INTRODUÇÃO
A construção de uma educação de qualidade passa, sem sombra de dúvidas, pela ação comprometida dos educadores para com o seu papel social. Nesse viés, faz-se necessário problematizar os espaços de formação no contexto das escolas, mobilizando os educadores à sua auto(trans)formação. Imbernón (2009) afirma que esses espaços contribuem para a formação permanente, e esta é fundamental para o sucesso das reformas educativas. Assim, uma das alternativas para inovar os ambientes educativos é uma formação que esteja a serviço de um projeto em que os educadores sejam protagonistas na construção do seu saber.
Em conformidade a isso, o estudo em questão é resultado de uma pesquisa desenvolvida no curso de mestrado profissional que faz parte do Programa de Pós- graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Esta pesquisa buscou, mesmo na excepcionalidade do contexto da pandemia mundial, ocasionada pela covid-19, provocar as educadoras-coautoras a refletirem as suas práticas e construírem juntas uma proposta pedagógica para a infância.
Como motivação, teve os anseios da professora-gestora-pesquisadora que, imersa no dia a dia da gestão escolar, se depara com a reconstrução e [re]significação da Proposta Pedagógica da sua escola e a necessidade de problematizar os espaços formativos com as educadoras1 numa perspectiva ancorada no protagonismo destas em meio à pandemia da covid-19 em 2020.
Problematizar essa reconstrução e [re]significação da Proposta Pedagógica é mais do que atender a uma determinação da legislação, é assumir como educadores e comunidade um compromisso ético, político e pedagógico, em que pese à necessidade e possibilidade de mudança (FREIRE, 2019)
Nesse sentido, utiliza-se a expressão [re]significar2 para destacar um novo significado às práticas pedagógicas que visem a um processo de mudança. Mudar, segundo o dicionário (BUENO, 2010), significa alterar, transformar, deslocar, transferir a residência, o domicílio, tomar outra feição, outro procedimento, substituir uma coisa por outra. Dessa maneira, pensar essa reconstrução e [re] significação da Proposta Pedagógica de uma escola de Educação Infantil requer transformação do espaço educativo, mas essa não acontece sem antes propor aos envolvidos um processo de reflexão da sua prática, que se dá primeiramente pela autorreflexão e auto(trans)formação, para, posteriormente, “intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes” (FREIRE, 2018, p. 75).
Nessa proposição, observou-se a necessidade de fortalecer os processos formativos das educadoras, para que, envoltas nos momentos reflexivos, olhassem criticamente para suas práticas, visando a contemplarem a complexidade dos espaços vividos com as crianças no interior da escola e fora dela. Mesmo num cenário pandêmico, devido à covid-19, optou-se por fortalecer cada vez mais esse espaço de formação, dando continuidade ao estudo em questão, através dos círculos dialógicos em formato virtual, uma vez que as reflexões e discussões trouxeram a Educação Infantil para a cena, possibilitando a construção/reconstrução de muitos saberes ainda, para não retroceder àquilo que já vinha sendo construído na escola.
Assim, para dialogar sobre a formação permanente com as educadoras, buscou-se pela perspectiva da formação em contexto, essa que “[…] caracteriza os profissionais como sujeitos da formação e não como recipientes de informação, dando-lhes voz e participação na tomada de consciência crítica do seu cotidiano que está imerso numa cultura pedagógica que os antecedeu […]” (OLIVEIRA- FORMOSINHO, 2016, p. 91), e que precisa ser repensada e superada na ânsia da construção de uma pedagogia da infância.
Para Imbernón (2016), a formação na contemporaneidade faz-se a partir da pesquisa da/na/sobre a prática, e essa, como uma construção coletiva, visa a mudar a realidade da escola. Assim, esta pesquisa trouxe a seguinte problemática: como a formação em contexto pode contribuir para o [re]significar de uma Proposta Pedagógica para uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), a partir de um processo reflexivo-dialógico em tempos de pandemia? Considerando a problemática levantada, a pesquisa teve como objetivo geral: construir um processo dialógico de formação em contexto no sentido de [re]significar a Proposta Pedagógica da EMEI em tempos de pandemia.
O DESVELAR DO MUNDO PROBLEMATIZADO: CAMINHOS PERCORRIDOS
O contexto da pesquisa foi uma Escola Municipal de Educação Infantil, localizada no Município de Cachoeira do Sul/RS. Teve como coautoras as profissionais da instituição (gestores, professores, monitores e funcionários). Entende-se que, a partir da reconstrução participativa, democrática e dialógica da Proposta Pedagógica em 2019, era chegado o momento de todos os pertencentes a esse processo se colocarem em um movimento reflexivo, individual e coletivo para aprimorar a prática pedagógica e [re]significá-la.
