo de conhecimento formal, adquirido nessa forma de organização escolar.
Em síntese, a escola desses sujeitos foi a Escola Isolada, multisseriada, forma instituída para promover o contato formal com o conhecimento escolar, maneira encontrada pela comunidade para confrontar e/ou ressignificar saberes sobre a vida, conhecer, esclarecer e normatizar fenômenos que se deparavam diante das realidades e contextos construídos por esse grupo social. Como argumenta Escolano Benito (2001), o espaço escolar influenciou a condução de diferentes práticas que caracterizaram uma forma singular de organizar o ensino no meio rural de Lomba Grande, que foi possível conhecer e analisar seus programas culturais e pedagógicos a partir dos vestígios de Culturas Escolares.
5 PALAVRAS FINAIS
A escola, de modo geral, é o lugar privilegiado de produção de culturas singulares, inventivas e conformadoras de representações sociais, nesse sentido dão centralidade às práticas cotidianas que lhes conferem sentidos específicos: um lugar de aprendizagem formal (CUNHA, 2008). A instituição escolar nesse lugar é aqui entendida como produto da cultura, resultado do processo de “encontros culturais”, Burke (2013), cuja influência significativa, na forma de organização escolar comunitária germânica, estabeleceu relações que possibilitaram professores/as inventar práticas e um modo singular de organização, incluindo usos e costumes adaptados ao meio social constituído.
As práticas de escolarização desenvolvidas nesse lugar agregaram elementos dos diferentes tipos de escola tais como: a ênfase do ensino das primeiras letras, os “bons costumes”, a recitação e o modo catequético que nos reportam às escolas jesuíticas; a preocupação, não apenas com aprendizagem da leitura, mas com a escrita e aritmética, modelo vinculado às escolas elementares, às escolas particulares, confessionais e ao modelo republicano e laico dos grupos escolares.
A Escola Isolada em Lomba Grande encerra, na sua forma de organização, características de um espaço e tempo, cuja concentração populacional em idade escolar ainda era expressiva no meio rural. Os objetos e artefatos culturais acomodaram aspectos subjetivos, pelo modo como professores e alunos traduziram as apropriações culturais que edificaram percebidas, sobretudo, no jeito de sentar na carteira, que servia para cinco alunos; na adaptação realizada para a transformação dessa mobília escolar, quando passou a ser ocupada apenas por dois alunos; o modo como os professores agrupavam os alunos e desenvolviam as aulas; as matérias indispensáveis para aprender a ler, escrever e ainda pelo significado que representou para cada um, no ato de auxiliar um colega a segurar o lápis pela primeira vez! Lembranças trazidas à contemporaneidade pelas memórias de professores e alunos rurais.
Além dos sujeitos desta pesquisa, essa escola talvez esteja na memória de outros tantos alunos e professores, que entre 1940 a 1950, estudaram no meio rural, alunos que, mesmo diante das adversidades físicas, econômicas ou sociais, percebiam, na escola, uma possibilidade de futuro melhor!