1 Introdução
O presente artigo decorre de uma pesquisa realizada no mestrado em Educação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), cujo recorte bibliográfico envolve o patrimônio e sua relação com a educação e a cidade. Ao adentrar o campo do patrimônio, vemos que este ainda é um terreno repleto de conflitos que se expandem para além de reflexões conceituais, visto que “[...] estamos diante de uma categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana” (GONÇALVES, 2002, p. 22). Sua importância não se restringe às modernas sociedades ocidentais e entendê-lo como categoria de pensamento é, portanto, assumir sua presença na constituição do sujeito.
A educação tem se mostrado potente como prática que medeia a relação do sujeito com a cidade e seu patrimônio cultural. Os conflitos presentes no campo do patrimônio, por extensão, atingem também a educação. Buscamos, nesse sentido, entender como as pesquisas vêm nomeando os processos educacionais que medeiam a relação do sujeito com a cidade e seu patrimônio cultural.
2 Metodologia: o que dizem as pesquisas?
Para o desenvolvimento deste estudo, a metodologia utilizada foi um estado do conhecimento1 realizado no Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), utilizando os seguintes descritores: “educação”, “cidade” e “patrimônio”. A busca foi por dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas nos respectivos programas de pós-graduação disponibilizadas nessa plataforma e publicadas entre 1997 e 2018.
3 Resultados e discussão
Nesta seção estão dispostos, em números, os resultados encontrados a partir do estado do conhecimento realizado em 2019; expomos ainda as reflexões que fizemos diante dos dados encontrados.
3.1 Critérios de seleção das pesquisas: o recorte temporal nos dados
A partir dos descritores utilizados, categorizamos os resultados encontrados. O primeiro critério foi delimitar o recorte temporal, que se concentrou entre os anos de 2014 e 2018, visto que a produção teórica sobre a temática pesquisada apresentou mais números nesse período. De 1997 a 2013, o número de pesquisas girava em torno de 20 ao ano. Em 2011, os números começaram a se tornar mais significativos, mas foi a partir de 2014 que passou a aparecer a maior parte das produções (Tabela 1).
A partir dos descritores utilizados, obtivemos o resultado total de 282 trabalhos, sendo 249 dissertações de mestrado e 36 teses de doutorado. Os critérios utilizados para descartar os outros resumos lidos foram: a não articulação entre os três descritores utilizados, como os que discutem patrimônio e cidade sem nenhuma interface com a educação (cerca de 145 trabalhos foram descartados segundo esse critério); pesquisas que debatem a educação sem conexão com o patrimônio e a cidade (43); estudos que articulam educação e patrimônio, mas não discutem a temática da cidade (cerca de 50); trabalhos que discutem somente a temática do patrimônio (47); trabalhos que debatem educação e cidade sem interface com o patrimônio (11); e estudos que discutem somente a temática da cidade (18). As publicações que discutem temáticas relacionadas ao patrimônio sem abordar diretamente a noção de patrimônio cultural também foram excluídas (14). Também foram descartados os trabalhos que discutem educação ambiental (3), educação alimentar (3), educação financeira (1), educação musical (1), educação em saúde (1), patrimônio geológico (4), patrimônio ambiental (1) e economia patrimonial (1).
Neste artigo, interessa-nos entender como os/as pesquisadores/as vêm nomeando recentemente os processos educacionais relacionados aos descritores utilizados para o estado do conhecimento, então nos ativemos ao grupo de trabalhos que articulavam os três descritores - “educação”, “cidade” e “patrimônio” -, em um total de 22 dissertações e seis teses, ou seja, 28 pesquisas (Tabela 2).
Tipo de pesquisa | Descritor da pesquisa | Ano | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | |||
Dissertação | “educação”, “cidade”, “patrimônio” | 5 | 2 | 3 | 5 | 7 | 22 |
Tese | “educação”, “cidade”, “patrimônio” | 0 | 0 | 3 | 2 | 1 | 6 |
Fonte: Souza (2021, p. 36).
Os trabalhos encontrados que associam informações dos três descritores utilizados demonstram como ainda são pouco usuais pesquisas que se debrucem sobre a articulação entre as temáticas: educação, cidade e patrimônio.