Nesse contexto, o delineamento da pesquisa tratou-se de uma abordagem qualitativa, em que se buscou entender um problema específico que envolveu diferentes sujeitos em seu contexto, explorando as suas percepções, desejos e necessidades do cotidiano. Assim, a abordagem qualitativa “[…] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, onde o ser humano pensa sobre o que faz e interpreta suas ações, a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes” (MINAYO, 2009, p. 21).
A pesquisa qualitativa foi ao encontro da temática em estudo, que problematizou a formação em contexto de educadores como uma construção dialógica entre todos os envolvidos com o cuidar e educar no cotidiano da Educação Infantil na escola. A formação em contexto constitui-se por uma imersão no fazer pedagógico, nos seus saberes, na pedagogia que sustenta a ação educativa, para que a partir das problematizações dessa experiência formativa se construa uma consciência crítica e ações de mudança no cotidiano da escola. Oliveira-Formosinho (2016, p. 95) corrobora, dizendo que […] “a formação em contexto assume que os processos de desenvolvimento profissional, visam transformar o cotidiano pedagógico, os modos de ensinar e aprender, os modos de relacionamento pessoal e interpessoal, os modos de avaliação”.
Em detrimento da proposta do estudo, ancorou-se o trabalho na proximidade da pesquisa-formação de Josso, uma vez que:
[…] a formação do sujeito é concebida como sucessão de transformação de suas qualidades socioculturais e a pesquisa é entendida como a realização de atividades transformadoras da subjetividade do sujeito aprendente e cognoscente. É, portanto, igualmente o sujeito da pesquisa e o sujeito cognoscente que estão em formação (JOSSO, 2010, p. 19).
Esse processo formativo que se estrutura em proximidade com a pesquisa- formação tem suas ações envolvidas pelo diálogo e escuta sensível, pois considera e respeita os saberes dos educadores e possui uma construção coletiva que valoriza a importância de cada um em sua singularidade. Assim, encontrou-se nos Círculos Dialógicos Investigativo-formativos a processualidade, que proporcionou as experiências reflexivas e auto(trans)formativas com os educadores da infância.
Os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos têm seu aporte nos Círculos de Cultura de Freire. Lembrando que a pedagogia freireana revive a vida em profundidade crítica, pois:
A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo circular, intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, e em colaboração, reelaboram o mundo […] (FREIRE, 2019, p. 24).
Os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos envolvem os sujeitos em um processo de construção coletiva e colaborativa, onde o diálogo problematizador possibilita a reflexão crítica sobre si, seus saberes e a pedagogia que sustenta a sua prática, nessa dialética se reconhecem como “[…] sujeitos no mundo, imersos e inseridos em uma realidade sócio-histórico-cultural e capazes, então, de transformá- la” (HENZ; FREITAS; SILVEIRA, 2018, p. 842).
Nesse sentido, todas3 as participantes da pesquisa são vistas como coautoras (HENZ, 2015) por estarem empenhadas na reconstrução de práticas significativas no seu fazer docente. Desse modo, refletindo e analisando as relações e as interações do seu contexto, todas, pesquisadoras e pesquisadas interlocutoras, encontram no diálogo novos sentidos para as suas práticas (HENZ; FREITAS, 2015).
Assim, na dinamicidade dos Círculos aparecem diferentes movimentos, não de forma linear, mas em um processo de espiral, que demonstram as dimensões constitutivas da auto(trans)formação permanente com e dos educadores. Os movimentos, assim, podem incidir em tempos e momentos diferentes, bem como de várias formas, de acordo com o contexto em que são realizados. Os movimentos partem de uma escuta sensível e uma olhar atento às manifestações dos educadores, emersão e imersão nas temáticas, distanciamento e desnivelamento da realidade, descoberta do inacabamento, surgem os diálogos problematizadores, potencializam- se os registros re-criativo, a conscientização e a auto(trans)formação individual e coletiva.
A partir dessa movimentação dialógica, emergiram as temáticas geradoras que ancoraram as discussões dos educadores nos espaços de formação da escola. Desse modo, para interpretá-las, buscou-se pela análise interpretativa na concepção da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. Segundo Hermann (2002, p. 28), “[…] a Hermenêutica é a arte de compreender, derivada de nosso modo de estar no mundo”. Nesse sentido, essa compreensão está atrelada principalmente à linguagem que as educadoras-coautoras produzem na dialogicidade dos encontros e das escritas, no ato de falar ou calar, naquilo que é expresso ou não em gestos, movimentos, expressões e sensações. Para Gadamer (1999), a hermenêutica leva, a saber, “o quanto fica não dito, no que se diz”.
