Introdução
Em um contexto repleto de línguas, artefatos, raças, religiões, dialetos, costumes, crenças distintas, o mundo está cada vez mais global e não se pode negar a existência da heterogeneidade cultural. O Brasil, por si só, já traz um arcabouço cultural em sua essência se tornando um espaço de experiências ímpares trazidas em seu extenso campo geográfico. Essa complexidade vem acompanhada de questões que brotam cotidianamente nesse contexto. Dentro dessa visão, trabalha-se com a interculturalidade, sendo essa a interação (considerada de diferentes formas) entre as culturas.
Vários questionamentos trazem à tona interpretações e entendimentos de estudos que se desenvolvem a fim de transportar algumas respostas às questões que nascem no olhar sobre a temática intercultural. As instituições educacionais, dentre elas, as universidades, são espaços constituídos de finalidades cujo foco é a formação das pessoas. Essas finalidades constituem-se em competências que podem ser desenvolvidas a partir de um emaranhado conceitual e prático que traz em seu enredo aspectos interculturais, principalmente no contexto educacional que é uma de suas fontes de desenvolvimento. “A educação não só é um direito humano senão também um direito dos povos” ( CRES, 2018 , p. 8).
Diante disso, a pesquisa visou a propor uma interlocução conceitual sobre competências interculturais (CI) na educação superior (ES), a partir da revisão da literatura. Para atender esse objetivo: a) analisamos os conceitos de competências; b) discutimos os conceitos de interculturalidade e; c) realizamos uma reflexão acerca da interlocução entre os conceitos na perspectiva da educação superior, apresentando uma releitura do construto competências interculturais.
Pode-se considerar que a temática CI na educação superior é um aspecto pontual quando se trata de delimitação de um tema, sendo esse cada vez mais importante a partir das mutações inegáveis que vêm ocorrendo no contexto da ES brasileira, tais como: expansões pelo processo de interiorização; diversificação institucional; globalização; internacionalização; novos atores, entre outros ( MOROSINI, 2014 ).
Estudar o tema já não é predileção para instituições inseridas nesse âmbito. Como afirma Deardorff (2006), não se trata de um processo que se desenvolve naturalmente, razão pela qual requer ações intencionais dentro das instituições de educação superior (IES) que possam efetivar o processo. Assim, a autora defende que é necessário que haja cada vez mais uma evolução no conceito e um esforço para que a pesquisa e a prática se mantenham atualizadas com estudos e processos que venham embasar esse construto.
Caminho metodológico
O estudo foi do tipo básico, qualitativo, exploratório, com apropriação de pesquisa bibliográfica para construção da análise que permitiu a proposição de uma releitura sobre CI na educação superior. A pesquisa básica ( GIL, 1999 ) tem como objetivo discutir teorias, desenvolver novos saberes a partir de uma reflexão teórica. O estudo qualitativo, agregado a esse processo, buscou trazer reflexões que não tiveram como objetivo quantificar dados e significações.
A pesquisa do tipo bibliográfica permitiu, por meio das análises das publicações (teóricos basilares, artigos sobre a temática), um olhar para a elaboração de proposições a partir das teorias e contribuições publicadas. Para Gil (1999), os documentos constituem a análise da pesquisa. Pizzani et al. (2012) ressaltam que a pesquisa bibliográfica é uma técnica importante que busca discutir as principais correntes teóricas que norteiam uma área. Os passos fundamentaram-se em Lima e Mioto (2007) , a partir dos parâmetros definidos pelos autores.
A respeito do tema competências, apoiamo-nos nas duas correntes principais de perspectivas do conceito: input e output , baseando-nos em trabalhos de Parry (1996) e Fleury, M.; Fleury, A. (2001) que discutem essa classificação, a partir de uma literatura considerada predominante na Europa ( output ) e nos Estados Unidos ( input ).
Nas duas concepções, utilizamos bibliografias que debatem competências no contexto brasileiro, sendo as principais: Dutra (2004) ; Fleury, M.; Fleury, A. (2001 , 2004 , 2004a ); Fernandes; Fleury (2007) . Também foram analisadas as duas correntes predominantes com a bibliografia internacional que trazem em especial White (1959) ; McClelland (1973) ; Spencer; Spencer (1994); Le Boterf (2005) ; Zarifian (2001) , Dolz e Ollagnier (2004) , considerados autores clássicos das duas óticas discutidas. Os debates a respeito das competências permitiram a construção da figura 1 deste artigo, para melhor visualização das correntes epistemológicas que envolvem esse conceito, nas duas perspectivas aqui defendidas como norteadoras do trabalho. Citamos também alguns autores da área da educação trazidos por Morosini, Cabrera e Felicetti (2011) .
