Introdução
A população prisional no Brasil, nas duas últimas décadas, cresceu em uma velocidade assustadora. Dados do Departamento Penitenciário Nacional apontam que em 2016 a quantidade de pessoas aprisionadas já passava dos 700 mil. O Ceará tem acompanhado esse crescimento e é o quinto estado do País com maior população carcerária - 34.566 presos e presas (BRASIL, 2016). Para além do aumento de pessoas encarceradas, a presença e atuação de grupos criminais, reconhecidos pelos presos e pelos operadores do sistema penitenciário como “facções”, têm provocado mudanças significativas na gestão das prisões e na vida das pessoas que lá são mantidas privadas de liberdade.
O Ceará dispõe de cinco centros de privação provisória de liberdade, sete penitenciárias e presídios, um hospital geral e sanatório penal, um hospital psiquiátrico, uma colônia agrícola, uma colônia agropastoril, duas casas de albergado e 131 cadeias públicas distribuídas em diversas cidades do estado. São, ao todo, 150 estabelecimentos penais funcionando superlotados e em condições adversas de habitação, assistência material, educacional, de saúde e ocupacional.
Essas insuficientes condições de vida são destacadas como centrais para ocorrência de sucessivas crises no sistema prisional cearense nas duas últimas décadas, mas também são apontadas como um dos fatores de destaque para a rápida expansão das facções dentro e fora das prisões. Francisco Elionardo de Melo NASCIMENTO (2017) caracteriza as crises no sistema penitenciário do Ceará como históricas e contextuais, destacando que as adversas e insuficientes condições de vida possibilitadas para as pessoas aprisionadas estão sempre implicadas como parte do problema, inclusive se apresentando como um dos fatores que proporcionou a rápida expansão de grupos criminais de outras regiões do país em unidades prisionais do Ceará. Além dos pontos destacados pelo autor, questões de ordem política e organizacionais dos grupos criminais também foram determinantes para a expansão e mudanças em seus modos de atuação do dentro e fora das unidades prisionais do estado.
Dentre os grupos criminais que atuam nas prisões e periferias do Ceará encontram-se o Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Guardiões do Estado (GDE) e Família do Norte (FDN) (NASCIMENTO, 2017; Leonardo SÁ; Jania AQUINO, 2018).1 No entanto, a atuação destes grupos só se intensificou a partir das rebeliões ocorridas em maio de 2016, concomitantes aos ataques a ônibus e prédios públicos na Região Metropolitana de Fortaleza.2 Esses eventos repercutiram nas mídias locais e nacionais e suas ações foram comandadas e executadas por integrantes das facções presos e não presos, evidenciando as conexões possibilitadas entre o fora e dentro das prisões.
Durante as rebeliões de maio de 2016, a administração prisional passou a identificar, separar e alocar os presos filiados ao PCC, CV, GDE e FDN em unidades prisionais específicas. As “bichas”3 e os “artigos errados”4, internos e internas indignos de pertencimento ou convivência nas facções, foram impedidos de ocupar as dependências em unidades prisionais em que permaneceram os grupos criminais, nem mesmo em alas ou celas separadas. Esses presos também foram transferidos e agrupados em unidades prisionais que, naquele momento, ainda estavam em construção. As realocações e transferências dos presos faccionados, “bichas” e “artigos errados” foram realizadas com urgência, demandando esforço e cansaço dos agentes prisionais. Decisão tomada pela administração prisional com o objetivo de conter os embates entre presos de facções rivais e preservar vidas de “bichas” e “artigos errados”.
Esses reagrupamentos aparecem como táticas institucionais com a finalidade de melhor governar os internos a partir de grupos e, eventualmente, mostrar o Estado como protetor. No entanto, a designação de prisões específicas para cada facção provocou latentes conflitos, disputas e assimetrias de poder entre agentes prisionais e as facções. A situação atenuada pelo empreendimento de complexas negociações entre a administração prisional e as lideranças dos grupos criminais.
Não se trata aqui de apontar o Estado como protetor dos apenados, mas de evidenciar ações que são tomadas desde pressões locais, nacionais e internacionais que o Estado sofre para eliciar a imagem do Estado que cuida. Também não se trata de identificar facções e Estado como polos opostos e em disputa, mas de localizar facções que disputam a possibilidade de comando de políticas de estado e sua liberdade de estar em todos os lugares, mesmo que a despeito da vontade do Estado.
Essa breve contextualização informa as complexas configurações que alteraram a paisagem das prisões desde a expansão das facções nas unidades prisionais do Ceará. Não é intenção discutir essas questões como centrais, mas como pano de fundo que interfere diretamente nas condições de vida das pessoas presas que são identificadas por suas marcas de sexualidade ou identidade de gênero não normativas. A gestão desses grupos, a partir dos agrupamentos ou criação de alas especiais, é atravessada por complexos modos de gestão de suas sexualidades, seja por meio de processos de Estado (Adriana VIANA; Laura LOWENKRON, 2017) ou pelas moralidades das facções. Afinal, as facções repudiam filiações e a presença de “bichas” nas mesmas unidades prisionais que ocupam.
Os processos de Estado não são entendidos aqui apenas como instâncias burocráticas e operacionais próprias das prisões, mas também como matéria viva dotada por atributos, representações e práticas de gênero. Ou seja, pensados em sua carnatura desde seus qualificativos morais e sua capacidade de moldar, limitar e produzir desejos e horizontes de possibilidade (VIANA; LOWENKRON, 2017).
O objetivo deste artigo é discutir a formação de agrupamentos de travestis e transexuais encarcerada no Ceará. Trata-se de um recorte de uma pesquisa etnográfica mais ampla que discutiu o aprisionamento de travestis no Ceará (NASCIMENTO, 2018a). Neste recorte, serão abordados dados etnográficos que apontam para diferentes condições do aprisionamento de pessoas trans - em momentos, espaços e formas variadas de agrupamentos -, atravessadas por processos de Estado e tensionadas por grupos criminais, organização política das internas e expertises de profissionais da assistência psicossocial.
Dobra-se sobre a formação e gestão desses agrupamentos que classificam as travestis e transexuais em “vulneráveis”, “perigosas” e “menos perigosas” e, a partir dessa classificação, alocam-nas em espaços que podem ou não possibilitar a preservação das suas características identitárias e garantir acesso às políticas educacionais, ocupacionais e lúdicas que, embora precariamente, estão disponíveis nas prisões. Bem mais que identificar esses agrupamentos de forma contextual, interessa analisar como as categorias que designam graus de periculosidade se articulam com as categorias de gênero e sexualidade enquanto organizacionais da vida na prisão.