Por isso, ter linguagem significa relacionar-se com o mundo, e a constituição dos homens forma-se e transforma pela linguagem, pela nossa capacidade linguística. Para Gadamer (1999) a linguagem é o verdadeiro cerne do ser humano.
Portanto, a tarefa da Hermenêutica, a compreensão, só é possível através da expressão de uma consciência histórica que se manifesta na linguagem, através do diálogo. Por isso, buscou-se compreender os Círculos Dialógicos Investigativo- formativos, a partir do olhar hermenêutico.
FORMAÇÃO DE EDUCADORES EM CONTEXTO: UMA CONSTRUÇÃO DIALÓGICA PARA [RE]SIGNIFICAR UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA PARA A INFÂNCIA
As proposições legais em torno da Educação Infantil no Brasil, a partir da sua inserção no contexto educacional brasileiro, principalmente a partir da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, Lei 9.394/96, que dispõe sobre o direito educacional das crianças na Educação Infantil, direcionam-nos para a necessidade da construção das Propostas Pedagógicas que valorizem as especificidades das crianças na Educação Infantil.
Nesse contexto, a escola como espaço de transformação não se encontra na neutralidade e na indiferença. Ela é um lugar de vivacidade, concepções, intenções e que busca, através das suas ações, a qualidade na educação. Nas palavras de Freire (2018), não existe neutralidade na educação, pois ser política é característica própria da sua natureza.
Nessa esteira, o processo político da educação perpassa por aqueles que permeiam os espaços educativos: gestores, professores, funcionários, comunidade, pais, alunos e crianças. Nesse contexto, emerge a gestão escolar, que em face da sua competência precisa articular democraticamente as ações no interior da escola.
Por essa razão, ao construírem-se as propostas das escolas, projetam-se o futuro, com intenção de realizar desejos, sonhos e ideais. Assim, é na construção coletiva e participativa que encontramos a sustentação para a concretização de uma identidade escolar. Nas palavras de Gadotti (1994), todo projeto supõe rupturas com o presente e compromisso para com o futuro. Nesse sentido, a Proposta Pedagógica busca uma direção, reflete as escolhas e as decisões de uma comunidade. Pode-se dizer que é política por articular o compromisso sociopolítico e os interesses do coletivo, e é pedagógica por definir as ações educativas para que as escolas cumpram seus propósitos (VEIGA, 2013).
A partir da participação coletiva, a Proposta Pedagógica da escola de Educação Infantil deve permear os processos históricos que vêm constituindo a concepção de criança, de infâncias e das instituições ao longo dos séculos, instituindo práticas que valorizem e reconheçam as demandas da primeira infância, na atualidade. As DCNEI (2009) definem como Proposta Pedagógica:
A proposta pedagógica, ou projeto pedagógico, é o plano orientador das ações da instituição e define as metas que se pretende para o desenvolvimento dos meninos e meninas que nela são educados e cuidados, as aprendizagens que se quer promovidas. Na sua execução, a instituição de Educação Infantil organiza seu currículo, que pode ser entendido como as práticas educacionais organizadas em torno do conhecimento e em meio às relações sociais que se travam nos espaços institucionais, e que afetam a construção das identidades das crianças (BRASIL, 2009).
A Base Nacional Comum Curricular também reconhece que, nas instituições de Educação Infantil, o trabalho pedagógico deve ser pautado na importante relação do cuidar e educar, e as creches e pré-escolas precisam acolher as vivências e os conhecimentos construídos pelas crianças no ambiente da família e no contexto de sua comunidade, e articulá-los em suas propostas pedagógicas.
Nessa direção, pode-se perceber a importante relação entre família, criança e escola-professor destacadas nos documentos. A união desses enriquece o trabalho pedagógico, em que as crianças trazem suas experiências de vida, as famílias trazem seus contextos sociais, políticos e culturais e os professores são responsáveis por organizar e conferir intencionalidade à prática educativa (BARBOSA, 2011).
Nesse sentido, a proposição das ações com vistas a dar sentido à Proposta Pedagógica está fortemente ligada ao fomento da participação autônoma e crítica dos educadores na formulação das concepções que irão nortear os espaços escolares. Kramer (1997) destaca o importante papel dos professores nessa consolidação, pois, segundo ela, é preciso pensar a formação permanente dos profissionais para que, além de implantarem currículos, possam participar da sua construção e consolidação.
