Introdução
As atividades de cuidado são essenciais à sobrevivência e à manutenção das mais variadas formas de vida e, entre humanos, implicam a vida individual tanto quanto a de suas sociedades. Dada a fragilidade e vulnerabilidade humana, não é possível sobreviver aos primeiros anos de vida sem um cuidado diário e constante, assim como é preciso mantê-lo por mais de uma década para que um indivíduo chegue à vida adulta. Passado esse período, a necessidade de cuidados não desaparece, visto a fragilidade e a vulnerabilidade serem condições inescapáveis de seres corpóreos e mortais. Além disso, a vida individual e social é marcada por períodos em que os cuidados precisam ser intensificados, dada a experiência do adoecimento - físico ou emocional - e da velhice. Como pontuou Virgínia Held (2007, p. 173), a humanidade não subsistiria sem as relações de cuidado.
Após quase quatro décadas de pesquisas feministas sobre o tema,1 pode-se afirmar que o cuidado possui pelo menos cinco objetivos: responder às necessidades básicas de um indivíduo, grupo ou ecossistema; auxiliar os indivíduos, grupos e ecossistemas a sobreviverem; evitar ou aliviar dor e sofrimento desnecessários ou indesejados; promover o desenvolvimento das habilidades dos indivíduos; auxiliar indivíduos humanos a viverem em sociedade (Carol GILLIGAN, 1982; Sara RUDDICK, 1989; Joan TRONTO, 1993; Eva KITTAY, 1999; Daniel ENGSTER, 2007).2 Também é consenso que diferentes indivíduos manifestam suas necessidades de maneiras diversas e que esses objetivos só são alcançados em uma complexa e vasta rede de relações.
Pesquisadoras feministas que vêm produzindo conhecimento no âmbito do cuidado, tais como Kittay (1999) e Tronto (1993; 2013), evidenciam que as compreensões acerca dessa categoria não são neutras. Há implicações políticas na produção de conhecimento sobre o cuidado, na construção e implementação de políticas sociais para implementá-lo (ou não) e no modo como a coletividade se organiza para exercê-lo. Neste trabalho, corroborando o estudo de Helena Fietz e Anahí Mello (2018), entendemos que o cuidado pode ser uma categoria analítica potente para o campo da deficiência. No imaginário geral, pessoas com deficiência estão diretamente associadas ao cuidado e dele dependem de forma intensa. É preciso, pois, provocar uma discussão ampla sobre as formas como o cuidado é instrumentalizado e a serviço de quem.
Toda sociedade possui um grupo de pessoas que vivencia a dependência complexa, que, neste artigo, em dissonância com a definição proposta por Stacy Simplican (2015 3, conceituamos como o tipo de dependência experienciada por pessoas que, por terem um alto grau de impedimentos - físicos, sensoriais, intelectuais, psicossociais ou múltiplos -, necessitam de apoio e/ou suporte para a maior parte das atividades das quais precisam ou desejam participar. Comumente, a dependência é pensada como algo relacionado às necessidades consideradas elementares (alimentação, higiene e cuidados para a manutenção dos corpos vivos) e circunscritas ao âmbito privado (na residência das pessoas ou, no máximo, nos serviços de saúde de que elas necessitam para se manterem vivas). Contudo, a partir de uma perspectiva político-feminista, entendemos que a dependência complexa deve ser incorporada no âmbito público, de modo a garantir a participação social, à sua maneira, de pessoas que necessitam de muitos suportes e apoios.
Visibilizar a dependência complexa é fundamental para a construção de políticas sociais voltadas à efetivação dos direitos já garantidos pela legislação brasileira4 a todas as pessoas com deficiência, inclusive àquelas que vão depender de maior apoio para acessarem esses direitos. Acreditamos que considerar a dependência complexa como uma categoria de análise pode contribuir para a construção de conhecimentos e práticas voltadas ao rompimento com processos de precarização da vida, os quais podem se dar por negligência das necessidades da pessoa, violência doméstica/sexual, institucionalização compulsória, esterilização, entre outros mecanismos de opressão.
Kittay, referindo-se ao cuidado às pessoas com deficiência, em entrevista concedida à Marivete Gesser e Fietz (2021), destaca a necessidade de se romper com perspectivas que o situam como uma questão familiar, a ser resolvida no âmbito privado. A proposta de Kittay é que o cuidado seja compreendido como um trabalho que deve ser remunerado e como um direito, uma questão de justiça para pessoas com deficiência. Ademais, ela argumenta que, para que todos tenham acesso a um bom cuidado, é necessário que esse seja valorizado e oferecido pelo Estado. Todavia, apesar dos inúmeros avanços obtidos no Brasil do ponto de vista legal a partir da aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) (Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008) e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - LBI (Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015), o direito a um(a) cuidador(a) por parte das pessoas com deficiência em situação de dependência complexa ainda não foi previsto.
Esse texto problematiza o cuidado de pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa, defendendo-o como uma questão de justiça. Partimos do pressuposto de que o capacitismo e o familismo são sistemas que sustentam as políticas neoliberais, as quais mantêm o cuidado no âmbito privado como uma atividade eminentemente feminina, reafirmando as históricas desigualdades de gênero.
O capacitismo é conceituado por Fiona Campbell (2001, p. 44, tradução nossa) como “a network of beliefs, processes and practices that produce a particular kind of self and body (the corporeal standard) that is projected as the perfect, species-typical and therefore essential and fully human. Disability, then, is cast as a diminished state of being human”. A deficiência, por diferir desse padrão de corpo, é caracterizada como um estado diminuído do ser humano. Mello (2016) destaca que o capacitismo hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade, tratando-as, de forma generalizada, como incapazes de realizar atividades ordinárias, tais como trabalhar, aprender algo, cuidar, amar, sentir desejo e serem desejadas, ter relações sexuais.
