1 INTRODUÇÃO
Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, questionadores, intersexos, indecisos, assexuados e aliados (LGBTQIA) sofrem situações delicadas de violência, pois seus comportamentos se diferem, em parte, dos modos de ser “homem” ou de ser “mulher” no exercício da sexualidade, uma vez que não se enquadram nos padrões de referência da sociedade, que as considera pervertidas, doentes e/ou inferiores. Estas concepções, há muito tempo presentes em nossa sociedade, revelam a face oculta da homofobia/LGBTQIAfobia, caracterizada como uma hostilidade geral, psicológica e social àqueles ou àquelas que, supostamente, sentem desejo ou têm relações sexuais homoafetivas.
Em diferentes contextos, especialmente no escolar, a fim de lidar com crianças ou com adolescentes que apresentam quaisquer traços de homossexualidade, indivíduos recorrem a estratégias subversivas, as quais são manifestadas de diversas formas: “[...] piadas, ridicularizações, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualificantes e desumanizantes. Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais” (JUNQUEIRA, 2013, p. 484) que podem desvelar-se em situações extremas, como agressões físicas e tentativas de homicídios; inclusive, podem manifestar-se em xingamentos em relação à sexualidade dessas pessoas. Termos como “bichinha”, “mulherzinha” e “mulher-macho” são utilizados para fragilizar a criança ou o adolescente. No contexto escolar, a homofobia pode estar vinculada ao bullying, podendo caracterizar-se como bullying homofóbico, que, de acordo com Coutinho (2017), é definido como a ação de submeter pessoas reconhecidamente ou que se parecem homossexuais a gozações, a humilhações, a ameaças, a perseguições e a exclusões sociais, dentro ou fora da escola.
Não há como precisar os índices de bullying homofóbico no ambiente escolar, mas alguns estudos apontam que muitos alunos que assumem o seu desejo homo/bissexual ou aqueles que parecem assumi-lo sofrem repulsa e resistência diante da diversidade afetivo-sexual. A violência a eles imputada pode contribuir para que incorporem esses preconceitos e pensem ser “realmente diferentes” (ABRAMOVAY; CUNHA; CALAF, 2009; OLIVEIRA JÚNIOR, 2013; DUARTE, 2015). Essa vigilância dos corpos sexuados resulta em sentimentos de angústia, de opressão e de medo, ocasionando a evasão escolar dos alunos LGBTQIA. Desse modo, as estratégias subversivas, anteriormente citadas, podem fazer com que a criança ou o adolescente se privem de expor seus sentimentos, suas vontades, o que pode colocar em risco seu desenvolvimento emocional e, em muitos casos, comprometer seu processo de aprendizagem.
A partir dessas breves notas introdutórias, questiona-se o seguinte: como o bullying praticado contra pessoas LGBTQIA é percebido por acadêmicos em processo de formação docente?
Para responder a essa questão, realizou-se uma pesquisa de campo com acadêmicos do Curso de Pedagogia de uma universidade pública do Norte do Paraná, a fim de verificar se a homofobia faz parte do núcleo central das representações sociais desses acadêmicos acerca da prática de bullying nas escolas.
Com o intuito de atender ao objetivo proposto, este artigo está estruturado em três seções. Na primeira, apresentam-se os conceitos de bullying e de LGBTQIAfobia. Na segunda, há uma breve discussão sobre a Teoria das Representações Sociais. Na sequência, são expostos os procedimentos metodológicos empregados para a obtenção dos dados, bem como são discutidos os resultados da pesquisa. Por fim, tecem-se algumas reflexões a respeito dos resultados alcançados.
2 BULLYING E LGBTQIAFOBIA
Bullying é uma palavra de origem inglesa, utilizada em vários países para definir “o desejo consciente e deliberado de maltratar uma pessoa e colocá-la sob tensão” (FANTE; PEDRA, 2008, p. 32). Na literatura anglo-saxônica, é um termo empregado para designar comportamentos agressivos e antissociais entre escolares. Pode ser compreendido também como
[...] atitudes agressivas, intencionais e repetitivas, adotadas por um indivíduo (bully) ou grupo de indivíduos contra outro(s), sem motivação evidente, causando dor, angústia e sofrimento e, executadas em uma relação desigual de poder, o que possibilita a vitimização. (SANTA CATARINA, 2009).