FORMAÇÃO DE EDUCADORES EM CONTEXTO: UMA CONSTRUÇÃO DA PRÁXIS EDUCATIVA
Sabe-se que a formação continuada é um direito do educador, garantida na legislação. No entanto é emergente problematizar esses espaços, porque os contextos sociais e educativos mudaram muito e, segundo Imbernón, “isso não se resolve com um tipo de formação permanente, que predominantemente está dentro de um processo de lições ou conferências-modelo” (2009, p. 9). Além do mais, é de suma importância esses espaços serem compartilhados com todos aqueles profissionais que estão envolvidos no contexto educativo (gestores, monitores e funcionários), uma vez que esses colaboram com a dinâmica do fazer docente.
Nessa ótica, a formação dos educadores caracteriza-se como um processo permanente e contínuo de desenvolvimento profissional que se concretiza, principalmente, por momentos que os profissionais possam dialogar com conhecimentos da sua área de atuação, relacionando-os a suas experiências do cotidiano nos espaços escolares, refletindo a sua prática num movimento de construção, desconstrução e reconstrução de novos saberes. Nesse sentido, corrobora-se com Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002, p. 6):
O desenvolvimento profissional conota uma realidade que se preocupa com os processos (levantamento de necessidades, participação dos professores na definição da ação), os conteúdos concretos aprendidos (novos conhecimentos, novas competências), os contextos da aprendizagem (formação centrada na escola), a aprendizagem de processos (metacognição), a relevância para as práticas (formação centrada nas práticas) e o impacto na aprendizagem dos alunos.
Nesse cenário, a formação permanente necessita considerar as novas mudanças ocorridas na atualidade e suas implicações para a área educacional. Dessa maneira, os espaços de formação que possibilitem aos educadores problematizar suas práticas poderão possibilitar a esses assumirem seu complexo papel profissional na atualidade. Em consonância, Freire (2018, p. 40) diz que a formação permanente dos professores é o momento fundamental para refletir sobre a prática, “[…] e pensar criticamente a prática de hoje ou de ontem é que se pode melhorar a próxima prática”.
Em conformidade, Toniolo e Henz (2015) destacam que espaços dialógicos de formação, onde os educadores estão imersos em condições de fala e escuta, potencializam a auto(trans)formação dos mesmos, pois essa se “dá por meio dos questionamentos e das reflexões dialógicas que abrangem não só a prática, mas também capacidades, saberes, atitudes, sensibilidades, valores e concepções de cada professor ou professora e do grupo como um todo” (p. 30).
A conjuntura atual requer processos de formação permanentes que rompam com modelos tradicionais. Para Imbernón (2009, p. 39) é preciso inovar, aproximar a formação das escolas, mas, para além disso, “[…] é preciso gerar uma nova cultura formativa, que produza novos processos na teoria e na prática da formação, introduzindo-nos em novas perspectivas e metodologias.”
Nóvoa (1995) também discorre sobre a construção de uma nova cultura da formação de professores, em que esses mobilizem e compartilhem diferente saberes, criando redes de autoformação, explorando o papel de formador e formando, principalmente, envolvidos no diálogo uns com os outros.
Por conseguinte, a oportunidade do diálogo no contexto da prática em que o professor está inserido oportuniza uma rede de compartilhamento de saberes e experiências, onde no processo de troca entre os pares vai-se consolidando uma prática cooperativa e colaborativa, que fortalece o crescimento coeso do grupo.
Nesse sentido, encontra-se na perspectiva da formação em contexto a possibilidade de problematizar questões pertinentes à formação permanente dos professores da Educação Infantil. Segundo Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002), essa é uma tendência de formação centrada na escola, que seu conceito pode ser visto por várias vertentes: dimensão física (localizada na escola), dimensão organizacional (escola tem autonomia para organizar), dimensão psicossocial (centrada nos professores), dimensão pedagógica (centrada nas práticas) e dimensão político-cívica (auto-organização dos professores).
Conforme Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002), no processo de formação em contexto, é preciso evitar que esse espaço seja um momento passivo dos professores, que a formação não seja só em sentido próprio da escola e ainda não se encerre nos professores, mas sejam centradas também na relação com os contextos das crianças e naturalmente também da família.
Levando em consideração essa percepção da formação em contexto, para além da relação formação/professor, mas também na relação com as necessidades da comunidade, ressalta-se a sua importância no âmbito da Educação Infantil, uma vez que todas as relações e ações que cercam essa etapa necessitam ser construídas em uma forte aliança com as famílias. Imbernón (2016), ao considerar a formação permanente dos professores, também pontua sobre a importância da formação no território educativo, que dispõe refletir e agir sobre as necessidades reais da comunidade, instituição e professores.