3.2 As principais áreas do conhecimento das pesquisas
Um dado que merece destaque nesta análise diz respeito às áreas (ou campos) em que as pesquisas foram feitas. Florêncio (2012) já dizia sobre a importância de se considerar, no que se refere à prática educativa, o patrimônio cultural como conteúdo inter/transdisciplinar para que os usos dos espaços públicos sejam potencializados. E Castriota (2009) diz ainda que o diálogo entre os diferentes campos, quando se trata de patrimônio, é extremamente importante para procurar responder a uma realidade de crescente complexidade.
Área | Número de pesquisas (mestrado/doutorado) | Área | Número de pesquisas (mestrado/doutorado) |
---|---|---|---|
Educação | 13 / 6 | Arquitetura e Urbanismo | 1 / 0 |
Patrimônio | 3 / 0 | Geografia | 1 / 0 |
História | 1 / 0 | Antropologia | 1 / 0 |
Artes | 1 / 0 | Turismo | 1 / 0 |
Fonte: Souza (2021, p. 38).
Como evidencia a Tabela 3, a área da Educação abriga a maior parte dos estudos sobre o tema, provavelmente por estar também na Educação o maior número de programas de pós-graduação. No entanto, a temática vem sendo discutida também pelo campo do Patrimônio e, em menor escala, por outros campos do conhecimento.
3.3 Sobre a localização geográfica das pesquisas
Em relação à localização geográfica das pesquisas analisadas, é possível perceber maior concentração nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul (Tabela 4).
Tipo de pesquisa | Região | |||
---|---|---|---|---|
Sudeste | Nordeste | Sul | Centro-Oeste | |
Dissertação | 11 | 5 | 4 | 2 |
Tese | 1 | 4 | 0 | 1 |
Fonte: Souza (2021, p. 40).
As regiões Sudeste e Nordeste concentram o maior número de pesquisas e são também as regiões onde há maior número de tombamentos e registros de bens como patrimônios brasileiros. O fato de a maior concentração de pesquisas estar no Sudeste também pode ser explicado por essa ser a região com maior quantidade de universidades e programas de pós-graduação.
3.4 Acerca da educação e patrimônio no contexto das pesquisas analisadas
Das dissertações de mestrado, 13 possuem suas concepções fundamentadas no Guia de Educação Patrimonial (HORTA; GRUMBERG; MONTEIRO, 1999)2. Destacamos delas as seguintes pesquisas:
Pesquisador/a A (2016): discute a educação museal e a relação dos museus com o patrimônio cultural e com a educação patrimonial, vendo esta como uma metodologia baseada em Horta, Grumberg e Monteiro (1999).
Pesquisador/a B (2017): não vê a educação patrimonial como uma metodologia única e entende que o espaço urbano é um agente pedagógico, conversando com a educação das sensibilidades. O autor, porém, considera que a educação patrimonial tem uma função de “alfabetização cultural”.
Pesquisador/a C (2018): segue a linha da educação patrimonial transformadora, mas utiliza a educação patrimonial como metodologia baseada em Horta, Grumberg e Monteiro (1999).
Evidenciamos que, mesmo quando pesquisadores/as se dispõem a entender a educação patrimonial como um processo não hierarquizado, ainda se tem como base teórica o Guia Básico de Educação Patrimonial (HORTA; GRUMBERG; MONTEIRO, 1999), o que, em nosso entendimento, é paradoxal, já que esse material traz à tona uma perspectiva hierárquica do entendimento de patrimônio.
As demais dissertações chamam os processos educativos relacionados à cidade e seu patrimônio cultural de outra forma ou não dão nomes específicos a esses processos. A seguir, mostraremos como cada um dos/as sete autores/as restantes entendem tais processos.
Pesquisador/a D (2014): nomeia-os como educação patrimonial, contudo não utiliza a concepção proposta pelo Guia Básico de Educação Patrimonial.
Pesquisador/a E (2015): discute memória, identidade e educação e como esses conceitos estão atrelados, mas não dá um nome específico aos processos educativos.
Pesquisador/a F (2014): argumenta sobre a importância do patrimônio para a educação, mas não nomeia os processos educativos relacionados ao patrimônio.
Pesquisador/a G (2017): fala de uma educação das sensibilidades, entendendo que o espaço é capaz de educar.
Pesquisador/a H (2017): diz sobre a educação para/pelo lazer. A autora traz a perspectiva dos jogos como manifestação cultural e ainda fala da relação deles com o patrimônio cultural.
Pesquisador/a I (2018): chama os processos educativos de educação patrimonial, mas não a entende a partir do Guia Básico de Educação Patrimonial.
