1 INTRODUÇÃO
As mudanças advindas do século XX apresentaram alterações significativas nas sistemáticas da humanidade e em suas mais diversas relações sociais e interculturais. Após a Segunda Guerra Mundial, a disseminação da tecnologia e o acesso gradativo em massa da população a novas ferramentas provocaram transformações anteriormente impensáveis em diversas instâncias, na e para a sociedade, em um movimento chamado de globalização.
Para Santos (2002), a globalização é um processo multifacetado, com dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais, jurídicas e religiosas que atuam concomitantemente e de maneiras complexas, em um jogo de universalização e extinção das fronteiras nacionais. Algumas perspectivas desse conceito o consideram um estágio mais avançado dos processos de internacionalização que se pautam por meio das mais diversas formas de integração da economia mundial capitalista. Coutinho (1995) e Morosini (2006) reconhecem, em seus estudos, perspectivas de globalização intimamente relacionadas aos processos e às estratégias de internacionalização para a Educação e o Ensino Superior.
Nesse âmbito, o Processo de Bolonha, instaurado em 1999 na Europa, emerge como marco histórico e conceitual, desenvolvido e apresentado como política para ampla melhoria da Educação Superior no continente. Por meio da União Europeia, é consolidado o Espaço Europeu de Educação Superior, por intermédio de estratégias que privilegiam a qualificação de determinada conjuntura coletiva: é introduzido um sistema curricular em ciclos para países-membros com o objetivo de facilitar a mobilidade de estudantes, a validação de créditos obtidos no exterior e a revalidação de diplomas. Ao longo do tempo, observa-se o aumento de incentivos para a atuação desses profissionais no mercado de trabalho europeu, estabelecendo, assim, relações mais estreitas com a sociedade globalizada, a partir de uma concepção de universidade redirecionada para o setor produtivo, a fim de gerar novos conhecimentos, ciência, tecnologia e inovação.
Tendo por base essa conjuntura, com a finalidade de aprofundar os estudos e as concepções sobre internacionalização , o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES) de uma instituição pública do Sul do Brasil vem mobilizando discussões e pesquisas relacionadas a essa temática, reconhecendo a produção científica produzida nas últimas duas décadas.
Por meio de um estado do conhecimento, tendo como fonte o Portal de Periódicos da CAPES, pretende-se, com este artigo, compreender os principais aspectos históricos e políticos do Processo de Bolonha à luz dessas produções científicas, de modo a verificar similaridades e distanciamentos nos artigos desta amostra. Compreende-se que não é possível, nestas breves linhas, evidenciar a complexibilidade dos fatos e vertentes de análise sobre as quais esse processo se constitui e acontece. No entanto, ao admitir o fenômeno da globalização como a base constituinte de diversos movimentos que se apresentam na Educação Superior na atualidade, o exercício de apreensão e reflexão sobre esse tema mostra-se fundamental.
Trata-se, portanto, de um estudo qualitativo e hermenêutico, que busca a compreensão e a interpretação do fenômeno do Processo de Bolonha pelas vertentes históricas e políticas, a partir de algumas categorias de análise. O artigo se inicia a partir da explanação dos procedimentos metodológicos, seguido do levantamento de dados, conceitos e contextualização sobre o contexto histórico e político do Processo de Bolonha, juntamente às análises dos achados da pesquisa. Por último, apresentam-se algumas breves considerações sobre o estudo realizado.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, pautada na perspectiva hermenêutica que indica um movimento com fios condutores pautados em compreensão, reflexão e descobertas constantes, entendendo que não há uma validade incondicional sobre tudo o que está posto, mas o diálogo torna possível o aprofundamento de diversas questões (FLICKINGER, 2010). No que se refere aos processos de internacionalização, há muito o que compreender para que possam ser mobilizadas ações e avanços significativos na Educação e no Ensino Superior.
Optou-se, então, pela realização de um estado do conhecimento. Para Morosini e Fernandes (2014), essa metodologia de estudo permite identificar, registrar e categorizar elementos de reflexão sobre um determinado tema, a partir de bases de dados que contribuam para reflexão e síntese de produções científicas.
As produções científicas analisadas são artigos do Portal de Periódicos da CAPES, a partir dos termos Processo de Bolonha; Bologna Process, no período de 2006-2018. Obteve-se na primeira triagem um montante de 81 artigos. Foram estabelecidos alguns critérios de refinamento, excluindo-se resenhas e artigos que não demonstravam, por meio do resumo e palavras-chave, reflexões relacionadas ao Processo de Bolonha. Foram priorizados artigos de revistas com no mínimo qualis B2 em Educação no quadriênio 2013-2016, totalizando, então, 33 artigos para análise. Nesta amostra, 23 artigos são analisados .