O familismo, por sua vez, é entendido como um tipo de sistema de bem-estar colocado em funcionamento em um contexto patriarcal capitalista. Nele, a família é designada como principal responsável pelo bem-estar dos seus membros e as mulheres recebem uma carga desproporcional de atividades de cuidado (Luana PASSOS; Celia KERTENETSKI; Danielle CARUSI MACHADO, 2021). Wederson Santos (2017; 2014) e Gøsta Esping-Andersen (1990) apontam que, nesse sistema, a presença do Estado como agente responsável pelo cuidado da população é bastante reduzida, visto as famílias serem as principais promotoras de cuidados e proteção social, assumindo funções que deveriam ser prestadas pelo Estado por meio de políticas públicas.
O capacitismo e o familismo favorecem as políticas neoliberais, pois corroboram a prática deste sistema em sujeitar as demandas dos sujeitos ao mercado e à família. Segundo Robert McRuer (2021), o neoliberalismo é o sistema econômico e cultural dominante do nosso tempo. Ele tem como principal característica a premissa de que o mercado está mais bem posicionado para a resolução de forma mais eficiente e eficaz de todos os problemas existentes na sociedade. Esse sistema desloca as funções anteriormente públicas (de responsabilidade do Estado) para o âmbito privado. Assim, “como o neoliberalismo depende de soluções privadas para todos os problemas, ‘a família’ assume um papel cada vez mais importante enquanto provedora de bens e serviços, como o trabalho de cuidar dos mais jovens ou velhos” (McRUER, 2021, p. 110).
A restrição do cuidado à família, apontada por McRuer (2021) como decorrente das políticas neoliberais, vulnerabiliza ainda mais as pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa em situações como a da pandemia de Covid-19, uma vez que muitas pessoas que exercem o cuidado são do grupo de risco e apresentam maior probabilidade de, caso contaminadas, falecerem. Para pessoas com deficiência que dependem de seus familiares para terem acesso ao cuidado, e que não têm como buscarem esse serviço no mercado, o contexto pandêmico pode ser produtor de muita ansiedade. No estudo realizado por Karla Luiz (2020, não publicado) visando identificar a experiência da dependência complexa de mulheres com deficiência, uma das participantes relatou o quanto o medo de perder seus cuidadores, que são pais pertencentes ao grupo de risco, gerou sentimentos de angústia:
E me angustia muito pensar [na perda], até porque eles também estão envelhecendo e agora, com a pandemia, a ansiedade que eu sinto da contaminação minha e deles - aliás, mais deles do que minha. Porque eu acho que pensar na minha morte não é algo que me dá uma angústia, mas pensar na morte deles é o que me dá muita, muita angústia. Porque eu fico pensando: ‘tudo que eu faço hoje eu só faço porque tá tudo estruturado por eles, né, tá tudo organizado, dividido por eles e tal’. Se eles morrerem, ou se um deles [morrer], aí a estrutura já não vai ser a mesma (Lígia, comunicação oral, julho, 2020).
Esse relato demonstra o quanto a pandemia e seus desdobramentos operam para amplificar e intensificar as barreiras encontradas e os “processos de exclusão os quais as pessoas com deficiência já vivenciavam” (Fábio CRISTO; Renan SOARES JR.; LUIZ; Andrea NASCIMENTO, 2020, p. 6). Ou seja, para além do receio de perder seus cuidadores por questões cotidianas, a pandemia trouxe o risco iminente do adoecimento e da morte pelo coronavírus. Essa nova possibilidade de perda evidencia a fragilidade em que se encontram as pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa - não pela deficiência em si, mas pela falta de uma política pública de cuidado que seja capaz de suprir as necessidades de apoio para essas pessoas.
A compreensão da deficiência como um problema individual e/ou familiar legitima políticas familistas de cuidado. Tais políticas implicam uma série de desigualdades e injustiças - de gênero, de classe, étnicas e raciais. Em especial, queremos discutir, neste artigo, a desigualdade e a injustiça que afetam as pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa no acesso ao cuidado. Contrapondo-se ao capacitismo, familismo e demais sistemas opressivos que obstaculizam o acesso aos direitos das pessoas com deficiência, especialmente daquelas marcadas por múltiplas intersecções, propomos a incorporação dos princípios dos Disability Justice que aqui, em consonância com a proposta de tradução de Mello e Fietz (MELLO et al., 2021), nomearemos como Justiça Defiça.5 Esse campo será mais bem contextualizado na última seção deste artigo.
Dadas as questões apontadas até aqui, o primeiro tópico deste texto apresenta a temática do cuidado sob uma perspectiva feminista e indica como ele foi feminizado e privatizado, ao mesmo tempo que um novo ideal de masculinidade foi colocado em cena na modernidade: o do homem independente e assalariado. Tal ideal serve a um sistema capitalista, reforça o c capacitismo, as desigualdades de gênero e o familismo como política estatal. Os dois tópicos seguintes discutem o familismo e o capacitismo como práticas que intensificam desigualdades e obstaculizam a luta das pessoas com deficiência por cuidado. Por fim, um cuidado público é defendido a partir do diálogo com a Justiça Defiça, uma teoria com força política para produzir fissuras no capacitismo amplamente presente na construção dos espaços sociais e no estabelecimento de modos de se relacionar com a deficiência.
Cuidado a partir de uma perspectiva político-feminista
Dois fatos chamam muito atenção, inicialmente, para quem passa a estudar a temática do cuidado: o de que suas atividades são exercidas majoritariamente por mulheres e o de que essas atividades costumam ser pouco valorizadas ou passam ‘despercebidas’ pela maioria de nós. Há muitas décadas, esses dois fatos têm sido associados entre si, por pesquisadoras e militantes feministas, e suas causas atreladas a questões éticas e políticas (RUDDICK, 1989; TRONTO, 1993; 2013; KITTAY, 1999; Ilze ZIRBEL, 2016).
