1 Introdução
Quando diante de ti se abrirem muitos caminhos e não souberes qual percorrer, não escolhas um qualquer aleatoriamente: senta e aguarda. Respira com a confiada profundidade com que respiraste no dia em que viestes ao mundo, sem permitir que nada te distraia: aguarda e aguarda mais ainda. Fica quieta, em silêncio, e escuta o teu coração. E, quando ele falar contigo, levanta-te e vai aonde ele te levar [...]. (TAMARO, 2015, p. 152).
As palavras de Tamaro (2015), na epígrafe, foram escolhidas como metáfora para justificar, no título, nosso apelo à conexão pelo coração. Afinal, por que razão não admitir que o ritmo de seu pulsar nos move e nos comove? Por que não admitir também, desde já, a importância de, em educação, pensar formas de exercitar, nutrir e acarinhar o que ele nos inspira e o que dele emana na direção de (co)mover-se no mundo da vida? Trataremos aqui de narrativas, oriundas de tempos de pandemia, nas quais professoras falam sobre suas ações cotidianas e o que foi o pulsar do coração em caminhos percorridos dentro de uma escola da primeira infância.
Durante a pandemia da Covid-19, foram notórias as dificuldades encontradas pelas professoras da Educação Infantil para realizar atividades escolares relacionadas ao letramento. Em meio a grandes tensões e expectativas diante de inevitáveis prejuízos pedagógicos causados pelo distanciamento social, desenvolveu-se uma prática contrária à aprendizagem da criança, que, tradicionalmente, estrutura-se no contato com experiências concretas, interativas e lúdicas. Diante desse contexto, as atividades escolares ganharam novos formatos e permitiram viver outras experiências.
O artigo apresenta discussão sobre práticas de leitura e escrita, durante a pandemia, com base em resultados de pesquisas que integram projetos mais amplos financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)1. O estudo se situa na perspectiva da pesquisa (auto)biográfica em educação, que adota como pressuposto que, ao narrar a experiência vivida, o adulto, o jovem, a criança “[...] dotam-se da possibilidade de se desdobrar como espectador e como personagem do espetáculo narrado; como objeto de reflexão e como ser reflexivo” (PASSEGGI, 2016, p. 82). Transformar o pensamento em ação e a ação em exercício reflexivo são maneiras de tornar visível o que pensamos da realidade em que nos encontramos, porque é esse pensar que, de certa forma, irá definir nossas próximas ações e propostas educativas. Para Josso (2007, p. 431):
As práticas de reflexão sobre as experiências vividas se apresentam como laboratórios de compreensão de nossa aprendizagem do ofício de viver num mundo móvel, que se faz e se refaz sem cessar e que põe em xeque a crença de uma identidade adquirida, em benefício de uma existencialidade sempre em obra, sempre em construção.
O trabalho adota, portanto, a perspectiva epistemológica da pesquisa (auto)biográfica em educação e tem como objetivos: problematizar o que emerge das narrativas das professoras sobre suas práticas e interações com as crianças e evidenciar processos de coformação e auto(trans)formação docente mediante a reflexão coletiva.
2 Metodologia da pesquisa
As narrativas que constituem o corpus da pesquisa foram produzidas, coletivamente, no grupo reflexivo de mediação biográfica, concebido por Passeggi (2011) como espaço privilegiado para a constituição de fontes biográficas e como dispositivo de pesquisa-formação. Para a autora, trata-se de uma prática dialógica e horizontal entre professoras e formadoras que compartilham suas reflexões sobre as experiências vividas num trabalho coletivo e público. Nele se desenvolvem aprendizagens pela autorreflexão, ao voltar-se, criticamente, para si, e aprendizagens pela heterorreflexão, despertada pela experiência narrada pelo outro.