Pesquisadora J (2018): utiliza o conceito de cidade educadora.
Quanto às teses analisadas, observamos as seguintes concepções:
Pesquisador/a A (2016): entende a educação patrimonial no viés do território educador - cidade educadora.
Pesquisador/a B (2016): utiliza a educação patrimonial em uma concepção da Museologia. Além disso, faz críticas à educação patrimonial na perspectiva do Guia Básico de Educação Patrimonial.
Pesquisador/a C (2017): aborda a educação por meio da educação estética, relacionando-a ao patrimônio cultural.
Pesquisador/a D (2016): entende a cidade como espaço educativo a partir da ideia de cidade educadora.
Pesquisador/a E (2018): utiliza a noção de educação estética que perpassa pela experiência estética, mediada pelo patrimônio.
Pesquisador/a F (2017): discute a educação pelo viés de cidades educadoras.
É possível perceber que, entre as pesquisas de doutorado, a noção de educação patrimonial vinculada ao Guia Básico de Educação Patrimonial não aparece sequer uma vez. A Tabela 5 une as informações destacadas até então neste tópico.
Concepções de educação | Número de pesquisas |
---|---|
Educação patrimonial - com base nas concepções do Guia Básico de Educação Patrimonial | 13 |
Cidade educadora | 4 |
Educação estética | 4 |
Educação patrimonial - não utilizando as concepções propostas pelo Guia Básico de Educação Patrimonial | 3 |
Discussões relacionando “educação” e “patrimônio” sem nomear os processos | 2 |
Educação das sensibilidades | 1 |
Educação para/pelo lazer | 1 |
Fonte: Souza (2021, p. 41).
Ao observarmos a exposição sobre como as pesquisas analisadas vêm nomeando os processos educativos, percebemos como o Guia Básico de Educação Patrimonial ainda é uma forte referência para ações educativas ligadas à cidade e seu patrimônio cultural. E, pensando de acordo com Scifoni (2017), talvez isso ocorra por conta da falta de arcabouço teórico para pensar a educação com viés patrimonial.
Ainda a partir de Scifoni (2017), notamos as divergências entre as concepções adotadas para as práticas educativas, isso porque a educação patrimonial ainda é um campo extremamente fragmentado. Não há um lugar de discussão como unidade para o debate das diferentes correntes de pensamento. Logo, é comum encontrarmos nomenclaturas como educação patrimonial, educação museal, educação estética, educação das sensibilidades, educação para o patrimônio, educação patrimonial decolonial, educação patrimonial crítica, etc. É importante entender que nomear é também fazer política. O nome “educação patrimonial” é muitas vezes rejeitado exatamente por ainda estar vinculado a uma produção que conceitualmente já foi superada e atualizada dentro do campo, como evidenciam as produções de Demarchi (2018), Florêncio (2012), Fonseca (2012), Franco (2019), Scifoni (2017).
Descrito como são entendidos os processos educacionais nas pesquisas analisadas, focaremos agora a discussão dos principais conceitos utilizados. Sendo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o órgão federal responsável pela salvaguarda do patrimônio cultural, é importante observar como essa instituição enxerga os processos educacionais, bem como sua trajetória em relação à educação. Segundo a Portaria de 2016 do Iphan, entende-se como educação patrimonial:
Art. 2º Para os efeitos desta Portaria, entende-se por Educação Patrimonial os processos educativos formais e não formais, construídos de forma coletiva e dialógica, que têm como foco o patrimônio cultural socialmente apropriado como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais, a fim de colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação. (BRASIL, 2016, p. 6).
E são diretrizes para essa educação:
I - Incentivar a participação social na formulação, implementação e execução das ações educativas, de modo a estimular o protagonismo dos diferentes grupos sociais; II - Integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os bens culturais aos espaços de vida das pessoas; III - valorizar o território como espaço educativo, passível de leituras e interpretações por meio de múltiplas estratégias educacionais; IV - Favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valorização e preservação do patrimônio cultural; V - Considerar que as práticas educativas e as políticas de preservação estão inseridas num campo de conflito e negociação entre diferentes segmentos, setores e grupos sociais; VI - Considerar a intersetorialidade das ações educativas, de modo a promover articulações das políticas de preservação e valorização do patrimônio cultural com as de cultura, turismo, meio ambiente, educação, saúde, desenvolvimento urbano e outras áreas correlatas; VII - incentivar a associação das políticas de patrimônio cultural às ações de sustentabilidade local, regional e nacional; VIII - considerar patrimônio cultural como tema transversal e interdisciplinar. (BRASIL, 2016, p. 6).