Observaram-se dois eixos centrais de maior recorrência considerados pelos autores sobre o Processo de Bolonha: aspectos históricos e políticos. A partir destes eixos verificados, foi possível extrair algumas categorias de análise, conforme está especificado nos Quadros 1 e 2.
Eixos centrais | Categorias extraídas a partir dos artigos | Autores |
---|---|---|
Aspectos históricos | Reestruturação europeia e relações econômicas | Antunes (2006); Azevedo (2007); Dias Sobrinho (2007); Robertson (2009); Wielewicki e Oliveira (2010); Borges (2013); Santos, Nascimento e Buarque (2013); Silva (2013); Bianchetti e Magalhães (2015). |
A identidade da União Europeia e o papel da universidade | Azevedo (2007); Bastos (2007); Dias Sobrinho (2007); Erischen (2007); Riedo e Pereira (2007); Lima, Azevedo e Catani (2008); Morgado (2009); Robertson (2009); Wielewicki e Oliveira (2010); Borges (2013); Silva (2013); Santos, Nascimento e Buarque (2013); Bianchetti e Magalhães (2015); Castro, Tome e Carraro (2015); Canan e Subdrack (2018). |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Eixos centrais | Categorias extraídas a partir dos artigos | Autores |
---|---|---|
Aspectos políticos | Relações entre políticas, sociedade e educação | Antunes (2006; 2007; 2017); Azevedo (2007); Dias Sobrinho (2007); Lima, Azevedo e Catani (2008); Morgado (2009); Wielewicki e Oliveira (2010); Mello e Dias (2011); Leite e Genro (2012); Borges (2013); Santos, Nascimento e Buarque (2013); Silva (2013); Bianchetti e Magalhães (2015); Canan e Subdrack (2018). |
Políticas e formação de professores: contexto de desafios | Morgado (2009); Silva Júnior (2009); Wielewicki e Oliveira (2010); Vasconcelos et al. (2012); Silva (2013); Leite e Ramos (2015); Sousa-Pereira e Leite (2016); Antunes (2017); Canan e Subdrack (2018). |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Considerando que as categorias de análise elencadas emergem dos trabalhos relacionados, este artigo propõe a construção dos aspectos teóricos e conceituais do presente tema a partir dos achados da pesquisa e das reflexões que os fundamentam.
3 O CONTEXTO HISTÓRICO DO PROCESSO DE BOLONHA: MARCOS FUNDAMENTAIS
De acordo com Bianchetti e Magalhães (2015), os países europeus, respaldados pela própria materialidade histórica, há milênios tentam forjar o eurocentrismo a partir de suas influências políticas, sociais e culturais. Para Wielewicki e Oliveira (2010), a Europa, ao se colocar como um exemplo para o mundo, justifica-se por meio da racionalidade moderna a partir de um paradigma sociocultural como projeto hegemônico: sempre se considerou, em termos conceituais e histórico de narrativas, o centro. Dominou e regeu, por meio de sua força de trabalho, territórios, navegações, comércios e tráfegos, desenvolvendo importantes questões industriais que resultaram na produção e lapidação de diversas riquezas (BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015).
3.1 Reestruturação europeia e relações econômicas
Crises de desconstrução sobre o modelo do colonialismo, cenários desfavoráveis de Pós-Guerra, a ênfase mundial se deslocando para economia do conhecimento, entre outros embates locais e intercontinentais, atribuíram momentos turbulentos para a posição de destaque que o continente ocupava (ANTUNES, 2006; DIAS SOBRINHO, 2007; WIELEWICKI; OLIVEIRA, 2010; BORGES, 2013; SANTOS; NASCIMENTO; BUARQUE, 2013; SILVA, 2013; BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015). Nessa conjectura, especialmente os Estados Unidos da América (EUA) e o Japão despontaram, de maneira ágil, em termos científicos e tecnológicos, apresentando-se na lógica de globalização. A Europa, pelo contrário, apresentava há décadas notável deficit tecnológico, com pouco avanço universitário (DIAS SOBRINHO, 2007; WIELEWICKI; OLIVEIRA, 2010), insistindo em um modelo desgastado diante deste novo mundo (BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015).
Wielewicki e Oliveira (2010) destacam que Burbules e Torres (2004) defendiam a ideia de que as reestruturações do mundo se originaram por meio do um fluxo transnacional de capitais e acordos comerciais que incentivaram a geração do trânsito livre de mercadorias entre os mais diversos países. Nesse sentido mais amplo, concebe-se a economia globalizada, um jogo de flexibilização e cooperação de forças e poder que reestrutura o mercado de laboral a partir de novas relações entre trabalho e capital.