Os encontros no grupo se realizaram uma vez por semana, durante um trimestre letivo, de setembro a dezembro de 2021, e tinham a duração de 80 minutos. Para a realização dos encontros e a construção dos dados empíricos, foram utilizados os serviços de comunicação por vídeo, pela plataforma Google Meet, que permitiram gravar o que se dizia sobre as experiências vividas no ciclo pandêmico, pré-pandemia, pandemia, pós-pandemia, com o retorno às aulas. O corpus está, portanto, constituído pelas discussões sobre o que contam dez professoras da pré-escola que participaram da pesquisa e que, durante os encontros, discutiam sobre práticas de letramento em tempos de pandemia.
3 Discussão sobre os resultados: “cardiograma” da escola
No ano de 2020, o mundo foi surpreendido pela pandemia causada pelo novo coronavírus - Covid-19. Numa cidade do interior do Vale do Paraíba Paulista, as escolas tiveram suas aulas suspensas no dia 23 de março de 2020. Diante de medidas sanitárias exigidas pelas necessidades de distanciamento, a Secretaria de Educação, seguindo as determinações do estado de São Paulo, definiu que as aulas passariam para o formato remoto. Além das atividades oferecidas através dos aplicativos de internet, as crianças dispunham ainda de um material impresso, cuja finalidade foi garantir, para aqueles que estavam sem acesso à internet, o recebimento das atividades planejadas por uma equipe técnica da Secretaria de Educação.
O encerramento momentâneo das aulas presenciais afetou 90% dos estudantes ao redor do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO, 2021). Esse fechamento acarretou mais de 100 milhões de crianças abaixo do nível mínimo de proficiência em leitura, principalmente em comunidades vulneráveis e desfavorecidas (UNESCO, 2021).
O desejo de problematizar a temática da leitura e escrita foi motivado pelo propósito de refletir com o grupo de professoras da pré-escola sobre aspectos que envolveram tal momento da aprendizagem, o qual precisou ocorrer em um formato diferente do convencional. Acerca dessa etapa de aquisição de leitura e escrita, alguns documentos e pesquisas importantes, como o caso das análises apresentadas pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI, 2020, p. 30), revelaram que as crianças da primeira infância (0 a 6 anos), “[...] aprendem por meio de experiências concretas, interativas e lúdicas”.
A Fundação Carlos Chagas (FCC, 2020), em pesquisa intitulada Educação escolar em tempos de pandemia, cujo intuito era conhecer como estava a aprendizagem dos alunos da Educação Básica na visão dos professores, identificou percepções distintas. Para 49,7% dos professores, o ensino remoto diminuiu a aprendizagem dos estudantes, enquanto 8,7% informaram que a aprendizagem dos discentes aumentou no sistema remoto com ajuda das tecnologias; 25,7% não souberam informar; e 15,9% disseram que não houve mudanças.
Outro entrave preocupante foi o documento interno de sondagem avaliativa realizado pela Secretaria Municipal de Educação do município no qual a pesquisa foi realizada (SEED, 2021), proposto no mês de fevereiro de 2021. Esse documento revelou que, das 2.975 crianças que foram matriculadas no 1º ano do Ensino Fundamental, ou seja, recém-chegadas da pré-escola, apenas 11 crianças estavam alfabetizadas. Esses números contrapõem-se ao que está definido pelo Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005/2014, que propõe em sua meta 5.1:
[...] estruturar os processos pedagógicos de alfabetização, nos anos iniciais do ensino fundamental, articulando-os com as estratégias desenvolvidas na pré-escola, com qualificação e valorização dos(as) professores(as) alfabetizadores e com apoio pedagógico específico, a fim de garantir a alfabetização plena de todas as crianças. (BRASIL, 2014, p. 28).
Podemos considerar como fracasso das crianças o fato de não poderem participar da cultura letrada? É inegável que nos encontramos diante de um cenário de crise. Para Arendt (1961, p. 174), a crise só se torna desastrosa quando lhe pretendemos responder com preconceitos, isto é, com ideias feitas, preconcebidas: “Atitude que não apenas agudiza a crise como faz perder a experiência da realidade e a oportunidade de reflexão que a crise proporciona”.
Diante das situações apresentadas, em um momento tão grave atravessado pela sociedade, pomo-nos a indagar: quais experiências narram as professoras da pré-escola e quais reflexões trazem sobre suas práticas de leitura e escrita em meio à pandemia?