Nossas sociedades contemporâneas são o resultado de longas trajetórias e arranjos sociais marcados por jogos de interesses e embates entre variados e distintos grupos de pessoas. Cada um e cada uma de nós, no entanto, inicia sua jornada de vida em um total estado de fragilidade e dependência, recebendo de seu círculo familiar não apenas os cuidados materiais necessários à preservação da sua vida, mas também as indicações sobre como sua sociedade funciona e quais as regras vigentes. Somos cercados por variadas atividades de cuidado, sem nos darmos realmente conta delas, sem termos, nem mesmo, as ferramentas linguísticas para elaborar nossos pensamentos acerca do que nos está acontecendo.
Encontramos um mundo em que mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado de si, de suas crianças, de familiares com deficiência, acamados ou idosos e de todos os homens adultos de sua família. Em muitos casos, espera-se que não desenvolvam planos pessoais ou que os deixem de lado para exercerem o cuidado ilimitado de seus familiares ou, mesmo, de outros grupos sociais, como é o caso das mulheres negras ou imigrantes. A ideia de autossacrifício em prol do cuidado de outros acompanha as expectativas ligadas às mulheres (GILLIGAN, 1982), pensadas essencialmente como fornecedoras de cuidado, como mães e esposas, sendo este o destino imaginado para a grande maioria das meninas, em especial aquelas de classes menos abastadas.
Paralelamente ao modelo da mulher-cuidadora, nos deparamos com um outro modelo, voltado ao universo descrito como masculino: o do homem-independente ou autônomo. Ele opera de forma essencialmente individualista e autointeressada. Aparenta não ter necessidades significativas nem dependências, é descrito como supercapacitado - racional e fisicamente - e não se espera dele que assuma atividades vinculadas ao cuidado de alguém ou de si mesmo (afinal, uma ou várias mulheres do seu entorno farão isso no seu lugar). Seu destino é a liberdade e a tomada de decisões, ainda que isso seja, no fundo, um ideal bastante abstrato e afastado da realidade concreta da maioria dos homens reais.
Ao observarmos os dois grandes modelos de gênero disponíveis,6 percebemos que um deles, o feminino, é voltado para atividades de cuidado - à manutenção da vida de inúmeros indivíduos e da própria sociedade, em atuações bastante concretas, cotidianas e necessárias. O outro modelo, tido como masculino, é voltado a uma postura individualista, ao “mundo das ideias” e ao “gerenciamento” da família e da sociedade. Aparentemente, trata-se de uma espécie de “divisão do trabalho” social por gênero ou sexo. No entanto, há inúmeras questões de poder e de (in)justiça envolvidas nessa divisão. Pesquisadoras e militantes feministas dedicadas a pensar o fenômeno da opressão e subordinação das mulheres em nossas sociedades têm apontado, ao longo de mais de um século, para a relação entre esse fenômeno e as atividades de cuidado (Nancy FOLBRE, 1991; Evelyn NAKANO GLENN, 1992; Silvia FEDERICI, 2012; Nancy FRASER; Rahel JAEGGI, 2020).
O modelo do homem-independente é um tipo de ficção que esconde não apenas todas as dependências inevitáveis deste homem (de alimento, abrigo, afeto, políticas públicas, instituições sociais...) como o fato de ele ser dependente das atividades de cuidado levadas a cabo por inúmeras mulheres e o fato de elas não receberem o mesmo tipo de apoio por parte dos homens com quem partilham a vida em comum. Para muitas teóricas feministas do cuidado, o homem independente não passa de um mito ou engodo das teorias (TRONTO, 1993; Martha FINEMAN, 2004). Ademais, como observou Naïma Hamrouni (2021, p. 82), a ideia de independência “é o produto reificado de uma relação de poder, um status social”, usufruído por quem recebe serviços de cuidados, nega que deles se beneficia e recusa suas responsabilidades em fornecê-los em troca. Tudo isso em um contexto social e institucional que sustenta essa prática.
O mito-ficção do homem-independente passou a figurar em teorias morais e políticas, apresentado como um ideal para toda e qualquer pessoa. Em um artigo que traça a genealogia do conceito de dependência, Fraser e Linda Gordon (1994) apontam que foi durante a expansão do capitalismo que a ideia de independência passou a ser associada aos homens e, em especial, àqueles que recebiam salários. A palavra ocultava e consolidava o processo de dominação ao obscurecer as novas formas de dependência da classe trabalhadora - dos empregos e do mercado capitalista -, além das dependências inescapáveis - das atividades de cuidado proporcionadas por mulheres e serviçais, no âmbito da vida privada. O novo sistema também tornava as atividades de cuidado, não remuneradas, algo invisível e desvalorizado, uma vez que as confinava ao espaço privado-doméstico, e estigmatizava a dependência econômica de quem não participava das relações capitalistas de trabalho.
A desvalorização e a invisibilidade das atividades de cuidado permitem que os benefícios e privilégios produzidos sejam compreendidos como resultantes de algum tipo de mérito ou capacidade própria aos indivíduos e não da estrutura e organização social vigentes. Assim, tanto o cuidado como suas agentes são desvalorizados ao ponto de essas atividades parecerem desnecessárias ou decorrentes do afeto de mulheres por seus filhos, irmãos e maridos.
