Introdução
Entre os possíveis modos de se fazer filosofia em sala de aula, há uma temática que nos parece essencial e ainda não recebeu a devida atenção para a formação de professores de filosofia, a saber: em que medida os saberes e as práticas próprios à formação do ator podem auxiliar na formação de professores de filosofia?
A proposta de investigar essa questão surgiu a partir da experiência de formação de professores de filosofia e da leitura de uma palestra proferida pela professora Gisele Secco. Ela observou, que apesar da expansão de livros didáticos e paradidáticos de filosofia no Brasil, principalmente após a obrigatoriedade do seu ensino em 2008, e da proposta de se ultrapassar a concepção meramente conceitual de ensino de filosofia para abarcar uma dimensão de criação de conceitos:
[...] a maioria esmagadora do que se diz e publica, quando se propõe uma determinada concepção de filosofia como guia para sua didática, acaba aparecendo quase sempre desacompanhada de quaisquer diretrizes mais precisas acerca de possíveis ‘como fazer’. (SECCO, 2013, p. 3).
Na prática de formação de professores de filosofia, acompanhando os estágios obrigatórios em um curso de licenciatura no país, percebemos que as dificuldades dos estudantes não residem apenas na transposição didática dos conteúdos filosóficos, muito menos na escolha metodológica dos conteúdos a serem lecionados. As dificuldades envolvem também aspectos relacionados à corporeidade: onde ficar em sala de aula, devo ficar em pé ao lado do quadro ou posso andar? Posso dar aula sentado? Como fazer minha voz chegar até os estudantes sentados no fundo da sala? Como iniciar e encerrar a aula? O que devo falar? Posso utilizar de ironia ou brincar com os estudantes? Quando devo falar e quando interromper uma fala do estudante?
Essas são algumas questões suscitadas durante a formação de professores no curso de licenciatura em filosofia e elas se referem a uma técnica, ao como fazer uma aula de filosofia. Claro que essa não é uma técnica que possa ser mecanizada ou apreendida como uma cartilha a ser seguida, mas diz respeito às possibilidades de atuação do professor durante uma aula.
Se considerarmos a obrigatoriedade do ensino de filosofia em todas as séries do ensino médio no território nacional a partir de 2008, com a aprovação da Lei nº 11.684, percebemos que diversos autores publicaram, após esse período, obras enfatizando o ensino de filosofia e desenvolvendo propostas metodológicas para a educação básica no intuito de suprir a formação acadêmica deficitária (CERLETTI, 2009; GALLO, 2010; RODRIGO, 2009).
Grande parte dessas obras centrou-se nas metodologias de ensino de filosofia, sejam elas históricas ou temáticas, o que será explicitado adiante. Propôs-se, também, a articulação entre o conteúdo filosófico ministrado com temas da atualidade próximos às vivências dos jovens educandos. Além disso, abordou-se o seguinte problema: o ensino de filosofia seria, em si mesmo, um ato de filosofar ou uma atividade distinta desse ato?
Contudo, a dimensão prática da sala de aula, esse como fazer não foi contemplado pela quase totalidade desses autores. Isso porque essa dimensão implica conhecimentos que ultrapassam o domínio conceitual da filosofia.
Entendemos que ensinar filosofia não depende apenas da capacidade intelectual do professor nem do quanto ele domina os conteúdos filosóficos, mas envolve também a capacidade de se comunicar com o público ao qual se dirige, bem como a interação estabelecida entre eles. Por isso, buscamos neste artigo explicitar algumas correlações entre os saberes e as práticas das artes cênicas e a formação de professores de filosofia. Para tanto, será realizada uma análise de textos da fase teatral 2 do diretor e encenador polonês Jerzy Grotowski 3 .
Referencial teórico
Após o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 em favor da obrigatoriedade da filosofia no ensino médio no Brasil, houve demanda pela formação docente para atuar na educação básica. Contudo, nesse período, os cursos de graduação, inclusive aqueles de licenciatura, enfatizavam a formação de especialistas e não tinham como foco o ensino de filosofia. Como observa o professor João Carlos Salles Pires da Silva, em entrevista concedida a Carvalho e Santos (2010, p. 29), essa ausência do ensino de filosofia no ensino médio gerou uma cisão entre a produção acadêmica e o trabalho docente, culminando com acadêmicos centrados na produção de textos de determinados filósofos ou de determinada tradição filosófica, na produção de papers e nas pesquisas do programa de pós-graduação, e não com alguém refletindo sobre a especificidade do ensino.