Assim, a Europa, no temor da colonização de seu continente por parte dos EUA e dos países do Pacífico Asiático, propôs fortalecer algumas alianças intercontinentais iniciadas já na década de 1950 (DIAS SOBRINHO, 2007; ROBERTSON, 2009; BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015), desenvolvidas com o intuito de recuperar e favorecer a estrutura e a economia do continente.
A partir da metade do século XX, diversas ações foram desenvolvidas para a constituição da União Europeia , sendo um dos marcos fundamentais o tratado referente à instituição do Conselho da Europa, em 1949 . Silva (2013) destaca a criação da Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE), em 1948, e a Comunidade Europeia do Carvão e Aço (CECA), no ano de 1951.
Os mesmos autores chamam atenção para o fato de que os objetivos dessas uniões estavam centrados em superar as barreiras que provocaram desentendimentos e consequências abrasivas para a história do continente, bem como facilitar a circulação entre comércios e oferecer apoio à economia e às estratégias para se recolocarem em um contexto redesenhado pela globalização.
Apesar de a reestruturação europeia ter relação direta com as questões econômicas, a educação nesse contexto ganhou espaço a pequenos e crescentes passos, no mesmo ritmo em que as ações de integração entre países foram aumentando, demonstrando também o crescimento sobre o debate dos aspectos culturais e relacionados a uma identidade europeia (AZEVEDO, 2007; SILVA, 2013; BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015). Bianchetti e Magalhães (2015) destacam a criação do Comitê de Educação, em 1976, que formalmente engloba a educação nessa conjuntura e contribui para essa construção identitária.
3.2 A identidade da União Europeia e o papel da universidade
A partir da década de 1980, ainda que sem políticas e diretrizes oficiais, novas formas de Educação Superior emergiram nos países da Europa, especialmente aquelas baseadas em concepções liberais (LIMA; AZEVEDO; CATANI, 2008). A Carta Magna de 1988, escrita e recomendada por reitores das universidades da Europa, discorria sobre as conquistas dessas instituições ao longo do tempo, bem como o esforço em valorizar as riquezas e diferenças culturais entre os mais diversos países do continente, relacionando também a função das universidades atreladas ao desenvolvimento econômico (BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015).
O Tratado de Maastricht (1992), em sentido amplo, teve foco na livre movimentação de pessoas e produtos, ao mesmo tempo que instituiu a União Europeia (ROBERTSON, 2009; CASTRO; TOME; CARRARA, 2015). Na educação, deu continuidade ao desenvolvimento das políticas amplas de Ensino Superior no contexto do continente e incentivo à mobilidade (ROBERTSON, 2009), já oferecendo indícios e direções que foram posteriormente materializadas no Processo de Bolonha (RIEDO; PEREIRA (2007).
A educação nesse contexto de globalização ganhou força a partir de 1998. A Declaração de Sorbonne, uma ação conjunta dos ministros da Educação dos países da Alemanha, França, Itália e Reino Unido, foi assinada em Paris, sugerindo a construção do Espaço Europeu de Educação Superior (EEES) (ANTUNES, 2006; AZEVEDO, 2007; BASTOS, 2007; ERICHSEN, 2007; DIAS SOBRINHO, 2007; LIMA; AZEVEDO; CATANI, 2008; BORGES, 2013; SILVA, 2013; BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015). Esse documento também indicou a padronização da Educação Superior nos níveis de ensino de graduação e pós-graduação, sendo o primeiro voltado para um nível de qualificação mais geral, e o segundo, para aperfeiçoamento, no intuito de oportunizar o reconhecimento externo, a mobilidade e a empregabilidade dos alunos (ERICHSEN, 2007).
Para Erichsen (2007), o documento faz uso da Educação Superior como uma forma de servir as dimensões intelectuais, técnicas, culturais e sociais que se posicionam no seio da humanidade. Para Borges (2013), a Declaração de Sorbonne enfatiza a abertura da academia para exercer papéis atrativos às demandas sociais e econômicas, revelando tanto uma íntima relação com a sociedade globalizada como uma nova concepção de universidade redirecionada para o setor produtivo.
Em junho de 1999, o Processo de Bolonha foi assinado por 29 ministros da Educação de diferentes países , como um acordo internacional e voluntário. Tratou de formalizar um forte compromisso político de mobilização conjunta, a fim de desenvolver parâmetros para que, por meio da educação, fosse possível formar uma identidade, uma cidadania europeia (AZEVEDO, 2007; DIAS SOBRINHO, 2007; BASTOS, 2007; ERICHSEN, 2007; RIEDO; PEREIRA, 2007; BORGES, 2013; ROBERTSON, 2009; WIELEWICKI; OLIVEIRA, 2010). Neste sentido, o EEES seria fortalecido, tornando-o coerente, competitivo, atrativo, inovador, repleto de valores comuns em níveis mundiais para professores, alunos e trabalhadores, promovendo iniciativas distintas e diversas para que fosse materializado.
