Introdução
Nos últimos anos, houve, no Brasil, um significativo aumento do número de cursos de pós-graduação em direito (BRASIL, 2019a), sobretudo em instituições privadas, fato que repercutiu no crescimento da oferta de professores para os cursos de direito. Diante dessa realidade, e considerando que os estudantes de mestrado e de doutorado deveriam, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9.394/1996, ser preparados para o exercício da docência nos programas de pós-graduação stricto sensu (BRASIL, 1996), analisamos a regulação da formação de professores3 oferecida nos cursos de mestrado e de doutorado dos Programas de Pós-Graduação em Direito (PPGDs) mais antigos do Ceará, isto é, os programas que há mais tempo formam seus discentes, permitindo-lhes a sua inserção como professores dos cursos de direito no país. Escolhemos, então, os PPGDs da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Adotando uma abordagem dialética, como a referenciada por Gamboa (1994, 2007, 2013) e Severino (2001), desenvolvemos nossa pesquisa a partir da seguinte pergunta-síntese4: como ocorre a regulação da formação de professores oferecida nos cursos de mestrado e de doutorado dos PPGDs da Unifor e da UFC? A partir dessa questão, seguiram-se três perguntas secundárias, a saber: o que a LDB prevê em relação à formação de professores em cursos de pós-graduação stricto sensu? Como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) avalia e regula os cursos de mestrado e de doutorado? Segundo os documentos da Capes, os regimentos e os programas de disciplinas, como os cursos de mestrado e doutorado em direito dos PPGDs estudados realizam a formação docente de seus estudantes para o ensino jurídico?
A fim de respondermos a essas questões e atingirmos o objetivo de nossa pesquisa, realizamos uma análise documental (CELLARD, 2012; FLICK, 2009) da LDB e de documentos elaborados pela Capes, quais sejam, o documento de área de direito de 2019 (referente à Avaliação Quadrienal 2017-2020), o relatório de avaliação de área de 2017 e as fichas de avaliação dos PPGDs da Unifor e da UFC de 2017 (referentes à Avalição Quadrienal 2013-2016). Além desses documentos, analisamos os regimentos internos vigentes em 2020 e os programas das disciplinas ofertadas pelos PPGDs pesquisados. Todos esses documentos são de domínio público e podem ser acessados livremente pela internet, o que nos possibilitou organizar cópias em um acervo digital constituído para viabilizar a realização desta pesquisa.
Ao tomarmos os documentos escritos como objeto material específico de nossa análise, temos consciência de que eles expressam sentidos, ideias, fatos, disputas, escolhas políticas e demais aspectos da vida social. Analisamos os documentos enredados no fenômeno da regulação da formação de professores oferecida nos cursos de mestrado e de doutorado dos PPGDs da Unifor e da UFC, com base em Flick (2009), para quem os documentos são dispositivos comunicacionais, e em Cellard (2012), que também considera o contexto no qual os textos foram produzidos – o autor e os atores sociais que orientaram a sua produção e para os quais eles são direcionados, a confiabilidade dos documentos, sua natureza, seus conceitos-chave, sua lógica interna, os sentidos neles mobilizados, seus usos políticos, sua orientação normativa etc.
Assim, inicialmente, foi examinado um documento de cada vez, e, ao final da análise de cada texto, foram realizados cotejos para a identificação de conceitos-chave, frases e sentidos que se vinculam à formação de professores, e, mais especificamente, à formação de professores para o ensino jurídico, conforme a tensão entre a teoria e a empiria dos documentos, entendidos ao mesmo tempo como dados (FLICK, 2009)5 e como fontes (CELLARD, 2012)6.
Realizamos a análise em duas etapas, a saber: a análise preliminar de cada documento e a análise do conjunto dos documentos previamente selecionados. A análise preliminar contou com a leitura e o fichamento crítico de cada documento, considerando-se o contexto histórico, social, político e econômico; os autores e os atores que o ensejaram e aos quais ele se dirige; os interesses, a autenticidade e a confiabilidade do texto; a natureza do texto; os conceitos-chave e a lógica interna do texto. A análise do conjunto dos textos contou com os resultados da análise preliminar para reunirmos todas as partes: questões de pesquisa, discussão teórico-metodológica, contexto, autores e atores, interesses, confiabilidade, natureza dos textos e conceitos-chave.
Orientados pela perspectiva dialética de análise dos fenômenos da vida social e da construção do conhecimento (GAMBOA, 1994, 2007, 2013; SEVERINO, 2001), levamos em conta o debate teórico e as questões de pesquisa com a finalidade de produzir uma interpretação originária do confronto entre a teoria e a empiria dos documentos analisados, compreendendo a formação de professores nos PPGDs e a sua regulação como fenômenos histórico-sociais.
Considerando que os fenômenos sociais podem ser analisados qualitativa e quantitativamente e que essas duas perspectivas analíticas podem ser complementares (MINAYO; SANCHES, 1993), a sistematização e a análise dos dados prezaram mais pelo sentido das ações das instituições autoras dos documentos, pois são elas que protagonizam a regulação da formação de professores nos PPGDs estudados.
Nesse sentido, tratamos os dados de forma especialmente qualitativa (MARTINS, 2004). Assim, analisamos os resultados a partir dos dados construídos por meio da tensão entre teoria e pesquisa, o que pomos em prática na abordagem dos documentos legais e institucionais.
Para expor os achados de nossa pesquisa, dividimos este artigo em seis seções, sendo esta introdução a primeira delas. Na segunda, realizamos uma discussão sobre os aspectos legais concernentes à regulação da formação docente, articulando-os com uma reflexão teórica sobre a formação pedagógica de profissionais para o magistério superior na pós-graduação stricto sensu. Na terceira, analisamos os documentos da Capes que avaliam os PPGDs de direito no Brasil. Na quarta e na quinta seções, analisamos os documentos internos dos PPGDs da Unifor e da UFC, respectivamente, a fim de verificar quais são suas políticas institucionais destinadas à regulação da formação de professores. Na sexta seção, tecemos as considerações finais deste texto, com um desfecho analítico sobre a regulação da formação de professores em Programas de Pós-graduação em Direito no Brasil.
A LDB e a regulação da formação de professores para o ensino superior
Cunha (2013) afirma que há dois caminhos ou dois espaços preferenciais nos quais o professor se desenvolve profissionalmente, que são a formação inicial e a formação continuada. Segundo a autora, a formação inicial diz respeito aos “processos institucionais de formação de uma profissão que geram a licença para o seu exercício e o seu reconhecimento legal e público” (CUNHA, 2013, p. 612), enquanto a formação continuada diz respeito às “iniciativas instituídas no período que acompanha o tempo profissional dos professores” (CUNHA, 2013, p. 612). A autora explica que os professores da educação básica (dos ensinos fundamental e médio) adquirem essa formação inicial nos cursos de licenciatura. Vejamos o que a LDB dispõe sobre esse assunto:
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal (Redação dada pela Lei nº 13.415/2017). (BRASIL, 1996).