Essa crítica quanto à formação docente também é sustentada por Lídia Maria Rodrigo (2009, p. 70) ao afirmar que os cursos de graduação criaram uma cisão entre “o que ensinar” e o “como ensinar”, bem como uma cisão entre o professor de filosofia e o pesquisador de filosofia. Para essa autora, o professor de filosofia não pode limitar-se a reproduzir o discurso do especialista, mas deve elaborar uma modalidade de saber própria, não produzida pelo pesquisador acadêmico, isto é, o saber didático-filosófico, ou seja, aquele que institui mediações capazes de possibilitar que a filosofia seja um saber ensinável. Isso não significa a simples repetição e transmissão da história da filosofia, mas a transformação de um conhecimento filosófico já consolidado (a tradição filosófica) em uma atitude filosófica, prática. Nesse sentido, o estudante é convidado a ser produtor de uma forma própria e específica de discurso conceitual.
Tomazetti et al . (2012, p. 91) explicam que a prática historiográfica marcou a formação filosófica universitária, que sofreu influência do modelo uspiano de inspiração francesa. Ocorreu, portanto, um processo de bacharelização da formação acadêmica, mesmo na licenciatura em filosofia, culminando com a valorização de disciplinas propedêuticas em detrimento das disciplinas pedagógicas. Isso gerou a falsa impressão de que basta saber algo para poder transmitir o que se sabe em sala de aula. Essa postura reforça um modelo de formação que não privilegia a reflexão filosófica sobre as práticas e as condições concretas de inserção da filosofia na escola.
Como bem observou Patrícia Velasco (2019, p. 78), a tradição universitária brasileira usualmente considera as questões de ensino de filosofia como de ordem exclusivamente pedagógica, desconsiderando-se que a docência envolve a pesquisa sobre a própria prática e esta é um problema filosófico.
No intuito de suprir essa formação acadêmica deficitária, algumas propostas de ensino de filosofia foram ancoradas em Deleuze e Guattari, como em Rodrigo Gelamo (2008, 2009), Renata Aspis e Silvio Gallo (2009) e Felipe Araújo e Filipe Ceppas (2017). Esses autores defendem o ensino de filosofia enquanto criação de conceitos. Para tanto, eles explicam que a prática de ensino deve ser centrada em uma maior flexibilidade curricular para atender às demandas que surgirem em sala de aula. Isso contribuiria para um ensino filosófico mais criativo. Defendem, ainda, que não há um único método de filosofar, mas sim métodos a serem experimentados, aperfeiçoados e reelaborados em um trabalho contínuo (ASPIS; GALLO, 2009, p. 71).
Além disso, esses autores compreendem que o ensino de filosofia se sustenta em três eixos norteadores: (1) a leitura filosófica, precedida de uma fase de sensibilização e problematização; (2) a história da filosofia; e (3) a escrita filosófica (ASPIS; GALLO, 2009, p. 108). No entanto, mesmo descrevendo esses eixos norteadores, não há nessas publicações a explicitação do como fazer necessário ao ensino nem da importância da corporeidade na prática docente. Talvez essa não explicitação seja decorrente da compreensão de que esse como advém da criatividade de cada docente, de uma prática que é individual. No entanto, sustentamos que essa prática deverá fazer parte da formação dos licenciandos em filosofia.
Por isso, concordamos com a afirmação de Gisele Secco (2013) de que a filosofia é uma prática e, enquanto tal, exige técnicas de trabalho sobre si mesma que deverão ser aprendidas em contextos formativos. A esse respeito, há carência de publicações sobre a didática filosófica, ou seja, sobre as formas de ensinar e de aprender. Essa autora intui, ao nosso ver, de modo perspicaz, que a didática filosófica se aproximaria da didática teatral, pois, além do trabalho conceitual e argumentativo próprio da filosofia, é preciso preparar os licenciandos:
[…] para situações práticas típicas da formação de atores de teatro: o enfrentamento do ator para com seus medos e inseguranças, suas capacidades de lidar com imprevistos engendrados no seio dos jogos cênicos e diante de diferentes auditórios, as capacidades de criação de situações dentro das quais certos movimentos façam sentido para o público. (SECCO, 2013, p. 8).