Tomando como base os escritos de Dias Sobrinho (2007), mas também explicitados nas obras de Azevedo (2007), Ericksen (2007), Riedo e Pereira (2007), Robertson (2009), Wielewicki e Oliveira (2010), os objetivos declarados pelo Processo de Bolonha, por meio do principal evento e de suas conferências posteriores, foram:
Pôr em prática um sistema de titulações compatível e comparável, que também permita a expedição de um diploma suplementar ou “Suplemento Europeu de Título”;
Adotar um sistema facilmente comparável de dois níveis: Graduação e Pós-Graduação (este constituído de mestrado e doutorado);
Aplicação generalizada do Sistema Europeu de Crédito (ECTS), que estabelece critérios para a equivalência de créditos;
Promover a mobilidade; promover a cooperação entre os sistemas educativos europeus para assegurar a qualidade;
Promover a dimensão europeia na educação superior.
Os traços mais importantes são a compatibilização dos dois ciclos, a transferência de créditos permitindo maior mobilidade estudantil e a atratividade. (DIAS SOBRINHO, 2007, p. 112).
De acordo com Santos, Nascimento e Buarque (2013), o ato de buscar mínimas convergências na diversidade dos mais variados sistemas nacionais de educação da Europa constituiu referências para que outros sistemas educacionais do mundo se sentissem obrigados a se posicionar e, nesse sentido, desenvolver-se, sejam quais fossem seus objetivos. Por outro lado, Robertson (2009), a partir dos estudos de Hartmann (2008), aponta que o Processo de Bolonha teve por base, principalmente, a Convenção de Lisboa de 1997, que contava também com as participações e contribuições históricas dos EUA, do Canadá e da Austrália . A Europa realizou uma série de manobras políticas para excluir os presentes países desse tratado, a fim de evitar suas influências e o controle sobre o processo como um todo.
Também neste sentido, o documento publicado faz referência para a necessidade de os ministros de Educação europeus acompanharem constantemente os atos decorrentes dos compromissos firmados no Processo de Bolonha, avaliando e revendo suas ações a fim de corroborar a construção e seguridade da comunidade europeia, por meio de reuniões formais a cada dois anos (ROBERTSON, 2009; BIANCHETTI; MAGALHÃES, 2015). De acordo com Bastos (2007, p. 99), “a lógica do Processo de Bolonha é justamente ser um coadjuvante das estratégias empreendidas pela União Europeia no que diz respeito à educação superior”.
Em 2000, por meio da Estratégia de Lisboa, o Processo de Bolonha foi formalizado como estratégia global e passou a compor a agenda política da União Europeia (DIAS SOBRINHO, 2007; CANAN; SUBDRACK, 2018), impulsionando a amplitude da plataforma educacional voltada à economia, dinamização e competitividade de uma maneira ainda mais ampla, para além do próprio contexto (LIMA; AZEVEDO; CATANI, 2008; ROBERTSON, 2009). De acordo com Robertson, (2009, p. 410), “A Estratégia de Lisboa confirmou uma compreensão neoliberal da contribuição da educação superior para o bem-estar socioeconômico da região: a construção e a retenção de capital humano”. Para tanto, o objetivo desse tratado centra-se no desenvolvimento econômico sustentável, com elevado número de ofertas de emprego e condições de trabalho, bem como a busca pela coesão social. Para Bianchetti e Magalhães (2015), o êxito desse projeto está, na verdade, atrelado diretamente às estratégias para competição econômica que a Europa estabelece com os EUA.
Outros eventos importantes também ocorrem no intuito de aperfeiçoar os objetivos do Processo de Bolonha e as novas demandas trazidas pelos ideais do mundo globalizado.
Ao longo do tempo, a Europa integra-se fortemente às mais diversas redes mundiais de informação e utiliza como estratégia para aumentar seu poder competitivo o desenvolvimento de indústrias ligadas às novas tecnologias de informação. Nesse contexto, a Educação Superior se insere e se torna, via de fato, um forte instrumento de negociação internacional e, assim, aumenta seu poder competitivo (DIAS SOBRINHO, 2007).
Por meio dos estudos apresentados pelos autores, foi possível verificar que o Processo de Bolonha adquire, especialmente por sua materialização oficial por intermédio da Estratégia de Lisboa, em 2000, uma significativa direção política, revelando-se para além de uma simples agenda de mudança nacional. Silva (2013) observa que a construção e manutenção da comunidade europeia acompanha os avanços políticos do neoliberalismo dos últimos quarenta anos, desenvolvendo, dessa forma, suas próprias políticas. Para a autora, “no contexto transnacional, obedece à lógica neoliberal que preza por um ‘Estado mínimo’ e um ‘mercado forte’” (SILVA, 2013, p. 251).