Como podemos observar, a formação inicial é oferecida a discentes; ou seja, é a fase da formação em que os estudantes de licenciatura terão os primeiros contatos com conhecimentos teóricos e práticos da profissão docente. Por outro lado, a formação continuada é destinada a profissionais que já atuam como professores, e tal formação “tanto pode ter origem na iniciativa dos interessados como pode inserir-se em programas institucionais” (CUNHA, 2013, p. 612), o que faz com que esses processos formativos continuados se adaptem às peculiaridades de cada instituição e de seu corpo docente.
Essa diferenciação é central para nossa discussão, pois o que nos interessa aqui é a formação inicial de professores de direito; ou seja, é a formação pedagógica oferecida a discentes nos PPGDs. Falamos de formação inicial nos PPGDs, pois, diferentemente dos cursos de licenciatura – em que os estudantes têm acesso à formação inicial docente ainda na graduação – nos cursos de bacharelado, como é o caso do direito, os futuros professores só têm – ou deveriam ter – acesso a uma formação para a docência na pós-graduação stricto sensu.
Cumpre destacar que a “formação mínima para o exercício do magistério” (BRASIL, 1996) a que a LDB se refere no art. 62 é destinada a professores da educação básica, não havendo nenhuma previsão legal dessa “formação mínima” para professores da educação superior. Em realidade, o que a LDB afirma, em seu art. 66, é que os professores do ensino superior devem ser preparados por meio da pós-graduação, notadamente nos cursos de mestrado e doutorado. Observemos: “Art. 66. A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado” (BRASIL, 1996).
Note-se que a LBD “[…] não concebe a docência universitária como processo de formação, mas sim como preparação para o exercício do magistério superior, a qual será realizada prioritariamente (e não exclusivamente) em pós stricto sensu” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 40, grifo do autor). Portanto, para se tornar professor universitário, no dizer da LDB, não se faz necessário que os futuros professores passem por uma formação mínima destinada à reflexão sobre a profissão docente, os saberes específicos da docência, avaliação, o processo de ensino e aprendizagem, gestão escolar etc. Dessa forma, “a preparação, sem uma preocupação com a formação pedagógica, tal como proposto na LDB (BRASIL, 1996), torna-se uma visão simplista, visto que o preparo para a docência está atrelado ao processo de formação desses professores” (JOAQUIM; VILAS BOAS; CARRIERI, 2013, p. 355).
Segundo a LDB, o profissional que porventura cursar mestrado ou doutorado estará preparado para o exercício do magistério superior ou para ministrar aulas, mas não formado para ser professor. Diga-se, aliás, que essa lei sequer disciplina o modo como deveria ser feita essa preparação nos cursos de pós-graduação stricto sensu. Em vez de aplicar a regra do art. 65, segundo a qual a formação de professores deve conter prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas, a LDB exclui dessa regra a formação de professores do ensino superior, não prevendo essas horas de prática de ensino para a pós-graduação stricto sensu, como se vê: “Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas” (BRASIL, 1996)7.
Levando em conta esse dispositivo da lei, constata-se que o entendimento previsto na LDB é o de que a pós-graduação stricto sensu não precisa ser necessariamente um espaço para formar professores, mas para preparar profissionais para o exercício do magistério, significando que “o profissional que decide ingressar na vida acadêmica e procura um mestrado ou doutorado para se tornar professor pode concluir seu curso sem ter um único contato sequer com a docência, ainda que teoricamente” (OLIVEIRA, 2010, p. 47). Com isso, “os programas de pós-graduação stricto sensu desenvolvem atividades, fundamentalmente, voltadas à formação de pesquisadores, em detrimento da necessária formação pedagógica de profissionais para o exercício do magistério superior” (PAIVA, 2010, p. 170).
Por meio da leitura do art. 66, percebe-se que os saberes da experiência (TARDIF, 2010; THERRIEN, 2002) são valorizados e reconhecidos como fundamentais para a formação do professor, diferentemente dos saberes pedagógicos. A esse respeito, abrimos parênteses para discutir brevemente sobre o conceito de saberes profissionais, de Tardif (2010), que consiste nos conhecimentos, competências e habilidades utilizadas nos trabalhos diários do professor para desempenhar suas tarefas e atingir seus objetivos.
Tardif (2010) diz que o saber docente, que é um saber profissional, é plural e heterogêneo, pois é formado por meio da conjugação de diversos saberes provenientes das instituições de formação, da formação específica profissional, dos currículos e das práticas docentes cotidianas. Para Tardif (2010), os saberes docentes são, portanto, integrados por outros saberes, quais sejam: a) saberes pedagógicos, que dizem respeito às reflexões sobre a prática educativa; b) saberes disciplinares, que são os saberes dos diversos campos do conhecimento; c) saberes curriculares, que são os discursos, os conteúdos, os métodos definidos pela instituição de ensino; e d) saberes experienciais, que são aqueles derivados das práticas docentes cotidianas.
Os saberes docentes são saberes múltiplos que se articulam no complexo processo de ensino e aprendizagem. Por isso, o profissional docente precisa ser compreendido através de sua tripla relação com o saber, isto é, deve ser visto “como um sujeito que domina saberes, que transforma esses mesmos saberes e ao mesmo tempo precisa manter a dimensão ética desses saberes” (THERRIEN, 2002, p. 109). Desse modo, para que o professor esteja apto para o exercício da docência, é imprescindível que passe por processos de formação inicial e continuada que lhe subsidiem, teórica e metodologicamente, na construção de identidades profissionais e de saberes docentes (PIMETA; ANASTASIOU, 2010).
Tendo em vista esses saberes, conclui-se que a formação de professores é feita “[…] em um continuum, desde a educação familiar e cultural do professor até a sua trajetória formal e acadêmica, mantendo-se como processo vital enquanto acontece seu ciclo profissional” (CUNHA, 2013, p. 211-212). Esses saberes, portanto, são cumulativos e vão sendo incorporados à prática dos professores à medida que são formados – inicial e continuamente – e exercem sua profissão. Com isso, ressaltamos que, ao problematizarmos a formação inicial de professores oferecida nos programas de pós-graduação em direito, não consideramos que os mestrados e doutorados devam esgotar todo o processo formativo dos futuros docentes, tampouco que os discentes devam encerrar esses cursos completamente preparados para o exercício da docência. Nosso intuito é refletir sobre um tipo de formação inicial que possa “apresentar, discutir, refletir e construir elementos que subsidiam – e subsidiarão – uma prática social complexa: a docência no ensino superior” (CORRÊA; RIBEIRO, 2013, p. 331), notadamente nos cursos de direito. Desse modo, entendemos que a formação inicial é, como o próprio nome indica, “um início formal da construção de uma identidade docente” (CORRÊA; RIBEIRO, 2013, p. 331), e não um arremate dessa construção, que é dinâmica e contínua de per si.