Para discussões acerca da interculturalidade, como principais referências adotamos as bibliografias associadas ao contexto brasileiro, de Candau (2012 , 2016 ); Candau; Koff (2006) , Coppete, Fleuri e Stoltz (2012) , com a referência conceitual na visão da América Latina de Walsh (2009 , 2009a ), complementando com a perspectiva de Mato (2008 , 2016 ). Walsh foi a referência chave para discussão das perspectivas defendidas aqui de interculturalidade, que trata dos três tipos: relacional, funcional e crítica, sendo um eixo de análise associado com as correntes de perspectivas de input e output , que originaram a figura 2 deste artigo.
Dada a escassa literatura brasileira sobre CI na educação superior, apoiamo-nos nas discussões de Deardorff (2004 , 2006 , 2009 ); Freeman et al. (2009) , Unesco (2002 , 2009 ), Dervin (2010) , Berardo; Deardorff (2012) , Huber; Reynolds (2014) . Essas obras foram escolhidas por trazerem análises atuais sobre o tema e discutem tanto a construção histórica do tema, aplicações e métodos, modelos, além de estudos voltados para educação e educação superior.
Buscamos, no entanto, a vigilância epistemológica, conforme defendem Lima; Mioto (2007 , p. 37), para “realizar um movimento incansável de apreensão dos objetivos”. Também entendemos que a pesquisa não esgota um determinado conceito. Como limitação do método, entende-se ser necessário a realização de pesquisas empíricas que venham trabalhar a proposta aqui apresentada.
Resultados e discussões
Para apresentar a releitura e as reflexões conceituais, optou-se por fazer uma discussão do construto competências interculturais fragmentando-o. Assim como destaca Huber; Reynolds (2014) , para se entender CI é preciso entender os conceitos relacionados. O debate inicial foi do conceito de competências e depois de interculturalidade e, por fim, competências interculturais, trazendo assim uma reflexão conceitual com uma releitura para a educação superior.
Competências
O conceito de competência começou a ser elaborado de forma estruturada pela primeira vez por McClelland (1973) , na busca de uma aproximação mais concreta que os testes de inteligência usados nos métodos de seleção de pessoas para as organizações ( DUTRA, 2004 ).
Basicamente, no nível individual, apesar de não consensual, a competência perpassa pelos três pilares básicos: conhecimento, habilidade e atitudes (CHA). Durand (2000) ressalta que esses três vértices devem ser interligados, relacionados a um determinado propósito. Defende também que os valores e crenças compartilhados por uma equipe influenciam o comportamento do indivíduo. Essa abordagem conceitual é, aparentemente, a mais aceita no que se refere à análise do ambiente do trabalho ( BRANDÃO; GUIMARÃES, 2001 ).
O debate francês acerca do tema competências surgiu na década de 1970, “justamente do questionamento do conceito de qualificação e do processo de formação profissional, principalmente técnica” (FLEURY, M.; FLEURY, A., 2001 , p. 186). Os franceses não satisfeitos com a necessidade do mercado e a formação desses, levaram o debate para o campo educacional. Um dos autores que buscou extrapolar o conceito, Zarifian (2001) , analisa a competência sob diversas óticas em nível organizacional, discutindo as competências técnicas, de serviços, sobre processos e sociais.
Sá e Paixão (2013) trazem uma discussão a respeito da polissemia do conceito a partir das abordagens behaviorista e integrada. Historicamente, White (1959) traz uma visão de competência como características pessoais e McClelland (1973) conceitua como uma característica subjacente ao sujeito, sendo esse último uma referência do construto como input (behaviorista). Na abordagem integrada (sistêmica e complexa), Le Boterf (2005) apresenta o conceito em uma visão pluridimensional. Autores dessa corrente como Zarifian (2001) e Dolz; Ollagnier (2004) também se inserem nessa abordagem ( FERNANDES, FLEURY, 2007 , p. 106). Os autores da abordagem integrada também são considerados defensores da perspectiva conceitual de output.