A pesquisa de campo foi realizada entre 2016 e 2018. A entrada e a permanência em campo foram moduladas pela dupla ocupação do autor deste artigo como agente penitenciário e pesquisador. As discussões foram desenvolvidas a partir de intensas interlocuções com pessoas LGBT dentro e fora do sistema prisional, funcionários, prestadores de serviços e administradores de unidades prisionais cearenses, militantes, entre outros. A pesquisa percorreu, portanto, cenários diversos, tecida desde o percurso profissional do pesquisador ao trabalho de campo.
Para fins deste texto, valho-me dos relatos de pessoas LGBT privadas de liberdade, militante e de profissionais atuantes na CPIS e Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes.5 Ao contrário das frequentes queixas de pesquisadores sobre as dificuldades de acesso aos seus sujeitos de pesquisa e limitações de trânsitos nos espaços prisionais, o lugar que ocupado pelo autor deste artigo enquanto agente penitenciário lhe possibilitou privilegiado acesso aos interlocutores e aos espaços de observação no cotidiano das instituições que foram tomadas como campo de pesquisa. Tensões e confluências entre essas funções são discutidas, sobretudo, em Nascimento (2018b; 2018c).
A partir do trabalho de campo e das vivências do autor como agente penitenciário atuando em diversas unidades prisionais cearenses, serão apresentadas algumas narrativas de eventos, tomados aqui como críticos (Veena DAS, 1995), que tencionaram a formação de agrupamentos de pessoas trans desde práticas discursivas marcadas por temporalidades e contextualidades diferentes e que produziram as condições para a existência desses espaços. Parte destes eventos está relacionada à organização política de travestis e transexuais, expertises do trabalho de uma assistente social e a presença de grupos criminais. Essas narrativas informam relações, gramáticas e assimetrias de gênero centrais nas dinâmicas do fazer(-se) Estado na prisão (Silvia AGUIÃO, 2016; VIANA; LOWENKRON, 2017). Tais eventos críticos também são descritos e relacionados na produção de tecnologias de gênero, fronteiras e moralidades nos espaços institucionais e entre grupos, sempre atravessados pelo modo disciplinador e heteronormativo das prisões.
Como se demonstrará nas sessões a seguir, eventos críticos relacionados especificamente à presença das travestis e transexuais demandaram dos responsáveis pelos equipamentos ou do governo do Estado medidas próprias de gestão dessa população. Tais eventos se deram ora por articulação política das mesmas, ora por se configurarem como vítimas preferenciais de ações violentas de grupos presentes nas prisões. A ausência de dados específicos sobre essa população quando privada de liberdade, bem mais que invisibilizá-la, será analisada como parte dos processos de Estado afeitos à sua gestão.
Pesquisas em prisões e designação de espaços para pessoas LGBT
Nas duas últimas décadas, os estudos prisionais vêm se destacando nas discussões que envolvem a violência, criminalidade e sistemas de justiça. Cada vez mais, os pesquisadores demonstram que a identificação das prisões dispostas na literatura clássica - como espaços fechados e apartados da sociedade -, já não dá conta das características que atualmente apresentam essas instituições, principalmente em função das múltiplas conexões possibilitadas pelos fluxos de pessoas, objetos, informações, sentimentos e ideais entre o fora/ dentro dos estabelecimentos prisionais. Tais conexões envolvem mediadores complexos que são, muitas vezes, responsáveis pela própria manutenção e funcionamento das prisões, assim como pelas sucessivas crises que atravessam a história desses espaços.
Para Rafael GODOI e Fábio MALLART (2017), a multiplicidade de autoras e autores empenhados em abordar a problemática das prisões no Brasil fez consolidar um campo de pesquisa diversificado e em crescimento. São pesquisas que analisam as prisões desde perspectivas teórico-metodológicas e temáticas variadas, destacando o cárcere como “lócus privilegiado de experimentação epistemológica, metodológica e analítica” (p. 09).
Manuela Cunha (2014), em balanço bibliográfico sobre os estudos prisionais, aponta que pesquisadores da Europa e América Latina são os que mais se destacam na produção de pesquisas de campo que envolve a cena carcerária. Isso não significa, contudo, que esses estudos se constituam apenas por microanálises restritas a espaços específicos. Pelo contrário, a complexidade das análises que envolvem as relações possibilitadas entre o dentro e fora das prisões, desde exercícios de poder diversos, pode abordar dinâmicas múltiplas e complexas racionalidades.
Em linhas gerais, as pesquisas mais recentes sobre prisões no Brasil pautam-se sobre: as relações e fluxos entre o dentro e o fora das prisões como produtoras de intensas dinâmicas societárias entre o prisional e o urbano (GODOI, 2015); práticas de um grupo criminal que mobilizaram ações concomitantes em unidades prisionais, unidades de internação para adolescentes e espaços urbanos (MALLART, 2011); narrativas de condutas e códigos que atravessam prisões e periferias (MALLART, 2014); processos de encarceramento em massa (Jacqueline SINHORETTO; Giane SILVESTRE; Felipe MELO, 2013); religiosidade como refúgio as adversidades e violências no cárcere (Eliakim ANDRADE, 2014); redes de afetos e vínculos produzidos e mantidos nas prisões desde a experiência prisional de presos e seus familiares (Natália PADOVANI, 2016) e o destaque às práticas rotineiras e os modos como agentes prisionais desenvolvem seu trabalho na prisão com a finalidade de manter a ordem, disciplina e segurança (Vitor OLIVEIRA, 2018; NASCIMENTO, 2018b).
Outros trabalhos propõem análises sobre o complexo modo de funcionamento e organização política de um coletivo de presos (Karina BIONDI, 2010), as questões mais evidentes que envolvem as prisões e punições no Brasil contemporâneo (Luiz LOURENÇO et al., 2013) e controle e punições como práticas intrínsecas ao nascimento e desenvolvimento das prisões (Fernando SALLA, 2006; 2015). Em comum, as pesquisas citadas descrevem as prisões como instituições que têm seu cotidiano marcado por leis, códigos e regimentos formais, sendo seu funcionamento, contudo, reconstituído a partir de práticas e condutas informalmente criadas pelos grupos que lá habitam, sejam eles presos ou profissionais da segurança prisional.
As agruras das prisões são predominantemente destacadas na maioria dos trabalhos sobre a temática. Pesquisadores das prisões apontam que as insuficientes condições de vida disponibilizadas aos internos e internas são evidenciadas pela superlotação, precárias condições de habitação, de assistência material, de saúde, educacional e ocupacional, além de outros sofrimentos que se dão de forma relacional no cotidiano prisional. As agruras do cárcere são fomentadas pelas desassistências dos recursos centrais para a sobrevivência dos internos e para execução do trabalho dos agentes penitenciários. Os profissionais e os presos são afetados em condições, situações e formas diferentes no cotidiano dessas instituições.