3.1 O ritmo da aprendizagem escolar na infância
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) - Resolução CNE/CEB nº 5/2009 -, em seu artigo 4º, definem a criança como:
[...] sujeito histórico e de direitos, que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2009, p. 97).
Nesse cenário legislativo, as instituições escolares precisam, a partir desses direitos, pensar numa relação de partilha e de formação entre família e escola, pois a contemporaneidade pede uma nova concepção de criança. Já não cabem mais espaços escolares como um edifício sem alma, isto é, uma escola repleta apenas de cadeiras, mesas e quadros, uma escola distante do cotidiano das crianças, pois, “[...] como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura racionalista” (FREIRE, 2010, p. 145).
As escolas de Educação Infantil, na atualidade, assumem, portanto, o compromisso firmado em possibilitar que as crianças possam ampliar suas relações interpessoais e possam construir a capacidade de viver numa sociedade plural. Em outras palavras, apregoa-se que aprendam a conviver com os outros, a conhecer-se, a explorar o mundo, a expressar seus sentimentos e pensamentos, a participar cotidianamente da sociedade (BRASIL, 2017).
A escrita, objeto do conhecimento criado pela humanidade, exerce grande influência sobre a cultura infantil e, de certa forma, é também influenciada por ela. Desde que nascem, as meninas e meninos estão imersos em uma cultura e, ao longo do seu processo de desenvolvimento, interagem nesse mundo e tentam interpretá-lo. A criança constrói sentidos escutando uma história ou elaborando narrativas através das imagens de um livro, sem a necessidade de já ter construído antes relações entre fonemas e grafemas. A vontade em compreender o sistema de escrita e se apropriar dele é resultante da interação que se faz com a cultura escrita à qual pertence, mesmo antes de entrar na escola. Nessa relação, a criança vai elaborando seu conceito de língua escrita, entendendo as funções do ler e escrever e distinguindo seus gêneros e portadores (SOARES, 2016).
3.2 Diagnóstico: uma questão de método
Bruner (1997, p. 46) afirma que “[...] uma narrativa é composta por uma sequência singular de eventos, estados mentais, ocorrências, envolvendo seres humanos como personagens ou autores”. Dessa forma, a narrativa pode ser compreendida como a possibilidade de o narrador não apenas se ver na situação que viveu, mas também (re)construir essa versão no processo narrativo. Bruner (1997) também esclarece que cada narrativa se organiza em um contexto ou numa situação específica e sua forma vai depender tanto das subjetividades daquele que narra, dos seus pares, como da cultura em que estão inseridos. Acerca disso, assevera que:
[...] ao contrário das construções geradas por procedimentos lógicos e científicos que podem ser destruídas por causa de falsificações, construções narrativas só podem alcançar ‘verossimilhança’. Assim, narrativas são uma versão de realidade cuja aceitabilidade é governada apenas por convenção e por ‘necessidade narrativa’, e não por verificação empírica e precisão lógica, e, ironicamente, nós não temos nenhuma obrigação de chamar as histórias de verdadeiras ou falsas. (BRUNER, 1991, p. 4).
Segundo Bruner (1991, p. 16), a narrativa organiza a estrutura da experiência humana, dando-nos a possibilidade de compreender determinadas situações que, “[...] ao se tornarem interpretáveis, tornam-se suportáveis”.
O princípio ético orientador das pesquisas com histórias de vida é que as narrativas da experiência, longe de quererem comunicar o que já se sabe, constituem-se verdadeiros processos de descoberta da reinvenção de si. “[...] É nesse sentido que se pode conceber o uso das histórias de vida, ou de narrativas autobiográficas, como processos de formação docente” (PASSEGGI, 2017, p. 14).
Ao propor o grupo reflexivo, fomenta-se o compartilhamento de narrativas de experiência de professores da pré-escola, num trabalho coletivo e público, feito com os outros e diante de outros. Dessa forma, a escrita e o pensamento parecem inevitáveis, além do comentário, do contágio e do estímulo mútuo. Dominicé (2000) apresenta essa perspectiva como uma oportunidade de, através das histórias de vida, estudar como os indivíduos dão sentido às suas experiências, além de ser método de investigação.