As narrativas sobre o cuidado o naturalizaram e o atribuíram às mulheres que, por sua vez, foram levadas a cuidar de todos os membros da família, no âmbito doméstico (ZIRBEL, 2020). Um conjunto de desigualdades e problemas decorre desse fato: mulheres fornecem muito mais serviços de cuidado do que recebem; homens podem dedicar-se a outras atividades (remuneradas, por exemplo) com muito mais facilidade; a sociedade perde uma grande parcela de cuidadores em potencial (homens adultos); o cuidado não é compreendido como um valor público a ser incorporado às preocupações e políticas públicas-coletivas; consequentemente, pessoas com deficiência, crianças e idosos recebem um cuidado limitado ao âmbito doméstico e não participam de inúmeras atividades coletivas - incluindo atividades decisórias-políticas etc. -; isso é acentuado no caso de pessoas com deficiência complexa.
São muitas as questões que se entrelaçam no emaranhado das desigualdades sociais resultantes de uma organização desigual e injusta das atividades de cuidado, incluindo questões raciais e capacitistas. Várias das nossas instituições foram historicamente constituídas pela intersecção de sistemas como o sexismo, racismo, colonialismo, imperialismo, capacitismo e capitalismo, como vem sendo cada vez mais denunciado por pesquisadoras e militantes feministas (Heleieth SAFFIOTI, 2015; Danièle KERGOAT, 2010; FRASER; JAEGGI, 2020). Percebe-se, claramente, que as sociedades patriarcais-capitalistas estão organizadas no sentido de prover, no âmbito do privado e do doméstico, todos os tipos de cuidados aos chamados “independentes” e manter em funcionamento um sistema político-econômico que privilegia o lucro de um pequeno grupo de homens, já beneficiados de antemão por sua classe, sexo, cor e características físicas-mentais. Nessas sociedades, as práticas de exclusão direcionam-se em graus variados àquelas pessoas cujos corpos e mentes afastam-se gradativamente do modelo performatizado por esse pequeno grupo de homens.
A injustiça predomina largamente, no que tange às responsabilidades e aos privilégios atrelados ao cuidado. Não apenas homens beneficiam-se, em larga escala, da divisão sexual do trabalho doméstico, como homens brancos com poder político e aquisitivo seguem regulando as ações do Estado, impedindo que práticas mais justas sejam estabelecidas e o cuidado seja assumido como algo público, a ser pensado e organizado a favor de toda a população e produzindo menos danos à natureza e aos ecossistemas dos quais dependemos individual e coletivamente.
Do ponto de vista feminista, uma reorganização social e política torna-se necessária e ela subverte as relações de cuidado impostas, assim como vários dos conceitos e narrativas que lhe dão suporte. Nela, o sujeito independente dá lugar ao sujeito vulnerável e interdependente7 (ZIRBEL, 2016) que compreende a si mesmo como parte de um mundo e de uma sociedade igualmente vulneráveis e interdependentes. O cuidado sai do lugar de invisibilidade e ocupa um lugar central, não apenas no campo da ética, mas da política. Sem as relações de cuidado não há self nem sociedade. Nossa identidade, conhecimentos, motivações, possibilidades e afetos resultam de todas as relações tecidas ao longo da vida, dentro e fora da família, de forma coletiva.
Não se trata apenas de fazer política de outra maneira, mas de construir uma outra forma de política, a partir das vidas e corpos reais, concretos, e contra um universalismo nivelador ancorado em um modelo idealizado de humano. Defendemos uma política alicerçada em pressupostos feministas, antirracistas, anticapacitistas e anticapitalistas, de modo a ter como premissa central não deixar nenhum corpo ou mente para trás, conforme vem sendo defendido pelas(os) ativistas da Justiça Defiça (SINS INVALID, 2019). Isso implica a orientação, pelos valores e práticas de cuidado, da arquitetura dos espaços e instituições públicas, as regras e leis institucionais, o mundo do trabalho doméstico e não doméstico e as formas de as pessoas se relacionarem umas com as outras. O cuidado de todos é uma premissa da justiça.
Muitos são os desafios neste momento da caminhada em direção a outro modelo de política. Identificar problemas, provocar discussões e clarear conceitos e ideias é uma etapa necessária no caminho. Nesse sentido, compreender como funcionam as múltiplas formas de opressão levadas a cabo e interconectadas pelo sistema atual é necessário. Felizmente, há cada vez mais discussões e estudos no Brasil sobre sexismo, racismo e homofobia, além de estudos sobre as desigualdades econômicas. No entanto, ainda são poucos que abordam o problema do familismo e o capacitismo que, a partir de nossas análises iniciais, trabalham juntos para deslegitimar os direitos das pessoas com deficiência a um cuidado digno, remunerado e fornecido pelo Estado, em consonância com as lutas das pessoas com deficiência, para que a deficiência e a dependência complexa deixem de ser um problema individual e do âmbito privado e passem a ser uma questão de justiça e de direitos.
Familismo
Como já destacado brevemente na introdução deste artigo, o familismo é um sistema que centra na família a responsabilidade pelo cuidado e pelo bem-estar dos seus integrantes. Assim, o Estado, em função da justaposição do familismo com o papel das práticas privadas de caridade e filantropia presentes ao longo da história no Brasil, acaba tendo uma participação bem reduzida na oferta de equipamentos e serviços voltados ao cuidado e à proteção social em geral (SANTOS, 2017). O autor ainda ressalta que o papel do Estado, em relação à segurança social, diminui conforme a presença da família aumenta. Ou seja, há intervenção pública apenas se a família não consegue se responsabilizar pela proteção e cuidado de seus membros. Para alguns autores, essa não é uma realidade apenas brasileira, mas reflexo de grande parte das sociedades latino-americanas (Guillermo SUNKEL, 2006).