Veiga (2014) destaca que o professor do ensino superior é um múltiplo profissional, uma vez que tem de lidar com atividades de ensino, de pesquisa, de extensão, de avaliação, de gestão etc. Porém, a autora lembra que muitos desses professores, ao iniciarem suas atividades como docentes, detêm apenas os saberes experienciais e os disciplinares, sem que tenham “os conhecimentos pedagógicos necessários à realização do ensino” (VEIGA, 2014, p. 332). Por essa razão, sustenta que a formação pedagógica do professor deve ser vista como parte integrante de uma política institucional, pois “a docência requer formação profissional para seu exercício” (VEIGA, 2014, p. 332) e é construída a partir da articulação dos saberes experienciais, disciplinares, curriculares e pedagógicos (TARDIF, 2010).
A partir da leitura do art. 66, depreende-se que a LDB não considera a formação docente para o ensino superior tão relevante como para o ensino básico, haja vista que a lei pouco regula o processo de formação inicial e continuada de professores em cursos de pós-graduação stricto sensu, limitando-se à mera preparação para o exercício do magistério superior. Além disso, não impõe nenhuma obrigação aos programas de pós-graduação (PPGs) destinada à formação específica para a docência, de forma que “uma mudança de cenário fica a critério das instituições de ensino” (OLIVEIRA, 2010, p. 48). Isto é, na prática, a LDB faculta aos PPGs formar ou não docentes para o magistério na educação superior (OLIVEIRA, 2010)8.
Torres e Almeida (2013) afirmam que as três principais características do ensino superior no Brasil são a valorização dos conhecimentos técnico-disciplinares em detrimento dos conhecimentos pedagógicos; o prestígio da pesquisa em detrimento do ensino de graduação; e a omissão de políticas públicas e institucionais quanto à formação de professores.
A primeira característica, segundo as autoras, está relacionada com a predominância das aulas magistrais e conteudistas (TORRES; ALMEIDA, 2013), típicas do modelo de ensino bancário (FREIRE, 1987), em que o processo educativo é reduzido ao ato de passar e transmitir o conteúdo, e em que o professor da educação superior é “um mero ‘dador’ de aulas, um repetidor de informações” (DOTTA; LOPES; GIOVANNI, 2011, p. 587, grifo do autor).
A segunda característica denota a preterição do ensino diante da pesquisa. De acordo com as autoras, há um descompasso entre o valor financeiro e simbólico atribuído às atividades de docência e às atividades de pesquisa, porque a “carreira docente é pensada a partir da produção científica voltada à pesquisa” (TORRES; ALMEIDA, 2013, p. 15), isto é, ao passo que são produzidas e publicadas pesquisas, viabilizam-se, por consequência, mudanças salariais e ascensões nos níveis da carreira.
A terceira e última característica está associada à omissão, da LDB e das políticas públicas, relacionada com a formação de professores, como anteriormente. Conforme destacam as autoras, as disposições legais estabelecidas na LDB quanto à formação de professores para o ensino superior são minimalistas e não primam pelo “conhecimento pedagógico na condução do ensino, da extensão e, quiçá, da própria pesquisa” (TORRES; ALMEIDA, 2013, p. 16).
Formar para a docência não significa dissociá-la da pesquisa. Pelo contrário, significa formar o profissional docente para o exercício do ensino, da pesquisa e da extensão. Por esse motivo, Demo (2005) propõe o desafio de educar pela pesquisa para que se desenvolva a competência formal (qualidade técnico-científica e profissional) e política (qualidade cidadã) dos educandos, na educação básica e superior, com o questionamento reconstrutivo da realidade. Demo (2005) ressalta, contudo, que a educação pela pesquisa não é uma visão pedagógica da prática do trabalho docente, mas um olhar propedêutico para o processo de educação. Ou seja, é uma forma de tornar a pesquisa um instrumento próprio e necessário ao processo de educar.
Severino (2004), por seu turno, acredita que a pesquisa deve se tornar eixo para a (re)estruturação da universidade, pois “a prática da pesquisa no âmbito do trabalho universitário contribuiria significativamente para tirar o ensino superior dessa atual irrelevância” (SEVERINO, 2004, p. 8). Nesse caso, observa-se, assim como em Demo (2005), que a pesquisa é elemento indispensável ao processo de construção do conhecimento e à implementação de mudanças nos modelos de ensino atualmente vigentes.
Por outro lado, Paiva (2010) sublinha que há uma presunção equivocada segundo a qual um bom pesquisador é inevitavelmente um bom professor, o que teria justificado a preferência de atividades prioritárias direcionadas à formação de pesquisadores no âmbito dos programas de pós-graduação stricto sensu.
A ênfase demasiada na pesquisa, muitas vezes sem a garantia de sua qualidade, implica despreparo para a docência, e a consequência desse despreparo são os professores que, à força, na marra, aprendem a ser professores (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010). Em ingressando na sala de aula sem preparo teórico-metodológico sobre os saberes e as práticas docentes, a profissão docente torna-se corolário da pesquisa ou mesmo do exercício de profissões técnicas, como as de juiz, advogado, delegado etc.9. Os cursos de mestrado e de doutorado, portanto, têm um papel importante na formação de futuros docentes, “pelo fato de os cursos de pós-graduação stricto sensu serem a principal via de formação de professores universitários”, o que torna “proeminente a prática do ensino em conformidade e harmonia com a pesquisa, de modo que uma não se sobreponha à outra” (JOAQUIM; VILAS BOAS; CARRIERI, 2013, p. 366).
Nesse sentido, levando em consideração a realidade dos cursos jurídicos do Brasil, em que, via de regra, a docência é uma profissão acessória das outras profissões jurídicas (FGV, 2013), e considerando ainda que a pós-graduação deveria ser o espaço de preparação – ou formação – de professores do ensino superior, analisaremos, na próxima seção, alguns documentos da Capes, no intuito de perscrutar o modo como a formação de professores em cursos de mestrado e de doutorado em direito é avaliada pela instituição.