3.3 Marca-passos: na urgência, o que propor?
Os marca-passos são aparelhos elétricos capazes de detectar os batimentos cardíacos do paciente, além de emitir pequenas descargas que fazem o coração bater quando faltam os impulsos. Fomos pegos de surpresa pela pandemia. Nesse sentido, o município se organizou para que as crianças recebessem mensalmente um material impresso, contendo propostas e atividades as quais deveriam ser realizadas pelas crianças em suas casas, com a presença de um familiar. Além desse material, os alunos eram amparados pelas orientações fornecidas pelos professores através de mensagens pelo celular.
Ocorre que, quando as professoras iam verificar as respostas ou postagens das propostas solicitadas através desses vídeos, percebiam que poucas crianças haviam interagido e que, entre as que tinham respondido, havia respostas que não eram dadas ou não eram realizadas pelas crianças. O apontamento da professora Ana revela exatamente essa situação: “Eu descobri que muita coisa era alguém que fazia por eles, o pai, a mãe, o irmão mais velho, alguém que estava fazendo, mas não eram eles. Essa criança, eu sabia, nem conseguia escrever o nome”. Essa professora manifesta inquietude e expõe sua certeza: “Alguém que estava fazendo, mas não eram eles”. Seu semblante denunciava a ânsia de que era preciso fazer alguma coisa. Realmente, esses relatos mostram que não estávamos preparados para tal situação. Se de um lado tínhamos crianças em casa respeitando o isolamento (cuidando da saúde), do outro estavam as professoras e uma realidade social e econômica difícil: “[...] os educadores e educadoras populares têm neles um ponto de partida para a sua ação. Insista-se, um ponto de partida e não de chegada” (FREIRE, 2001, p. 16).
As famílias cumpriram um papel essencial neste momento de distanciamento, mas esperavam parceria e, segundo professora Ana, foi muito importante quando ela se colocou no lugar das famílias:
Foi encaminhada no grupo uma pesquisa para que o aluno procurasse em revistas palavras que iniciavam com a letra do seu nome, aí eu pedi que as mães colassem numa folha, tirassem foto e enviassem. Só que teve aluno que fez assim: eles não recortaram; eles procuraram objetos, alimentos, outras coisas; foram tirando fotos ou vídeos e me mandaram.
Muitas vezes, com a correria do dia a dia ou mesmo na carência de certos materiais em casa, as propostas não eram realizadas a contento. Nessa e em outras situações, as famílias precisaram improvisar e, para a professora, isso era válido, afinal o objetivo da proposta era que as crianças relacionassem a letra inicial do seu nome com os objetos que tinham em casa. Tais narrativas encontram apoio nas palavras de Freire (2010, p. 102):
Enquanto na prática ‘bancária’ da educação, antidialógica por essência, por isso não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores.
Dessa forma, ao refletir, a professora não cai na armadilha do ser bancário nem depositário de conhecimento, ao contrário disso, torna-se provocadora, que, enquanto ensina, aprende e, enquanto aprende, ensina. Paulo Freire vê a figura do educador como aquele que tem seu ponto de partida na ação e, no período pandêmico, esse ponto inicial de ação foi a ação de falar, falar para insistir, defender, lamentar, inquietar-se, buscar solução para o que se vivia com a escola dentro de casa e longe da escola.
Para as professoras participantes do nosso estudo, a escola tem potencial transformador, pois é o local dos encontros, da diversidade, de onde as relações se fazem através da partilha e das opiniões opostas. O ambiente escolar propicia a fala e a ação.
É, portanto, pela narração e na narração, produzida pelo humano - crianças, jovens, adultos, seniores - que ele se concebe, se percebe em auto (trans)formação, mediante movimentos retrospectivos, inspectivos, prospectivos e interativos que ocorrem durante a narração. (PASSEGGI, 2021, p. 106).