Mas essa relação entre teatro e filosofia na formação docente ainda é incipiente nas publicações acadêmicas. Em janeiro de 2020, realizamos uma pesquisa no Google Acadêmico buscando artigos publicados em PDF, no período de 2008 a 2019, cujos títulos continham os termos “teatro” e “ensino de filosofia”, e obtivemos apenas três resultados, sendo dois artigos e uma dissertação. Todos eles se referiam ao uso do teatro como recurso didático em sala de aula, e não sobre a formação docente 4 . Quando pesquisamos a presença desses termos em qualquer parte do artigo, considerando-se o mesmo período, obtivemos 396 resultados, mas apenas oito abordavam as temáticas pesquisadas, e eles compreendiam o teatro como um recurso pedagógico para o ensino de filosofia 5 .
Diante da pouca bibliografia encontrada sobre a relação entre a formação do ator e a formação do professor de filosofia, recorremos ao pensamento de Grotowski.
Jerzy Grotowski
Jerzy Marian Grotowski (1933-1999) foi um diretor e encenador polonês. Sua montagem da peça Príncipe Constante é considerada um marco na história do teatro do século XX. A peça, original de Calderón de la Barca, com adaptação de Juliusz Slowacki chamou atenção devido ao trabalho físico desenvolvido pelo ator Ryszard Cieslak (1937-1990) e “foi uma realização artística inovadora, não tanto no quesito estético, mas principalmente no que se refere aos procedimentos metodológicos aplicados ao trabalho do ator” (OLINTO; BONFITO, 2013, p. 1).
Grotowski, que era filho de uma professora e um guarda florestal, ingressou em 1951 no curso de formação de atores da Escola de Estudos Superiores de Teatro da Cracóvia. Formou-se em 1955, e nesse mesmo ano recebeu uma bolsa para estudar direção teatral no Instituto de Artes cênicas (GITIS), em Moscou. Lá teve contato com o trabalho sobre as ações físicas de Stanislavski, a síntese de Vakhtangov (1883-1922), o treinamento biomecânico de Meyerhold (1874-1940) e as técnicas de Tairov. No ano seguinte, devido a problemas de saúde, viajou por dois meses para a Ásia central. Em outubro, retornou para a Escola de Estudos Superiores, dessa vez para estudar direção e trabalhar como professor assistente. Em 1959, foi convidado por Ludwik Flaszen, um renomado crítico teatral e literário, para assumir o papel de diretor no Teatro das 13 Fileiras, em Opole, um pequeno município do sul da Polônia; juntaram-se a ele oito atores. Entre 1959 e 1962, eles encenaram diversos espetáculos 6 , que tiveram seu tempo de preparo aumentado exponencialmente (SLOWIAK; CUESTA, 2013, p. 29), e a direção de Grotowski modificou-se, abandonando aos poucos os conceitos de direção teatral e substituindo os truques cênicos pela preocupação com o uso do espaço, com a direção dramática e com o processo pessoal do ator.
A respeito dessa preparação do ator, Grotowski, no texto “Em busca do teatro pobre”, discorre acerca de uma transformação entre ator-diretor que dá origem a uma nova compreensão de si em sua abertura para o outro.
Há algo de incomparavelmente íntimo e fecundo no trabalho com um ator entregue a mim. Deve ser atento, confiante e livre, porque o trabalho é explorar as suas possibilidades extremas. O seu crescimento é seguido com observação, estupor e desejo de ajudá-lo […]. Isto não é instruir um aluno, mas total abertura a uma outra pessoa onde se torna possível o fenômeno de um ‘nascimento duplo ou compartilhado’. O ator renasce, não somente como ator, mas como homem – e, com ele, eu renasço. É um modo desajeitado de exprimi-lo, mas o que se obtém é a aceitação total de um ser humano por parte de um outro. (GROTOWSKI, 2007c, p. 112).
Para estabelecer essa modificação proposta por Grotowski, é fundamental uma articulação entre técnica pessoal e cênica do ator, conhecida por seu famoso conceito de teatro pobre . Grotowski compreende que o teatro pode existir:
[…] sem maquiagem, sem figurinos especiais e sem cenografia, sem uma área separada para representação (palco), sem iluminação, sem efeitos de som etc. Mas ele não pode existir sem a relação da percepção direta, da comunhão ao vivo entre espectador e ator. (GROTOWSKI, 2013, p. 15).