A Capes e a avaliação dos PPGDs: a formação para a pesquisa em primeiro lugar e a formação inicial de professores em lugar nenhum
A Capes é o órgão do Ministério da Educação responsável pela avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu oferecidos pelas instituições de ensino superior (IESs) brasileiras. Suas avaliações são realizadas por meio de documentos de área, de fichas de avaliação e relatórios de avaliação, que são elaborados a cada quatro anos.
Os documentos de área são “referência para os processos avaliativos, tanto na elaboração e submissão de propostas de cursos novos quanto na avaliação dos cursos em funcionamento” (BRASIL, 2019b, p. 7). Nesses documentos constam “[…] o estado atual, as características e as perspectivas, assim como os quesitos considerados prioritários na avaliação dos programas de pós-graduação pertencentes a cada uma das 49 áreas de avaliação” (BRASIL, 2019b, p. 7). A área do direito é a de número 26.
Segundo o “Relatório de Grupo de Trabalho” da Capes10, as fichas de avaliação trazem os “termos dos quesitos e itens a serem avaliados” (BRASIL, 2019b, p. 8). Cada área tem liberdade para “propor como esses quesitos e itens serão avaliados, bem como, dentro dos limites estabelecidos pelo regulamento da avaliação, propor os pesos dos mesmos” (BRASIL, 2019b, p. 7). Nesse sentido, as fichas de avaliação visam ao estabelecimento de critérios para avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu. Por fim, nos relatórios de avaliação, são apresentados os resultados das avaliações realizadas por cada área.
O último documento de área do direito, disponível no endereço eletrônico da Capes, refere-se à Avaliação Quadrienal 2017-2020, publicado em 2019. O referido documento está dividido em duas partes, a saber: I – Considerações sobre o estado da arte da área11; e II – Considerações sobre o futuro da área. A primeira parte do documento trata das considerações gerais sobre o estágio atual da área do direito e traz uma breve explanação sobre o surgimento e a formação da pós-graduação em direito, abordando as características e tendências dessa área de conhecimento nos últimos anos.
Esse documento é bastante extenso e apresenta o cenário atual da pós-graduação em direito no Brasil, apontando que houve um aumento significativo no número de cursos de pós-graduação em direito no país, especialmente em instituições de ensino privado. Atualmente, de todos os 109 PPGDs, 72 são particulares; 30 são públicos federais; e 7 são públicos estaduais (BRASIL, 2019a). Segundo a Capes,
Entre 2013 e 2019, a área de direito cresceu substancialmente ao passar de 84 (oitenta e quatro) para 109 (cento e nove) programas, excluídos os aprovados em 2019 na fase de reconsideração. Quanto a cursos de doutorado, no mesmo período, a evolução deu-se de 30 (trinta) para 42 (quarenta e dois) cursos. A mais notável mudança na Área centrou-se nos mestrados profissionais. De 1 (um) único curso, em 2016 chegou-se a 4 (quatro) cursos. No ano de 2019, a área passou a contar com 11 (onze) mestrados profissionais. (BRASIL, 2019a, p. 4).
Nessa primeira parte do documento, outras questões importantes são levantadas, como o desequilíbrio regional quanto à distribuição dos PPGDs no Brasil, o regime de trabalho do corpo docente dos PPGDs e a interdisciplinaridade na área de avaliação. Há também um tópico que trata da configuração da área, em que se destaca a política geral da área do direito. Observamos que as diretrizes da política geral da área do direito orientam a avaliação dos programas de mestrado e de doutorado com grande ênfase na produção em pesquisa.
Nesse ponto, é importante que façamos uma ressalva. O fato de termos constatado que há predominância ou ênfase dada à pesquisa na política de avaliação da Capes não permite pressupor que as pesquisas produzidas nos cursos de mestrado e de doutorado em direito sejam teórico-metodologicamente sofisticadas, de altíssima qualidade ou que tenham relevante impacto científico e social. Fazemos essa observação porque a análise da qualidade das pesquisas produzidas pelos PPGDs não foi objetivo de nossa pesquisa, a partir da qual chamamos atenção tão somente para a recorrência da categoria pesquisa no discurso oficial da Capes e para o consequente apagamento da formação inicial de professores nos PPGDs e nas políticas de avaliação da pós-graduação brasileira. De todo modo, destacamos que a Capes é consideravelmente orientada por uma lógica produtivista que valoriza muito mais a quantidade do que a qualidade de trabalhos publicados e de dissertações e teses defendidas no tempo estipulado, o que, em si, já seria assunto para outros estudos e pesquisas.
Já na segunda parte, “Considerações sobre o futuro da Área”, são trazidas as perspectivas da Capes sobre as futuras avaliações e sobre as expectativas quanto à avaliação quadrienal em curso (2017-2020). Logo nos primeiros parágrafos, o documento diz que, após o último ciclo avaliativo, houve “uma valorização maior das publicações em periódicos. Essa orientação deve se manter, conquanto a produção em livros seja característica da Área e mereça ser também apreciada adequadamente” (BRASIL, 2019a, p. 14). Destacamos que em nenhuma das partes do documento e em nenhum dos seus diversos itens foi mencionada a formação para a docência como uma diretriz da política geral da área do direito.
Passando à análise do Relatório de Avaliação de 2017, referente à Avaliação Quadrienal 2013-2016, há um quesito bastante interessante que merece nosso destaque, qual seja: a “Eficiência do Programa na formação de mestres e doutores bolsistas: Tempo de formação de mestres e doutores e percentual de bolsistas titulados” (BRASIL, 2017c, p. 27). Observemos que esse documento associa a eficiência da formação de bolsistas ao tempo que os estudantes levam para defender suas dissertações e teses. Assim, quanto antes o bolsista concluir o curso e for titulado, considerando o prazo estipulado, maior será a eficiência do programa. Não há nesse quesito nenhum critério relacionado com a formação teórico-prática para a docência oferecida aos bolsistas. Dessa forma, segundo a Capes, o respeito aos prazos para a conclusão dos cursos é o único critério utilizado para avaliar a eficiência da formação de mestres e doutores bolsistas, e, consequentemente, para classificar os PPGDs como muito bons, senão vejamos:
MUITO BOM é o Programa de Pós-Graduação com um tempo para a titulação de até 30 meses para o mestrado e 48 meses para o doutorado; BOM o Programa de Pós-Graduação com um tempo para a titulação de até 36 meses para o mestrado e até 52 meses para o doutorado. (BRASIL, 2017c, p. 27).