Toda ponderação e análise sobre o familismo é fundamental para que possamos compreender o impacto que as políticas públicas geram, podendo “reforçar graus de opressão e desigualdade” ao delegar às famílias uma atribuição que deveria ser do Estado, isto é, a proteção social. Esse sistema aprofunda as desigualdades entre as famílias e dentro da própria família. Isso ocorre porque famílias com maior poder aquisitivo têm mais facilidade para contratar serviços privados para o fornecimento do cuidado. Já em famílias empobrecidas, racializadas e com integrantes com deficiência, o sistema familista sobrecarrega as mulheres que, em decorrência das desigualdades históricas de gênero, acabam sendo as principais responsáveis pela oferta do cuidado de crianças, pessoas idosas e com deficiência.
O familismo está fortemente presente nas políticas públicas brasileiras porque houve uma centralidade da família no momento de construção da Constituinte. Ou seja, à época, o debate da assistência social ficou atrelado às pautas da família por uma histórica proximidade que há entre a seguridade social de determinados grupos (crianças, idosos e pessoas com deficiência) e a instituição familiar. Historicamente, há, no Brasil, uma estruturação das práticas de caridade como proteção social dos sujeitos. Segundo Santos (2017), o familismo é um dispositivo que restringe o acesso às políticas públicas e, consequentemente, à possibilidade de emancipação.
Familismo e capacitismo possuem desdobramentos em comum: impedem que pessoas com deficiência sejam concebidas como sujeitos de direito, uma vez que as veem como meras receptoras da benevolência e da caridade das demais pessoas - nesse caso, das famílias. Podemos afirmar, inclusive, que o capacitismo e o capitalismo norteiam as políticas para pessoas com deficiência que necessitam de cuidado de longo prazo, ao posicionarem pessoas com deficiência como inferiores às demais e deslegitimarem suas lutas por acesso a cuidador. Tal acesso é essencial à garantia da participação na vida coletiva.
Visto que os serviços de cuidado, da forma como estão estruturados, implicam a reprodução social neoliberal e que há uma crise de cuidados sendo instaurada pelas transformações sociais do papel das mulheres e do aumento da expectativa de vida da população (com e sem deficiência), o debate sobre os serviços de cuidado se torna urgente para a construção de uma política para a garantia da dignidade dos cidadãos que dele necessitam/ofertam (PASSOS; Dyego GUEDES, 2018).
O desafio que se impõe é imenso: como desmantelar políticas públicas de cuidado baseadas em uma perspectiva familista e sustentar políticas emancipatórias em uma sociedade cuja engrenagem é capacitista e capitalista? Para esse debate, a premissa de que ninguém pode ser deixada(o) para trás (SINS INVALID, 2019) e que, portanto, devemos acolher corporalidades nomeadas por McRuer (2006) como múltiplas e alternativas,8 é fundamental para uma resposta viável na direção da desfamiliarização.
Assim, propomos duas possibilidades: que o Estado ofereça um serviço público de cuidado que garanta os preceitos dos documentos norteadores dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil (da CDPD e da LBI) e que o Estado se responsabilize por subsidiar financeiramente o serviço do cuidado por meio do repasse de uma quantia monetária à pessoa que necessita de cuidado para que ela possa pagar por um(a) cuidador(a) de sua escolha (ainda que seja alguém da família). É necessário salientar que toda prática de cuidado deve levar em consideração como a pessoa prefere ser cuidada, isto é, na medida do possível, a pessoa que recebe cuidado deve ser protagonista de toda gestão do seu próprio corpo e da sua vida (LUIZ; Thaís SILVEIRA, 2020).
A omissão e a negligência do Estado estão ancoradas na perspectiva familista e é preciso romper com ela para superar as desigualdades e injustiças vivenciadas pelas pessoas com deficiência, em especial aquelas com dependência complexa. Para isso, no entanto, é preciso enfrentar o capacitismo largamente disseminado na sociedade e nas suas instituições. Familismo e capacitismo atuam juntos em estados fortemente marcados por políticas neoliberais e corroboram a manutenção do cuidado como centrado no âmbito privado.
O capacitismo e a deslegitimação da luta por cuidado
Neste tópico, faremos, primeiramente, uma breve caracterização do capacitismo. Em seguida, mostraremos como o capacitismo, articulado às políticas familistas fortemente presentes no Brasil, corrobora a deslegitimação da luta das pessoas com deficiência pelo acesso ao cuidado público. Ambos, capacitismo e familismo, contribuem para manter a deficiência como uma questão do âmbito privado, um problema individual e, no máximo, da família.
Campbell (2009) corrobora o nosso argumento de que o capacitismo deslegitima a luta pelo acesso ao cuidado público. A autora defende que, do ponto de vista capacitista, a deficiência é uma categoria inerentemente negativa, a qual deve ser “melhorada”, curada ou mesmo eliminada. Essa compreensão reitera a deficiência como um problema do indivíduo, em contraposição às perspectivas teóricas dos estudos da deficiência que destacam o caráter político dessa categoria e reivindicam a eliminação das barreiras e as relações de dependência e interdependência para que pessoas com deficiência possam ter o direito a se desenvolver e participar da sociedade com agência.9 O capacitismo produz enquadramentos que patologizam aquelas pessoas que desviam desse padrão de corpo, seja por se distanciarem do ideal de capacidade ou por não atenderem ao que Rosemarie Garland-Thomson (2002) nomeia como política da aparência e que intersecciona com a medicalização dos corpos subjugados, visando normalizá-los.
Inspiradas pelos estudos da branquitude que vêm sendo desenvolvidos por Lia Vainer Schucman (2020), temos pensado que, da mesma forma que a branquitude, a capacidade também é um privilégio. Defendemos este argumento com base nas análises acerca do contexto brasileiro. Neste, podemos observar que, apesar de termos uma das mais avançadas legislações do mundo no que se refere aos direitos das pessoas com deficiência (Izabel MAIOR, 2017), ainda há inúmeras barreiras que obstaculizam o acesso delas à educação, ao trabalho, aos serviços de saúde e ao lazer. Em decorrência dessas barreiras, performar a capacidade se configura um privilégio.