A professora Julie disse:
Eu fiz a proposta sobre a lenda do boto-cor-de-rosa. Mandei o áudio escolhido sobre a lenda [...]; depois de pesquisar, fui conversar e trocar mensagens. Eles teriam que montar as letras recortadas formando a palavra B.O.T.O. As letras eu pedi que buscassem na secretaria da escola.
Cabe salientar que o distanciamento fez com que as professoras pensassem nas mais diversas estratégias sobre a leitura e escrita.
Ao narrar, elas compartilham seus esforços para motivar a aprendizagem, gravar um áudio, pesquisar uma história, buscar uma que tivesse uma relação com o conteúdo a ser aprendido de modo a animar a criança em suas tarefas longe da escola. Essa busca incessante é assim traduzida por Larrosa e Skliar (1999, p. 196): “[...] toda vontade de saber, de poder e de controle para se aproximar da presença enigmática da infância e se deixar transformar pela verdade que cada nascimento traz consigo”.
Para a professora Vitória, a pandemia lhe mostrou a importância da ludicidade para as crianças:
Hoje eu percebo que o brincar é muito importante mesmo. Antes [da pandemia] eu dava muitas atividades, queria as crianças escrevendo; com a pandemia, eu vi a importância da interação, do brincar. Eu dava brincadeiras, mas deixava sempre por último, mas hoje [pós-pandemia], não! Às vezes, eu já começo com brincadeiras, faço jogos, antes de atividades de aprofundamento.
Suas palavras mostram bem uma mudança de atitude diante da importância da brincadeira na infância, ou seja, o entendimento de que ensinar a escrita, nos anos pré-escolares, impõe, necessariamente, uma segunda demanda: a escrita deve ser relevante para a vida das crianças, assim como é o brincar. Não é sem razão que Vygotsky (1984, p. 133) “[...] defende que as crianças devem sentir a necessidade do ler e do escrever no seu brinquedo”.
O uso de tecnologias digitais, por sua vez, exigiu das professoras a aprendizagem de habilidades que elas reconhecem como desconhecidas: “Gente, eu não sabia fazer nada no computador! Não sabia mexer em nada. Fiquei assim apavorada! Meu Deus do céu! Mas aí eu comecei a gravar os vídeos e teve muita gente que me ajudou. Hoje estou indo bem”, disse a professora Paula. Vemos que atos de fala relativos a questionamentos agitam o pensamento e saberes estabelecidos, valores, crenças, atitudes, diante do que se considera trivial, sem grade importância para as atividades docentes, o que permite focar em narrativas previsíveis. Uma boa discussão movimenta essas crenças e valores.
A experiência, a possibilidade de que algo nossa aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2014, p. 25).
O que define a pesquisa (auto)biográfica como área de investigação científica é a focalização na compreensão dos modos como o humano reconhece a si mesmo mediante sua disposição de reflexão narrativa sobre o passado, o presente e o devir. Como o sujeito dá sentido ao que o cerca e ao mundo do qual participa. Trata-se de uma forma própria, singular, de entender e estruturar a experiência vivida, mas também de um modo universal, plural, no sentido em que a práxis humana, como afirma Ferrarotti (2010, p. 46): “[...] se revela, até nos seus aspectos menos generalizáveis, como a síntese vertical de uma história social”. Ademais, a forma como cada pessoa conta sua história reverbera sobre sua consciência e faz parte da constituição de sua subjetividade, por isso entendemos que o social está implicado na subjetividade do indivíduo. É graças à subjetividade de cada ser que identificamos e compreendemos o que é social no que vivemos e que nos habita (PASSEGGI, 2011).
A professora Aparecida comentou no grupo o seguinte: “Eu fui alfabetizada por meio da cartilha do ba-be-bi-bo-bu, tudo isso. E aí depois as teorias vão mudando, você vai se atualizando, só que a gente acaba agindo por ensaio e erro”. Notamos como a narrativa coletivamente partilhada nos configura, nos leva a atribuir sentidos ao que vivemos e nos faz sentir, perceber o mundo no singular e no plural ao mesmo tempo, todavia há que se entender a importância de ter a experiência inalienável de nos apropriarmos pela palavra, oral, escrita, gestual, da nossa relação com o mundo, relação indissociável que se opera na e pela relação com as linguagens.