Dutra (2004) e Fleury, M.; Fleury, A. (2001) buscam equilibrar as duas visões. No Brasil, na década de 1980, o tema recebeu relevância nos estudos que discutiam competência do indivíduo e da organização. Pesquisas foram sendo elaboradas diferenciando vários ângulos conceituais sobre competências (individuais, profissionais, organizacionais, gerenciais), matrizes, gestão de e por competências. Esse cenário pauta-se inicialmente pensando competência como input ( FERNANDES; FLEURY, 2007 ), tornando-se uma corrente predominante no Brasil. A competência, portanto, é um saber agir responsável e reconhecido, que implica “mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos e habilidades, que agreguem valor econômico à organização e valor social ao indivíduo” ( FLEURY, M.; FLEURY, A., 2001 , p. 188).
A literatura também pode ser avaliada por meio das correntes predominantes seja por abordagens, seja em um espaço territorial como a divisão dos debates em “americano e europeu”. Parry (1996) destaca que no primeiro, competência é considerada input , tratada como um conjunto de características que venham afetar as ações dos sujeitos, enquanto que, na Europa, competência é considerada output , ou seja, o indivíduo demonstra competência a partir do momento que consegue assimilar e superar os resultados de suas ações.
Essa classificação em sua essência conceitual ( input e output ) foi adotada aqui como referência para analisar o construto Competências Interculturais (CI). A figura 1 busca demonstrar o funcionamento das duas perspectivas ( input - entrada e output - saída).
Na esfera educacional, percebem-se discussões acerca da temática trazendo principalmente a competência individual, seja ela com um olhar para o discente, docente ou ainda os gestores. Morosini, Cabrera e Felicetti (2011) ressaltam alguns dos principais autores que discutem competência no contexto da educação: Delors (1996) , Sugumar (2009) , Rios (2001) , Braslavsky (1999) , Perrenoud (1999) , Goergen (2000) que realizam discussões acerca de competências principalmente para a competência docente, ressaltando que tais abordagens incluem basicamente duas vertentes: “o desdobramento (planejamento) e a implementação (execução) do conhecimento profissional, bem como de ideias, e habilidades que o professor possui” ( MOROSINI; CABRERA; FELICETTI, 2011 , p. 232).
A próxima seção traz reflexões sobre cultura, multiculturalidade e interculturalidade, tendo como objetivo central as discussões de interculturalidade no contexto da educação. Entendemos que discussões sobre cultura, aqui trazidas em seu sentido mais amplo, reafirmam a complexidade do construto. Cumpre salientar que não nos detivemos intencionalmente às minúcias de discussões sobre esse tema, com objetivo de explanar sobre as principais configurações conceituais sobre ela, porque o foco central deste trabalho são as competências interculturais.
Cultura, multiculturalidade e interculturalidade
Estudos acerca de cultura já são abrangentes na literatura e cada vez mais ramificados. Hofstede (1980) é um dos autores de grande destaque no estudo de culturas nacionais. Ele define cultura como um fenômeno coletivo que é aprendido e não herdado. Alguns autores concentram-se em estudos voltados para a cultura, seus conceitos, aspectos e diferenças que permeiam esse contexto ( CLIFFORD; MARCUS, 1986 ; GEERTZ, 1973 ; KRAMSCH, 1998 ). Muito citado no Brasil, Hofestde (1980) diz que cultura é a programação coletiva dos espíritos que distinguem os membros de um grupo humano do outro. Outros trabalham a comunicação ( CRICHTON; SCARINO, 2007 ) e estudos linguísticos sobre a necessidade de uma compreensão compartilhada da linguagem e seu(s) significado(s) em uso ( KRAMSCH, 1998 ).
Sousa Santos e Nunes (2003 , p. 3) destacam que o conceito de cultura pode ser visto a partir de duas perspectivas: da área das Humanidades, que trata o termo “em critérios de valor, estéticos, morais ou cognitivos, que definindo-se a si próprios como universais, elidem a diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos que classificam”. Na outra perspectiva, da área das Ciências Sociais, “reconhece a pluralidade de culturas, definindo-as como pluralidades complexas que se confundem com as sociedades”. ( SOUSA SANTOS; NUNES, 2003 , p. 3).
Um autor considerado clássico, Tylor (1871) , que foi um dos primeiros a trabalhar o conceito de cultura, destaca que cultura ou civilização, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Esse conceito foi refutado por Franz Boas (antropólogo) ( MORGADO, 2014 ). Boas (1922) ressaltou que em lugar de uma simples linha de evolução, aparece uma multiplicidade de linhas (convergentes e divergentes) difíceis de serem unidas em um sistema. Em vez de uniformidade, a característica notável parece ser a diversidade.