4 ASPECTOS POLÍTICOS DO PROCESSO DE BOLONHA
Para Bianchetti e Magalhaes (2015), as relações entre o Ensino Superior e as suas políticas envolvem assuntos indiretos aos saberes e conhecimentos, atribuindo uma complexibilidade enorme para a academia. Nesse sentido, os eventos do período pós-Bolonha assumem, mais do que nunca, dimensões e definições predominantemente políticas, que serão problematizadas nesta seção, a partir dessa vertente analítica.
4.1 Relações entre políticas, sociedade e educação
Antunes (2006) observa que os ideários das democracias ocidentais pluralistas presentes nas políticas educacionais vêm sendo atingidos, cada dia mais, pelo enfraquecimento da representatividade e legitimação no seio da humanidade, especialmente a partir do Processo de Bolonha. As reuniões oficiais que sucedem o acordo e têm por objetivo qualificar e aperfeiçoar as políticas de educação privilegiam a presença dos ministros de Educação, mas excluem pesquisadores, docentes e estudantes desses importantes momentos decisórios, e assim eles acabam se mobilizando de maneiras paralelas.
Azevedo (2007) chama atenção para o fato de que o Estado não é um campo homogêneo, mas sim uma construção histórica e um campo de lutas e contradições. Trata-se de um campo social, composto por atores sociais que têm interesses tanto comuns como contraditórios e que, independentemente disso, implementarão definições e realizarão ações que implicarão no futuro daqueles que são subordinados a um determinado sistema. O autor esclarece algumas questões centrais sobre os fundamentos estratégicos e prévios da política do Processo de Bolonha (Quadro 3).
O Estado funciona como “meta-ator das políticas públicas” (AZEVEDO, 2007, p. 136). Os fundamentos e estratégias apresentados no Quadro 3 tornam possível compreender que essas dimensões atingem os mais diversos níveis micros e macros que se relacionam diretamente às questões econômicas e de poder, caracterizando uma tomada de poder do setor privado em relação ao Estado.
POLÍTICA DO PROCESSO DE BOLONHA | |||
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FUNDAMENTOS ESTRATÉGICOS Representados por agentes sociais que promovem mudanças nos campos sociais. Dividem-se em fundamentos estratégicos de políticas interna e externa. |
FUNDAMENTOS PRÉVIOS Representados pelas entidades que materializam as condições para que as políticas públicas sejam efetivadas. Dividem-se em fundamentos ideológicos e críticos. |
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Fundamentos de política interna A efetivação das políticas públicas ocorre por meio das formas com as quais os agentes sociais recebem as informações e as ressignificam a partir de suas próprias forças de correlação e influências daqueles que compõem esse espaço. |
Fundamentos de política externa Referem-se ao balizamento das próprias políticas públicas pelos órgãos e gestores em relação a outros agentes, países e regiões externas à própria realidade. |
Fundamentos ideológicos Relações entre as ideologias políticas com os processos de redefinição, reinterpretação de conhecimentos, privatização e, consequentemente, as funções das próprias políticas não solidárias aos sentimentos de uma fração social. |
Fundamento crítico Crise entre setores e países de terceiro mundo com relação à deterioração dos serviços públicos e apropriação de partes da esfera pública pelos setores privados, o que não ocorre com os países de primeiro mundo, que têm vantagens bem estabelecidas. |
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir da obra de Azevedo (2007).
Azevedo (2007) se refere à União Europeia como um Estado Transnacional que se concretiza a partir do momento em que os países abrem mão de parte do controle sobre seus próprios princípios, a fim de se integrarem aos seus semelhantes e se fortalecerem perante outros estados. O Processo de Bolonha também almeja, entre seus principais objetivos, conquistar a capacidade de atrair estudantes de todo o mundo.
A partir de concepções de reestruturação, alguns trabalhos se referem ao Processo de Bolonha como o resultado de ações que originaram políticas públicas voltadas para o campo da internacionalização na Educação Superior (DIAS SOBRINHO, 2007; MELLO; DIAS, 2011; ANTUNES, 2017). Para Dias Sobrinho (2007), as reformas educativas compõem um quadro legal e burocrático, realizadas na maioria das vezes por políticos com o objetivo de resolver questões problemáticas de forma efetiva, mas, ao mesmo tempo, o mais coerente possível com os ideários políticos de seu governo ou de um sistema de poder. Nesse sentido, para o autor, toda e qualquer reforma se coloca como a resolutiva de um cenário que não mais funciona de maneira adequada ou da forma com a qual se espera que ele se efetive.