Com essas demonstrações, é patente que a pesquisa, a despeito de sua qualidade substantiva, ocupa um espaço de destaque na pós-graduação stricto sensu em direito no Brasil, em detrimento da formação para a docência, que permanece invisível institucionalmente. Isto é, pela análise dos documentos oficiais da Capes, instituição responsável pela avaliação dos PPGs, demonstra-se que a formação para a docência oferecida pelos cursos de mestrado e doutorado em direito não passa pelo mesmo controle, fiscalização e incentivo que a formação para a pesquisa, pois a avaliação dos PPGs se baseia, sobretudo, em critérios relacionados com a produtividade, notadamente a quantidade de trabalhos publicados e de dissertações e teses defendidas, o tempo de titulação e a qualidade formal das pesquisas. Percebe-se ainda que os critérios para avaliar a qualidade dos cursos, dos professores e dos discentes referem-se muito menos à qualidade da formação docente que à formação para a pesquisa. Com isso, faz-se necessário refletir sobre o lugar da formação de professores nos cursos de mestrado e de doutorado, especialmente em direito, foco desta análise.
Ainda no relatório de avaliação de 2017, apresenta-se um panorama dos PPGDs no Brasil, e destacam-se os critérios utilizados para avaliar os mestrados e doutorados como muito bons, bons, regulares, fracos ou insuficientes. O documento também é bastante extenso, porém, considerando que buscamos analisar a formação para a docência oferecida nos PPGDs, realçamos o seguinte trecho, que trata da “coerência, consistência, abrangência e atualização das áreas de concentração, linhas de pesquisa, projetos em andamento e proposta curricular” (BRASIL, 2017c, p. 21). O documento considera:
MUITO BOM o curso que demonstrar (1) articulação e coerência entre disciplinas, projetos de pesquisa, linhas de pesquisa e áreas de concentração; (2) consistência entre as linhas de pesquisa, que devem manter organicidade entre si e uma forte ligação com a área de concentração; (3) relevância da temática das disciplinas, dos projetos de pesquisa, das linhas de pesquisa e das áreas de concentração, evitando repetição dos tradicionais “ramos” do direito, que desconsidera qualquer problematização ou especificação crítica; (4) atualização e relevância dos programas e bibliografias das disciplinas; e (5) adequação dos títulos das disciplinas com suas ementas. Nos cursos com duas áreas de concentração, é imprescindível que haja pontos de contato que unam as áreas de concentração. Nos cursos com três ou mais áreas de concentração a proximidade entre áreas de concentração não é fator determinante para o conceito. Em todas hipóteses devem ser observados os números mínimos de docentes por área de concentração e a consistência interna de cada área de concentração. (BRASIL, 2017c, p. 20).
Nesse documento, há um item que integra a avaliação chamado “Distribuição das atividades de pesquisa e de formação entre os docentes do programa” (BRASIL, 2017c, p. 24), porém não há definição, tampouco detalhamento, dessas atividades de formação.
A falta de atenção da Capes à formação para a docência de discentes para o magistério superior aponta a existência de um contrassenso: exatamente a instituição que deveria “estimular, mediante a concessão de bolsas de estudo, auxílios e outros mecanismos, a formação de recursos humanos altamente qualificados para a docência de grau superior […]”12 (BRASIL, 1992), deixa à deriva vários discentes dos PPGDs, notadamente os aspirantes a professor.
Diga-se, ainda, que, para a Capes, é “MUITO BOM o programa no qual (1) a totalidade do Corpo Docente desenvolve atividades de pesquisa, orientação e formação no programa e (2) Docentes Colaboradores não assumam mais de 20% das orientações no Programa […]” (BRASIL, 2017c, p. 24). A avaliação, portanto, leva em consideração o engajamento de professores dos programas em atividades de pesquisa, de orientação e de formação, e não a qualidade da formação oferecida aos alunos nesses cursos.
A despeito de a lei incumbir à pós-graduação stricto sensu a função de preparar os professores para a docência no ensino superior, o documento de área de direito de 2019 e o relatório de área de 2017 não mencionam a formação de professores como objetivo dos cursos de mestrado e de doutorado. Fala-se em fomento e reconhecimento da pesquisa, em produção científica, em publicações etc., mas se desconsidera o fomento à docência, o reconhecimento e a formação do profissional docente.
Uma vez que analisamos o modo como a Capes avalia e afere a qualidade dos PPGDs do Brasil, nas próximas seções passaremos à investigação de como os PPGDs da Unifor e da UFC regulam o funcionamento de seus cursos de mestrado e de doutorado, especialmente no tocante às suas políticas de formação de professores, motivo pelo qual examinaremos os regimentos internos e a ficha de avaliação quadrienal (2017) da Capes de cada programa.
A formação docente no Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Unifor (PPGD-Unifor)
A Unifor é uma IES privada. Seu curso de mestrado em direto constitucional está em vigência desde o ano de 1999; e o de doutorado, desde 2007, sendo o primeiro curso de doutorado em direito criado no estado do Ceará. Atualmente, sua nota é 6, de acordo com a avaliação da Capes (BRASIL, 2017a).
Vejamos, de antemão, o que diz o art. 3º do Regimento Interno do PPGD-Unifor, que elenca os objetivos dos cursos de mestrado e de doutorado:
Art. 3º. É objetivo do Programa proporcionar formação científica ampla e aprofundada no âmbito dos estudos jurídicos, devendo, para consecução de suas finalidades: I – qualificar Professores, pesquisadores e outros profissionais, com vista à capacitação de pessoal para a Universidade e outras instituições de ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para a formação de Docentes universitários; II – estimular e desenvolver atividades de pesquisa científica; III – contribuir para o ensino, pesquisa e extensão, para conhecimento aprofundado dos problemas nacionais, com ênfase nas necessidades regionais; IV – aperfeiçoar a formação de bacharéis, cientistas e profissionais do direito, com o objetivo de expandir qualitativamente a Ciência Jurídica e promover sua maior interação com a sociedade e os agentes jurídicos, contribuindo para a formação de recursos humanos especializados; e V – cooperar para a integração dos estudos jurídicos no processo de desenvolvimento social e econômico do país, em especial do estado do Ceará e da região Nordeste. (UNIFOR, 2018, p. 313, grifo nosso).