A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos. Ela é um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade. Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade ( GEERTZ, 1973 ). Também vale destacar o conceito da Unesco (2002) , que considera cultura como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social.
Entende-se que a Cultura, a partir das várias perspectivas, apresenta uma complexidade indescritível e singular, permeada pelo contexto que a envolve. Isso inclui valores, crenças, conhecimento, símbolos que afloram um determinado espaço e que são reconhecidos pelos indivíduos ali inseridos. A polissemia conceitual é conduzida para as ideias de multiculturalidade e interculturalidade que também se encontram em um emaranhado de discussões e entendimentos diversos.
Multiculturalismo e interculturalidade podem ser considerados como conceitos distintos, mas também com características similares. Backes (2013 , p. 53) ressalta que:
[...] persistem dúvidas sobre se o conceito mais produtivo é o da interculturalidade ou multiculturalismo e o reconhecimento de que se trata de conceitos polissêmicos e de multiuso é acompanhado de um esforço para diminuir a polissemia, recorrendo-se a diferentes tipos de multiculturalismo.
Na literatura, portanto, muitos debates aproximam e diferenciam esses conceitos, conforme exposto por Candau; Koff (2006) , que citam Jordan (1996) , McLaren (2000) , Banks (1999) , Forquin (2000) , entre outros.
Também há distintas visões sobre multiculturalismo, multiculturalidade, interculturalismo e interculturalidade. Na tentativa de um conceito mais generalizado, multiculturalismo pode ser entendido como um conjunto de culturas em uma determinada sociedade ( KREUTZ, 1999 ). Sousa Santos e Nunes (2003) também destacam que o termo, inicialmente, foi designado como coexistência de grupos caracterizados por culturas diferentes. Por ser um termo polissêmico, também pode ser interpretado com óticas diferentes, trazendo discussões sobre diversidade cultural, assimilação, até como as perspectivas consideradas como críticas, denominadas como multiculturalismo crítico, interculturalidade crítica ( McLAREN, 2000 ). Multiculturalidade, portanto, pode ser entendida como uma expressão contemporânea da forma de pensar a multiplicidade cultural, sendo algo complexo que tem sido marcado pelas relações de poder ( ROJAS, 2008 ).
Apesar das várias correntes de discussões teóricas, entendemos que uma aproximação do conceito de interculturalismo foi trazida por Reyna (2007 , p. 435). Para a autora, o interculturalismo pode ter dois significados, sendo um a “tematização teórica do fenômeno da interculturalidade, indicando um campo de estudos” e outro refere-se à “possibilidade de ser um projeto político de relações entre diferentes culturas”.
A interculturalidade, porém, além do conjunto de culturas, exige uma interação, inter-relação e diálogo entre elas. Traz consigo a concepção básica de interação entre culturas ou aspectos culturais, assim como enfatiza Kreutz (1999) . Essa concepção foi a norteadora da discussão desta pesquisa, entendendo que interação pode ser compreendida de várias maneiras.
No contexto da educação, também denominada educação intercultural, que é uma temática que vem se expandindo no contexto latino americano, a partir de reflexões e estudos de alguns autores, entre eles Walsh (2009 , 2009a ), tem-se três concepções básicas: relacional, funcional e crítica. A relacional considera como natural os processos de sincretismo, mestiçagem e isso tende a encobrir os conflitos e a relação é limitada e individual. A visão funcional reconhece as diferenças culturais a fim de tentar a estabilidade social. Já a interculturalidade crítica problematiza a estrutura.
Walsh (2009 , p. 03) enfatiza que perspectiva crítica de interculturalidade é como uma ferramenta que “aponta e requer a transformação das estruturas, instituições e relações sociais, e a construção de condições de estar, ser, conhecer, aprender, sentir e viver distintas”. Para ser possível, precisa ser um projeto de sociedade. Para autora, quando falamos de contexto latino-americano, estamos a evoluir e para isso, de modo que não basta reconhecer o diferente. Essa é a corrente que assume a diversidade como eixo central, partindo do problema do poder, buscando uma discussão a partir do prisma decolonial.
Apropriamos dos conceitos discutidos e analisamos CI tanto na ótica de competências de input e output , assim como nas discussões de interculturalidade relacional, funcional e crítica. A seguir, apresentamos discussões acerca de CI e a nossa releitura acerca dos conceitos a partir das definições adotadas.