Os episódios em que o bullying se manifesta podem ser classificados como diretos e indiretos. As ações diretas podem ser físicas, incluindo agressões físicas, roubos e/ou dano dos objetos dos colegas, bem como extorsão de dinheiro; ou verbais, as quais caracterizam os insultos, os apelidos, os comentários preconceituosos ou os dizeres em relação a quaisquer diferenças do outro. Já as indiretas apresentam a exclusão sistemática de uma pessoa, as fofocas, os boatos ou as histórias desagradáveis sobre alguém (ZAINE; REIS; PADOVANI, 2010; ALLIPRANDINI; SODRÉ, 2014).
A escola é um espaço que concentra alunos de múltiplas identidades, as quais podem ser de gênero, de raça, de cor, de credos religiosos, de orientações sexuais, de identidades de gênero, dentre outras (LOURO, 1997). Nesse ambiente, também ocorrem muitas formas de preconceito, de discriminação, de bullying e de LGBTQIAfobia.
Moura e Lopes (2014) assinalam que os preconceitos se baseiam em ideias preconcebidas e prejulgadas que os sujeitos têm de determinadas pessoas ou situações, as quais são alicerçadas no desconhecimento real delas. “Entende-se que o preconceito é impulsionado pela tentativa de fazer com que determinado grupo seja inferiorizado ou marginalizado por ter certa característica que não pode ser mudada” (MOURA; LOPES, 2014, p. 6).
Assim, o preconceito contra pessoas LGBTQIA pode ser definido como a atitude de hostilidade geral, psicológica e social àqueles ou àquelas que, supostamente, sentem desejo ou têm relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo (COUTINHO, 2017).
Borrillo (2010) assevera que a homofobia se trata de uma rejeição irracional ou mesmo o ódio em relação a gays e lésbicas, entretanto, ela não se reduz a isso.
Do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, ela é uma manifestação arbitrária que consiste em qualificar o outro como contrário, inferior ou anormal. Devido a sua diferença, esse outro é posto fora do universo comum dos humanos. (p. 13).
Junqueira (2007) pontua que esse termo costuma ser utilizado, quase exclusivamente, para o conjunto de emoções negativas (tais como aversão, desprezo, ódio, desconfiança, desconforto ou medo) em relação a pessoas homossexuais ou assim identificadas. Dessa forma, são indicativos de LGBTQIAfobia o ato de se evitar homo/bissexuais e situações que estejam ligadas ao universo homossexual, bem como a repulsa às relações homoafetivas. Além disso, ressalta-se que a LGBTQIAfobia não se limita apenas às pessoas homossexuais; atinge todos aqueles que não seguem um padrão heterossexual de ser e de agir (JUNQUEIRA, 2012).
Então, o que é o bullying homofóbico? Em concordância com Fante e Pedra (2008), o bullying homofóbico refere-se à ação de submeter homossexuais a gozações, a humilhações, a ameaças, a perseguições e a exclusões sociais, dentro ou fora da escola; trata-se, portanto, de uma subcategoria da LGBTQIAfobia.
Borrillo (2010, p. 15) ressalta uma gama de vocábulos que o dicionário apresenta para designar pessoas LGBTQIA: gay, homófilo, pederasta, veado, salsinha, michê, boiola, bicha louca, tia, sandalinha, invertido, sodomita, travesti, lésbica, maria homem, homaça, hermafrodita, baitola, gilete, sapatão, bissexual. Esses xingamentos são, geralmente, utilizados pelo bully (autor de bullying) como forma de atacar as suas vítimas. Os xingamentos ocorrem, em muitos casos, dentro da própria casa da criança, em que os pais a maltratam e a humilham como forma de domínio, dando continuidade ao que ocorre na escola. Tais atitudes acabam estigmatizando a criança em seu contexto de vida (BARDUNI FILHO; SOUSA, 2008; MAGALHÃES et al., 2019).