Para Lourenço (2013), o cenário apresentado pelas pesquisas que têm as prisões como campo de estudo serve como balizador da efetividade da nossa democracia, “nossos problemas com as leis, com a equidade social, as diferenças de gênero e com a discriminação racial, além de expor o estado de absorção substantiva de estatutos universais (ou que deveriam ser) como princípios de direitos humanos” (p. 07).
É inegável o destaque que as pesquisas sobre prisões têm para produção científica brasileira, embora algumas lacunas ainda se apresentem intransigentemente. O campo de pesquisa que se propõe analisar as relações de poder e produção institucional a partir do gênero e sexualidade em prisões masculinas, por exemplo, é quase inexplorado na analítica das prisões no Brasil.
Natália LAGO e Marcio ZAMBONI (2017) defendem que as relações de gênero e sexualidade são fundamentais para compreender a prisão. A partir de uma digressão sobre temas atualmente em evidência e relacionados à prisão, localizam o gênero e a sexualidade em função da diversidade temática abordada que, cada vez mais, tem alçado interesse dos meios de comunicação, movimentos sociais, entidades que defendem os direitos humanos e da universidade. Para os autores, é possível notar maior visibilidade da população LGBT nos debates sobre o encarceramento e a crescente mobilização em torno de suas demandas.
Pesquisas recentes desenvolvidas no eixo Sul-Sudeste tratam da criação de uma ala específica para agrupar travestis, gays e seus maridos (ala GBT) (Fernando SEFFNER; Gustavo PASSOS, 2016); das experiências sociais de travestis com o cárcere (Guilherme FERREIRA, 2015); das questões próprias da política de encarceramento de LGBTs em ala específica a partir do ponto de vista das pessoas aprisionadas (Gabriela LAMOUNIER, 2018) e das dinâmicas amorosas, sexuais e econômicas que compõem o território existencial de travestis, “bichas”, gays e “envolvidos” a partir de uma galeria onde são mantidos encarcerados (BOLDRIN, 2017). Essas pesquisas e outros estudos realizados por ativistas têm denunciado a situação de violência e vulnerabilidade das travestis e transexuais mantidas no sistema prisional, bem como as péssimas condições de encarceramento a elas destinadas e o desrespeito a suas identidades de gênero (Cicero Pereira EUSTÁQUIO JÚNIOR et al., 2015).
A separação de LGBTs em celas ou alas específicas é um dos assuntos, entre tantos outros, que tem ganhado destaque nas discussões que envolvem o gênero e sexualidade no sistema prisional. De acordo com Lago e Zamboni (2017), a “guerra às drogas” (Lei 11.343/2006) aparece como principal causa do aprisionamento de mulheres e LGBTs. Para os autores, estas pessoas são frequentemente autuadas por portar ou comercializar pequenas quantidades de drogas, muitas vezes destinadas ao uso próprio ou do seu companheiro recluso. As travestis e transexuais que trabalham no contexto da prostituição ou que vivem em situação de rua são as que mais recorrentemente são capturadas por essa malha estatal.
Ferreira, Caio KLEIN e Vicent GOULART (2019) afirmam que, em 2012, passaram a surgir os primeiros espaços específicos para LGBTs em prisões masculinas. Baseando-se em dados oficiais, visitações, conversas com presos e profissionais em várias dessas instituições, os autores apontam 101 celas ou alas distribuídas em diversos estados e destinadas a esse público. Apontam também a inexistência de dados fidedignos sobre essa população em âmbito nacional ou mesmo nos estados. Para eles, a criação desses espaços vem sendo tratada como uma “política penitenciária” em resposta as violências e violações sofridas por essa população quando privada de liberdade. No entanto, contribuições e limitações destas propostas são identificadas pelos autores, principalmente em torno das disputas e ideologias envolvendo diversos atores no cotidiano da prisão.
Marcio Zamboni (2016) discutiu como a população LGBT, sujeitos historicamente marginalizados na prisão, passou a ser produzida enquanto sujeitos de direitos desde um conjunto de tecnologias de poder. O autor alerta que a sigla em si mesma não faz muito sentido nos espaços de privação de liberdade, pois as formas como estas pessoas se apresentam na prisão não condiz com a maneira cristalizada em que Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (LGBT) têm suas identidades encaixotadas pelo Estado. Destaca também que a lógica da distinção entre orientação sexual e identidade de gênero, muitas vezes, é desconsiderada nestes espaços.6
Ainda de acordo com o autor, categorias englobantes como “bicha”, “viado”, “mona” e homossexual são as principais formas de identificação utilizadas na prisão para as pessoas que não se encaixam nos padrões de sexualidade e de gênero hegemônicos. Essas identificações, utilizadas em outro momento de forma pejorativa pela “massa carcerária” (cuja prescrição de conduta se assenta rigidamente sobre moralidades e ideais de masculinidade), foram ressignificadas e são utilizadas pelos próprios LGBTs no cotidiano das prisões.
Seffner e Passos (2016) analisam a criação de uma galeria para travestis, gays e seus maridos no maior presídio do Rio Grande do Sul como um “acontecimento”. Dois são os argumentos centrais de suas análises: o primeiro é o “acoplamento travesti-vítima” problematizado desde a dupla situação de vitimização sofrida pelas travestis na sociedade e na prisão. O segundo está relacionado à gestão dos riscos na prisão, que consiste na separação de indivíduos em microespaços e em grupos específicos, como uma tecnologia de poder ligada à necessidade dessas instituições em preservar a vida dos encarcerados e facilitar a logística das práticas disciplinares próprias das prisões. A criação de uma ala para travestis, gays e seus maridos é mobilizada por tais necessidades, funcionando como um dispositivo prisional que “se organiza para fazer viver, e não deixar morrer, exercendo com isso sua disciplina” (SEFFNER; PASSOS, 2016, p. 152).
As histórias de vida de travestis e transexuais, pessoas identificadas por marcas de sexualidades ou identidades de gênero não normativas, são aproximadas pela violência (SEFFNER; PASSOS, 2016): o “acoplamento travesti-vítima”, uma vez que, entre as identidades de gênero não hegemônicas, elas são destacadas como as mais vulneráveis sofrendo violência em casa, na rua, na escola e em outros espaços sociais; e a vulnerabilidade em que estas pessoas estão submetidas no contexto social as produz como vítimas, posição que também produz uma visibilidade estratégica que legitima a urgência da intervenção do Estado.
Na prisão, ainda seguindo os argumentos dos autores, as experiências violentas pelas quais essas pessoas passam aparecem ampliadas pelas próprias características destas instituições. Nesta linha de argumentação, a criação de uma ala específica para travestis é entendida como um processo de (re)humanização destas pessoas, tendo em vista a situação de abandono institucional e familiar enquanto cumprem pena privativa de liberdade. Assim, as travestis são vítimas da sociedade e da instituição prisional, um duplo acoplamento à situação de vítima. Esta é “a argumentação que dá legitimidade à existência da galeria e está intimamente ligada à situação severamente precária vivenciada pelas travestis” (SEFFNER; PASSOS, 2016, p. 149).