Segundo Grotowski, a especificidade do teatro está no contato vivo e imediato entre ator e espectador, no ato coletivo. Estes dois grupos são entendidos como uma só coletividade, conjuntamente ativa, participante e interativa (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007). O espaço cênico é fundamental para tornar o teatro esta comunidade viva, e por isso Grotowski dedicou especial atenção à relação entre atores, plateia e espaço em sua primeira fase teatral. A cada novo espetáculo, era realizada uma pesquisa em conjunto com os atores, e em diversas vezes com contribuições do arquiteto Jerzy Gurawski 7 , sobre o espaço cênico; o objetivo era dirigir os dois grupos presentes, atores e espectadores, levando em consideração a especificidade de cada peça.
No Teatro Laboratório era levada em consideração a comunicação sonora e visual dos dois grupos. Alguns exemplos interessantes são a montagem das peças Kordian e Príncipe constante . O cenário de Kordian era um manicômio. Durante a peça, atores e espectadores se mesclavam em uma sala equipada com grades e beliches, os atores se destacavam apenas nos momentos em que conduziam a ação. Nesse espetáculo, os espectadores também coatuavam (GROTOWSKI, 2007a). Em Príncipe constante , peça na qual um príncipe católico é aprisionado por mulçumanos e submetido à tortura, a sala estava disposta em uma forma que lembrava “uma arena romana antiga ou uma operação cirúrgica como a retratada no quadro ‘A lição de anatomia do Dr. Tulp’, de Rembrandt” (p. 90). A intenção com essas pesquisas era quebrar a tradicional passividade da plateia, colocando-a em cena, tornando-a parte integrante da cerimônia teatral.
Em que medida essa relação entre ator e plateia se aproxima da relação entre professor e estudante no ensino de filosofia? De certo modo, o professor precisa estabelecer uma relação de ensino-aprendizagem que permita romper com a passividade de um ensino de filosofia tradicionalmente instituído em que há uma reprodução do modelo de aula típico da graduação, ou seja, em que o professor ministra aulas expositivas e o estudante escuta, em silêncio, os conteúdos transmitidos, copiando-os em seu caderno. Integrar o estudante nessa perspectiva de cerimônia teatral permite que ele rompa com a passividade em sala de aula e reflita sobre os aspectos de sua própria existência. A aula de filosofia, nesse sentido, representa um processo de autodescoberta da capacidade de se questionar a si próprio, de assumir ativamente o processo de aprendizagem.
Algumas possibilidades de modificação na sala de aula para favorecer essa relação professor-estudante podem ser encontradas, atualmente, através do uso de metodologias ativas, por exemplo, a sala de aula invertida e a gamificação (CAMARGO; DAROS, 2018). A sala de aula invertida utiliza como estratégia o estudo prévio dos conteúdos da disciplina em casa, a partir de diversos recursos disponibilizados pelos professores, potencializando o momento da aula para atividades em grupo, esclarecimento de dúvidas e realização de exercícios. A gamificação, por sua vez, utiliza elementos dos jogos como forma de engajamento dos estudantes no processo de ensino-aprendizagem, estimulando uma postura exploratória e autoral. Contudo, essas metodologias raramente são conhecidas e utilizadas pelos professores no ensino de filosofia e destacamos duas razões para esse desconhecimento.
A primeira seria a ausência de capacitação docente quanto ao uso dessas metodologias. Isso ocorre em cursos de licenciatura que priorizam as disciplinas teóricas em sua grade curricular, conferindo pouca atenção aos métodos e técnicas de ensino. Além disso, essa ausência está presente nas próprias escolas cujos gestores, muitas vezes, entendem que a capacitação é responsabilidade do próprio professor e não da instituição, ou, pior, desconsideram a importância da capacitação, sem permitir a flexibilização de horários para a realização de cursos, por exemplo.
A segunda razão seria o volume de aulas ministradas em diferentes séries e instituições pelos docentes de filosofia, devido à escassez de aulas desse componente curricular em cada série do Ensino Médio – apenas uma vez na semana na Educação Básica –, distintamente de outros componentes curriculares, como Matemática, com quatro aulas semanais, ou História, com três aulas semanais por série. Isso faz com que o professor de filosofia trabalhe em diferentes escolas para que possa obter um salário razoável, despendendo tempo em outras atividades que não a sala de aula, por exemplo, no trânsito, nas reuniões de equipe dessas instituições, na elaboração e correção de avaliações. Isso reduz, consequentemente, o tempo dedicado à preparação das aulas e à capacitação profissional.