Pelo que se constata da análise do Regimento Interno, a formação para a docência aparece como um dos objetivos do PPGD, o que mostra adequação ao que dispõe o art. 66 da LDB, o qual determina que a preparação para a docência far-se-á, prioritariamente, na pós-graduação stricto sensu (BRASIL, 1996). Contudo, faz-se necessário questionar quais são os mecanismos institucionais destinados à implementação desses objetivos. Segundo o art. 29 do Regimento Interno:
Art. 29. Os cursos de mestrado e de doutorado deverão ter, respectivamente, no mínimo, 24 (vinte e quatro) e 48 (quarenta e oito) créditos em atividades de ensino e pesquisa. §1º Das 24 (vinte e quatro) unidades de créditos em disciplinas, exigidas para o mestrado, 12 (doze) serão obtidos dentre as disciplinas obrigatórias comuns, às duas áreas de concentração e dentre as específicas de cada área de concentração para qual o acadêmico foi aprovado. Os outros doze créditos (4 disciplinas) serão obtidos diante das disciplinas eletivas, escolhidas pelo acadêmico, mediante opinião do Professor Orientador e de iniciação à docência. Para o doutorado são exigidos dos 48 (quarenta e oito) unidades de créditos, dos quais 12 (doze) são obtidas em disciplinas obrigatórias na área de concentração do acadêmico e 36 (trinta e seis) em disciplinas eletivas, assim em outras atividades previstas pelo Programa. (UNIFOR, 2018, p. 326).
Percebemos que os estudantes devem, segundo esses dispositivos, cumprir uma carga horária mínima em disciplinas obrigatórias e optativas nos cursos de mestrado e de doutorado. No Regimento Interno, estão elencadas todas as disciplinas, obrigatórias e optativas, que são distribuídas de acordo com as áreas de concentração. As disciplinas obrigatórias para as duas áreas de concentração são “Epistemologia Jurídica” e “Didática do Ensino Jurídico”, ambas com três créditos – 45 horas. A incorporação dessa última disciplina ao conjunto das disciplinas obrigatórias representa uma significativa mudança, pois não era obrigatória no período em que fora realizada a penúltima avaliação da Capes, em 2013 (BRASIL, 2013). Quanto às disciplinas optativas, o art. 33, §1º, do Regimento Interno, apenas dispõe que “o aluno deve cursar pelo menos 50% (cinquenta por cento) das disciplinas eletivas integrantes da sua área de concentração” (UNIFOR, 2018, p. 328).
Além do cumprimento de créditos em disciplinas, estão previstas outras atividades obrigatórias a serem desenvolvidas pelos discentes. Vejamos o seguinte dispositivo:
Art. 32. São atividades obrigatórias para o Corpo Discente, independentes de atribuição de créditos, a participação em Grupos de Pesquisa credenciados junto ao Diretório de Grupos do CNPq, bem como em outras atividades didático-pedagógicas estabelecidas pela Coordenação do Programa. (UNIFOR, 2018, p. 328)13.
O Regimento Interno do PPGD-Unifor, em seu art. 3º, estabeleceu como objetivo principal “proporcionar formação científica ampla e aprofundada no âmbito dos estudos jurídicos” (UNIFOR, 2018, p. 313). Ocorre que, pelo que se observa na análise desse documento, a formação para a docência não foi tratada do mesmo modo e com o mesmo grau de importância como a formação para a pesquisa, fato que corrobora a tese de que há “uma sobreposição da imagem do pesquisador em relação à do professor” (JOAQUIM; VILAS BOAS; CARRIERI, 2013, p. 356) na formação oferecida pela pós-graduação stricto sensu em áreas diversificadas.
No PPGD-Unifor, o estudante de mestrado tem de cursar 24 créditos – equivalentes a oito disciplinas, cada uma com três créditos; no doutorado, o estudante tem de cursar 48 créditos – equivalentes a dezesseis disciplinas, cada uma com três créditos. No curso de mestrado, por exemplo, quatro disciplinas teóricas são obrigatórias, porém apenas uma delas é relacionada com a formação de professores. Quanto às disciplinas optativas que devem ser cursadas no mestrado – quatro, ao todo –, pelo menos 50 por cento delas, isto é, duas, devem ser correlatas à área de pesquisa do estudante. Isso significa que, do total de oito disciplinas, o estudante de mestrado tem de cursar, necessariamente, pelo menos seis disciplinas referentes à área de concentração de sua pesquisa, enquanto as outras duas podem ser escolhidas livremente dentre as optativas. Ressaltamos que das 36 disciplinas ofertadas no PPGD-Unifor há apenas duas referentes à discussão sobre a docência no ensino superior, a saber: “Didática do ensino jurídico” – obrigatória, de 45 horas14 – e “Estágio de docência” – optativa, de 45 horas. O Regimento Interno dispõe sobre o “Estágio de Docência” em seus arts. 36 e 37:
Art. 36. Os discentes do Programa beneficiários de bolsas fornecidas por órgãos de fomento à pesquisa deverão participar do Programa de Estágio de Docência da UNIFOR, que se caracteriza pelo exercício de atividades didático-pedagógicas em disciplinas da graduação, sob a supervisão e avaliação, sempre que possível, dos seus respectivos orientadores, devendo obedecer aos critérios e procedimentos estabelecidos nas normas da UNIFOR e do órgão de fomento respectivo. (UNIFOR, 2018, p. 330-331, grifo nosso).
Esse dispositivo determina que os estudantes beneficiários de bolsa de agências de fomento à pesquisa devem participar do estágio de docência. Porém, há outro dispositivo que desobriga os estudantes que não recebem bolsa de participarem da disciplina de “Estágio de docência”. O art. 37, inclusive, impõe restrições à participação dos estudantes que não são beneficiários de bolsas de agências financiadoras no componente curricular da disciplina:
Art. 37. Os discentes do Programa que não são beneficiários de bolsas fornecidas por órgãos de fomento à pesquisa podem participar do Estágio de Docência, desde que atendam aos seguintes requisitos:
I – obter a concordância do Orientador por escrito;
II – não ter pendências financeiras e/ou acadêmicas com o Programa.
Parágrafo Único – O Estágio de Docência conferirá ao Discente 3 (três) créditos por semestre e só poderá ser realizado em 1 (um) semestre para o Mestrado e em 2 (dois) semestres para o Doutorado. (UNIFOR, 2018, p. 330-331).
Portanto, há três requisitos que os estudantes não beneficiários de bolsa de incentivo à pesquisa devem preencher para poder cursar o “Estágio de docência”: a) precisam obter a concordância do orientador, por escrito; b) não devem ter pendências financeiras com a IES; e c) não devem ter pendências acadêmicas com o programa. Observamos, ainda, que a disciplina só pode ser realizada em, no máximo, um semestre pelos estudantes de mestrado; e em dois, pelos estudantes de doutorado.