Observamos que, nas perspectivas atuais priorizadas pelo órgão, considera-se que a preservação dos bens culturais é uma prática social dialógica, diversa, transversal e pautada na alteridade. Essa noção, porém, nem sempre se constituiu dessa forma. Foi na década de 1950 timidamente que se teve início a discussão da educação patrimonial no Brasil, mas foi somente no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 que a teoria começou a sair do papel e a tomar corpo como prática.
4 Repensando teorias e práticas
O Guia Básico de Educação Patrimonial foi (e ainda é) a principal referência para balizar a prática que envolve ações educativas relacionadas à cidade e ao patrimônio cultural. Demarchi (2018) faz uma análise do guia e a partir dela percebemos que ele entende que educação patrimonial é uma metodologia específica de ação que deve aderir aos seguintes passos para se trabalhar o patrimônio: observação, registro, exploração e apropriação, todos voltados somente para o patrimônio material, o que evidencia que tal metodologia é insuficiente em sua abordagem com o patrimônio cultural como um todo. Sobre o objeto a ser trabalhado, o guia entende que a sua escolha deve partir do/a professor/a que rege a classe, o que demonstra uma certa verticalidade no entendimento das referências culturais. Ainda problematizando o guia, percebe-se que este entende que a educação patrimonial deve funcionar como um instrumento de “alfabetização cultural”. Para Silveira e Bezerra (2007 apudDEMARCHI, 2018), essa concepção é uma violência simbólica, pois desconsidera o outro como capaz de desenvolver seu próprio entendimento sobre o mundo, partindo do pressuposto de que os sujeitos desconhecem seu patrimônio.
Constatamos, então, a fluidez das noções de patrimônio e de educação patrimonial, isto é, não são estáticas no tempo. Assim, o entendimento atual do que é patrimônio não condiz com as ações realizadas com base na metodologia proposta pelo Guia Básico de Educação Patrimonial, mas, mesmo com o avanço das discussões em torno da “educação” e do “patrimônio”, a associação da expressão “educação patrimonial” a esse guia persiste (TOLENTINO, 2016).
Outro aspecto relevante a se destacar é que o guia adota uma noção de educação instrutivista, entendendo-a como transmissão de conhecimentos. Talvez por ele ainda se pautar em uma noção de educação escolar, principalmente como resquício de uma educação enciclopedista, mnemônica, perspectiva, que só começa a se modificar a partir de 1996, com a instituição da Lei n.º 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), cujo caráter é o de ser iminentemente democrática e participativa. Em contrapartida, o que observamos na literatura mais recente relacionada ao patrimônio é a tendência a uma concepção de educação por um viés transversal, dialógico e relacional (FLORÊNCIO, 2012; FONSECA, 2012; FRANCO, 2019; SCIFONI, 2017).
Mas o que é possível afirmar hoje, de acordo com essa literatura, sobre a educação patrimonial? Franco (2019) diz que atualmente entendemos a educação patrimonial como uma educação que tem como ponto de partida o propósito de fazer transparecer aquilo que ainda não está visível em relação ao patrimônio cultural, permitindo ao sujeito reconhecer as sensibilidades, sentidos, saberes, belezas, incoerências, contradições, etc. que estão relacionados ao patrimônio.
A partir da bibliografia recente, podemos enunciar que a educação patrimonial é um processo que pode se materializar por meio de metodologias diferentes, visto que estamos falando de um campo transversal. É pertinente esclarecer também que, ao falar de educação patrimonial, estamos tratando da valorização das diferentes formas de existências, isso em um mundo que tende a anular (ou invisibilizar) o diferente (FLORÊNCIO, 2012). Acreditamos que essa é a potência oculta por trás das ações educativas voltadas à cidade e seu patrimônio cultural.
Os processos educativos podem ser vistos como mediadores da relação com o mundo que nos cerca, isso porque a educação é capaz - caso seja seu objetivo - de articular cenários escolares e não escolares. Entendemos também que é papel da educação promover e viabilizar a cidadania e, para tanto, é necessário que os processos educativos ocorram de forma integrada à vida cotidiana.