A ação do ator e a ação do professor
Em maio de 1969, Grotowski proferiu uma conferência para estagiários estrangeiros do Teatro Laboratório de Wrodaw, posteriormente foi publicada sob o título A Voz . Esse texto é particularmente interessante para a discussão a que nos propomos aqui, pois nele há uma analogia entre a ação do ator e aquela do professor durante a aula, como descrito a seguir.
Grotowski ressalta a importância de não se negligenciar o corpo ao usar a voz, pois esta é “uma extensão do corpo, do mesmo modo que os olhos, as orelhas, as mãos. É um órgão de nós mesmos que nos estende em direção ao exterior e, no fundo, é uma espécie de órgão material que pode até mesmo tocar” (GROTOWSKI, 2007b, p. 159). Esta passagem nos é cara, pois, na maior parte do tempo, o professor usa sua voz para comunicar, e é com ela e através dela que a troca professor-estudante se realiza; porém parece existir um esquecimento de que a voz se conecta ao exterior por meio do corpo.
Até mesmo aqueles que ensinam têm dificuldade com a voz. E por quê? Observem atentamente um professor no trabalho: quer controlar todos os seus movimentos, pensa que deve ter gestos regulares; com frequência quer falar com uma certa clareza de articulação […]. Resultado: a sua laringe fica semifechada. Além disso, muitas vezes não desenvolveu seu lado físico, por isso é um cérebro em cima do nada. O seu corpo é uma planta – magra ou gorda – porém uma planta delicada, como os brotos da batata em um porão, uma espécie de planta branco-pálida. A sua energia existe somente em sua cabeça e em seu instrumento vocal. Por outro lado, quer manter uma calma compostura, controla-se, bloqueia os impulsos do corpo. É assim que, em vez de usar o corpo inteiro, ele (ainda que inconscientemente) submete à tensão o seu instrumento vocal. (GROTOWSKI, 2007d, p. 143-144).
Essa atitude de esquecimento do corpo faz com que ele seja um peso, um estorvo, ao final o que se tem são mãos que se movimentam a esmo, pés que caminham apressados e sem rumo, voz que se volta para si mesma ao invés de se projetar no espaço. É clara a cisão entre o “pensamento que dirige e o corpo que o segue como uma marionete” (GROTOWSKI, 2007b, p. 160).
Ainda nesse texto, Grotowski (2007b) afirma que os camponeses são um bom guia para o uso da voz, isso porque eles cantam enquanto envolvem o seu corpo em alguma ação. A voz é mais bem trabalhada quando o foco da atenção não está pairando sobre ela, não é pensar sobre a voz que aprimora, é usá-la: “em casa, quando vocês estiverem fazendo alguma coisa, cantem! Cantem enquanto arrumam a casa, quando jogam, quando se divertem, quando seu corpo está ocupado. Cantem assim podem agir melhor com o corpo” (p. 160). Este nos parece um bom exemplo do modo como o corpo todo deve estar envolvido no processo de criação do ator e na formação do professor de filosofia.
Ele ressalta que é usual na preparação do ator o uso dos exercícios vocais e o ensino da respiração abdominal. Contudo, sua ênfase recai na importância de os exercícios trabalharem integralmente o corpo e não se restringir apenas à voz. Isso por considerar dois aspectos da formação dos atores: (1) nem todos respiram do mesmo modo e não se deve impor uma forma correta de respiração, ao contrário, é preciso observar se o ator tem dificuldade ou não com o ar e, em caso afirmativo, fazer intervenções em seu processo orgânico; e (2) a ação teatral não deve ser compreendida como uma ginástica, mas como um processo orgânico da natureza. Por isso, não se deve controlar a respiração, mas compreender seus bloqueios e incômodos para que possam ser eliminados (GROTOWSKI, 2007d, p. 169-170).