Nesse sentido, narrar não é meramente comunicar, expressar, transmitir algo. O ato de enunciar anuncia a forma como vamos constituindo nossa própria humanidade. Trata-se, portanto, de um saber mais complexo. Reduzi-lo a uma tecnologia humana, por vezes, para comunicar/expressar, apaga, na verdade, que as palavras nos fazem, pois o ato de linguagem, ao nos permitir representar simbolicamente o mundo, torna-nos humanos. A linguagem passa a ocupar, dessa forma, um lugar central, como ação humana, na construção da realidade e nos jogos de poder nas práticas sociais. A esse respeito, Passeggi (2011, p. 155) nos diz que: “A matéria-prima desse novo paradigma na educação é a fala e a escrita das professoras”. A professora Melissa mostrou a forma como ela vai tomando consciência de suas atitudes pedagógicas:
É, então, quando eu estava no período remoto, né, eu fazia minhas videoaulas, utilizando os personagens do Sítio do Picapau. Aí, nessa aula, a Narizinho mostra os personagens e depois ela traz uma situação-problema, que é o lixo. Os amigos de Narizinho estavam encontrando lixo no rio, aí coloquei o vídeo da história dos animais aquáticos que tinha essa problemática do lixo, tinha um animalzinho lá que comeu o lixo e ficou muito doente, então todos os animais se reuniram para ajudar aquele animalzinho que comeu o lixo e que estava doente.
A prática descrita pela professora com o intuito de fazer um trabalho tratando da importância da separação do lixo orgânico e inorgânico permitiu-lhe observar nos vídeos e fotos que as crianças lhe enviavam a forma como elas estavam se alimentando. No lixo, havia muitas embalagens de bolachas, macarrão instantâneo, sucos artificiais, comidas prontas, de baixo preço e teor nutricional. As respostas das crianças apresentaram-se como uma entrada inesperada para repensar com elas a sua própria alimentação, o que responde aos propósitos da escola na garantia do direito da criança à saúde, à vida, ao bem-estar, que fazem parte da educação escolar.
A discussão desencadeada no grupo reflexivo, a partir da experiência narrada pela professora Melissa, levou-nos a conceber propostas sobre a alimentação das crianças, com base no que o grupo vinha observando, e se apresentou como base para utilizar a alimentação como temática a ser desenvolvida pelas crianças na leitura e na escrita. Tal iniciativa, criada e desenvolvida pela prática reflexiva com base na situação de vulnerabilidade das crianças pelas quais se sentiam responsáveis, permite-nos tecer aproximações com o trabalho pioneiro de Paulo Freire (2019), que em 1960 chamou a atenção do mundo ao alfabetizar 300 pessoas adultas, em 40 horas/aula, em Angicos, no Rio Grande do Norte. Para esse educador, que se voltou para a prática leitora com adultos, privados do direito à educação, a ideia fundante é partir de temáticas de interesse do grupo, formado por pessoas do campo. Ler tornava-se, assim, para esses adultos, um modo outro de conceber o mundo em que viviam.
A perspectiva adotada pelo grupo, consciente ou inconscientemente, retoma as lições de Paulo Freire, que, afinal, fazem parte da memória coletiva de educadores e educadoras brasileiros/as. Vê-se, com isso, que as professoras, num trabalho conjunto, constroem conhecimentos, saberes, e não apenas utilizam o conhecimento gerado na formação docente, “depositado” em seus modos de conhecer. Essa concepção opera a passagem da concepção tecnicista, aplicacionista, para um paradigma reflexivo e acional, que considera os/as professores/as como pessoas capazes de participarem ativamente da construção de sua profissão. Como afirma Nias, citado por Nóvoa (1995, p. 25), “O professor é a pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor”.