Parece evidente que a educação é capaz de mediar nossa relação com a cidade e o patrimônio cultural que a ela pertence. Quando dizemos que a educação pode mediar a relação do sujeito com o espaço ao seu redor, argumentamos que ela pode funcionar como lentes de óculos que nos permitem enxergar aquilo que nos cerca, de ler a cidade e seu cotidiano. É importante ter sempre em mente que a educação não é um campo neutro, mas atravessado pelas crenças, dogmas, leis e políticas vigentes; essa observação vale também para a noção de mediação (e também de patrimônio).
Quando o sujeito está na posição de mediador, não é possível que ele abandone sua bagagem cultural para mediar uma ação. Da mesma forma, os demais sujeitos envolvidos no processo possuem também suas próprias bagagens culturais, ou seja, todos os envolvidos no processo são agentes. Quando se trata do patrimônio cultural, cada um possui suas próprias referências culturais - pessoais ou coletivas. Esse entendimento é fundamental para práticas de educação patrimonial que se estabelecem por meio de trocas, e não de imposições.
Coutinho (2013) diz que a mediação é um espaço (também) de enfrentamento das concepções de arte, cultura e educação. Sendo essas noções os pilares das instituições, é através delas que as instituições são criadas e mantidas. A autora alerta para a necessidade de que haja uma reflexão sobre essas concepções, pois, quando o/a mediador/a simplesmente reproduz o discurso institucional, ele/a está correndo grande risco de anular qualquer intenção educacional de transformação social contida na mediação da ação em questão.
Podemos compreender a mediação, em especial aquela que se volta à arte/ cultura/educação, como uma possibilidade de reconhecimento dos sujeitos como os agentes que são, pois a mediação, como troca, permite aos envolvidos que expressem seus sonhos, vontades, desejos, satisfações e frustrações relacionados à sua realidade. Aqui, percebe-se a mediação como potência para uma educação patrimonial que seja crítica, pois, ao possibilitar que o sujeito se expresse, permite também que ele reflita sobre sua existência não só como ser humano, mas como sujeito que constitui (e é constituído por) o espaço que o rodeia.
Demonstrada a importância da mediação para a educação patrimonial, voltaremos a discutir alguns pilares conceituais contemporâneos que subsidiam a execução das ações educativas ligadas ao patrimônio. Icher (2008 apudFONSECA, 2012) enuncia que o trabalho com o patrimônio não poder ser uma mera acumulação de conhecimentos, mas deve ajudar a desenvolver uma educação dos sentidos e a auxiliar na estruturação do tempo e do espaço. Segundo o autor, isso pode ser feito por meio da descoberta do outro e do despertar da curiosidade.
É possível observar que, no início dos anos 2000, com o lançamento do guia supracitado, o foco da educação patrimonial estava nos objetos culturais, e não nos sujeitos. A partir da literatura mais recente, o cerne do desenvolvimento dos processos recai sobre o sujeito, pois está nele a capacidade de dar significado às referências culturais.
Compreende-se hoje que não há efetividade na mera instrução e explicação sobre os conceitos-base relacionados ao patrimônio, como “memória”, “história”, “identidade”, “cultura”, etc. Importa muito partir das vivências, que os sujeitos compreendam o significado desses conceitos em seus cotidianos; caso contrário, qualquer ação será vazia. Ao atuar dessa forma, permitimos aos interlocutores que se coloquem como sujeitos no centro de sua cultura (SCIFONI, 2017).
Concebemos que a memória é uma construção discursiva acerca da realidade. Ela pode ser apagada, silenciada ou manipulada com base em discursos que prevalecem na sociedade, tornando-se um elemento de poder com capacidade de exclusão de culturas não hegemônicas. Destacamos agora um pouco da importância da discussão da memória quando falamos de patrimônio e educação patrimonial.
Para entender a relação dos traçados urbanos com a memória, é necessário perpassar pelo simbolismo que está contido nos espaços. O simbolismo da cidade é dado por uma mescla entre sua materialidade e imaterialidade, formando, assim, um imaginário que também é parte da identidade de determinado grupo.
É assim que a memória produz seus efeitos na cidade: direcionando uma determinada historicidade para os sentidos e para os sujeitos. O arranjo e o funcionamento da estrutura urbana - sua arquitetura, seus escombros, trajetos, trejeitos ao longo do tempo - dispõem no espaço pontos de acesso a diferentes modos de contar a cidade. A memória é, pois, entendida como disponibilização de sentidos, como um arquivo passível de esquecimento, como uma frouxa ancoragem para a filiação do acontecido, deixando ainda a acontecer. (FEDATTO, 2009, p. 5).