Borrillo (2010) explica que a LGBTQIAfobia está no centro desse tratamento discriminatório, já que é uma forma de inferiorização e consequência direta da hierarquização das sexualidades, a qual confere à heterossexualidade um status superior e natural. Para o autor, a heterossexualidade é considerada como a sexualidade considerada normal, já a homossexualidade encontra-se desprovida dessa naturalidade.
Dessa maneira, o bullying contra pessoas LGBTQIA é ainda mais agressivo, já que muitas não se defendem ou não contam o que sentem para alguém, por medo de que o seu desejo sexual seja descoberto pela família ou pelos agressores, que passarão a atormentá-las ainda mais ou mesmo as isolando e as excluindo.
Para Fante e Pedra (2008), o bullying homofóbico no ambiente escolar é uma prática que pode causar inúmeros problemas de ordem emocional. Essa prática, segundo os autores,
[...] infelicita ainda mais o jovem, que está num momento de descoberta e de autoafirmação. Infelizmente, a maioria de nós tem internalizado a homofobia, disfarçada de moralismo, conservadorismo, preconceito ou machismo exacerbado. Devido à nossa constituição social e religiosa conservadora, o tema sexualidade ainda é um tabu, motivo pelo qual a homossexualidade é tratada de forma preconceituosa e superficial. Dessa forma, os homossexuais são desrespeitados, desvalorizados e ridicularizados nos diversos contextos, inclusive no escolar, trazendo inúmeros prejuízos ao indivíduo em formação. (p. 42-3).
No entanto, o que percebemos é que a maioria das escolas não está preparada para discutir a questão da homossexualidade. Conforme Fante e Pedra (2008, p. 42), “educar para a diversidade é dever de todas as instituições de ensino, porém o despreparo de muitos professores e funcionários acaba por prejudicar ainda mais a questão”, já que muitos reproduzem o preconceito com piadinhas, com imitações, com insinuações e com brincadeiras dentro e fora das salas de aula.
Barduni Filho e Souza (2008) sustentam que a omissão de professores e de gestores se mistura à falta de formação inicial para o trabalho com temas como a homossexualidade na sala de aula, por exemplo, o que os leva a não perceberem ou a não saberem como agir em relação a discriminações que ocorrem no interior da escola. Mesmo concordando com a introdução de temas contemporâneos no currículo ‒ como a prevenção às drogas, a saúde reprodutiva ‒, muitos docentes continuam a tratar a homossexualidade como doença, perversão ou deformação moral. Alguns profissionais, além de se silenciarem diante da discriminação de homossexuais, colaboram ativamente com a reprodução dessa violência. A falta das formações inicial e continuada também faz com que os professores tratem a sexualidade, dentro de disciplinas como Ciência/Biologia, indicando a anatomia dos órgãos sexuais masculino e feminino, “não fazendo menção a qualquer outro tipo de sexualidade que não seja aquela normalizada pela sociedade e disseminada como a única possível e correta” (BARDUNI FILHO; SOUZA, 2008, p. 8).
As consequências às vítimas de bullying homofóbico são nocivas tanto em relação aos aspectos afetivos quanto aos cognitivos, uma vez que as expressões pejorativas pronunciadas não são simplesmente palavras lançadas ao vento. Segundo Coutinho (2017), as agressões verbais marcam a consciência; são traumas gravados na memória e no corpo, provocando a timidez, a insegurança e a vergonha de assumir o seu desejo sexual.
3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
As Representações Sociais (RS) são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, mesmo pertencendo a todos, sobrepuja cada um individualmente. Elas são um espaço de fabricação comum, em que cada sujeito ultrapassa a sua individualidade para entrar em um domínio diferente, porém relacionado, isto é, para entrar no domínio da vida em comum ‒ o espaço público (JOVCHELOVITCH, 2013). As RS surgem por meio de mediações sociais; também se tornam mediações sociais e expressam o espaço do sujeito na relação com a sua singularidade, lutando para interpretar, para entender e para construir o mundo.