Grotowski adota a mesma atitude negativa em relação ao corpo, é necessário que o ator procure as limitações de seu corpo a fim de superá-las, e para isso é imprescindível conhecê-lo. Um exemplo prático é o exercício Mapeamento corporal proposto por Slowiaki e Cuesta (2013) no livro Jerzy Grotowski 8 . Baseados nos princípios do encenador polonês, os autores apontam que é comum existir uma cisão entre o que “imaginamos ser o nosso corpo” e a “realidade de nossa anatomia” (p. 187). Por isso, o exercício consiste em perguntar aos participantes coisas básicas acerca dos seus corpos, por exemplo: “onde é o topo da sua coluna? E o fim da sua coluna? Onde é a articulação do quadril, do joelho e do calcanhar? Quanto pesa sua cabeça?” Estas perguntas tornam os atores mais conscientes do próprio corpo, eliminando a cisão entre eu e meu corpo (p. 188).
Outro exercício descrito que pode contribuir para a formação docente é o de atenção com o espaço. É solicitado aos participantes que caminhem pela sala prestando atenção “às decisões necessárias para mudar de direção” (SLOWIAKI; CUESTA, 2013, p. 192) e ao modo como colocam os pés no chão evitando fazer qualquer barulho. Em seguida é pedido que os atores prestem atenção ao modo como o peso do corpo é jogado de uma perna para outra a cada passo dado, na disposição das outras pessoas pela sala, sempre mantendo o espaço equilibrado, sem que todos se juntem no mesmo lugar.
O diretor polonês propõe um método de controle orgânico que envolve de modo integral a voz, a respiração, o corpo e a imaginação. Para tanto, são consideradas as necessidades e dificuldades de cada ator. Sua proposta é inspirada no treinamento elaborado por Stanislavski e inclui:
[…] alguns exercícios para desenvolver ações cotidianas, por exemplo: trabalhar com objetos invisíveis, escrever com uma caneta sem segurá-la na mão, escrever sobre papel imaginário... Isso desenvolve a precisão das ações cotidianas. Já não é mais uma única ação, escrever com uma caneta, é toda uma série: dez, vinte, trinta pequenas ações cujo resultado é uma ação maior: escrever. (GROTOWSKI, 2007d, p. 165).
Além disso, ele propõe exercícios para eliminar tanto as tensões quanto o relaxamento em excesso, por entender que ambos bloqueiam a expressão. Contudo, enfatiza Grotowski, não há uma receita mágica. O que há, efetivamente, é uma prática consciente, corajosa e repetida inúmeras vezes através da ação simples que poderá liberar o corpo para criá-la, tornando o ator confiante e inteiramente atento ao momento presente (GROTOWSKI, 2007d, p. 168).
Grotowski apresenta outros caminhos a serem explorados nessa formação através do conceito de ação física que, acreditamos, pode aproximar-se do ato criativo de lecionar. Esse conceito foi cunhado pelo diretor russo Constantin Stanislavski (1863-1938) e parece-nos muito se aproximar das questões suscitadas pelos estudantes da licenciatura em filosofia a que nos referimos no início deste texto.
Stanislavski procurou resolver o seguinte problema: como o ator pode ativar as suas emoções em cena? Como pode mantê-las mesmo depois de anos encenando o mesmo papel? Em suas pesquisas, ele percebeu que as emoções não podem ser controladas, que elas independem de nossa vontade. Porém, as ações físicas (ou ações psicofísicas) seriam uma forma de dar vida ao papel e serviriam de gatilho para que o estado interior do ator se modificasse durante a cena. Elas seriam pequenos gestos, pequenos comportamentos em que há uma intencionalidade. Grotowski (1988) apropriou-se desse conceito de ação física e deu um exemplo dela: a ação física é preparar um cachimbo com a intenção de ganhar tempo ao responder uma pergunta embaraçosa (GROTOWSKI, 1988). A ação física é, portanto, uma forma de ligar o interior e o exterior do ator em cena, sendo um recurso precioso para o trabalho de criação da personagem.
As ações físicas podem ser usadas em sequência, formando uma partitura. O uso desse recurso possibilita maior liberdade para o ator em cena; se ele estiver com uma partitura preestabelecida não precisará se preocupar continuamente com o que deve ser feito em seguida. O uso das ações físicas como uma partitura também foi uma criação de Stanislavski posteriormente reformulada por Grotowski. O encenador polonês afirma pensar a partitura baseada, por um lado, em um fluxo de impulsos e, por outro, pelo princípio da organização (GROTOWSKI, 2009). Ela seria como as margens de um rio, desse modo as ações físicas estariam fixadas, porém existindo sempre um espaço entre as margens, no qual o rio corre, e esse espaço é imprevisível. O ator, portanto, não precisa pensar a todo momento no que fará em seguida, pois tem uma organização, uma linha ou partitura a seguir, mas nesse espaço entre ele pode se deixar afetar pelo espaço, pelos companheiros de cena, pelos espectadores.