O capacitismo tem como base a compreensão da deficiência a partir do modelo médico como um problema individual e do âmbito privado, o qual decorre de uma patologia de origem orgânica, que deve ser evitada e que, quando isso não é possível, requer ações voltadas à cura e à caridade. A partir da perspectiva capacitista, as pessoas com deficiência e suas famílias devem “superar a deficiência” por meio da busca de recursos médicos e de acessibilidade para que as pessoas com deficiência possam ter acesso a atividades como trabalhar, estudar e ter acesso à vida comunitária.
Ainda sobre o capacitismo, ele fortalece as políticas neoliberais, pois, ao circunscrever a deficiência como um problema individual, decorrente do desvio do que é considerado típico da espécie, deslegitima a luta, pelas pessoas com deficiência e suas famílias, por serviços e espaços acessíveis, preparados para o acolhimento de corporalidades múltiplas, desobrigando o Estado a fornecê-los. Relacionando o capacitismo com o pensamento de Judith Butler (2015), é possível afirmar que essa prática tende a corroborar a produção de vulnerabilidades. Isso porque o binômio norma/desvio, basilar do capacitismo, foi incorporado na construção dos espaços e nas formas de se relacionar que não abraçam a diversidade humana, tornando determinadas vidas ininteligíveis. Um exemplo são as políticas eugênicas oficialmente instituídas na Alemanha durante o nazismo. Robert Jay Lifton (1986) aponta que o Estado nazista, baseado em um ideal de capacidade, considerou pessoas com deficiência um fardo e suas vidas não dignas de serem vividas. A partir disso, o governo alemão instituiu uma política oficial que, num primeiro momento, esterilizou milhares de pessoas com deficiência. Em seguida, sob o argumento de que a morte desses grupos seria um ato de misericórdia, implementou uma política que exterminou mais de 200 mil pessoas com deficiência, conforme dado disponível na Enciclopédia do Holocausto (O EXTERMÍNIO, sem data).
Gesser (2019) analisou as implicações das normas capacitistas a partir do diálogo entre o conceito de capacitismo apresentado por Mello (2016) e as noções de enquadramento e de precariedade propostas por Butler (2015). A autora destaca que, quando os enquadramentos da deficiência são baseados nessas normas, tem-se como efeito: a) a responsabilização das pessoas com deficiência pela sua condição e pela busca pela acessibilidade; b) a construção de estratégias voltadas predominantemente à adequação do corpo às normas que tornam possível o reconhecimento deste como humano; c) a acentuação da hierarquização entre as pessoas com deficiência, pautada na ideia de superioridade do sujeito considerado típico/inteligível do ponto de vista normativo, uma vez que, para alguns corpos, a inteligibilidade, em decorrência das normas, não é algo alcançável, por mais que essas sejam objetos de intervenções médicas voltadas à “correção” dos supostos desvios; e d) a emergência de uma condição precária, uma vez que o Estado-Nação fica eximido de garantir a adequação dos espaços com base nas variações corpóreas. Portanto, o capacitismo corrobora para tornar certas vidas mais ou menos inteligíveis e dignas de políticas voltadas à garantia dos direitos.
O capacitismo foi apropriado pelos governos neoliberais visando, em aliança com o “familismo”, atribuir a responsabilidade pelo cuidado de pessoas com deficiência às suas famílias. A narrativa de que a deficiência é um incidente isolado - circunscrito no corpo de um indivíduo - juntamente com a narrativa da família como provedora do cuidado e das mulheres como aquelas que devem fornecê-lo, deslegitimou fortemente a luta por esse direito no âmbito público e precarizou a vida das pessoas com deficiência e suas famílias.
No período da pandemia de Covid-19, o capacitismo e o familismo implicaram a desconsideração das pessoas com deficiência nos planos de emergência elaborados pelos mais diversos países. Até o momento, pouco se sabe sobre a realidade dessas pessoas em meio à pandemia, o que compromete as respostas mais efetivas à saúde, aos cuidados gerais e aos direitos dessa parcela da população. Ainda assim, sabe-se que os impactos da pandemia foram enormes, incluindo traumas e estresse dentro da comunidade de pessoas com deficiência, assim como “(...) sobre o racionamento e incapacidade nos cuidados de saúde, isolamento e as mortes e doenças de entes queridos e membros da comunidade (...), além da ampliação dos problemas e das barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência que sofrem violência interpessoal” (Jorge Henrique SALDANHA et al., 2021, p. 17). Para lidar com as questões apontadas até aqui, abordaremos, a seguir, alguns elementos da Justiça Defiça que corroboram a luta pelo cuidado como um valor político central a ser incorporado de forma efetiva pelas políticas públicas.
O cuidado público como uma questão de Justiça
Neste tópico, abordaremos as contribuições dos Disability Justice para produzir fissuras no capacitismo - amplamente presente na construção dos espaços sociais e no estabelecimento de modos de se relacionar com a deficiência - e desafiar a perspectiva familista de cuidado. Acreditamos que os Disability Justice contribuem proficuamente para a qualificação da luta pelo cuidado às pessoas com deficiência que vivenciam a dependência complexa e que necessitam de relações de (inter)dependência para que possam ter agência.