As representações, segundo Moscovici (2015), transformam o mundo naquilo que pensamos que ele é ou que deve ser. São elas que nos mostram que algo ausente se acrescenta e que algo presente se modifica. Esse jogo dialético, entretanto, tem uma significação maior, pois o que está ausente nos atinge, desencadeando um trabalho do pensamento e do grupo para tentar tornar o estranho familiar, ou seja, as representações têm uma função constitutiva da realidade. Assim, “uma representação é sempre representação de alguém e ao mesmo tempo representação de alguma coisa” (MOSCOVICI, 2012, p. 27).
Dessa maneira, pode-se enunciar que, ao estudar as RS, busca-se compreender a forma como um grupo constrói seus saberes socialmente partilhados. Esses saberes, pontua Jovchelovitch (1998), conseguem expressar, de uma só vez, a identidade de um grupo social, as representações que ele detém sobre diversos objetos tanto próximos como longínquos e, sobretudo, o conjunto dos códigos culturais que definem, em cada momento histórico, o modo de vida de uma comunidade.
Na visão de Moscovici (2012), as RS reúnem experiências, vocabulários e conceitos, bem como reduzem os aspectos separados do real. Representar não é reproduzir a realidade, mas transformá-la de forma que o conceito e a percepção se unam, criando a impressão de que o conceito é a própria realidade. Nesse sentido, as representações fornecem materialidade às abstrações, uma vez que, a partir delas, realizamos nossas ações.
Dessa forma, pode-se afirmar que os objetos representados nem sempre condizem com a realidade. No caso do bullying escolar, tema deste estudo, nota-se que as normas sociais impostas por uma sociedade capitalista, patriarcalista, geram representações de “certo” e de “errado”; os que não se encaixam nesse padrão, quase sempre, tornam-se alvos de chacotas, de humilhações, de perseguições, dentre outros, ou melhor, alvos de bullying (COUTINHO, 2017).
Para Abric (1998), a organização de uma representação tem uma categoria particular, isto é, os elementos da representação são hierarquizados e organizados em torno de um núcleo ‒ o núcleo central.
O núcleo central está ligado à memória coletiva, ou seja, é determinado pelas condições históricas, sociológicas e ideológicas de um determinado lugar. Assim, ele é a base comum, coletivamente partilhada; sua função é consensual, assegurando, dessa forma, uma segunda função: a de continuidade e de permanência da representação (SÁ, 1998).
Em torno do núcleo central, conforme Abric (1998; 2001), “circulam” os elementos periféricos, os quais fazem parte do conteúdo da representação; é a parte mais acessível, mas também a mais viva e concreta e, consequentemente, a mais suscetível a mudanças. Para Sá (2002), o sistema periférico atualiza e contextualiza, continuamente, as condições normativas e consensuais, conferindo aos elementos periféricos a mobilidade, a flexibilidade e a expressão individualizada, as quais caracterizam as representações sociais.
Por meio da Teoria do Núcleo Central (TNC), portanto, é possível compreender como os significados se organizam em um determinado grupo, para, assim, averiguar até que ponto essas representações guiam a compreensão dos indivíduos, constituindo uma possibilidade de leitura de questões que envolvem o bullying homofóbico.
4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa, aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, sob o parecer consubstanciado n. 1.407.697, foi realizada com acadêmicos do Curso de Pedagogia de uma universidade pública localizada no Norte do Paraná, cuja cidade, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2018), tem uma população estímada de 417.010 habitantes.
No momento em que ocorreu a coleta de dados com os alunos do Curso de Pedagogia, havia 435 acadêmicos matriculados nesse curso, na universidade em que se realizou a pesquisa. Participaram do estudo 261 acadêmicos, o que representa 60% dos alunos matriculados.
O critério de inclusão para composição da amostra foi o de conveniência, também conhecido como amostra acidental (OLIVEIRA, 2001). Dessa forma, foram selecionados para participar da pesquisa os acadêmicos que se mostraram prontamente disponíveis para isso. A maioria dos participantes cursava o primeiro ano de Pedagogia (29,89%); na sequência, respectivamente, estavam os alunos do terceiro (26,44%), do segundo (23,37%) e do quarto ano (20,31%) do curso.