Zamboni (2016) demonstra que a criação de espaços específicos para pessoas LGBTs privadas de liberdade responde a uma demanda do movimento LGBT em consonância com o discurso dos direitos humanos. No entanto, esses espaços acabam reforçando a heteronormatividade e o binarismo das prisões - como masculinas ou femininas -, transferindo dali as pessoas que contestam essa uniformidade. O autor critica justamente a pressuposição da existência de identidades coletivas estáveis que capturam fluxos de desejos e conforma múltiplas identidades em um projeto com demandas específicas do discurso dos direitos humanos: “parece que estamos diante de um desses casos paradoxais, nos quais a demanda por políticas específicas no âmbito dos direitos humanos pode reforçar as relações de poder que procuram combater” (ZAMBONI, 2016, p. 22).
No Ceará, as narrativas sobre a criação de espaços específicos para LGBTs ecoam em complexas tensões, contextos e instâncias que estão relacionadas a algumas das discussões realizadas pelos autores citados nesta breve revisão. A política prisional historicamente colocou às margens as demandas por direitos de pessoas LGBTs privadas de liberdade. Ao contrário do acatamento de suas demandas na política prisional, a gestão das sexualidades e identidades não hegemônicas sempre foi objeto de ação do Estado e seus agentes, seja negando, segregando, disciplinando ou punindo tais pessoas e práticas. Essas táticas de controle ocupam lugar na literatura clássica e contemporânea sobre prisões no Brasil.
Embora a população LGBT não tenha alçado centralidade nas pesquisas sobre as prisões no Ceará, as táticas de gestão dessa população pelo Estado e suas formas de (re)existência estão presentes nas memórias das pessoas presas e profissionais com vasta experiência nas prisões. É sobre as narrativas das relações de pessoas trans - com agentes prisionais, facções e os processos de Estado próprios de gestão dessa população, que se debruçará a seguir.
Os agrupamentos de travestis e transexuais nas prisões do Ceará
A presença de pessoas com sexualidade e gênero não hegemônicos e as relações afetivo-sexuais entre pessoas privadas de liberdade em prisões masculinas são discutidas desde a literatura clássica sobre prisões no Brasil. O caráter disciplinador e heteronormativo das prisões nos faz perceber como sujeitos não enquadrados nas normas de gênero e sexualidade hegemônicas, e com demandas específicas, ficaram às margens da política prisional cearense até 2014. Somente nesta data, provavelmente influenciada também por experiências de celas especiais já em operação em outros estados, tem-se o registro do primeiro agrupamento para travestis e transexuais e o reconhecimento de algumas demandas desta população.
A ala E da Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL III) foi cenário daquele agrupamento (ANDRADE, 2014; Laricia SILVA, 2015).7 Naquela ala, as “bichas” dividiam o espaço com os idosos, “artigos errados” e internos que aceitaram o tratamento da Aids - os “rejeitados” na linguagem da administração prisional. Sujeitos marcados por gênero, sexualidade, classe, geração, moralidades e eleitos como “vulneráveis” a diversas violências pelos demais grupos de presos. Esse primeiro agrupamento foi pensado pela administração prisional para resguardar a vida dessas pessoas, principalmente quando facções vindas de outras regiões do país passaram a ocupar espaço dentro e fora das prisões.
As travestis e transexuais, quando ingressas na CPPL III, eram alocadas naquela ala, não sem antes serem desprovidas dos aspectos que elas consideram como feminino e que são performatizados (Judith BUTLER, 2012) em seus corpos. Logo na entrada da instituição, em regra, os objetos e roupas femininas eram substituídos pelo “uniforme padrão” fornecido pela Unidade - um short de cor laranja e uma blusa branca estampada com o nome “Sistema Penitenciário Cearense”. Raspar os cabelos também era parte do desnudamento dos atributos de feminilidade das pessoas trans, processo de normalização usual nas prisões masculinas do Ceará.
Kátia,8 travesti que cumpriu pena na ala E, relatou sua chegada à CPPL III como o momento mais doloroso que viveu naquela prisão - “As lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto raspavam a minha cabeça. Os agentes riam da minha aparência e chamavam-me de traveco careca. Jamais esquecerei aquele dia”.
Outras travestis que também “puxaram cadeia” na ala E entrevistadas por Silva (2015) relataram os xingamentos e chacota proferidos pelos agentes penitenciários durante as vistorias que são realizadas por esses profissionais no cotidiano da prisão. Não se trata apenas do ato de cortar os cabelos ou do desnudamento dos atributos de feminilidade das pessoas trans, mas também de um ritual moralizador que descaracteriza e ridiculariza as identidades e sexualidades não hegemônicas, aponta como anormal e reatualiza os aspectos físicos e condutas estabelecidas socialmente para pessoas com genitália masculina. Ritual sistematizado desde uma materialidade específica: o “fardamento padrão” como um fardamento de performance de gênero masculina.
Butler (2012), ao abordar o gênero enquanto uma categoria performativa, defende que as identidades não podem ser consideradas fixas e autoevidentes, mas inseridas em processos pelos quais a identidade é construída no interior da linguagem e do discurso. Para ela, o gênero não é o que somos, mas o que fazemos. Um ato ou uma sequência de atos, um verbo em vez de um substantivo. Em outras palavras, o gênero enquanto uma categoria performativa nada mais seria que um conjunto de práticas corporais e discursivas que produzem ao mesmo tempo em que são produzidas, o que é possível pensar e praticar em termos de gênero. Não há nada pré-discursivo em termos de gênero, este não sendo, portanto, uma categoria estável em si mesma, mas que é atualizada pelo ato e só existe em sua prática (BUTLER, 2012). Butler está menos preocupada com o caráter de formação do sujeito como indivíduo e na experiência individual do que em analisar o processo genealógico pelo qual o indivíduo vem a assumir sua posição como sujeito.
As performatividades de gênero de travestis descritas a partir dos atributos considerados por ela como feminino materializado em seus corpos fazem parte de uma teia de discursos subjetivados ao longo de suas formações como sujeitos e que são associados à feminilidade delas. A materialidade das roupas e outros adereços femininos como maquiagens, seios hormonizados ou com próteses e os cabelos compridos são expressões de gênero performatizadas como componentes da identidade travesti.