Competências interculturais
Dentro das diversas formas de se analisar competências ou de suas variações que incorporam óticas particulares como, por exemplo, a interculturalidade, entende-se que a noção de competências interculturais mescla os dois conceitos e que a literatura vem discutindo, desde a década de 1950 (EUA); e encaminhando para a incorporação de novas variáveis como a internacionalização.
Dentre as várias interpretações conceituais, o primeiro projeto para documentar o consenso entre especialistas em estudos sobre interculturalidade nos Estados Unidos (EUA), no que se refere à competência intercultural, buscou um processo interativo usado para obter consenso entre um painel de especialistas. Os aspectos beneplácitos foram categorizados e colocados em um modelo que se pauta na avaliação e no desenvolvimento de resultados de aprendizagem mensuráveis detalhados. Especificamente, este modelo foi baseado em desenvolvimento de atitudes, conhecimentos e aptidões específicos inerentes à aprendizagem de CI ( DEARDORFF, 2009 ).
Além desse modelo, existem outros que foram usados para enquadrar aspectos da aprendizagem intercultural: o Modelo de Desenvolvimento de Sensibilidade Intercultural, de Bennett (1993), o Modelo Maturidade Intercultural, de King e Baxter Magolda (2005), e o Continuum Transcultural, de Cross (1988). Todos esses descrevem etapas de crescimento ( BERARDO; DEARDORFF, 2012 ).
Várias definições de CI foram dadas academicamente. Para Dervin (2010) , a mais abrangente foi apresentada por Byram (1997) , que trouxe cinco componentes da CI e assim foi caracterizado por Dervin, por ter seus objetivos claros, mas, por outro lado, carrega a dificuldade de ser avaliado ( BYRAM, 1997 ; KRAMSCH, 1993 ).
Para a Unesco (2009) , as CI’s são recursos postos em prática durante a interculturalidade no diálogo. Entende-se que a competência intercultural, em especial no processo ensino-aprendizagem na educação formal, pode ser vista como a capacidade de desenvolver suas tarefas ou funções de forma eficiente em contextos multiculturais ( ALVAREZ, 2005 ). Isso remete-nos também a um contexto não somente profissional, mas um repensar para o bom exercício da cidadania. A aprendizagem intercultural é transformadora e requer experiências (muitas vezes além da sala de aula) que levem a essa transformação ( DEARDORFF, 2009 ).
Autores que trabalham com modelos, como Spitzberg; Changnon (2009) , trazem 5 tipos de modelos e discutem a vertente de construção de conceito de CI. Pascarella (1985) trabalhou com modelo voltado para variáveis no processo de aprendizagem do estudante; Deardorff (2006) estuda componentes da CI; Fantini (2007) direciona esforços para desenvolver a Avaliação da Competência Intercultural (ACI) e Schnabel et al. (2015) tenta se aproximar de um instrumento para medir CI.
Deardorff (2006) , em seu estudo com acadêmicos e especialistas, identificou 22 componentes da CI, concluindo que os entrevistados preferem um conceito mais geral e não definiram competência em relação a aspectos específicos. Huber e Reynolds (2014) também trouxeram um conjunto de itens, porém de uma forma já classificada em atitudes, conhecimento e compreensão, habilidades e ações.
As discussões da American Council On Intercultural Education (ACIE, 1996), que trata da competência global e ser competente globalmente, considera competência como habilidade, conhecimento ou uma atitude que pode ser demonstrada, observada ou medida. Nessa discussão, defende-se que a formação de competência é um continnum e deve ser desenvolvida em todas as fases da educação, não somente a educação superior. Nessa perspectiva, o indivíduo poderá realizar vários graus de cada fase e o progresso pode não ser linear.
O conhecimento dessas discussões direciona o desenvolvimento de pesquisas a fim de conhecer melhor o contexto acadêmico brasileiro, dentro da perspectiva do modus operandis da discussão de práticas que venham desenvolver CI na formação do discente.
Importante salientar que o aprender competências interculturais é um processo cíclico. Para ensinar sobre algo, é preciso conhecer e ter aprendido sobre isso. Contudo, a aprendizagem das CI se busca ao longo de sua existência ( DEARDORFF, 2009 ; DERVIN, 2010 ). Isso enfatiza a importância do aprender a viver juntos dentro da educação, não excludente, na educação superior. O desenvolvimento de CI na educação superior não pode se limitar a assegurar espaços para discentes e docentes, mas também reconhecer o valor dos saberes das diversas culturas ( MATO, 2008 , 2016 ).