Para identificar as Representações Sociais dos acadêmicos de Pedagogia acerca de bullying escolar, adotou-se como instrumento o Teste de Associação Livre de Palavras (TALP). Assim, a partir dos termos indutores “Comumente, as vítimas de bullying são...”, foi solicitado que os alunos escrevessem as palavras que vinham à sua mente. O objetivo desse teste é a identificação dos elementos nucleares e periféricos da representação (MENIN; SHIMIZU; LIMA, 2009).
Para análise das palavras evocadas no TALP, empregaram-se os critérios apontados por Sá (1998), Naiff, Naiff e Souza (2009), Magalhães Júnior e Tomanik (2012; 2013), Oliveira et al. (2010) e Cortes Junior (2008).
É válido ressaltar que, ao se apresentar o termo indutor, não foi solicitada uma quantidade determinada de palavras aos participantes; assim, somente foram analisadas as respostas dos sujeitos que evocaram três ou mais palavras. Desse modo, o número de participantes difere do número total de participantes da pesquisa; é sempre menor.
Partindo da fórmula proposta e adaptada por Magalhães Júnior e Tomanik (2012) 2, bem como das expressões apresentadas por Cortes Junior (2008) 3, determinaram-se a Ordem Média de Evocações (OME) e a Frequência Média das Evocações; após, as palavras foram organizadas em um quadro de quatro quadrantes, considerando os critérios de saliência e de importância, observados por meio da frequência e da ordem das evocações produzidas. Dessa maneira, foi possível apreender quais elementos das RS estavam presentes, de maneira mais central, no discurso cotidiano dos sujeitos, em relação ao tema estudado.
Cortes Junior e Fernandez (2016) salientam que a frequência representa a quantidade de vezes que a mesma palavra aparece nas evocações; a OME indica o posicionamento que a mesma palavra ocupa dentro das evocações. Quanto menor a OME, mais espontaneamente ela foi evocada; constitui-se, portanto, mais possivelmente, como participante do núcleo central.
Para analisar o TALP, inicialmente, as palavras/expressões foram separadas em grupos semânticos, isto é, foram unidas aquelas que apresentavam o mesmo sentido. Na sequência, designou-se o grau de importância desses termos, o qual variava de 1 a 3; depois,foram colocados em tabelas. A partir disso, encontraram-se a frequência média e a OME para a determinação dos núcleos central e periférico das RS dos acadêmicos acerca do bullying homofóbico.
Inferiu-se que os possíveis elementos que compõem o núcleo central estão relacionados ao número de vezes que são evocados e à prontidão com que ocorrem (SÁ, 2002). A natureza coletiva da representação, portanto, é evidenciada pela frequência com que a palavra/expressão é tomada, enquanto a natureza individual é dada pela ordem que cada sujeito confere à categoria no conjunto de suas próprias evocações. Esse índice é associado aos demais sujeitos no cálculo de uma ordem média de evocação.
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise das respostas apresentadas pelos participantes para os termos indutores ‒ “Comumente, as vítimas de bullying são...”‒, observou-se que uma das características citadas como possível causa de vitímização de bullying foi a homossexualidade.
Diante desses termos indutores, os participantes evocaram 255 palavras, dentre as quais se excluíram quinze, por apresentarem frequência igual a um, conforme sugerem Magalhães Junior e Tomanik (2012), já que só se pode considerar como representação aquilo que um grupo partilha.
No grupo denominado “Homossexuais”, aparece a expressão “opção sexual”; todavia é preciso esclarecer que não se concorda com essa expressão, uma vez que um indivíduo não escolhe sentir atração por homens ou por mulheres; a expressão mais adequada seria “desejo sexual”. Como aquela surgiu em um dos testes, foi citada como tal.