As travestis parecem desestabilizar o caráter heteronormativo das prisões masculinas. Esse ideal produzido por práticas discursivas é atravessado por dinâmicas generificadas que não se apresentam apenas nas suas formas ideológicas e subjetivas, mas marcadas nos corpos e nas práticas do cotidiano institucional de formas visíveis, seja pelo modo como se organiza seu espaço, rotina, burocracias e ações dos profissionais, seja por atributos, gramática, símbolos e práticas masculinizadas.
Neste sentido, as travestis desestabilizam a coerência entre gênero, sexo e desejo e evidenciam que toda produção corporal é performance de gênero, assim como os fardamentos padrões. Assim como, também, os aparatos da prisão e os fardamentos de agentes penitenciários e policiais congregam performances de gênero e de masculinidade. Nesses termos, a prisão é marcada por uma única possibilidade de performance de gênero, qual seja: a performance de gênero masculina. A prisão como um lugar ocupado preponderantemente por homens, negros e pobres, é precipitada aqui como um dispositivo de Estado reiteradamente generificado e racializado por categorizações de masculinidade intersecionada com raça e classe (PADOVANI, 2017).
O “fardamento padrão” é um fardamento de performance de gênero, assim como a roupa tática dos agentes penitenciários. Se somos todos marcados por atributos de gênero, algumas pessoas ocupam posições que as fazem mais suscetíveis a polarizações de gênero. É isso que Butler (2012) chama de “problemas de gênero”. O que nos interessa com essa discussão é a pressuposição da prisão como uma instituição que se propõe estável e universalmente masculina; a presença de pessoas trans nestes espaços desestabiliza essa ordem e provoca ecos em seu funcionamento.
Ainda em 2014, as internas travestis e transexuais da ala E se organizaram politicamente e exigiram o fim do corte dos cabelos delas por meio de um abaixo-assinado destinado à direção da CPPL III. Tânia, travesti de 27 anos, relatou como ocorreu o movimento reivindicatório e a sua angústia de ter sua cabeça raspada.
No início, quando eu cheguei no sistema, eu sofri muito porque eu fui uma vítima. Rasparam meu cabelo em 2014, mas na época era uma realidade. Eu fui a última que fizeram isso na CPPL III. Mas a partir deste acontecido, nós nos reunimos e fizemos um abaixo-assinado para não cortarem mais os cabelos das travestis no sistema. Então foi isso que aconteceu, não cortam mais nossos cabelos.
A partir dessa reivindicação política, surgiram algumas iniciativas, ainda que fragmentárias, pontuais e incipientes, em função de direitos específicos para as travestis e transexuais aprisionadas na CPPL III. Intermediada pelo setor de Serviço Social daquela unidade prisional, uma portaria prevendo a manutenção dos cabelos compridos das pessoas trans foi publicada pela Secretaria de Justiça e Cidadania logo após o movimento político das internas. Os serviços de saúde, principalmente no tocante à prevenção e tratamento de ISTs/Aids também foram priorizados para elas. A reivindicação também aproximou uma assistente social a esse público. Com isso foi iniciado um trabalho de arte-educação por meio de oficinas de fanzine9 com as “bichas” da ala E.
O fanzine é uma produção coletiva e artística que passou a ser incentivada nas prisões do Ceará pela assistente social Josefa Feitosa,10 desde 2002, como recurso terapêutico e estratégia para trabalhar a arte-educação com grupos de presos. Alternando entre desenhos, imagens, colagens e histórias vividas no cotidiano encarcerado, estes papéis xerocados e dobrados ao meio funcionam como uma espécie de revista (Ítalo SIQUEIRA; Maria Izabel ACCIOLY, 2018). As oficinas foram utilizadas pelas internas como momentos propícios à organização política. O fanzine produzido por elas foi nomeado por “Só Babado”, com primeira edição intitulada “Mundo Gay”. Nesta edição, relatos de dor, violências e precariedades vivenciados na prisão foram mesclados com uma pauta de reivindicações.
A circulação desse material nas celas, entre profissionais, familiares e integrantes do movimento LGBT produziu repercussões em torno de uma agenda de demanda por políticas públicas para travestis e transexuais aprisionadas no Ceará. Isso só foi possível por conta da insistência da assistente social em garantir melhores condições de aprisionamento às internas, inclusive a preservação das suas características identitárias.
A cada edição do fanzine “Só babado”,11 novos relatos do cotidiano das travestis e transexuais na CPPL III são revelados em tom crítico - “Há um sério desrespeito aos direitos humanos e violação do direito de liberdade de gênero quando travestis e transexuais são submetidos a tratamento degradante e moralmente intolerável” (SÓ BABADO, 2014, n. 1, p. 2). Ou afirmando as conquistas entorno da organização política das internas e da veiculação dos fanzines dentro e o fora da prisão.
Com apoio da assistente social e da direção da CPPL3 demos início a reuniões da população LGBT encarcerada. As reuniões foram se realizando e as coisas acontecendo. Montamos espetáculos de dança e teatro; tivemos maior assistência à saúde, fizemos vários fanzines. Afinal, quem não é visto não é lembrado (SÓ BABADO, 2015, n. 6, p. 11).
A expertise da assistente social em fazer circular os fanzines expôs os relatos sobre o tratamento destinado as travestis e transexuais em unidades prisionais do Ceará. Com isso, algumas reivindicações passaram a ser defendidas pelo movimento LGBT como pauta de intervenção do Estado. A partir do trabalho com os fanzines, militantes e profissionais da Coordenadoria de Políticas Públicas para LGBTs do Ceará e da Coordenadoria da Diversidade da Prefeitura de Fortaleza passaram a fazer o acompanhamento deste público com visitas periódicas e promover atividades educativas, profissionalizantes e lúdicas com as internas.
Enquanto algumas reivindicações das “bichas” eram atendidas na ala E da CPPL III, tais como: o nome social, atendimento de saúde, assistência psicossocial, oficinas de dança, teatro, a manutenção dos cabelos compridos, roupas e outros adereços de suas identidades, nas demais unidades prisionais do Ceará as travestis e transexuais continuaram sem o reconhecimento das suas identidades e sofrendo violências pelos demais internos e dos profissionais. Dayse, travesti que cumpre pena há mais de oito anos em diversas unidades prisionais, relatou alguns episódios que vivenciou nas prisões por onde passou.