A importância de se discutir esse tema na educação superior perpassa também pela necessidade de ampliação do olhar para o desenvolvimento de competências que permeia esse espaço. Os sujeitos precisam apropriar-se dos códigos ou aspectos uns dos outros, aprender a olhar de uma maneira diferente ( COPPETE; FLEURI; STOLTZ, 2012 ).
Portanto, apresentamos uma releitura conceitual sobre CI e iniciou-se o processo com as discussões sobre os principais conceitos de competências, interculturalidade e competências interculturais adotados pela literatura pesquisada. Há uma série de conceitos que são discutidos sobre ambos construtos e alguns parâmetros são recorrentes entre as várias ideias. O primeiro, quanto ao conceito de competências, parece haver um discurso que converge para associação de conhecimentos, habilidade e atitudes, sendo sua junção a formação central do conceito de competências. Aliado a isso, esse conceito transpõe-se para o construto CI que se apropria desses três itens, muitas vezes sem associá-los ou de forma a distinguir CI de competências comunicativas interculturais (CCI).
Assim como explicam Huber; Reynolds (2014) , a linguagem é um sistema simbólico que permite aos membros do grupo compartilhar suas óticas culturais, sendo um componente importante da CI, mas não o único. As discussões acerca da interculturalidade perpassam, dentre outros, aspectos que contemplam crenças, valores, identidade, costumes de um determinado conjunto de indivíduos e sua interação. Isso pressupõe uma discussão sobre cultura, que se caracteriza por um conjunto de artefatos, aspectos de uma determinada sociedade e, sem a interação, não se fala em interculturalidade.
Por fim, quanto às competências interculturais na educação, em especial na educação superior, entende-se que as universidades latino-americanas carregam formatos monoculturais arcaicos nesse mundo de globalização e ainda reproduzem diversas formas de racismo oculto (cultural, social, econômico, ambiental, epistemológico) (MATO, 2016), o que gera um desafio ainda maior para a discussão da temática no contexto brasileiro. É preciso, pois, um repensar sobre a educação a partir de discussões sobre aspectos que emergem do contexto. “Tudo parece concorrer para afirmar a homogeneização e padronização. Acreditamos que somente avançaremos na construção de uma qualidade adequada aos tempos atuais se questionarmos essa lógica” ( CANDAU, 2016 , p. 807). Diante disso, a figura 2 traz uma releitura sobre CI na educação superior. Buscamos trazer uma visão que tem como intuito incitar debates acerca do tema.
A proposta na figura 2 é a releitura que apresentamos quanto à perspectiva conceitual de CI. As discussões individuais no referencial teórico buscaram trazer um olhar sobre os principais conceitos de competências e interculturalidade, avançando assim para visualização da releitura sobre CI. Entende-se que foi possível desenvolver uma análise trazendo os principais pontos de interlocução dos construtos competência, interculturalidade e competências interculturais.
Partindo de uma premissa sobre competências segundo a qual ela possa ter uma perspectiva tanto de input quanto de output e que essas são as visões que permeiam as principais discussões teóricas da atualidade, entende-se que esse olhar pode ser associado às perspectivas de interculturalidade a partir da divisão conceitual entre funcional, crítica e relacional. Essas duas escolhas teóricas pautaram-se em sua abrangência, entendendo que essas são as fundamentações que estão em consonância com as discussões desta pesquisa e mais abrangentes na literatura, principalmente aplicada à América Latina e ao Brasil.
O quadro foi construído unindo as perspectivas de competências ( input e output ) com cada um dos conceitos da interculturalidade (relacional, funcional e crítica), formando-se o conjunto: 1) Competências interculturais (CI) input relacional, 2) CI input funcional; 3) CI input crítica; 4) CI output relacional; 5) CI output funcional; 6) CI output crítica, cada uma delas descritas a seguir:
No item CI input relacional, considera-se que o indivíduo possa extrair aspectos interculturais para desenvolvimento de sua competência ignorando os conflitos e as diversificações do contexto. O sujeito age de forma a desenvolver sua competência individual como foco central do processo de desenvolvimento. Na visão de competências input , significa desenvolver aspectos individuais (CHA) com o objetivo de dar um enfoque às características do sujeito, juntamente com a perspectiva da interculturalidade se limitando ao contato e relacionamento, muitas vezes ao nível individual que, para Walsh (2009) , irá ocultar ou ignorar as estruturas da sociedade que visam posicionar a diferença cultural.