Em decorrência de não haver uma tradução dos Disability Justice que consiga dar conta da potência dessa perspectiva teórica e de luta, como já destacado em nota de rodapé na introdução deste trabalho, decidimos ratificar a tradução dele como Justiça Defiça, conforme proposto por Mello e Fietz (MELLO et al., 2021). Acreditamos que a utilização dessa nomenclatura pode vir a ser ampliada e ajustada à realidade brasileira. Além disso, a opção pelo termo “defiça” também coaduna com a autoidentificação de pessoas com deficiência como “ativistas defiças”, como está ocorrendo no Brasil. Nossas análises indicam que essa forma de identificação se trata de uma estratégia de tensionar o ideal de sujeito universal e o modo como os espaços, tempos e formas de se relacionar são construídos, bem como de fortalecer o ativismo da deficiência no Brasil.
A Justiça Defiça surgiu do ativismo da deficiência. Foi concebida inicialmente como Disability Justice por Patty Berne e Mia Mingus, mulheres com deficiência, não brancas (pretas, pardas e asiáticas) e queer, na baía de San Francisco, Estados Unidos. Mais tarde, juntaram-se a elas os ativistas Leroy Moore, Stacey Milbert, Eli Clare e Sebastian Margaret.10 O grupo reconhecia os avanços do movimento de direitos das pessoas com deficiência para a garantia de direitos, mas percebeu que uma estrutura legal baseada em direitos nem sempre é acessível para todas as pessoas e não se sentia suficientemente representado. O movimento pelos direitos era, em sua maioria, branco, heteronormativo e pouco questionador das estruturas sociais racistas, capacitistas e cisheterosexistas (Leah Lakshmi PIEPZNA-SAMARASINHA, 2018; MELLO et al., 2021).
Mia Mingus (2018) e Sins Invalid (2019) destacam que a supremacia capacitista, a supremacia branca, o cisheteropatriarcado, o colonialismo e o capitalismo trabalham juntos para oprimir pessoas marcadas por essas múltiplas intersecções. Piepzna-Samarasinha (2018, p. 23, tradução nossa) afirma que, por conta dessa intersecção entre esses sistemas opressivos, o foco na mudança de leis como solução central para o problema do capacitismo deveria dar lugar a “a vision of liberation that understands that the state was build on racist, colonialist capacitismo and will not save us, because it was created to kill us”. Assim, torna-se fundamental que perspectivas sobre a deficiência incorporem as múltiplas intersecções para a compreensão deste fenômeno, de modo que corpos marcados pelos diversos sistemas de opressão se movam juntos, sem deixar ninguém para trás.
Visando abranger a multiplicidade de pessoas com deficiência, Patricia Berne, Aurora Levins Morales, David Langstaff e o coletivo Sins Invalid (2018) definem a justiça da deficiência por meio de dez princípios-chave: 1) interseccionalidade; 2) liderança dos mais afetados; 3) anticapitalismo; 4) solidariedade entre diferentes causas e movimentos ativistas; 5) reconhecimento dos indivíduos como pessoas inteiras; 6) sustentabilidade; 7) solidariedade entre diferentes deficiências; 8) interdependência; 9) acesso coletivo; e 10) libertação coletiva. Todos esses princípios são considerados fundamentais pelos ativistas da Justiça Defiça para a construção de uma sociedade que, ao romper com o ideal de sujeito independente, fomenta o acolhimento de corporalidades múltiplas. Os princípios complementam e fomentam a coalizão entre as pessoas com deficiência e delas com as aliadas da luta anticapacitista.
Não discutiremos cada um dos princípios apontados acima, apesar da clara importância deles, mas apenas alguns, por sua relação mais próxima com as questões do cuidado para pessoas com dependência complexa. Esse é o caso do princípio da interseccionalidade, do anticapitalismo e do acesso coletivo. Este último está muito próximo ao princípio da interdependência - uma vez que a construção de estratégias voltadas à garantia do acesso é sempre relacional.
Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) evidenciam a importância do conceito de interseccionalidade como uma ferramenta analítica poderosa para o estudo das desigualdades sociais, uma vez que fornece elementos para compreender o fato de diferentes pessoas serem posicionadas de maneiras diferentes na sociedade, com base nas ideias socialmente construídas e disseminadas sobre raça, gênero, classe, idade e capacidade, dentre outras. O conceito também possibilita perceber o quanto alguns grupos têm suas vulnerabilidades intensificadas pelas mudanças na economia global - como é o caso da população migrante, de refugiados, de pessoas negras, de grupos economicamente desfavorecidos e de pessoas com deficiência - enquanto outros se beneficiam desproporcionalmente delas. Vulnerabilidades intensificadas implicam aumento da demanda por cuidado.
As análises de Eva Kittay, Bruce Jennings e Angela Wasunna (2005) apontam para o fato de haver uma restrição de acesso aos serviços de cuidado de grande parte da população nos países de terceiro mundo ao mesmo tempo que há uma desvalorização desses serviços em países desenvolvidos como os Estados Unidos. Neste, as trabalhadoras do cuidado são usualmente mulheres negras e pobres, sendo uma grande parte delas latinas e africanas, provenientes do Sul Global. A restrição do cuidado ao âmbito privado e sua identificação como atividade feminina possibilitam a sua desvalorização ao mesmo tempo que privilegiam pessoas com poder aquisitivo, habituadas a terem suas necessidades de cuidado supridas por meio da contratação de serviços (TRONTO, 1993). Sem um cuidado garantido por políticas públicas, a precarização da vida de pessoas com deficiência e de camadas populares aumenta exponencialmente. O anticapitalismo coaduna com a justiça para as pessoas com deficiência, pois não exclui aquelas pessoas com corporalidades dissonantes do padrão demandado pelo sistema. Nas sociedades capitalistas, o status de cidadão se confunde com o do “sujeito independente” assalariado, consumidor e “pagador das suas contas”, o que inclui ser beneficiário de cuidados no âmbito doméstico ou comprador de serviços privados. Ademais, a demanda por cuidado em situações de dependência complexa pode ser lida pelo Estado como “um desperdício de dinheiro” e um “fardo social”. Isso porque, em uma lógica de mercado, as pessoas que demandam esse cuidado não contribuirão nos mesmos termos que as demais para o fortalecimento do sistema capitalista.