Antunes (2006) considera o Processo de Bolonha como um movimento de desregulação que tem por objetivo substituir autonomias e especificidades nacionais por regulações supranacionais, como o padrão americano de regulação de organização dos mercados. Para Silva (2013), é uma ação direcionada a uma estratégia financeira intercontinental, não sendo passível de considerar a Educação Superior como um direito de acesso para a população. Camufla “processos de coerção na constituição de agendas políticas” (LEITE; GENRO, 2012, p. 770), persuadindo as mais diversas instituições de Ensino Superior e políticas de Estado. O Projeto Tuning, por exemplo, lançado em 2000, foi o projeto-piloto com o intuito de iniciar os processos de sintonia entre as estruturas educativas da Europa (WIELEWICK; OLIVEIRA, 2010) .
Lima, Azevedo e Catani (2008) verificam no acordo a oportunidade de livrar parcialmente o Estado dos encargos do Ensino Superior, o que também contraria a pura ideia de possibilitar o ingresso em massa da população a esse nível de ensino. Para os autores, muito embora se recuse a ideia de uma homogeneização, a Declaração de Bolonha transmite exatamente o oposto ao propor harmonização de políticas, culturas, cooperação e critérios de avaliação entre países.
Transformações | Nível | |||
---|---|---|---|---|
Pouco | Médio | Muito | Muitíssimo | |
a) Adesão ao paradigma de Balonha | 6%(1) | 50%(8) | 25%(4) | 19%(3) |
b) Organização dos cursus univitários decorrentes do Processo de Bolonha | 6%(1) | 31%(5) | 50%(8) | 12%(2) |
c) Adesão ao princípio subjacente aos ECTS | 19%(3) | 25%(4) | 50%(8) | 6%(1) |
d) Adesão ao sistema de tutoria para as aprendizagens | 19%(3) | 44%(7) | 19%(3) | 19%(3) |
Fonte: Leite e Ramos (2015).
Para Melo e Dias (2011), há tanto incentivo à privatização quanto o apoio do privado às políticas de inserção para o Ensino Superior, não só por reduzir a participação do Estado em termos de financiamento, mas também por responsabilizar as universidades perante o compromisso de arcar e buscar meios externos para sustentar sua manutenção. Para Azevedo (2007), o Processo de Bolonha apresenta-se como “fraternidade científica-acadêmica” (AZEVEDO, 2007, p. 143), sem deixar de incumbir lógicas de competição e de um mercado da Educação Superior europeia.
Instituições como o Banco Mundial (BC), Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras, surgem como grandes apoiadoras desse movimento (SILVA, 2013). O Acordo General sobre o Comércio de Serviços (AGCS), de 1994, incluiu a Educação Superior como um dos serviços que podem ser regulamentados. Ambos os documentos corroboraram a continuidade e definição dos rumos financeiros da área da educação em nível global (AZEVEDO, 2007; DIAS SOBRINHO, 2007; ANTUNES, 2007; SILVA, 2013).
Os eventos de Berlim, em 2003, e Berger, em 2005, ao mesmo tempo que debatem sobre a necessidade de olhar mais atentamente aos perigos da padronização, solicitam políticas e práticas capazes de alinhar e estreitar ainda mais os compromissos assumidos na Carta de Lisboa, apresentando, no entanto, conflitos internos. Antunes (2006) destaca diferentes olhares de interpretação sobre o Processo de Bolonha. Para alguns, o EEES tem relações mais diretas e puramente relacionadas em fixar a Europa como entidade política. Para outros, a Europa como nação e um espaço educativo comum se justifica pelo hibridismo que pode se relacionar a abordagens pragmáticas, no sentido de se perceberem os efeitos no cotidiano dos europeus, a partir de uma abordagem identitária, repleta de ideias e intenções salvadoras. É uma dualidade entre a questão dos programas, seu funcionamento e a idealização da cultura comum europeia. Para Antunes (2006), trata-se de uma tentativa de forjar artefatos político-culturais por meio de mitos legitimadores.
Dale (2004), a partir de Silva (2013), diferencia a existência de dois distintos movimentos que compõem o quadro educacional na atualidade. O primeiro, nomeado de Cultura Educacional Mundial Comum, tem relação com as políticas internacionais que ocorrem de maneira individual e autônoma por parte dos estados; e o outro, chamado de Agenda Globalmente Estruturada para a Educação, relaciona-se às estratégias supranacionais que operam de maneira a reconstruir o relacionamento entre países, estabelecendo cooperações que corroboram a não existência de barreiras entre eles. Wielewicki e Oliveira (2010) consideram que esses movimentos revelaram novas faces às políticas internacionais, mas que, de todo modo, a racionalidade eurocêntrica crescente que se faz presente ao longo dos anos é acentuada e imposta por meio de políticas transnacionais à academia e trata, inclusive, de medidas que afastam os próprios objetivos da universidade perante sua própria história, algo que gera resistências diversas por parte das instituições.