Oliveira-Formosinho (2016) descreve que essa formação rompe com práticas tradicionais da formação dos professores, pois é preciso desconstruir a forma tradicional de fazer pedagogia durante a infância. Assim, busca-se, em tal perspectiva, dar vozes a eles, em meio a uma escuta respeitosa, para que sejam sujeitos da sua própria formação. Dessa forma, “a vivência de uma formação de educadores, baseada na ética do respeito, se constitui em âncora para o desenvolvimento da qualidade pedagógica e educacional com as crianças” (p. 92).
Isso sinaliza a importância de provocar os educadores ao diálogo e à sua participação nas situações de formação. É oportunizá-los a refletirem no/sobre o seu contexto de prática, construírem e reconstruírem saberes, interagirem com seus pares e compartilharem com eles as certezas e as incertezas na constituição da docência na Educação Infantil. Em conformidade, Freire (2019) diz que é nesses momentos de reflexão de si e do mundo que os homens ampliam a sua percepção crítica, de como estão “sendo” no mundo “com que” e “em que se acham”.
FORMAÇÃO EM CONTEXTO: REFLEXÕES DAS EDUCADORAS EM TEMPOS DE PANDEMIA
Na experiência formativa com os educadores no contexto da pesquisa, estabeleceu-se um processo em que os profissionais da escola estivessem imersos em reflexões permanentes da/ na e sobre a prática. Em consonância, esses espaços formativos foram desenhados para que os educadores da infância rompessem com qualquer educação “bancária” e buscassem uma educação problematizadora, seja nos seus processos formativos, como na sua atuação no cotidiano da Educação Infantil. Para Freire (2019, p. 101), “a primeira ‘assistencializa’, domina e domestica os homens, enquanto a segunda ‘criticiza’, liberta e proporciona uma transformação criadora”.
Destarte, os encontros iniciaram de forma presencial, e com a chegada da pandemia mundial, ocasionada pela covid-19, aconteceram de forma online. Um desafio aos educadores, que demandou reaprenderem novas formas de encontros utilizando as ferramentas digitais.
Círculos Dialógicos | Data | Configuração | Nº de participantes |
---|---|---|---|
1º Círculo Dialógico | 17/02/2020 | Presencial | 34 |
2º Círculo Dialógico | 21/02/2020 | Presencial | 32 |
3º Círculo Dialógico | 16/02/2020 | Presencial | 30 |
4º Círculo Dialógico | 14/04/2020 | Online p/áudio Whats | 20 |
5º Círculo Dialógico | 29/04/2020 | Online p/Zoom | 26 |
6º Círculo Dialógico | 18/05/2020 | Online p/Zoom | |
7º Círculo Dialógico | |||
8º Círculo Dialógico | |||
9º Círculo Dialógico | 13/07/2020 | Google Meet | 22 |
Fonte: organizado pela autora, 2020.
A partir das experiências dialógicas, em que se constituíram a realização dos Círculos Dialógicos presenciais e online, iniciou-se o intenso movimento de um olhar sensível e escuta atenta às diferentes manifestações das educadoras. Um exercício comprometido com a entrega das educadoras-coautoras, que buscou clarear as reflexões que vêm constituindo os seus processos auto(trans)formativos, onde estas demonstraram estar compromissadas com a educação e os espaços de aprendizagens no contexto presencial, mas principalmente nos desafios que vêm enfrentando aos desprenderem suas práticas num momento de pandemia mundial. Nesse movimento, as temáticas geradoras que emergiram nos nossos diálogos endossaram as discussões, tornando rico esse espaço de reflexão da práxis educativa, oportunizando, assim, a consciência crítica das educadoras. Ainda na circularidade dialógica, foi possível estabelecer uma síntese dessa construção para ancorar as nossas práticas pedagógicas, como descreve a ilustração abaixo:
A referida imagem demonstra a construção da formação em contexto que, a partir da reflexão da práxis educativa, tomou uma consciência crítica no espaço da escola, construindo uma concepção de criança, uma nova imagem de profissional, que reconstrói numa ação situada os conhecimentos para uma pedagogia da infância, com vistas a [re]significar a Proposta Pedagógica da EMEI.
Em meio a estas, destacam-se as reflexões das educadoras em relação ao que tem representado a elas a oportunidade de vivenciarem processos dialógicos respeitosos, sensíveis e democráticos. A oportunidade do diálogo, como prática da liberdade de dizerem a sua palavra, proporcionou às educadoras-coautoras um espaço-tempo de auto(trans)formação, tanto individual quanto coletiva.