A inter-relação entre pensar e agir presente nos textos da fase teatral de Grotowski auxiliam na reflexão sobre o exercício docente. Muitas vezes, o professor fica tão fixado no texto filosófico com que trabalha, que perde a dimensão do encontro que caracteriza a aula. A esse respeito, Grotowski enfatiza que o ator não precisa recorrer ao texto o tempo todo, pois a sua ação precisa deixar-se afetar pelo espectador, que não é um mero outro, mas sim uma testemunha do que acontece no palco – quando há um palco –, pois trata-se de um encontro. Remetendo à aula de filosofia, esse professor deverá aprender a deixar-se afetar pelos estudantes, retendo em sua mente, de modo vivo, os textos filosóficos com os quais trabalha, sem, contudo, perder a dimensão do encontro.
Atuar, nessa concepção, é desvelar-se, é expor-se ao outro. Nesse ato de entrega, o ator estaria inteiramente presente ao momento, atento ao aqui e agora da encenação, desvelando diante do outro com total precisão o seu íntimo, expondo a si mesmo ao outro. Analogamente ao trabalho docente, pode parecer, à primeira vista, uma hiperexposição da subjetividade do professor aos estudantes, mas não é disso que trata Grotowski. Estar atento ao encontro em sala de aula envolve uma postura de abertura para os imprevistos que advém do encontro com o outro, o que não significa falar de sua vida particular, de seus problemas pessoais. A intimidade requerida nesse encontro também não significa deixar de preparar a aula, de selecionar o texto filosófico a ser abordado e as atividades a serem realizadas. Essa intimidade diz respeito à abertura ao outro, requer a sensibilidade para ser afetado pelo outro e que pode, inclusive, fazer o docente alterar o rumo da aula previamente preparada para abarcar o imprevisto, o inusitado do encontro.
Ensino de filosofia e ritual
Outro aspecto abordado na fase teatral de Grotowski trata da procura do rito no teatro. No texto Teatro e ritual , publicado a partir de uma conferência proferida em Paris, em 1968, o referido diretor explora a busca por um teatro original que rompesse com a distinção da imagem do teatro destinado a um público constituído no encontro de pessoas cultas. A ruptura dessa imagem, que ele acredita não ter nada de essencial, por ser apenas um produto da convenção social, poderia ser alcançada se a dimensão originária do teatro pudesse ser resgatada, a saber, aquela que remonta aos ritos primitivos. Nesses ritos, havia uma participação cerimonial direta e viva entre atores e espectadores, com trocas recíprocas e imediatas, rompendo a distinção espacial entre palco e plateia enquanto lugares separados entre si. Assim compreendido, o teatro permitiria a troca recíproca e autêntica entre atores e espectadores, incluindo a participação dos espectadores enquanto coatores na ação. Na contemporaneidade, esse teatro ritual deveria ser um teatro laico, um ritual teatral humano, e não mais um teatro religioso, ligado à fé, como nos primórdios.
Para resgatar esse eixo do ritual no teatro, Grotowski se refere novamente àquela noção de partitura na ação. Ele explica a partitura através da relação entre dois vizinhos que se encontram todas as manhãs e acenam um para o outro retirando o chapéu e dizendo bom dia, ao que o outro repete o gesto e a fala. A repetição diária desses gestos compõe o fragmento de uma partitura de comportamento, constituída pelos impulsos que transbordam do interior do corpo para encontrar o exterior, cujo gesto constitui seu acabamento. Esses impulsos, por sua vez, são nomeados morfemas pelo diretor polonês (GROTOWSKI, 2007e, p. 132).
Aproximando essas noções ao exercício da docência, poderíamos compreender as inúmeras aulas do professor de filosofia na educação básica como uma espécie de partitura docente. Nesse aspecto, o professor repete muitas vezes a mesma matéria para diversas turmas em determinada série escolar. A repetição dessas aulas pode ser compreendida como um princípio de organização, permitindo com que o professor não fique engessado em seu planejamento didático e possa se relacionar com os estudantes, considerando as particularidades de cada turma, de cada encontro, mesmo que a matéria dada seja semelhante em todas as turmas. Isso poderia auxiliar na capacidade docente de improvisar em sua aula, considerando as situações que deverá vivenciar em cada momento.