O acesso coletivo aos bens e serviços de cuidado, assim como às instituições sociais estabelecidas para garantir o bem-estar e o cuidado dos chamados cidadãos independentes, precisa ser garantido para toda a população e, em especial, às pessoas com dependência complexa. O acesso coletivo amplia o desenho universal, por meio da crítica do caráter não relacional e interseccional que apresenta atualmente.
Ativistas defiças, como Mingus (2018) e Camila Alves (2020), vêm denunciando que a oferta de recursos de acessibilidade, embora essencial, não é suficiente para garantir a participação das pessoas com deficiência na vida pública, em especial aquelas com dependência complexa, uma vez que o acesso tem uma dimensão relacional, que se refere ao encontro com o outro. Para além dos recursos de tecnologia assistiva, é necessário que haja o que Mingus (2017) nomeia como “intimidade de acesso”, uma transformação das formas comuns de acesso para pessoas com deficiência: de ferramentas de reforço à inclusão/igualdade em “ferramentas de libertação”. Isto significa garantir que pessoas com diferentes marcas corpóreas e sensoriais possam se envolver plenamente nos espaços coletivos, sentindo-se parte deles e não um fardo ou parte de uma regra obrigatória de acessibilidade. Como pontuou Mingus (2017, tradução nossa), não se quer, com isso, simplesmente ingressar nas fileiras dos privilegiados, mas “we want to challenge and dismantle those ranks and question why some people are consistently at the bottom”. A intimidade de acesso move esse acesso para fora da esfera da logística e o posiciona na esfera dos relacionamentos. Trata-se de “Access intimacy is shared work by all people involved, it is no longer the familiar story of disabled people having to do all the work to build the conversations and piece together the relationship and trust (...) in order to survive”.
Mingus (2017) também destaca que, para as pessoas com deficiência se envolverem plenamente nos espaços, faz-se necessário desafiar o capacitismo e o isolamento histórico vivenciado por elas, especialmente aquelas que fazem parte de outras comunidades oprimidas. Assim, a intimidade de acesso é a interdependência em ação, o que implica convocar as pessoas sem deficiência a habitarem o mundo das pessoas com deficiência. Igualmente importante é a valorização das pessoas com deficiência por aquilo que podem fazer e oferecer, em contraponto às narrativas dominantes que as situam como um fardo.
O tema do acesso está intimamente atrelado ao do cuidado como uma responsabilidade pública coletiva. Na lógica do cuidado, a necessidade de convívio social e acesso a espaços coletivos é tão importante quanto as necessidades materiais da alimentação, do descanso, da saúde e do alívio da dor, por exemplo. Possibilitar que pessoas com deficiência vivam integradas à sociedade é um dos objetivos do cuidado, conforme apontado na introdução, e uma demanda da Justiça Defiça.
Considerações finais
O objetivo deste texto foi problematizar o cuidado de pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa e defendê-lo como uma questão de justiça. Nossas análises foram pautadas no diálogo entre os estudos da deficiência e uma ética político-feminista do cuidado. Elas indicaram que não é possível garantir os direitos das pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa sem romper com o capacitismo e as políticas familistas, reiteradas por governos neoliberais.
A postura capacitista-familista de um Estado a serviço do mercado e de homens brancos com amplo poder aquisitivo implica o confinamento das pessoas com deficiência ao âmbito privado e a falta de políticas públicas garantidoras de cuidado e de uma Justiça Defiça.
Há uma desvalorização e invisibilidade dos serviços e atividades de cuidado, acarretando um amplo conjunto de desigualdades e injustiças que vão desde a sobrecarga de trabalho para as mulheres e a exploração de pessoas racializadas e migrantes até o suprimento das necessidades de cuidado dos cidadãos considerados “independentes” e um conjunto de garantias estatais para os corpos considerados “produtivos”, segundo uma lógica capacitista-capitalista. Essa desigualdade ficou visível, por exemplo, durante a pandemia de Covid-19, em um contexto de emergência em saúde pública. Rosemary Kayess, vice-presidente do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, denunciou o fenômeno da exclusão das pessoas com deficiência da resposta à pandemia, uma exclusão resultante
[…] da desigualdade e discriminação pré-existentes com base no capacitismo, [e d]a visão de que a deficiência é ‘anormal’ e o corpo fisicamente apto é ‘normal’. Essa desvalorização das pessoas com deficiência está incorporada na lei, na política e na prática, prejudicando as decisões sobre quem merece cuidados de saúde críticos e medidas que salvam vidas (UNITED NATIONS, 2020).
Questões interseccionais e relacionais não são levadas em conta, nem a dependência complexa, não havendo a possibilidade de escolha de um/a cuidador/a fora do âmbito da família ou apoio público às cuidadoras em atividade.
Em contrapartida, a Justiça Defiça pode qualificar propostas no âmbito do cuidado de pessoas com deficiência que experienciam a dependência complexa. Os pressupostos feministas, antirracistas, anticapacitistas e anticapitalistas desta teoria reiteram o compromisso ético-político de não deixar nenhum corpo ou mente para trás (SINS INVALID, 2019). Por fim, para a implementação de práticas sociais mais justas, é urgente que o cuidado seja assumido como um valor central às políticas públicas e que os objetivos que o orientam e as práticas que lhe são próprias estejam a serviço de toda a população. Só assim teremos uma sociedade justa, que acolha a multiplicidade de corpos e mentes.