Assim, os momentos formativos organizados a partir dos Círculos Dialógicos envolveram-se em uma trama dialógica, onde a importância do processo formativo que se constitui ao longo da docência na Educação Infantil foi sendo percebido e problematizado.
Nos primeiros encontros, essa percepção aparece com indagações sobre a formação inicial. As educadoras expressam nas suas falas reflexões do papel da formação inicial oferecida pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e as instituições que oferecem nível médio, na modalidade Normal. Relatam que se sentem despreparadas quando saem da graduação e do Curso Normal, e destacam que a prática diária tem outra dimensão.
Ao compreender os anseios das educadoras-coautoras, entende-se que a docência na prática se revela um tanto desafiadora. Nas palavras de Hoyelos (2019), “trabalhar no cotidiano da escola infantil supõe entrar em um oceano de incertezas com alguns arquipélagos de certeza […]” e nessa premissa os cursos de formação de professores muitas vezes se desencontram. De acordo com Tardif (2014), estes são globalmente idealizados segundo um modelo aplicacionista do conhecimento, onde os alunos estudam diferentes disciplinas e depois fazem o estágio para “aplicar” os conhecimentos. Ainda segundo o autor, esse modelo gera problemas fundamentais na prática do professor,
Primeiro problema: ele é idealizado segundo uma lógica disciplinar e não segundo uma lógica profissional centrada nas realidades do trabalho dos professores […] por ser monodisciplinar ela é altamente fragmentada […]. A lógica disciplinar é regida por questões de conhecimento e não por questões de ação, numa disciplina, aprender é conhecer, mas numa prática aprender é fazer e conhecer fazendo.
Segundo o problema: esse modelo trata os alunos como espíritos virgens e não levam em consideração suas crenças e representações anteriores a respeito do ensino. […] na verdade eles terminam sua formação sem serem sido abalados em suas crenças e são essas crenças que vão reatualizar no momento de aprenderem a profissão na prática […] (TARDIF, 2014, p. 273).
Em concordância ao autor, essas questões são vivenciadas pelas educadoras da infância, no tocante a um ensino fragmentado, que não leva em consideração o contexto real da prática, responde muitas vezes em ações descontextualizadas no cotidiano da Educação Infantil. Nesse sentido, os educadores com uma formação acadêmica disciplinada não dão conta das especificidades da Educação Infantil, que requer um trabalho transdisciplinar. Esse “[…] acarreta uma nova forma de elaboração do conhecimento, mais criativo, pois a transdisciplinaridade quebra as barreiras entre as disciplinas, já que cada uma reconhece, em sua estrutura, o caráter de todas as demais” (HOYELOS, 2019, p. 28).
Nesse movimento dialógico, a percepção das educadoras-coautoras em relação à sua formação inicial corrobora-se com Imbernón (2009), que afirma que essa inquietude leva à consciência de que tudo que sabemos ou pretendemos saber deve estar à luz dos tempos atuais, num processo de reconceituação constante. Nessa lógica, o educador está sempre em formação permanente, “[…] um processo que inicia na formação inicial e se estende continuamente durante toda a trajetória docente, sobretudo pela rigorosa reflexão sobre si e sobre sua prática” (TONIOLO; HENZ, p. 34).
Nesse sentido, na oportunidade dos Círculos Dialógicos, as educadoras- coautoras reconheceram a pertinência dos momentos formativos no contexto da escola como forma de contribuir para sua formação permanente. Em seus diálogos, deixam transparecer a validade em que se encontram na sua caminhada auto(trans) formativa e retratam esses espaços como oportunidade de emancipação:
- Esses encontros de Formação que a gente tem essas nossas conversas, isso não pode se perder. É tão importante, faz a gente se motivar, a gente ouvir as colegas, a gente conversar, e aí isso ajuda a gente. Vamos lá! Vale a pena! Isso é muito importante. (LÍRIO, 8º Círculo Dialógico, 2020).
- Eu acho que quando voltarmos, precisamos continuar encontros com trocas, é muito legal essa construção, no presencial vai ser melhor ainda, continuarmos com essa reflexão coletiva! (HORTÊNSIA, 8º Círculo Dialógico, 2020).
- Podemos, quando voltar, nos reunirmos às vezes online e outras presencial, a gente organiza melhor as ideias assim também. (MARGARIDA, 8º Círculo Dialógico, 2020).
- Podemos pensar, já que nesse momento aprendemos a usar as tecnologias, de trazer isso para nos ajudar nos nossos encontros (PRIMAVERA, 8º Círculo Dialógico, 2020).