A respeito ainda dessa prática alfabetizadora vinculada aos alimentos, a professora Yasmim disse: “Então, eu acho muito legal a proposta não só de incentivo à alimentação, mas fazemos uma proposta de letramento que eles vão aprendendo no dia a dia; eles conhecem sobre alimentos; eles conhecem sobre a fruta da época; eles trazem curiosidades”.
É interessante perceber que, por mais simples que pudessem parecer as ações das professoras, elas estavam impregnadas de afetividade. A afetividade se constitui como uma das habilidades que as profissionais de Educação Infantil precisam utilizar na elaboração das propostas pedagógicas, no planejamento das atividades e na mediação das relações entre professora e criança, entre criança e criança e entre crianças e objetos de conhecimento. Dessa forma, defendemos que a dimensão afetiva é inerente às funções primordiais das escolas: cuidar e educar, pois “[...] a afetividade depende, para evoluir de conquistas realizadas no plano da inteligência, e vice-versa” (DANTAS, 1992, p. 90).
Entendemos que a formação se faz com os pares e que as professoras participantes do estudo se formaram em colaboração, apoiadas em seus saberes tácitos. Os saberes construídos a partir das narrativas da experiência, mais a reinvenção de si, individual e coletiva, impuseram-se como um dos benefícios potenciais de um trabalho hermenêutico criativo, ou seja, de uma práxis biográfica formadora e, por isso mesmo, transformadora. É isso que notamos no relato da professora Vitória:
E aí cada uma falou no vídeo de qual a comida que eles mais gostavam e por quê. Depois eu trouxe a letra da música para a gente realizar a leitura, passando o dedinho pela música, identificando as palavrinhas, os nomes dos alimentos que estavam ali. E essa música também rendeu várias outras atividades; modelagem das frutas com massinha; eles pesquisaram sobre os rótulos. Então, foi uma série de atividades, sequência de atividades que a gente realizou depois.
A compreensão de um professor artesão é a daquele que tece as práticas com as crianças em uma relação de cooperação e dialogia. Trata-se de uma perspectiva interessante para pensarmos em possibilidades didáticas na Educação Infantil (GOBBATO; BARBOSA, 2019).
O que parece certo dizer é que, olhando os movimentos educacionais em crise, decorrente das relações estreitas entre pandemia e o baixo índice de alfabetização, percebemos que se evidencia de forma inegável a ação criativa das professoras que participaram da pesquisa, sem dúvida extensiva a outros contextos, que, em um momento de crise mundial, demonstram como entre humanos a retrointeração entre reflexão-ação-reflexão, como sugere o pensamento freireano, é mais importante do que metodologias e/ou estratégias de ensino alijadas do contexto cultural em que se inserem as crianças.
É inegável que o ciclo pandêmico agudizou a fragilidade das relações humanas. Se não olharmos para o abismo que se abriu e se aprofundou neste ciclo, dificilmente sairemos dele. Consideramos que é chegada a hora de parar para pensar as relações escolares e pessoais, trazendo o que está dentro de nós, em seu mais elevado sentido de ética, de esperança, de responsabilidade, para que possamos trilhar outros caminhos, caminhos da vida, da empatia, da sobrevivência humana. Fazemos nossas as palavras de Arendt (1961, p. 9):
A competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se no seu papel de responsável pelo mundo. Face à criança, é um pouco como se ele fosse um representante dos habitantes adultos do mundo que lhe apontaria as coisas dizendo: ‘Eis aqui o nosso mundo!’.
Em nossas pesquisas, pudemos observar, com outra mirada, os modos como as professoras trabalham entre si e com os outros, como seres humanos narradores de suas próprias histórias, nas quais ressoam capacidades adquiridas em suas experiências pessoais e de trabalho conjunto. Investigar com base em suas experiências narradas e discutidas no grupo, em suas relações com o outro, permite-nos confirmar que essas são formas de dar sentido ao que fazem em situações escolares, avaliar e propor ações. Essa compreensão dos significados atribuídos pelas professoras e pelas crianças às situações cotidianas no ciclo pandêmico parte do entendimento da aprendizagem contextualizada, em que os saberes são construídos pelos atores em função de seus relacionamentos e subjetividades. De acordo com os estudos de Passeggi (2011, p. 146):
A professora, ao narrar um fato de sua história, ressignifica, um motivo muito importante para nós, pesquisadores da educação, pois nos direciona a buscar as reações exististes entre o que o sujeito viveu e o que ele narrou, uma ação impregnada de reflexão, linguagem, reflexividade autobiográfica e consciência histórica.