Morgado (2009) aponta duas diferentes frentes de análise sobre o contexto atualmente vivenciado, similares às observações de Silva (2013) e Wielewicki e Oliveira (2010), no entanto mais voltadas às questões culturais impactadas à luz dos assuntos políticos do Processo de Bolonha. A primeira está relacionada aos movimentos globais e projetos supranacionais, e a outra, às questões históricas, sociais e culturais próprias de cada país. O autor questiona se essa relação não estaria atuando de forma a debilitar as territorialidades e particularidades de cada país, contribuindo ainda mais para que aconteçam crises perante sistemas de ensino de todo o mundo. Leite e Genro (2012) apontam a existência de desconstruções por de trás do acordo de Bolonha em níveis mundiais, sugerindo, talvez, a intenção de uma dominação cultural, histórica e de formação do sujeito político por meio dessas políticas.
Borges (2013) explica que o Comunicado da Comissão das Comunidades Europeias, elaborado pelo Conselho Europeu, em 2004, indica e pressiona as universidades a firmarem-se como protagonistas nos meios de integração da Europa, produzindo inovação de saberes e aplicação industrial voltadas à comercialização do conhecimento. Para Canan e Subdrack (2018), as políticas educacionais recebem influências insofismáveis ao serem tratadas como produtos e/ou mercadoria, absorvendo para si preocupações mercadológicas e deixando para trás seu caráter de bem público e coletivo.
Por outro lado, especialmente a partir do Comunicado de Berlim (2002), de Bergem (2005) e de Londres (2007), são acentuadas as preocupações e tensões sobre as políticas de avaliação das universidades, pois sistemas integrados pressupõem também parâmetros convergentes para verificar efetividade e, consequentemente, qualidade. Foi observada certa pressão para que essas questões fossem adequadas no interior dos estabelecimentos de Ensino Superior aos pressupostos do Processo de Bolonha até 2010, o período limite para os países se adaptarem ao sistema (WIELEWICK; OLIVEIRA, 2010; SILVA, 2013).
Considerando que a formação de professores nesse contexto de avaliação do Ensino Superior desempenha função fundamental, alguns trabalhos dedicam-se também a compreender os impactos recebidos por essa área, bem como as percepções e apreensões dos sujeitos que a compõem.
4.2 Políticas e formação de professores: contexto de desafios
No decorrer das reuniões e dos comunicados oficiais de Bolonha, o Ensino Superior também adquire e aperfeiçoa parâmetros de produtividade e eficiência, recebendo o apoio dos organismos multilaterais, no intuito de estabelecer equilíbrio entre orçamentos e a descentralização do Estado nas questões econômicas, que se relacionam, primordialmente, aos seus gastos (SILVA, 2013; CANAN; SUBDRACK, 2018).
As diretrizes e políticas da UNESCO para a formação de professores adquirem, ao longo do tempo, um discurso generalista e tendencioso, que faz menção à privatização como a solução para a liberdade, a paz e os direitos humanos, atribuindo aos docentes a responsabilidade de oferecer educação de qualidade, baseada em questões morais e adaptáveis às transformações do mundo (CANAN; SUBDRACK, 2018). Essa situação representa que as agências mundiais estão atentas e servindo aos propósitos de Bolonha, renovados e ampliados por meio do Comunicado de Louvain (2009) para serem operados até 2020 (WIELEWICK; OLIVEIRA, 2010).
Silva (2013) dedica-se a realizar uma análise reflexiva sobre os desafios que as políticas de Formação Docente encontram no panorama da globalização hegemônica a partir do Processo de Bolonha, especialmente a partir das orientações do Comunicado de Londres (2007) . A autora destaca que os professores, em um curto período, viram-se pressionados para atuar a partir de requerimentos globais, e, nesse sentido, as questões econômicas passaram a desempenhar influência e direcionamento à formação de professores.
O deficit de financiamento das universidades públicas, por exemplo, influencia as condições laborais dos professores que observam modificações sobre a natureza de seu trabalho acadêmico (SILVA JÚNIOR, 2009; CABRITO, 2011 apudANTUNES, 2017). Há um abismo e uma narrativa de perda que se fazem presentes no cotidiano da academia, pois diversos encaminhamentos de projetos institucionais precisam ser revistos à luz de novos valores e orientações (ANTUNES, 2017).