No diálogo acima, fica evidente que a vivência nos Círculos tem despertado nas educadoras-coautoras motivação e liberdade de dizerem a sua palavra. Freire (2019) diz que a palavra é lugar de encontro e do reconhecimento das consciências, também é o reencontro e o reconhecimento de si mesmo. Dessa forma, quando dizem que “vale a pena conversar e ouvir as colegas”, que “não podemos perder essa reflexão coletiva”, percebe-se que essas educadoras reconhecem em si e no outro a capacidade de se relacionarem e construírem juntos uma pedagogia da infância. Segundo Hermam (2002), ancorada nas proposições de Gadamer, a aprendizagem acontece pelo diálogo, porque nesse processo é o próprio sujeito quem se educa com o outro. No processo de formação em contexto, outra questão que se apresentou nas discussões é a construção de uma consciência mais crítica a respeito da pedagogia que se assenta nas práticas pedagógicas na escola, as falas das educadoras-coautoras expressam a possibilidade de rupturas que vêm se estabelecendo nas suas reflexões:
- Esses momentos de Formação têm nos ajudado muito a ter outra visão. A colega dizia ‘vamos fazer uma integração?’ Aí eu abria a porta, os bebês começavam a chorar e eu: ‘não vai dar certo isso!’ Mas agora tenho visto de outra forma. Não é só integração, mas são propostas para que os bebês não fiquem só no nosso canto. (AZALÉIA, 8º Círculo Dialógico, 2020).
- Eu ainda tenho resquícios da minha formação. Eu estou lidando com a minha cabeça, com a minha pedagogia velha e ultrapassada. Eu estou aprendendo a vivenciar isso, agora felizmente a pandemia virou um processo de estudos, com as leituras, com os encontros, com as lives, eu estou tentando modificar essas ideias, porque infelizmente eu vim dessa cultura! (ÍRIS, 9º Círculo Dialógico, 2020).
Compreende-se que a referência das educadoras-coautoras à “outra visão” e a uma “pedagogia velha e ultrapassada” se insere na perspectiva de uma pedagogia tradicional e transmissiva. Para Oliveira-Formosinho e Formosinho (2013), há dois modos de fazer pedagogia: o modo da transmissão e o modo da participação. Assim, “A pedagogia da transmissão centra-se no conhecimento que quer veicular, a pedagogia da participação centra-se nos atores que constroem o conhecimento participando nos processos de aprendizagem […]” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2013, p. 189).
Nesse sentido, percebe-se que as educadoras-coautoras, ao interrogarem-se e refletirem junto às demais educadoras, descobrem-se como inacabadas, inserindo- se num processo de conscientização sobre o seu fazer pedagógico, apropriando-se da construção de novos saberes para uma pedagogia da infância, essa percepção nos remete a Freire (2019, p. 108), que diz que “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novos pronunciar”. A esse mundo problematizado chamamos a EMEI em estudo, em que as educadoras-coautoras estão saindo de um estado de inércia das suas reflexões e “[…] progressivamente se utilizam de uma gramática pedagógica mais apropriada, saindo de uma pedagogia implícita, rotineira, para uma pedagogia explícita, que sabe mostrar a ação imbuída de pensamento e fundada na ética” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016, p. 96).
Imersas nessa dialogicidade, as educadoras-coautoras trazem na totalidade dos seus diálogos a oportunidade de emancipação que advém não só do processo dialógico, mas também das leituras e estudos que têm vivenciado:
- Eu acho que as formações são muito proveitosas. A gente tem conhecido muitas coisas (TULIPA, 9º Círculo Dialógico, 2020).
- […] eu acho que a gente teve bastante oportunidade de aprender coisas novas e aprender a buscar mais o conhecimento (VIOLETA, 9º Círculo Dialógico, 2020).
- Eu estou me conhecendo mais, estou estudando mais, eu estou refletindo sobre o meu trabalho, e isso pela oportunidade de vocês! (MARGARIDA, 9º Círculo Dialógico, 2020).
- O momento foi de muitos desafios, a gente está fazendo coisas que não imaginava que ia fazer […] o grupo está partilhando bastante, eu acho que esse momento serviu para unir mais as pessoas em um objetivo comum […] (GIRASSOL, 9º Círculo Dialógico, 2020).
Observa-se que o processo de formação é defendido pelas educadoras- coautoras como um fator de mudança na construção dos seus saberes. Uma construção que passa pela busca do conhecimento, oriundo também das teorias, mas que advém da relação que se estabelece na prática, mas aqui não se fala em aplicação teórica e prática, e sim uma teoria que nos ajuda a compreender as práticas educativas e também a construir as nossas teorias e práticas no cotidiano da escola. Tardif (2014) corrobora dizendo que precisamos repensar a relação teoria e prática na formação de professores, “[…] os professores são atores competentes, sujeitos ativos […], a prática não é só um lugar de aplicação de saberes provenientes da teoria […], é um espaço prático, específico de produção, de transformação e de mobilização de saberes” (p. 234).