Essa percepção valorada acerca da reflexão docente pôde ser vista nas palavras da professora Lavínia, quando nos contou o seguinte:
Eu gosto de fazer isso, fazer as crianças aprender a escrever, aprender a ler. Lógico que eu vou bem devagar; não é assim: ‘Nossa, tô alfabético!’, não, mas eu gosto de dar essas cutucadinhas; eu gosto que a criança aprenda. Já aprendeu a sílaba. Ah! Eu adoro!
As análises mostram até aqui que as aprendizagens se dão de forma não linear e com todas as pessoas envolvidas em processos de aprendizagem: alunos, professores, familiares e toda comunidade escolar. Segundo Nóvoa (1995, p. 25), “[...] a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal”. Por essa razão, é tão importante investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência, tal como afirmou uma das docentes que participaram do presente estudo:
Aquelas crianças que não sabiam a letrinha do próprio nome e agora, além de saber, elas rimam com o nome ou outras palavras que escrevem com a letrinha do nome. Então, eles já vêm pensando as palavras para falar para mim: ‘Ah, é P de panela, P de pato e P de [...]’. (PROFESSORA CONCEIÇÃO).
Nesse sentido, estamos de acordo com Freire (2014, p. 37), quando afirma que: “Todo educador cria instrumentos de trabalho que alicerçam a apropriação de sua prática”. O reconhecimento da não linearidade da aprendizagem, entendida como um processo individual, também está no relato da professora Melissa, quando afirma: “Tem [crianças] que já estão entendendo as sílabas. E eu falei: ‘Ah! Que felicidade! Já escreve o nome. Ah! Sem crachá!’. Eu estou gostando! Os que não participavam hoje estão participando”.
Ao relacionarmos todas as propostas realizadas pelas professoras e narradas por elas, estamos de acordo com Nóvoa e Finger (2009, p. 38), quando defendem que “[...] ensinamos aquilo que somos e que, naquilo que somos, se encontra muito daquilo que ensinamos. Que importa, por isso, que as professoras se preparem para um trabalho sobre si próprias, para um trabalho de autorreflexão e de autoanálise”. Dessa maneira, é imprescindível estimular práticas autoformativas, ou seja, momentos que permitam a construção de narrativas sobre suas próprias histórias de vida pessoal e profissional. Defendemos isso por entendermos que o saber dos professores e sobre como eles ensinam são trazidos de sua história de vida. Toda a sua bagagem profissional, crenças, representações e até suas certezas foram construídas a partir de suas histórias e sua prática cotidiana.
4 Considerações finais
A Educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, [...] também, [...] se amamos nossas crianças o bastante para não as expulsar de nosso mundo [...], preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 1992, p. 247).
Percebemos que a única saída possível para esse período de pandemia, ou para qualquer outra crise que possamos atravessar, é o investimento na construção de redes de trabalho de apoio, entre o grupo de professores, que se tornem um suporte à prática de formação, baseadas na partilha e no diálogo horizontal entre profissionais. Reiteramos que professores e professoras possuem saberes que vão além dos pedagógicos e que nem sempre são valorados por doutrinas pedagógicas que tendem a ocultar esses saberes, senão a silenciar professores e professoras. Saberes esses que têm “valor de conhecimento”, como defende Ferrarotti (2014, p. 32). Nesse sentido, defendemos com Dilthey (2010) a dialética entre a vida, a experiência vivida e a ciência, como forma de construir caminhos possíveis e praticáveis rumo a uma pedagogia da vida na escola e de saberes encarnados.