A CI input funcional pauta-se também nas características do indivíduo de forma a extrair aspectos interculturais para desenvolvimento de sua competência na tentativa de manter a coesão do espaço e reduzir os conflitos. O sujeito age com a intenção, apropriando-se de tais aspectos a fim de se desenvolver e evitar problematizar o contexto, sem transcender. A perspectiva de competências como input permanece como o conceito anterior, porém a interculturalidade é a funcional, na qual se reconhecem a diversidade e as diferenças culturais do espaço, buscando o controle do conflito. Walsh (2009) ressalta que é um tipo de perspectiva em que se tem uma falsa noção de equidade e igualdade, transformando-se em uma nova estratégia de dominação.
CI input crítica trata-se dos aspectos individuais, (exemplo, conhecimentos, habilidades e atitudes), como nos dois conceitos anteriores, porém utilizados como forma do indivíduo analisar e problematizar o contexto em que se insere, analisando os aspectos interculturais para desenvolvimento de sua competência na tentativa de agregar algo ao ambiente. O sujeito age com a intenção ou não, apropriando-se dos aspectos citados a fim de se desenvolver e problematizar o contexto, transcendendo as diferenças culturais.
Explanou-se, até aqui, os três tipos de CI na ótica de input . Nesses, a perspectiva de competências estabelece-se a partir do conjunto de características que levam um indivíduo a um resultado (foco nos aspectos individuais). O que diferem os três tipos apresentados é a interlocução com cada perspectiva conceitual de interculturalidade a partir de Walsh (2009) na junção com o conceito de competências.
Trazendo as três outras visões, voltadas para competências output , todas remetem ao conceito de competências a partir dos resultados. Parry (1996) destaca que a competência é analisada a partir do momento que o indivíduo consegue assimilar e superar os resultados de suas ações, sem enfatizar o conjunto de aspectos individuais. O que mudam nas três visões também são as perspectivas de interculturalidade, aqui, baseadas em Walsh (2009) .
Para CI output relacional, os resultados das ações dos sujeitos são analisados para entender a eficácia dos resultados. Nesse processo, os aspectos interculturais fazem parte do ambiente e o foco é o resultado da ação individual. As características do indivíduo alimentam as ações, porém os resultados são o foco e a tendência nesse processo é que os resultados sejam uniformes, mais coesos, ignorando as diferenças a partir da visão de interculturalidade.
Quanto a CI output funcional, os resultados das ações dos sujeitos são analisados para entender a eficácia no ambiente, incorporando as diversidades culturais do ambiente. Há o reconhecimento das diferenças, mas há uma busca pela estabilidade do contexto. Nesse processo, os aspectos interculturais estão presentes e há diferenças que devem ser minimizadas. A tendência nesse processo é que os resultados das ações sejam em busca da uniformidade, reconhecendo que existem diferenças, mas que não se busca transcender.
Na perspectiva de CI output crítica, os resultados das ações dos sujeitos são considerados para entender a eficácia dos resultados, analisando e problematizando as diversificações do ambiente. Nesse processo, os aspectos interculturais estão presentes e não podem ser ignorados. A tendência nesse processo é que as ações diversas, com aceitação de perspectivas diferentes para um mesmo resultado, transcendam as diferenças, com um repensar, de acordo com Walsh (2009 , p. 4) de “reconceituar e re-encontrar estruturas sociais, epistêmicas que busquem relações eqüitativas lógicas, práticas e diversas formas culturais de pensar, agir e viver”.
Trabalhar CI inclui, necessariamente, um olhar para o sujeito e sua interação, seja com outro sujeito, com o espaço, artefatos, entre outros. A troca ou a interação é essencial no campo da interculturalidade. Se não há interação, entende-se aqui que não se trata de interculturalidade, podendo ser, por exemplo, multiculturalidade. A partir disso, o quadro teve como objetivo permitir parâmetros para que as pesquisas empíricas busquem a materialização dos aspectos conceituais estudados.
Essa natureza do quadro teórico apresentado corrobora com a configuração de competência global trazida pela American Council On Intercultural Education ( ACIE, 1996 ) e Deardorff (2006 , 2009 ) de que existem estágios dentro do processo de formação de competências, sendo esses um continumm e deve ser desenvolvido em todas as fases da educação. O indivíduo poderá realizar vários graus de cada fase e o progresso pode não ser linear. Apesar de não se tratar de etapas assim como as discussões citadas, entende-se que a construção do processo se baseia nessas premissas.