As 240 palavras restantes foram divididas em 28 grupos semânticos. As palavras/expressões mais evocadas foram “fracas” e “frágeis”, seguidas de “tímidas” e “gordas”. Em geral, para os participantes da pesquisa, as características físicas são motivos para que uma pessoa seja vítima de bullying, como ser gorda ou magra demais; estar fora do padrão de beleza, para mais ou para menos; ter cor de pele diferente da maioria; ser alto ou baixo demais; ter cabelo crespo ou enrolado. Isso corrobora o estudo de Fante (2005), o qual revela que os motivos para se escolher uma vítima são quase sempre atributos muito comuns, como alguns centímetros a menos ou a mais, peso acima ou abaixo do considerado ideal, inteligência a mais ou a menos e beleza fora do padrão, seja para mais, seja para menos.
Após a separação dos grupos semântícos, a frequência das evocações e a OM E foram calculadas; na sequência, elaborou-se o Quadro 1, de quatro quadrantes, com o possível núcleo central das RS acerca da caracterização das vítímas de bullying.
Elementos centrais – 1º quadrante | Elementos intermediários – 2º quadrante | ||||
---|---|---|---|---|---|
Alta f e baixa OME f>8,57 e OME<2,08 | Alta f e alta OME f>8,57 e OME≥2,08 | ||||
Palavra | Freq. | OME | Palavra | Freq. | OME |
Fracas/Frágeis Tímidas Gordas Inteligentes |
43 33 21 16 |
1,76 1,72 1,90 1,81 |
Magras Quietas Fora do padrão Isoladas/sozinhas Diferentes |
16 12 11 10 10 |
2,37 2,08 2,36 2,10 2,50 |
Elementos intermediários − 3º quadrante | Elementos periféricos – 4º quadrante | ||||
---|---|---|---|---|---|
Baixa f e baixa OME f<8,57 e OME<2,08 | Baixa f e alta OME f<8,57 e OME≥2,08 | ||||
Palavra | Freq. | OME | Palavra | Freq. | OME |
Indefesas Homossexuais Status Social Negras Sentimento de inferioridade Tristes Inseguras Bonitas Raça Desempenho escolar Cabelos |
8 7 7 6 3 3 2 2 2 2 2 |
1,87 2,00 1,85 1,66 2,00 2,00 1,50 2,00 1,50 1,00 |
Bondosas Feias Poucos amigos Estatura Identidade de gênero Depressivas Educadas Com deficiência |
4 4 3 3 3 3 2 2 |
2,50 2,50 2,66 2,33 3,00 2,33 2,50 2,50 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
De acordo com o Quadro 1, no primeiro quadrante estão os possíveis elementos do núcleo central. Todos apresentaram frequência maior que 8,57 e OME menor que 2,08. Já no terceiro quadrante, encontra-se o grupo denominado “homossexuais”; as palavras dele foram prontamente evocadas, mas tiveram um baixo número de evocações (f=7 e OME=2,00). Mesmo sendo visto como um tabu pela sociedade moderna, possivelmente, o número de evocações foi baixo porque o Curso de Pedagogia é composto, predominantemente, por mulheres.
Não que isso seja uma regra, tampouco quer dizer que o bullying e a LGBTQIAfobia não são verificados no universo feminino. O que acontece é que, geralmente, as reações femininas são mais sutis e se focam mais nas questões estéticas ou sociais – “talvez isso se deva ao fato de ainda vivermos sob a herança de uma cultura machista e que impõe ao indivíduo do sexo masculino uma série de ‘obrigações’ que se esperam sejam cumpridas por indivíduos desse gênero” (BASTOS; SOUZA, 2013, p. 147).
As palavras com menor frequência e mais tardiamente evocadas se encontram no quarto quadrante ‒ elementos periféricos; entre elas, estão os grupos “Feias” (beleza considerada abaixo do padrão), com frequência 4 e OME de 2,20, e “Identidades de gênero”, que abarca “transexuais” e “afeminados” (termos que apareceram na pesquisa). Aqueles não foram incluídos no grupo dos “Homossexuais”, por se acreditar que muitos apenas não se sentem bem no corpo que habitam, não sendo, necessariamente, homossexuais, como estes que, talvez, tenham um jeito mais delicado e não sejam homossexuais. Por esses motivos, foram criados os dois grupos.