É importante destacar que não há, na Ficha de Avaliação do PPGD-Unifor de 2017, referente ao quadriênio 2013-2016 (BRASIL, 2017a), nenhuma informação sobre a quantidade de egressos do programa que, atualmente, trabalham como professores. Contudo, na Ficha de Avaliação do PPGD-Unifor de 2013, referente ao triênio 2010-2012, foram levantados dados sobre isso, os quais são relevantes para pensarmos sobre os caminhos seguidos pelos estudantes. Segundo esse documento, em 2010, 60 por cento dos egressos dos cursos de mestrado e doutorado atuavam como docentes; em 2011, 42 por cento; e, em 2012, 50 por cento eram professores (BRASIL, 2013)15.
Esses dados apontam que a maioria dos estudantes que cursou mestrado ou doutorado no PPGD-Unifor iniciou ou continuou a atuar profissionalmente como docente, e que muitos desses estudantes, a despeito de terem cursado pós-graduação stricto sensu, cuja marca é o privilégio à formação para a pesquisa (DOTTA; LOPES; GIOVANNI, 2011; OLIVEIRA, 2010; TORRES; ALMEIDA, 2013), curiosamente se direcionaram em sua maior parte à atuação como professores universitários; ou seja, “ao concluírem seus cursos, os mestres e doutores brasileiros passam a atuar primordialmente nas instituições de ensino superior […]” (VALVERDE et al., 2017, p. 82) como professores, e não necessariamente como pesquisadores.
Nesta seção, mostramos como o PPGD-Unifor regula a formação para a docência em seus cursos de mestrado e doutorado; na seção seguinte, debruçaremo-nos sobre a análise dessa regulação no PPGD-UFC, lançando mão da análise de seu regimento interno e da Ficha de Avaliação do PPGD-UFC de 2017, referente ao quadriênio 2013-2016.
A formação docente no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD-UFC)
O curso de mestrado em direito da UFC é o mais antigo do estado do Ceará e está em vigência desde o ano de 1977. O doutorado foi criado na última década e está em funcionamento desde 2011. Segundo a Ficha de Avaliação do PPGD-UFC de 2017, referente ao quadriênio 2013-2016, a nota atribuída pela Capes ao programa é 4 (BRASIL, 2017b).
O art. 3º do Regimento Interno do PPGD-UFC16 enuncia que “é objetivo do Programa possibilitar a competência científica e profissional dos graduados, desenvolvendo e aprofundando aptidões para a pesquisa, o ensino e extensão e para as profissões qualificadas” (UFC, 2015, p. 1). Esse dispositivo diz quais são os objetivos da pós-graduação stricto sensu, sem fazer menção aos instrumentos a serem utilizados para a obtenção dos resultados, especialmente no que concerne à formação para a docência. Os arts. 4º e 5º do Regime Interno dispõem sobre a integralização curricular e estabelecem o tempo máximo de conclusão dos cursos:
Art. 4º O curso de mestrado terá duração máxima de 24 (vinte e quatro) meses, excepcionalmente prorrogáveis por mais 03 (três) meses, pressupondo a integralização de, no mínimo, 30 (trinta) créditos, dos quais 06 (seis) referentes às atividades de dissertação.
Art. 5º O Curso de Doutorado terá duração máxima de 48 (quarenta e oito) meses, excepcionalmente prorrogáveis por mais 06 (seis) meses, pressupondo a integralização de, no mínimo, 60 (sessenta) créditos, dos quais 12 (doze) referentes às atividades relativas à tese. (UFC, 2015, p. 1).
Esses dispositivos tratam da obrigatoriedade de os estudantes cursarem um número mínimo de créditos referentes a atividades de pesquisa. As matérias são distribuídas em disciplinas da área de concentração e em disciplinas propedêuticas, segundo o art. 23 do Regimento Interno (UFC, 2015). Ocorre, entretanto, que o texto do Regimento Interno apresenta algumas contradições e lacunas, o que dificultou bastante sua compreensão. Por meio da análise de seu texto, verificamos que todas as disciplinas teóricas – da área de concentração e propedêuticas – são optativas, e que as únicas atividades obrigatórias para os estudantes de mestrado são o Seminário de Integração, a proficiência em um idioma estrangeiro, o “Estágio de docência I” – com 64 horas –, a qualificação e a dissertação. Para os estudantes de doutorado, são obrigatórios os estágios de docência II e III – de 64h/a cada –, a proficiência em língua estrangeira, o Seminário de Integração, a qualificação de tese e a tese (UFC, 2015).
Como se vê, a maior parte das atividades obrigatórias é destinada a atividades de pesquisa, e, de forma muito incipiente, se direciona à formação pedagógica. O fato de os estágios de docência serem obrigatórios para alunos de mestrado e doutorado – independentemente de receberem bolsa ou não – aponta uma característica relevante do PPGD-UFC. Entretanto, ainda assim, evidencia-se que há um descompasso entre a formação para a pesquisa e a formação para a docência oferecida nesse programa. Isso porque a única disciplina teórica oferecida – optativa, aliás – que é referente à formação de professores é a de “Metodologia do ensino jurídico” (UFC, 2020b)17, que conta apenas com 32 horas – dois créditos –, diferentemente das outras disciplinas teóricas, que têm, cada uma, 64 horas – 4 créditos. Como se trata de uma disciplina optativa, os estudantes podem realizá-la ou não. Com isso, a despeito de os estágios de docência serem obrigatórios no PPGD-UFC, há, na prática, uma sobreposição dos saberes técnicos e da experiência sobre os saberes pedagógicos, uma vez que os estudantes podem realizar essas atividades práticas sem sequer terem passado por um processo de formação elementar para o exercício da profissão de professor.
Embora a disciplina “Estágio de docência” possibilite articular teoria e prática, “há que se atentar para o fato de que um bom teórico nem sempre é um bom professor; essas duas realidades precisam coexistir, e não ser entendidas como polaridades” (JOAQUIM; VILAS BOAS; CARRIERI, 2013, p. 362). Além disso, há outro elemento que precisa ser destacado, sobretudo quando falamos dos cursos de direito e de outros cursos que só existem na modalidade de bacharelado, a saber: “[…] a maior parte dos pós-graduandos são [sic] bacharéis e não possui nenhum tipo de formação em licenciatura” (p. 363). Assim, considerando que não há formação inicial de professores nos cursos de bacharelado, sobretudo nos de direito, “a formação desses professores merece um maior cuidado, uma vez que o estágio, muitas vezes, é a única alternativa oferecida a eles para a construção de uma postura didática diante de uma turma de alunos” (p. 363).