Antunes (2017) cita que, no contexto europeu, Portugal é um dos países com mais cortes de orçamento e incentivo à privatização do Ensino Superior, ocorrendo de maneira camuflada por meio das palavras de mudança, modernização e reforma, especialmente a partir do Comunicado de Louvain (2009) (WIELEWICKI; OLIVEIRA, 2010) e do Comunicado de Budapeste e Viena (2010) (VASCONCELOS et al., 2012) , que fazem uso desses termos para incentivar também que as instituições e professores busquem fontes externas ao Estado para financiar seus projetos, induzindo a uma autonomia universitária indissociável do financiamento público para o Ensino Superior, por meio de discursos de naturalização e normalização dessas práticas, condizentes à salvação para a atual realidade de crise econômica mundial.
Em meados desse mesmo período, em 2010, a União Europeia divulgou uma agenda para contribuir com a melhoria da qualidade do trabalho dos professores (Improving Teacher Quality: The EU Agenda), que apresentou ações e políticas que compunham o que de mais prioritário os ministros da educação consideravam importantes para que a formação de professores ocorresse adequadamente (SOUSA-PEREIRA; LEITE, 2016).
De outro modo, Canan e Subdrack (2018) destacam também que os sistemas de ensino e as universidades passam a gerenciar um objetivo acirrado para a produção de artigos acadêmicos, algo que incentiva e opera um mercado interno de competição operacional, especialmente sob os professores.
Leite e Ramos (2015) desenvolveram uma pesquisa na Universidade do Porto com dezessete professores no ano de 2005, anteriormente à adequação oficial do Processo de Bolonha, a partir de centros de especialidades diferentes, com o objetivo de verificar o grau de adesão desses agentes diante das políticas universitárias que o Processo inculcava. As autoras observaram a existência de certa tensão sobre esse assunto, uma vez que a imposição do Processo foi um choque para muitas instituições em diferentes sentidos, mas, em contrapartida, boa parte dos professores consideraram os efeitos positivos.
Morgado (2009) observa as diversas transformações políticas, econômicas e sociais que se apresentam a partir da sociedade da informação e do conhecimento, que contribuem para que sejam detectados diversos problemas sobre os sistemas de ensino, algo que está para além de uma sociedade baseada no capital financeiro: a produção e utilização dos conhecimentos pelas recentes tecnologias da informação e comunicação demonstram o poder se dissipando de maneiras distintas, sendo assumido como um recurso estratégico para que o mercado siga o seu próprio fluxo e estabeleça, também, controles éticos e morais. Nessa conjuntura, a formação de professores enfrenta diversos desafios que se relacionam tanto ao perfil docente como às formas com que o ensino acontece.
5 BREVES CONSIDERAÇÕES
Este artigo teve a intenção de compreender os aspectos históricos e políticos do Processo de Bolonha a partir das produções científicas de uma específica base de dados. Sobre o Processo, possibilitou verificar que se trata de um fenômeno complexo, com proporções mundiais, que apresenta multifacetados sentidos, sendo definido por meio de um panorama que instala e orienta sistemas educativos a partir de uma visão eurocêntrica.
Diversos autores consideram que as políticas e ações advindas do Processo de Bolonha corroboram os ideais da globalização e o estímulo a lógicas liberais, como a privatização e, nesse sentido, a redução da participação dos Estados para evitar deficits de financiamentos oriundos de universidades públicas. Outros destacam que forçar padrões para países comporem seus sistemas de ensino pode dizimar importantes traços identitários e culturais que compõem e justificam determinadas nações. Uma vez que se trata de um fenômeno em curso, é necessário que se desenvolvam estratégias e ações que combatam os efeitos negativos advindos desse cenário e, assim, possibilitem atuações colaborativas e contribuintes para todos na sociedade.
As políticas mundiais são atingidas pelos ideários do Processo de Bolonha em diversas instâncias para além da Educação Superior, alcançando políticas públicas, de educação, de trabalho, entre outras, que influenciarão contextos micros e macros. A título de exemplificação, é possível refletir sobre os graduandos que vivenciam determinados currículos em sua formação inicial e fazem uso desses saberes enquanto profissionais atuantes no mercado laboral.
Este texto demonstra a importância de se refletir sobre a internacionalização na Educação Superior, compreender a sua constituição e desenvolvimento, seus diferentes aspectos e consequências que operacionalizam diversos cenários. A formação de professores, seja ela inicial, seja ela continuada, também merece atenção em futuros estudos sob essa perspectiva, uma vez que, no Brasil, as discussões sobre as formas com as quais a educação e o ensino acontecem por meio desse panorama são recentes e necessitam de maior aprofundamento.