Louro (2000) propala que a sexualidade é considerada, por muitos, como algo que se tem naturalmente, ou seja, como algo dado pela natureza, inerente ao ser humano. Se assim fosse, não haveria motivos para argumentar a respeito das dimensões social e política; para a autora, a sexualidade é construída, pois envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções etc. Processos totalmente culturais e plurais.
Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente ‘natural’ nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos culturais, definimos o que é – ou não – natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. (LOURO, 2000, p. 5-6).
Se a identidade heterossexual for considerada “legítima” e a homossexual, “ilegítima”, por que há a necessidade de se garantir a primeira? Por que homens têm de afirmar sua masculinidade de tantas formas possíveis? Por que as mulheres devem obedecer a um padrão estético que condiga com a sua “feminilidade”?
Louro (1997) assinala que a homossexualidade não pode ser considerada natural, autêntica. Nesse sentido, por que é preciso vigiar alunos e alunas a fim de que não deslizem para uma identidade desviante? Para a autora, se todas as formas de sexualidade são construídas, não há por que negar a diferentes sujeitos ‒ homens e mulheres ‒ que vivam, de vários modos, seus prazeres e seus desejos. Dessa maneira, ser bissexual, transexual ou mesmo afeminado, como descrito nesta pesquisa, não deveria ser objeto de preconceito, de discriminação e de bullying.
A relação entre homofobia e normas de gênero pode ser traduzida em noções, em crenças, em valores, em expectativas, mas também em atitudes, em hierarquias opressivas e em mecanismos reguladores discriminatórios, o que pode gerar consequências desastrosas àqueles que não cumprem os princípios socialmente impostos em relação a ser homem e a ser mulher (JUNQUEIRA, 2007).
Fazzano (2014) assinala que a homofobia é um fenômeno tão presente na vida de pessoas LGBTQIA, que elas acabam internalizando as agressões sofridas, alimentando sentimentos de negação, autoculpabilização e aversão a si mesmas. Isso pode explicar o porquê de os homossexuais não reagirem e, muitas vezes, aceitarem as agressões sofridas.
Ressalta-se que as questões sobre sexualidade estão intimamente ligadas a escolhas morais e religiosas, “o que mobiliza uma série de dualismos: saudável/doentio, normal/anormal (ou desviante), heterossexual/homossexual, próprio/impróprio, benéfico/nocivo, etc.” (LOURO, 1997, p. 133).
Esses ideais de certo e de errado, de normal e de anormal, podem estar ancorados nos preceitos religiosos dos participantes da pesquisa, uma vez que a maioria se disse praticante de alguma religião. O Quadro 2 evidencia que grande parte dos participantes é católica (64,14%), seguida pelos evangélicos (28,29%); apenas 16 (6,37%) alegaram não praticar religião alguma, e 3 (1,20%) se declararam ateus.
Religião | Quant. | % |
---|---|---|
Católica | 161 | 64,14 |
Evangélica | 71 | 28,29 |
Nenhuma | 16 | 6,37 |
Ateu | 03 | 1,20 |
Total | 261 | 100 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
A pesquisa corrobora o estudo de Borges, Santos e Pinheiro (2015) acerca das RS sobre religião e espiritualidade, no qual as autoras destacam que 87% dos brasileiros consideram a religião um aspecto importante de suas vidas. Elas ainda afirmam que mais de 90% da população, independentemente da religião seguida, utiliza a religiosidade e a espiritualidade com o objetivo de conseguir força e conforto diante das adversidades da vida, dentre outros.
A longa tradição teológica “[...] exercida especialmente pela nossa cultura judaico-cristã, impôs a heterossexualidade como o modelo ideal e saudável de sexualidade” (BORGES et al., 2011, p. 25); é ela que organiza, ideologicamente, uma forma radical de perseguição contra estudantes homossexuais, difundindo que pessoas LGBTQIA são contrárias à natureza humana e às leis de Deus.
Defensores dessa doutrina tendem, com frequência, a amparar suas práticas nas interpretações bíblicas, segundo as quais as pessoas homossexuais são “[...] indivíduos extremamente perigosos, na medida em que eles se opõem ao que há de mais preciso na ordem da criação: a lei natural, expressão da vontade divina” (BORRILLO, 2010, p. 54).
