Introdução
A cirurgia para controle da obesidade tem proporcionado maior longevidade, controle de doenças associadas, como o diabetes e a hipertensão arterial. Também infere-se a melhora da qualidade de vida aos indivíduos com extremo excesso de peso que se submetem à cirurgia bariátrica. Contudo, trata-se de um procedimento invasivo e, de certa forma, mutilante, visto que as técnicas cirúrgicas existentes realizam a retirada e/ou inutilização de porções gastrointestinais (SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA BARIÁTRICA E METABÓLICA, 2017).
Estudos evidenciam que pessoas que se submeteram à cirurgia bariátrica podem apresentar problemas alimentares e nutricionais específicos (Luca BUSETTO et al., 2017). Dentre eles, destacam-se: intolerância alimentar, vômitos, diarreia e esteatorreia, episódios de hipoglicemia e síndrome de Dumping, ingestão reduzida de alimentos proteicos, e deficiência de vitaminas e minerais de ferro, vitamina b12, ácido fólico, tiamina, cálcio e vitaminas lipossolúveis (A, E, D e K), além de outros micronutrientes (BUSETTO et al., 2017). Contudo, atualmente, a cirurgia bariátrica é o tratamento com maior sustentabilidade para a obesidade grave (Susan YANOVSKI, 2017).
A World Health Organization (WHO, 2019) define a obesidade como excesso de gordura que representa fator de risco para a saúde e atribui sua gênese ao desbalanço entre o consumo e o gasto energético. Porém, para além da dimensão individual e fisiológica, a vivência da obesidade é permeada por valores sociais que são construídos coletivamente (Jesus CONTRERAS; Mabel GRACIA, 2011a; Mabel GRACIA-ARNAIZ, 2013; Jean-Pierre POULAIN, 2013; Nair YOSHINO, 2010). No contexto da cirurgia bariátrica, podem acontecer conflitos relacionados à subjetividade visto que, em muitos casos, os significados e as motivações reais de quem se submete a essa cirurgia se distanciam dos significados e das motivações usadas como justificativa inicial para a intervenção cirúrgica (Sandra JUMBE; Jane MAYRICK, 2018).
Um ponto importante a se destacar é que houve uma popularização desse recurso para que se chegue ao peso ideal de maneira mais “rápida” e eficaz (Richard WELBOURN et al., 2019; YANOVSKI, 2017). Ainda no Brasil, tem acontecido o aumento do número de cirurgias bariátricas realizadas (Silvana KELLES; Carla MACHADO; Sandhi BARRETO, 2014). Concomitantemente, apesar de indicar o atendimento aos critérios do Ministério da Saúde da Portaria nº 425 (BRASIL, 2013), vem acontecendo também o declínio do Índice de Massa Corporal entre as pessoas que realizaram a cirurgia (KELLES; MACHADO; BARRETO, 2014), reforçando a necessidade de aprimorar estratégias e métodos menos invasivos para o cuidado de pessoas que vivem com obesidade.
Normas sociais, atreladas ao papel de gênero, reveladas pela subjetividade coletiva, são a força motriz da decisão de realização da cirurgia e são as mulheres (Karen GROVEN; Gunn ENGELSRUD, 2015; Denise OLIVEIRA; Miriam MERIGHI; Maria Cristina JESUS, 2014), de longe, a maioria que se submete a esse procedimento tanto no Brasil, como em vários outros países (WELBOURN et al., 2019; KELLES; MACHADO; BARRETO, 2014; Gabriella ARAÚJO et al., 2018; Adriane CARVALHO; Roger ROSA, 2018; Julian GUIMARÃES; Lidiane NASCIMENTO; Thays SOUZA, 2017; Wendy KING et al., 2018; Jeanne KOCHKODAN; Dana TELEM; Amir GHAFERI, 2018; Monica YOUNG; Michael PHELAN; Ninh NGUYEN, 2016; Christine STROH et al., 2014; Davide LOMANTO et al., 2012).
Segundo a International Federation for the Surgery of Obesity and Metabolic Disorders (IFSO) (2019), em seu relatório de 2015 a 2018, que engloba 61 países e mais de 800 mil operações, as mulheres representam 77,1% da média global das cirurgias bariátricas realizadas naquele período. Embora essa proporção varie de acordo com o contexto do país - na Bélgica, por exemplo, as mulheres representaram 43,3% e, em Guadalupe, 93,1%.
Mesmo em países que apresentam diferentes contextos culturais, as estatísticas de mulheres que realizam cirurgia bariátrica é parecida. No Brasil, um estudo nacional que avaliou o perfil da população submetida à cirurgia bariátrica pelo sistema público de saúde entre 2001 e 2010 estima que 80% da população submetida a esse procedimento é composta por mulheres (KELLES; MACHADO; BARRETO, 2014). Esses dados são confirmados, também, por estudos regionais mais recentes (ARAÚJO et al., 2018; CARVALHO; ROSA, 2018; GUIMARÃES; NASCIMENTO; SOUZA, 2017). A mesma tendência é identificada nos Estados Unidos da América (KING et al., 2018; KOCHKODAN; TELEM; GHAFERI, 2018; YOUNG; PHELAN; NGUYEN, 2016), na Alemanha (STROH et al., 2014) e em países asiáticos (LOMANTO et al., 2012). Não obstante, é comum que, em estudos relacionados à cirurgia bariátrica, a maioria dos participantes, quando não a sua totalidade, é composta por mulheres.