Eu já passei por muitas “fuguetas”12no sistema penitenciário porque quando eu cheguei na CPPL I, naquela época [2009], os homossexuais já não eram aceitos nas “ruas”.13Então quando eu cheguei, eu não subi a “vivência” porque se eu subisse eu era ameaçado de morte. Permaneci isolada por dias. A primeira vez que eu entrei em uma “vivência”, foi muito constrangedor pra mim porque eu tive que assinar um termo de responsabilidade, não por eu querer estar na “vivência”, porque eu nem sabia o que era cadeia. Mas, eu tive que assinar um termo de responsabilidade mesmo sem saber do que se tratava. Os agentes cortaram meu cabelo também só por maldade. Eu fiquei igual uma dama com um lado preto e um lado branco. Eles rasparam um lado e deixaram o outro com cabelo bem curtinho. Mas graças a Deus eu sou mais um homossexual sobrevivente na prisão. Eu passei pela CPPL I, II, III, Presídio Militar, Pacatuba e IPPO II. Não é fácil ser homossexual na prisão. Eu quase fui estuprada na minha segunda “quebra”.14Eu agradeço a dois caras que me viram em desespero com a faca na garganta e me salvaram. Eles tomaram a faca da mão dele. Eu já passei por muitas “ruas” que não entram homossexuais e um ou outro agente penitenciário por preconceito me jogava lá dentro. A “rua” tremia, batia as facas nas grades e eu tinha que falar que a culpa de estar ali não era minha, eles tinham me colocado lá. Passava a noite aterrorizada com medo do que eles poderiam fazer comigo. Na manhã seguinte, os agentes mesmos me tiravam porque sabiam que eu estava toda me tremendo.
O relato de Dayse é exemplificador do caráter dessemelhante do tratamento de LGBTs nas prisões do Ceará. As ações afirmativas à convivência salutar das travestis nas prisões, iniciadas em 2014, são de caráter pontual e fragmentadas e abarcavam apenas o agrupamento da ala E da CPPL III. Nas demais unidades, nenhuma ação era mobilizada por parte da administração prisional para que as internas tivessem acesso aos mesmos parâmetros de tratamento conquistado pelas internas da ala E. Pelo contrário, Dayse relata como alguns agentes penitenciários dotados de preconceitos faziam questão de descaracterizar e ridicularizar as travestis cortando seus cabelos de modo pouco convencional, além de aterrorizá-las e colocar a vida delas em risco alocando-as nas “ruas” que não permitiam a entrada das “bichas”.
A partir de 2016, mais especificamente com as rebeliões de maio daquele ano, o cenário das prisões no Ceará mudou completamente. Os presos faccionados não mais aceitaram que as “bichas” permanecessem nas mesmas unidades prisionais que eles, nem mesmo em celas ou alas específicas, como ocorria na CPPL III. A Secretaria de Justiça e Cidadania iniciou a redistribuição de presos nos presídios da Região Metropolitana de Fortaleza temendo novos embates entre presos filiados às facções inimigas e, por isso, passou a alocá-los em unidades prisionais específicas15 ainda durante as rebeliões. As “bichas” e os “artigos errados” foram retirados às presas de todas as unidades prisionais da Região metropolitana de Fortaleza e transferidos para a CPIS e para a unidade prisional Professor José Sobreira de Amorim sob grave risco de morte.
Esse novo agrupamento das “bichas” se deu por conta da radicalização das práticas das facções dentro e fora das prisões, inclusive as que normatizam as sexualidades e expressões de gênero no interior das celas. Ora, é importante frisar que as facções explicitam um ideal de masculinidade e de moralidade ao afirmar que: “o crime não dá o cu” (BIONDI, 2010, p. 148) e nem se mistura com quem dá o cu.
É comum nos relatos das interlocutoras a afirmação de que - “Cadeia dominada por facção é cadeia de presos machistas”. Quando eram aceitas junto aos presos “faccionados”, as travestis e transexuais eram fortemente discriminadas e vigiadas, não podendo expressar o feminino performatizado em seus corpos ou ter relações afetivo-sexuais com outros presos - “junto aos faccionados, as ‘bichas’ têm que estar no lugar delas. Elas são homens e devem se comportar como tal” - disse-me Erika. Neste sentido, as relações de poder e hierarquias no interior das celas, marcadas pela diferença de gênero e sexualidade, apontam para um padrão masculino e heterossexual como dominante e que impõe aos demais sujeitos não heterossexuais uma adequação forçada em função da continuidade da vida na prisão.
Para Lago e Zamboni (2017, p. 79-80), as discussões em torno das moralidades no “mundo do crime” permitem perceber as relações entre práticas (homo)sexuais e organização política dos presos. Para os autores, a gestão das relações sexuais pelos grupos criminais nas prisões é cotada por um ideal de masculinidade, não dizendo respeito apenas às pessoas que não se encaixam no padrão heterossexual, mas estipula e organiza um ideal de sexualidade que se propõe generalizante a todos os presos. Ainda de acordo com os autores, a sexualidade é um dos principais campos em que a política dos presos faccionados atua.
Pensando com a argumentação dos autores e a partir do relato de Erika, parece que, bem mais que impor a heterossexualidade para as travestis, os presos faccionados estão preocupados com suas próprias sexualidades. As travestis são fronteiras de perigo, desejo e contaminação para a sexualidade das facções. O exame e o controle que os faccionados exercem nos corpos delas referem-se ao risco da contaminação à heterossexualidade deles. Portanto, a fiscalização e o controle das sexualidades das travestis pelos presos faccionados são muito mais que uma imposição a um ideal de masculinidade: é a fiscalização da masculinidade dos homens e não das travestis.
Nesta linha de argumentação, pode-se inferir, portanto, que a pressuposição de que o “crime” não dá e nem se mistura com quem dá o cu está muito mais ligada à preservação de um ideal de masculinidade entre os membros das facções presos do que efetivamente no controle da sexualidade das “bichas”, ou seja, o “crime” está mais preocupado com seu próprio cu do que com o cu das pessoas não heterossexuais. Em outras palavras, a preservação de uma moralidade disposta num ideal de masculinidade pressuposta ao “crime” - que normatiza práticas sexuais, afetivas e expressões de gênero que não correspondem a este ideal e que repelem as pessoas que representam fronteira, perigo e contágio a essa moralidade/masculinidade, nada mais são do que processos de governamentalidades que se dão através das práticas e técnicas faccionais em relação ao Estado nas instituições prisionais cearenses.
As “bichas” e “artigos errados” foram alocados, desde o início das rebeliões, na CPIS e na unidade prisional Professor José Sobreira de Amorim, unidades prisionais ainda em construção naquele período, sem grades ou quaisquer condições de habitação e vigiadas 24 horas por agentes penitenciários. Elas permaneceram ali até julho de 2016, quando foi inaugurada a Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes.
Com a inauguração do presídio Irmã Imelda Lima Pontes, unidade destinada aos presos tidos pela administração prisional como “frágeis” e “vulneráveis”, tais como: idosos, deficientes, ex-militares e primários da lei Maria da Penha, foi criada uma ala específica para as “bichas” - a “ala GBT”. A criação deste espaço se deu após intensas provocações e negociações dos profissionais da assistência psicossocial da CPPL III, militantes e profissionais da Coordenadoria de Políticas Públicas para LGBTs do Ceará e da Coordenadoria da Diversidade da Prefeitura de Fortaleza com o então secretário da justiça Hélio Leitão. Para essa ala foram transferidas as “bichas” e seus companheiros considerados pela administração prisional de “baixa periculosidade”. Já as travestis e transexuais consideradas de “média” e “alta periculosidade” permaneceram na CPIS, presídio masculino que não reconhece a identidade de gênero das internas.