A memória é uma das funções psíquicas de extrema relevância para a constituição do sujeito e também do patrimônio, pois é a partir dela que podemos dar sentido às referências culturais que nos rodeiam (MIRANDA; ALMEIDA, 2017).
Além do conceito de memória, acreditamos que o conceito (e as práticas) de cidade educadora seja relevante para pensar a educação patrimonial. Essa noção pressupõe um maior engajamento entre poder público e sujeitos, fator que é extremamente vital para pensarmos a relação dos sujeitos com o patrimônio cultural.
A cidade é o espaço do coletivo; é onde a vida se ordena em seu sentido gregário; onde é possível enxergar o outro, com suas nuances e diferenças. É no espaço público que nos compreendemos e nos deparamos com a alteridade3 e com a necessidade de convivência. É nele e na vida cotidiana que temos a dimensão real da presença do outro e das diferenças. É isto o que o espaço público pode nos proporcionar: uma educação para a vida no coletivo (SEVERO; MOURÃO, 2018). Contudo, a cidade também se configura como o lugar da desigualdade, onde hierarquias são impostas e o acesso aos serviços, equipamentos e até mesmo a lugares, por vezes, fica restrito a uma parcela da população.
5 Considerações finais: avanços e desafios no estado do conhecimento das pesquisas
A partir do estado do conhecimento, pudemos compreender melhor quais concepções as pesquisas acadêmicas têm utilizado para tratar a educação relacionada ao patrimônio cultural. Acreditamos que a diferença quantitativa entre os trabalhos encontrados ao longo dos anos, sobretudo com o salto das pesquisas em 2014, está intimamente relacionada à abertura de novos cursos de graduação (pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni, programa de expansão das universidades públicas brasileiras iniciado em 2003) e de pós-graduação que abrangem a educação e o patrimônio.
O lançamento do Guia Básico de Educação Patrimonial demarca, no Brasil, a abertura de um investimento por parte do Iphan na área da Educação. Ele foi importante para o início da consolidação de políticas voltadas à educação patrimonial, mas essa publicação apresenta a educação patrimonial como uma metodologia de ação um tanto quanto inflexível e contestável nos dias correntes. As pesquisas encontradas evidenciam, contudo, que ainda é recorrente utilizar tal publicação como principal referência para a constituição da noção de educação patrimonial no Brasil.
Conceitos, teorias e práticas são feitos por pessoas localizadas em um tempo-espaço histórico. Esse guia, portanto, é fruto do esforço de indivíduos que estavam pensando o patrimônio há cerca de 30 anos, e o que observamos hoje é que essa publicação não mais corresponde aos ideais atuais. É evidente o descompasso entre teoria e prática quando o assunto é educação patrimonial. Precisamos nos atualizar e produzir não só novos conceitos, mas também novos métodos, por isso acreditamos na importância de práticas que se ancorem em novos pensamentos.
As ações da educação relacionadas ao patrimônio colocadas em prática no contexto brasileiro no início dos anos 2000 contribuíram para reforçar a importância dos monumentos como única forma de existência do patrimônio brasileiro. Além disso, corroboraram uma hierarquia imposta aos nossos valores culturais, não levando em consideração os sujeitos que têm ligação direta com o patrimônio em questão, entendimento que virá à tona somente a partir dos anos 2000 quando o conceito de patrimônio cultural se alarga. Assim sendo, o conceito tem validade naquele momento de sua produção, fator que não o desqualifica hoje, ainda que tenhamos uma outra perspectiva do que seja o patrimônio.
Esta pesquisa mostrou que a nomenclatura “educação patrimonial” nos trabalhos encontrados ainda funciona como uma espécie de sinônimo para o Guia de Educação Patrimonial. Também evidenciou como os processos educativos que se vinculam ao patrimônio cultural podem partir de premissas diferentes, já que, como nos disse Scifoni (2017), o arcabouço teórico ainda é incipiente para pensar a educação patrimonial. Apontamos ainda a necessidade de um aprofundamento teórico e prático para que possamos repensar as práticas educativas vinculadas ao patrimônio cultural e sobretudo alegamos a importância de se levar em conta a cidade, o sujeito e o espaço público como categorias nesse processo.