É importante assinalar que, por mais que muitas palavras tenham sido repetidas pelos participantes, não foi possível encaixá-las nos grupos semânticos definidos, o que demonstra que não há consenso em relação às características das vítimas.
A partir da análise dos resultados obtidos, depreende-se que as RS dos participantes da pesquisa acerca das características das vítimas indicam que quem sofre o bullying apresenta alguma diferença no padrão estabelecido como normal, por exemplo, no desejo sexual. Louro (2000) assinala que a sociedade, ao categorizar os diferentes sujeitos, acaba criando, pautada em preceitos religiosos, uma série de “divisões”, com a intenção de reforçar as identidades consideradas ideais ou desejáveis. É por meio dessa classificação que os praticantes de bullying se sentem no direito de serem algozes daquelas pessoas que julgam inferiores, como o grupo LGBTQIA.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta pesquisa foi verificar se a homofobia faz parte do núcleo central das RS de acadêmicos do curso do Curso de Pedagogia em relação à prática de bullying nas escolas.
É por meio das RS que o sujeito ou o grupo procuram a verdade por meio da confiança baseada nas crenças, no conhecimento comum e na comunicação. Essas representações não surgem do raciocínio absoluto ou do processamento de informações; elas estão enraizadas no passado, na cultura, nas tradições e na linguagem. Dessa forma, ao se abordar as características que podem levar alguém a ser vítima de bullying, foi possível apreender que as pessoas com desejo sexual ou com identidade de gênero que não atentem à normatividade são alvos de violência, fato evocado pelos participantes.
Constatou-se que o bullying homofóbico não faz parte do possível núcleo central das RS dos participantes da pesquisa; no entanto, isso pode ter ocorrido pelo fato de o Curso de Pedagogia ser, predominantemente, frequentado por mulheres, as quais são mais sutis quanto à discriminação contra os homossexuais.
Foi possível depreender que o senso comum, bem como a religiosidade, baseia-se em concepções que supõem apenas dois universos opostos: o feminino e o masculino, isto é, a sexualidade é restritamente heterossexual. Acredita-se que as RS dos participantes da pesquisa estejam, possivelmente, apoiadas nos valores do cristianismo, uma vez que a maioria dos participantes se disse cristã. Segundo tais preceitos, o homossexual não segue a palavra de Deus e é fraco espiritual e religiosamente, já que não resiste às tentações.
Partindo dessa premissa, infere-se que todos os sujeitos e todos os comportamentos que não se “enquadram” dentro dessa lógica ou não são percebidos, ou são tratados como problemas e desvios. Assim, as pessoas LGBTQIA são discriminadas, seja por meio de agressões verbais, de chacotas, de injúrias, de agressões físicas, seja, até mesmo, pelo extermínio. Os preconceitos corroboram tal processo, já que, ainda hoje, esses indivíduos são mostrados como doentes, desviados e pecadores.
A discriminação em todos os ambientes e, particularmente, no ambiente escolar pode causar traumas irreversíveis, uma vez que a vítima acredita ser merecedora de todo o sofrimento que lhe é causado, já que não é capaz de se defender ou de encontrar alguém que simpatize com ela para que possa defendê-la.
Depreende-se que grande parte das escolas não está preparada para discutir as questões sobre gênero e sobre sexualidade. Sem um ensino para a diversidade sexual, crianças e adolescentes que “fogem do padrão” continuarão sendo vítimas. Por isso, são necessários programas educacionais continuados que visem à erradicação do preconceito.
Por fim, é importante sublinhar que a Teoria das Representações Sociais oferece um instrumento teórico-metodológico de grande utilidade para o estudo da atuação do imaginário social em relação ao pensamento e às condutas de pessoas e de grupos; no caso deste estudo, dos acadêmicos do Curso de Pedagogia.
As questões aqui apresentadas não se esgotam; cabe à ciência, portanto, buscar respondê-las e gerar consigo novas questões, a fim de sempre procurar um aprofundamento temático.