No Presídio Irmã Imelda, as formas de tratamento para pessoas trans são semelhantes às que ocorriam na ala E da CPPL III. O reconhecimento das identidades das internas e a permissividade delas vivenciarem suas sexualidades e identidades de gênero desde atributos que elas consideram como femininos é premissa de tratamento na instituição, inclusive o uso do nome social, tratamento hormonal e a visitação de companheiros “da liberdade”. Lá também são oferecidas atividades lúdicas, profissionalizantes e educacionais em parceria com outras entidades que lutam pelas liberdades sexuais e de gênero e em defesa dos direitos humanos.
Na CPIS, o tratamento destinado as travestis e transexuais é bem diferente do oferecido no Presídio Irmã Imelda. Nesta Unidade, as pessoas trans foram alocadas junto aos “artigos errados” com o intuito de preservá-las das violências físicas e resguardar suas vidas. Suas identidades não são reconhecidas e o acesso a determinadas materialidades que compõem suas identidades tem entrada negada pela direção da instituição. Não há distinção entre esse público e os demais presos, a não ser pela visitação íntima que é permitida aos “artigos errados” e não é possibilitada às pessoas trans. Complexas configurações, relacionamentos e tensões próprias do convívio entre as “bichas” e os “artigos errados” são formuladas no cotidiano desta unidade prisional.16
Mais uma vez, assim como ocorria antes das rebeliões de 2016, duas formas de tratamento para pessoas trans aprisionadas são moduladas em um mesmo Estado por processos distintos e opostos. O Estado, ao produzir sujeitos de direitos com necessidades especiais - tensionado por facções, profissionais, militantes e organização política das internas -, produziu também critérios de inclusão e exclusão para o acesso à política de tratamento especial.
Para Dediane Souza, profissional da Coordenadoria da Diversidade da Prefeitura de Fortaleza e militante do movimento social de travestis do Ceará, os critérios da transferência de travestis e transexuais para o presídio Irmã Imelda Lima Pontes foram formulados a partir da perspectiva de “prêmio”, que, nem de longe, abrange a demanda de acesso às políticas públicas que respeitam as identidades de gênero delas quando mantidas aprisionadas.
O Imelda não pode ser caracterizado como um prêmio, mas sim como um acesso às garantias de direitos das pessoas travestis e transexuais privadas de liberdade. O Estado negou a identidade delas, ou seja, negou a elas as possibilidades de mudança em seus corpos e suas identidades quando em liberdade. Nós somos relegadas à prostituição como único meio de subsistência. É um processo de reparação sim, mas ainda não é um direito para todas, então, isso deve ser revisto. Pois se trata de um processo de inclusão dentro de um processo mais amplo de exclusão, mais uma vez as políticas públicas estão sendo gestadas no campo da moral. O processo de exclusão se repete no âmbito prisional. Por exemplo: se uma das meninas não conseguir ou não quiser parar de usar drogas, ela não poderá permanecer no Imelda. Ou seja, é uma política que tem como critério o juízo de valor.
A militante argumenta sobre a falta de oportunidades e violências a que estão sujeitas as travestis e transexuais, alinhando a política de alas ou celas especiais como uma forma de reparação do Estado aos direitos historicamente negados a essas pessoas. Defende que todas as pessoas trans tenham acesso a essa política e não apenas as esquadrinhadas pelo Estado como “menos perigosas”. Dediane ainda estende a sua crítica aos critérios estabelecidos desde práticas discursivas da instituição prisional para a seleção e permanência das travestis e transexuais que cumprem pena no Irmã Imelda, citando a impossibilidade da continuidade de algumas práticas usuais existentes nas prisões cearenses, tais como acesso a aparelho celular e o uso de drogas.
De fato, a criação dos agrupamentos de travestis e transexuais na CPPL III e no presídio Irmã Imelda proporcionou a hipervigilância das pessoas trans que lá passaram a cumprir pena. Dessa forma, argumentamos sobre os processos de Estado que elegem sujeitos afeitos às políticas prisionais especiais em detrimento de outros ou que produzem alguns direitos negando outros. Não se trata de um processo novo, mas dos sujeitos que foram eleitos como alvo de intervenção da vez no cenário de disputas por direitos no Estado.
A militante critica a lógica de acesso às políticas públicas para travestis e transexuais privadas de liberdade no Ceará. Todas as ações que priorizam o respeito às identidades de gênero das internas são desenvolvidas no Presídio Irmã Imelda Lima Pontes, ao contrário das outras instituições, que sequer reconhecem as identidades de gênero das travestis e transexuais.
Processos de Estado e produção de agrupamentos de pessoas trans: considerações finais
As narrativas pontuadas no decorrer das sessões anteriores sobre agrupamentos de travestis e transexuais demonstram processos de Estado como atravessados por dinâmicas e dispositivos generificados (VIANNA; LOWENKRON, 2017). Desta forma, marcadores de gênero e sexualidade conformam processos de Estado como tática de produção de sujeitos de direitos afeitos às políticas prisionais especiais, fazendo ver determinados sujeitos de direitos para não ver outros e fazendo direitos desfazendo direitos.
A ideia de que a inexistência de dados confiáveis sobre a população LGBT os invisibiliza na promoção de políticas públicas no âmbito prisional parece equivocada. O não fazer é algo que deve ser entendido como inerente e não externo aos processos de Estado. Veja-se: ao não colocar as travestis e transexuais nas planilhas, o Estado o faz. Este também é o fazer do Estado por meio dos seus processos.
O que importa saber aqui é: em quais contextos pessoas trans se tornam sujeitos de direitos? Quais travestis e transexuais se tornaram sujeitos de direitos nesse momento? Por que as pessoas trans se tornaram sujeitos de direitos nesse contexto nacional?
A prisão já nasceu em crise, passando sempre por crises diferentes ao longo de sua existência. Sempre se fala em uma crise nova ou na crise do momento. O que está em jogo, no contexto em que se insere este texto, é saber por que os LGBTs se apresentam como a crise da vez. Ou, melhor dizendo: compreender o contexto em que esses sujeitos, quando mantidos em prisões masculinas, alcançam status da intervenção do Estado por meio dos agrupamentos e do reconhecimento de algumas de suas demandas na política prisional.