Verificamos que a escolha das disciplinas no PPGD-UFC é feita em razão da sua adequação à pesquisa realizada pelo estudante na pós-graduação; enquanto a preparação teórico-metodológica para o exercício da docência depende, sobretudo, de um interesse pessoal em se tornar professor. Constata-se, novamente, que, de modo geral, a formação inicial de professores nos cursos de pós-graduação stricto sensu é ofertada de modo facultativo (OLIVEIRA, 2010), ou, quando muito, de modo não sistematizado, sendo marcada por uma concepção voluntarista, segundo a qual cabe ao estudante escolher se quer ou não se formar professor. Assim, os programas de pós-graduação, “predominantemente, são portadores de propostas identitárias voltadas à pesquisa” (DOTTA; LOPES; GIOVANNI, 2011, p. 588), e não à formação para docência. Isso acontece porque, por um lado, os PPGDs “não sabem exatamente como fazê-lo e, por outro, porque não é uma prioridade valorizada nem pelas instâncias reguladoras, nem pelos programas. Desse modo, a semiformação é passada adiante” (JOAQUIM, VILAS BOAS, CARRIERI, 2013, p. 357). Uma das consequências dessa semiformação pedagógica é o despreparo para o exercício da docência, de maneira que:
Na maioria das instituições de ensino superior, incluindo as universidades, embora seus professores possuam experiência significativa e mesmo anos de estudo em suas áreas específicas, predomina o despreparo e até um desconhecimento científico do que seja o processo de ensino e aprendizagem, pelo qual passam a ser responsáveis a partir do instante em que ingressam na sala de aula. (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 37).
Dessa forma, ao ingressarem na sala de aula sem embasamento científico e técnico sobre a docência, e levando apenas os saberes da experiência (TARDIF, 2010; THERRIEN, 2002), “os professores recebem ementas prontas, planejam individual e solitariamente, e é nesta condição – individual e solitariamente – que devem se responsabilizar pela docência exercida” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010, p. 37).
Considerações finais
Analisando a LDB, constatamos que a formação de professores do ensino superior não tem o mesmo destaque na legislação que a formação de professores do ensino básico. Apesar de haver diferenças entre a formação de crianças, adolescentes e adultos – no ensino básico – e a formação de adultos e adolescentes – no ensino superior –, há um desafio comum com o qual professores têm de lidar: formar pessoas.
Como constatamos, no caso do ensino superior, a formação é substituída por uma preparação no âmbito dos PPGs, que se dá, como concluímos na pesquisa, de modo muito precário, em razão da dissociação entre pesquisa, ensino e extensão, e da sobreposição das atividades de pesquisa às de formação docente de mestrandos(as) e doutorandos(as). A despeito de a LDB falar sobre essa preparação, o seu conteúdo regulatório é diminuto, uma vez que não estabelece efetivamente diretrizes concernentes à docência no ensino superior. Dessa forma, ser professor no ensino superior torna-se resultado natural do exercício da pesquisa ou, ainda, se consideramos a realidade dos cursos de graduação em direito, do exercício de profissões técnico-jurídicas.
Em seguida, examinamos os documentos elaborados pela Capes que, ao mesmo tempo, avaliam e regulam institucionalmente os cursos de mestrado e de doutorado em direito e percebemos que, no que tange aos critérios dessas avaliações, não é observada a formação docente oferecida nos PPGDs. O enfoque da avaliação da Capes está na averiguação da quantidade e da qualidade das pesquisas e das publicações dos professores e dos estudantes.
Com base na análise que realizamos, podemos afirmar que a pesquisa ocupa um espaço de destaque na pós-graduação stricto sensu em direito no Brasil, o que, por si só, não significa que haja produção de trabalhos de qualidade em todos os PPGDs do país, fato que requer estudos e pesquisas que tenham como foco a qualidade da produção em pesquisa e a avaliação realizada pela Capes.
Analisamos também os regimentos internos dos PPGDs, no intuito de desvendar como é regulada a formação pedagógica oferecida aos estudantes. Em ambos os programas, percebemos que há forte privilégio da pesquisa em detrimento da docência, o que se percebe pela existência de apenas uma disciplina teórica e uma disciplina prática referente à formação para a docência.
No PPGD-Unifor, os discentes têm de cursar uma disciplina teórica relacionada com a docência – “Didática do ensino jurídico” –, mas lhes é facultado, salvo para os bolsistas, cursar a única disciplina prática, que é o “Estágio de docência”. Por outro lado, no PPGD-UFC, os estudantes não precisam cursar nenhuma disciplina teórica referente à docência, mas têm de cursar, obrigatoriamente, as disciplinas práticas de “Estágio de docência” – que, muitas vezes, têm forma e conteúdo muito flexíveis –, mas sem nenhuma formação teórica prévia acerca da docência. Em ambos os casos, identificamos uma opcionalidade que pode dissociar teoria e prática do trabalho docente.
O que há em comum entre esses dois contextos é o grande desequilíbrio entre formação para a pesquisa e para a docência. Evidentemente, esse desequilíbrio tem níveis diferentes, a depender de cada um dos contextos estudados. Porém, o caso do PPGD-UFC chama mais atenção, pela não obrigatoriedade de nenhuma disciplina teórico-pedagógica e pela falta de estruturação e organização do modo de funcionamento dos estágios de docência. Com a análise dos regimentos internos dos PPGDs da Unifor e da UFC, concluímos que, ainda que em medidas diferentes, a formação oferecida nesses programas é insuficiente para formar professores, pois se destina quase que exclusivamente à pesquisa e pouco à reflexão e à prática da docência.
A insuficiência de formação para o trabalho docente em ambos os programas analisados aponta para fatores estruturais: o primeiro, de ordem político-jurídica, decorrente do fato de a LDB não tratar a pós-graduação stricto sensu como espaço efetivo de formação de professores do ensino superior, inexistindo uma regulação específica sobre ela; e o segundo, de ordem político-institucional, que decorre dos parâmetros e critérios de avaliação da Capes, que se baseiam quase que exclusivamente na formação de pesquisadores, privilegiando a produção em pesquisa e o número de publicações, de modo que os PPGs por ela avaliados se adequam aos critérios estabelecidos em suas fichas de avaliação e em seus documentos de área. Em razão dessa confluência de fatores, negligencia-se e invisibiliza-se a formação inicial de professores para o ensino superior, o que acarreta a ausência de um preparo articulado entre teoria e prática do trabalho docente e entre pesquisa e formação docente, relações fundamentais ao exercício da profissão de professor.
Partindo da metáfora do barco sem rumo, tirado de sua rota por correntes marítimas ou de vento, analisamos a regulação da formação inicial de professores em programas de pós-graduação stricto sensu em direito, a partir do que concluímos que a formação docente está à deriva, sem direção certa ou mesmo perdida, em razão de fatores político-jurídicos e político-institucionais, fato que compromete significativamente a profissionalização e a construção de identidades docentes, assim como a qualidade do ensino oferecido nos cursos de direito no Brasil.