Grotowski observa ainda que o caminho rumo a esse ato total, à dimensão essencial do teatro, exige que o ator elimine de sua encenação tudo o que não é elementar, resgatando no ator a sua dimensão propriamente humana. Assim ele entenderá que seu ato é uma confissão na qual ocorre a unidade entre a dimensão coletiva e individual. Nesse momento, afirma o diretor polonês, de modo paradoxal,
O ator não está mais dividido, naquele momento não existe mais pela metade. Repete a partitura e ao mesmo tempo se desvela até os limites do impossível, até aquela semente do seu ser, que chamo de arrière-être . O impossível é possível. O espectador olha, sem analisar, sabe só que se encontrou diante de um fenômeno no qual está contido algo de autêntico. No fundo do seu ser sabe que está lidando com o ato; e por outro lado age aquele cristal do desafio, as representações tradicionais de grande relevância na nossa cultura, mas elas agem espontaneamente, colidindo com a nossa experiência contemporânea de modo não calculado, não planejado friamente. (GROTOWSKI, 2007e, p. 135).
Essa passagem talvez seja a mais desafiadora ao se pensar a prática docente. Isso porque essa integração professor-estudante em sala de aula, através da mediação da tradição filosófica, exigiria do docente um exercício de entrega, de escuta e abertura aos estudantes, ao mesmo tempo em que demandaria do docente um processo de autoconhecimento e de conexão com a realidade. Se, tal como afirmou o diretor polonês, o teatro “é aquilo que acontece entre o espectador e o ator” (GROTOWSKI, 1987, p. 28), a aula de filosofia, conforme defendemos, é aquilo que acontece entre professor e estudante, mediado pela tradição filosófica.
Considerações finais
Retomando a questão presente na abertura deste artigo, – a saber, em que medida os saberes e as práticas próprios à formação do ator podem auxiliar na formação de professores de filosofia? –, compreendemos que a formação do ator e suas contribuições para a formação do professor de filosofia impõem o desafio de repensar as práticas de formação docente e as didáticas de ensino de filosofia. Buscamos, assim, aproximar os textos da fase teatral de Jerzy Grotowski à atuação docente na educação básica e repensar de que modo o corpo, a voz, os gestos e a atenção se configuram como elementos presentes e, talvez, essenciais para o ensino de filosofia.
Para tanto, elencamos algumas práticas propostas por ele que podem ser utilizadas na formação dos licenciandos de filosofia, dentre elas destacamos aquelas que trabalham a consciência corporal e atenção ao espaço, além do desenvolvimento de ações cotidianas com objetos invisíveis.
Nesse sentido, defendemos que a aula de filosofia e a atuação do professor enquanto uma encenação, tal como enfatiza Grotowski, implica uma atenção à corporeidade, visto que ela foi, de certo modo, negligenciada nas práticas formativas dos docentes em detrimento dos conhecimentos filosóficos necessários ao ensino, ou seja, priorizou-se o que ensinar, e não o como ensinar .
Reconhecemos ser imprescindível para Grotowski a centralidade da ação do ator, ou seja, a dimensão prática em sua formação; tanto que ele afirma a existência de um único princípio na ciência e na arte – será que funciona? Contudo, também reconhecemos nossa impossibilidade de responder, nesse período de pandemia, se os exercícios propostos por ele funcionam na formação dos licenciandos em filosofia. Isso em decorrência da suspensão das aulas presenciais na universidade e da necessidade do isolamento social.
Gostaríamos, por fim, de considerar um problema transversal que não foi contemplado em nossa investigação, mas que merece atenção. No contexto dos cursos de formação de professores de filosofia, quem seria o responsável por uma tal formação? Como ensinar aos professores de filosofia técnicas próprias da formação de atores? A proposição dessas experimentações exige um trabalho interdisciplinar entre profissionais do teatro e da filosofia, integrando e construindo saberes e práticas artísticas e docentes. Além disso, parece-nos riquíssima para esta proposta a realização de ações extensionistas da universidade que possam integrar atores, estudantes e professores da educação básica e do ensino superior no mesmo espaço cênico.