O período pós-redemocratização é o cenário em que instituições e partidos políticos com histórico de luta em defesa dos direitos humanos foram fortalecidos. É também nesse período que o movimento feminista e LGBT acirra as disputas por direitos sexuais, reprodutivos, afetivos e pelo reconhecimento de suas identidades no âmbito do Estado. A problemática do encarceramento de travestis e transexuais em unidades prisionais masculinas surge no contexto em que os LGBTs conquistam alguns direitos frente à arena de disputas por políticas públicas no âmbito do Estado, principalmente as que estão ligadas a saúde e assistência social.
Quando se trata dos levantamentos estatísticos em torno da “população LGBT”, as travestis e transexuais são contabilizadas como as vítimas mais frequentes de violências, discriminação e preconceito, ao mesmo tempo em que apresentam os menores índices de escolaridade. Quando mantidas privadas de liberdade, há uma intensificação da condição de precariedade a que são submetidas em torno da insuficiência dos insumos próprios à sua manutenção na prisão e pelas violências a que estão sujeitas pelos presos faccionados ou não. A dupla situação de vitimização problematizada no “acoplamento travesti-vítima”, da sociedade e da instituição prisional dá legitimidade à criação de alas ou galerias que funcionam como processo de (re)humanização destas pessoas (SEFFNER; PASSOS, 2016).
É no início da segunda década dos anos dois mil que a população LGBT aprisionada é incluída no rol de disputas por direitos. Os marcos dessa inclusão são a criação das alas e celas especiais em diversas prisões do Brasil e a publicação da Resolução Conjunta de Número 1 (BRASIL, 2014).17 Esta Resolução é produto de intensas articulações e tensões do movimento LGBT e outras instituições que defendem os direitos humanos com órgãos estatais da gestão prisional. Embora se constitua apenas por orientações, esse documento elenca algumas demandas que são históricas da luta do movimento LGBT por acesso à saúde e ao reconhecimento social de suas identidades.
É neste cenário nacional que as travestis e transexuais privadas de liberdade no Ceará são inseridas nas disputas por políticas públicas específicas no sistema prisional e fortemente afeitas à lógica dos direitos humanos. Desta forma, tecnologias de governo são acionadas pelo Estado com o intuito de identificar, nomear e separar esses sujeitos com o objetivo de produzi-los como sujeitos de direitos, visibilizando alguns sujeitos como sujeitos de direito em detrimento de outros ao mesmo tempo em que formula direitos desfazendo direitos. Ou seja, o Estado opera por meio dos seus processos para produzir pessoas trans afeitas ou não às políticas prisionais especiais. As práticas discursivas que produzem essas pessoas como “vulneráveis”, “perigosas” e “menos perigosas” dão o tom do tratamento fragmentado da política de celas, alas ou tratamento especial defendido pelo movimento LGBT em consonância com o discurso dos Direitos Humanos.
Nesses processos de Estado, a algumas travestis e transexuais nomeadas como “menos perigosas” ou “vulneráveis” é possibilitado o cumprimento de suas penas em espaços correspondentes a essa demanda, como a ala E da CPPL III e unidade prisional Irmã Imelda Lima Pontes. Por outro lado, as pessoas trans consideradas “perigosas” não são beneficiadas com nenhuma política de tratamento especial. Pelo contrário, permanecem vulneráveis às múltiplas violências institucionais e pelos demais presos no interior das celas.
As práticas discursivas utilizadas pelo Estado e por seus agentes para operar no esquadrinhamento desses sujeitos é o ponto crítico dessa política. As maneiras pelas quais essa identificação e alocação são operadas passam por discursividades próprias do fazer do Estado nas prisões - dispostas pela diferenciação por crimes, o uso da violência no momento em que o crime foi cometido e o comportamento das internas quando em cumprimento de pena. Em certo sentido, essa lógica de identificação e separação de pessoas trans como “perigosas” e “menos perigosas” institucionaliza uma lógica perversa de discriminação moral e segregação espacial como modo de gestão da vida e diminuição dos riscos dessas pessoas quando mantidas na prisão.
A divisão de travestis entre “perigosas” e “menos perigosas” parece corresponder à concepção de táticas disciplinares e de governamentalidade discutidas por Michel FOUCAULT (1997; 1999). A separação de indivíduos em grupos cada vez menores na prisão possibilita a sua identificação, fiscalização e controle de suas condutas, tornando ainda mais eficiente as práticas disciplinares e a gestão desta população. Trata-se de elaboradas tecnologias de poder que tornam indivíduos objetos de esquadrinhamentos, vigilância e exame como um processo produtivo: a fabricação de corpos submissos e exercitados às regras institucionais da prisão.
A individualização e a identificação desses sujeitos facilitam a fiscalização e o controle da conduta deles no cotidiano da prisão. Na disciplina o que está em jogo é o poder minucioso sobre os corpos; já a intensificação desse controle torna o governo e a fiscalização mais eficientes. Se a separação é uma estratégia interessante para governar, “separar também parece ser uma tática eficiente para proteger” (SEFFNER; PASSOS, 2016, p. 154).
Aguião (2016) chama atenção para as controvérsias e dinâmicas internas envolvidas no “fazer-se no Estado”, pois permite não apenas perceber as formas “pelas quais o Estado produz os sujeitos que governa (administra), mas também para o processo de constituição desses sujeitos como parte de um fluxo contínuo de produção do próprio Estado” (p. 302-303). A fabricação de identidades, de acordo com a análise da autora, é realizada a partir de práticas discursivas e parte dos processos de Estado é justamente apagar os traços desta fabricação.
Se é impossível pensar gênero e Estado de forma desconexa (VIANA; LOWENKRON, 2017), o fazer-se no Estado (AGUIÃO, 2016) e a produção de discursividades em torno dos sujeitos que o Estado passa a governar permite pensar a produção do perfil de presos e presas como “frágeis”, “vulneráveis” e de “baixa periculosidade” ou o esquadrinhamento de travestis e transexuais em “perigosas” e “menos perigosas”. Permite pensar ainda sobre como o Estado produziu sujeitos passíveis de políticas públicas humanizadas no sistema prisional em detrimento de outro público que não está conformado nos padrões estabelecidos pelo Estado por meio de seus processos.
Ao se definir quem merece ou não uma política prisional humanizada, são deliberados modelos de pessoas trans requerido pelo Estado. Um modelo de presos e presas pelo qual valeria a pena constituir políticas públicas humanizadas, mesmo porque é a partir desses sujeitos supostamente frágeis, inofensivos e vitimizados que o Estado potencializa sua imagem de Estado protetor.
Sob esse ponto de vista, a seleção cria situações de exceção, possibilitando ou impedindo trajetórias em processos de identificação, vivências sexuais-afetivas e riscos de vida. Ao mesmo tempo, o Estado produz desde presos LGBTs um local a partir do qual deseja ser visto: o Estado que separa, define, protege. Eventualmente, reconhece a diferença.