Entende-se que não foi necessário criar um conceito, que, assim como Freeman et al. (2009) advertem, poderia ter vários problemas como: primeiramente, que não se pode ignorar tudo que já existe de discussões sobre o construto. Vários pesquisadores, de diversas áreas, vêm trabalhando em várias perspectivas para o desenvolvimento do conceito. Segundo, porque as várias perspectivas (área da comunicação, da cultura, da linguística, administração, entre outros) dão a possibilidade de apropriação conceitual a cada sujeito participante do projeto.
Considerações finais
Ao realizar a pesquisa, observou-se a necessidade latente de discussões e a busca de releituras e olhares sobre competências interculturais na Educação Superior, principalmente com olhares para o global Sul. O objetivo geral desta pesquisa foi alcançado: a proposição de uma releitura sobre CI que se pautou em duas perspectivas de competências ( input e output ) e de três vertentes da interculturalidade na educação (relacional, funcional e crítica).
Essa releitura parte da premissa segundo a qual o sujeito se baseie em ações que visam a questionar todo o tempo os parâmetros latentes e o caminho a ser seguido. O indivíduo não estará todo o tempo desenvolvendo competências interculturais ( input relacional, por exemplo) ou ainda todo o tempo ( output crítica), e assim sucessivamente, sendo um continumm . O ser humano, com sua complexidade aliada aos diferentes contextos e situações, irá incutir o desenvolvimento das CI a partir de diversas variáveis. Aqui, não se teve a pretensão de definir as variáveis e espera-se que pesquisas futuras busquem essas respostas.
Também é importante ressaltar que, de acordo com a literatura, a perspectiva crítica deveria ser a mais presente no contexto da educação. Para isso, a busca de se desenvolver CI (seja input crítica ou output crítica) seria o foco das ações dentro do ambiente da educação superior. Walsh (2009 , p. 4) destaca que ainda é um tipo de interculturalidade a se construir, sendo importante a sua compreensão para “construção e posicionamento como um projeto político, social, ético e epistêmico de conhecimento”, que demanda mudanças estruturais, acima de tudo de estruturas de poder.
Essa contribuição da releitura apresentada também se confirma na necessidade constante de revisão de conceitos, de aspectos ou de atributos que compõem CI. Deardorff (2006 , p. 258) defende que “definições e os métodos de avaliação precisam ser reavaliados continuamente [...]. É importante que a pesquisa e a prática permaneçam atualizadas com a pesquisa e os processos de pensamento sobre esta construção”.
Seria uma pretensão esgotar a discussão trazendo um quadro que conseguisse demonstrar toda a universalidade e complexidade do tema e esse não foi o objetivo. A apresentação dessa proposta é uma tentativa de aglutinar a perspectiva dos autores sobre as várias discussões, iniciando, assim, algo que venha a ser a derivação para novos olhares e novos modelos teóricos que venham abarcar a temática.
Também é possível explanar que este artigo busca ampliar as discussões sobre CI e a necessidade de se desenvolver ações empíricas de confirmação e confrontação das ideias aqui defendidas a partir da pesquisa bibliográfica. Tem-se como princípio de que as competências interculturais podem ser desenvolvidas por meio de várias experiências interculturais, como preconizam Huber e Reynolds (2014) .
O quadro conceitual apresentado considera que as competências interculturais fazem parte de um processo de interação. Seguindo essa visão, ela é tratada aqui ora como output , ora como input . A ação e os resultados são partes desse todo que consiste em um processo cíclico.
Várias perguntas surgiram durante a realização do trabalho. Assim, poderíamos então desenvolver CI que venham atender aos fins da educação superior brasileira e como efetivamente aprender e ensinar tais competências? Como é o contexto real das instituições de educação superior brasileira para o desenvolvimento dessas competências? Os profissionais de educação estão preparados para assumir esse papel? Quais as melhores ferramentas para desenvolver tais competências? Qual a importância das competências interculturais para o egresso da educação superior? Como os docentes percebem tais competências e contextos para se desenvolver a temática?
Dentre várias questões, esta pesquisa tentou trazer um quadro referencial para que respostas sejam alvo de buscas de pesquisas futuras. A busca incessante para essas respostas são temas de debates da atualidade a respeito dos construtos e traz sua relevância a cada dia que presenciamos a heterogeneidade institucional e dos processos de ensino-aprendizagem da educação formal.