Nesse caminhar dos educadores, estes fazem uma reflexão da sua atuação, do seu estar no mundo, o que os possibilita um processo autoavaliativo. Nesse propósito, “[…] a atualização consciente passa, em primeiro lugar, pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural” (JOSSO, 2012, p. 22).
Ademais, a formação em contexto tem provocado as educadoras-coautoras para que se reconheçam como transformadoras da sua realidade. Entende-se que isso também é um transcurso que se faz ao ritmo de cada uma, no entrelaçar do encontro com o outro, na dialogicidade e na amorosidade do acolhimento, como bem expressa a educadora-coautora:
- As formações têm proporcionado reflexões desde o início […]. As formações sempre foram afetivas, acolhedoras e sensíveis, pensando na gente e nas crianças. As formações têm ajudado a pensar nas coisas que eu já fiz, e na manutenção do vínculo […]. Toda essa sensibilidade, esse acolhimento, o afeto nas formações é o que me ajuda! (CAMÉLIA, 9º Círculo Dialógico, 2020).
A educadora-coautora sintetiza o seu sentimento aos momentos formativos na escola trazendo a sensibilidade com que foram planejados. Nas suas palavras, fica a certeza de que o atravessamento dos momentos formativos trouxe a possibilidade de uma conscientização para sua auto(trans)formação, principalmente pela forma como tem sido concebida, um espaço dialógico, com respeito aos saberes dos educadores, de fala sensível e escuta atenta, o que as faz sentir um sentimento de empatia, tanto da formadora/ mediadora para com elas e delas na mesma reciprocidade.
Nessa circunstância, fica aparente na fala da educadora-coautora, como em outras já mencionadas, o quanto a mediação pedagógica é fator relevante para a formação em contexto. Nesta encontra-se o papel da pesquisadora que, imersa no seu cotidiano, com os seus pares, teve um grande desafio, o de ser imparcial, mesmo convivendo e sabendo das diferentes problemáticas do seu contexto. “O formador enquanto mediador que tem que ser mestre na pedagogia da abertura e da escuta […] tem o dilema de provocar, ensinar, dizer e a necessidade de se silenciar e escutar” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016, p. 97).
CÍRCULOS DIÁLOGICOS E [IN]CONCLUSÃO, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES…
A construção dialógica no espaço da formação em contexto constituiu- se como um rico instrumento à gestão escolar que busca fomentar espaços democráticos, valorizando o protagonismo dos educadores.
A disposição ao diálogo não é uma condição fácil. No estudo em questão, esse foi se configurando à medida que se encontravam nas formações – algumas educadoras mais dialógicas, outras mais observadoras, mas todas, à sua maneira, expressavam considerações nas discussões.
Essa abertura ao diálogo e reflexão é primordial para a problematização do cotidiano da escola e no fazer pedagógico. No entanto os educadores trazem consigo as marcas de uma formação, que na sua maioria não fomenta o diálogo, mas sim uma formação de cima para baixo, de transmissão, cursinhos prontos etc. Ademais, também estão acostumados a buscar uma formação para crescimento individual. Nessa ótica, entende-se o porquê da processualidade da construção dialógica nos encontros, foi preciso respeitar o tempo de cada uma nessa percepção e conscientização. E, nesse campo, foi-se percebendo que a emancipação profissional acontece no individual, mas ela só se efetiva na sua magnitude, se crescermos como grupo, no coletivo, na troca com o outro.
A formação em contexto, mediadas pelos Círculos Dialógicos Investigativo- formativos, com base nos círculos de cultura propostos por Freire, mostrou-se importante para o processo de [re]significação da Proposta Pedagógica para a escola de Educação Infantil. Sabe-se que esta se caracteriza por uma transformação da práxis, no repensar as ações educativas, no construir novas formas de aprender com o outro, na mesma medida que se vai colocando em prática. O momento em que se fomentou esse espaço de formação foi delicado, este em meio à pandemia do coronavírus (covid-19), em que mantiveram um afastamento físico da escola e das crianças, mas não menos intenso em estudo, discussões e reflexões.
Assim, ficou evidente que as educadoras-coautoras estão tomando uma consciência mais crítica sobre as práticas que se têm desenvolvido no interior da EMEI. Segundo Oliveira-Formosinho (2016), esse é o primeiro passo para construir uma pedagogia da infância.