Apesar de elas, mulheres, serem o público majoritariamente submetido à cirurgia bariátrica, apresentam menores índices de satisfação no período pós-cirúrgico quando comparadas aos homens, ainda que apresentem menores complicações cirúrgicas e maior resolutividade nas comorbidades (KOCHKODAN; TELEM; GHAFERI, 2018; STROH et al., 2014).
Diante desse contexto epidemiológico, os aspectos psicodinâmicos e socioculturais ligados aos significados do que é “ser mulher” e como acontece a construção social do que é esperado do gênero feminino (Pierre BOURDIEU, 2012; CONTRERAS; GRACIA, 2011b; Camilla GOMES, 2018; Susie ORBACH, 1978; Joan SCOTT, 2010; Naomi WOLF, 1990) demandam estudos para se compreender como tais significados interagem com os valores culturais atribuídos ao corpo (YOSHINO, 2010) a fim de que os profissionais de saúde possam ter mais elementos para manejar o período pré e pós-cirúrgico.
O conceito de gênero é apresentado pela WHO (2019) como constructo social, cuja vivência é influenciada pelo contexto social, sendo que o padrão comportamental construído e esperado para cada indivíduo varia de acordo com a dimorfia. Entretanto, teóricas feministas, a partir de um resgate histórico e pautadas em ideais foucaultianos, defendem que o discurso reflete a ação na realidade social, e a maneira pela qual o poder se concretiza (GOMES, 2018; SCOTT, 1989; 2010). Scott argumenta, em 1989, e reafirma seu posicionamento, em 2010, de que a construção de gênero implica a distribuição desigual de bens materiais e a expressão de símbolos culturais, que configura o estabelecimento de relações de poder entre os gêneros. A autora sugere a quebra da “naturalidade” sobre o que é “ser mulher”, em um movimento de abrir espaço para a existência de novas gramáticas de viver, para além das normativas sociais. Seguindo tal abordagem, este trabalho assume que a distribuição da cirurgia bariátrica entre mulheres e homens é capaz de ser o fio condutor da análise sobre as motivações e expectativas que permeiam a decisão pela cirurgia bariátrica, e como elas perpassam a vivência de ser mulher.
O processo de sociabilização infringe às mulheres o cumprimento de uma série de requisitos sociais que engloba a estética, a sexualidade, a maternidade e o desenvolvimento de tarefas domésticas. Ancorada no ambiente doméstico, essa dinâmica favorece o desenvolvimento de uma postura submissa da mulher em relação ao homem em diversas situações sociais (BOURDIEU, 2012; Cristina CARRASCO, 2002). Esse precedente contribui para a objetificação do corpo da mulher, destituindo-a de sua própria humanidade e empurrando-a à objetificação de si própria com o intuito de atingir os requisitos socialmente esperados dela (Kasey MORRIS; Jamie GOLDENBERG; Patrick BOYD, 2018; Laurie RUDMAN; Kris MESCHER, 2012; Jeroen VAES; Paola PALADINO; Elisa PUVIA, 2011). Esse comportamento, acrescido de tantas outras dificuldades vivenciadas pelas mulheres com obesidade, contribui para o desenvolvimento de conflitos pessoais e dificulta o tratamento (Raquel CALOGERO, 2012; Barbara FREDRICKSON; Tomi-Ann ROBERTS, 1997; ORBACH, 1978).
Desta forma, segundo a perspectiva de gênero, o corpo da mulher obesa pode representar uma afronta aos valores sociais que primam pelo ideal de beleza feminina, sempre atrelados à magreza (Mirian GOLDENBERG, 2011; WOLF, 1990). Florêncio Costa-Júnior e colaboradores, a partir de estudos pautados na percepção de profissionais de medicina, enfermagem e psicologia, afirmam que profissionais da saúde reconhecem as questões de gênero como algo inerente à sua prática, mas relatam não possuírem recursos teóricos para lidar com a situação, ignorando o fato ou recorrendo a uma postura aprendida no senso comum (COSTA-JÚNIOR; Bettina ALMEIDA; Rinaldo CORRER, 2019; COSTA-JÚNIOR; Ana Claúdia MAIA; Márcia COUTO, 2016).
A partir dos referenciais teóricos apresentados, identifica-se a necessidade de abordar a vivência do fenômeno da obesidade na perspectiva de gênero. Para tanto, este estudo associa tal perspectiva teórica a dados qualitativos de caráter secundário provenientes de uma pesquisa clínica que acompanhou longitudinalmente um grupo de 17 mulheres, em fase preparatória para a cirurgia bariátrica, que se encontraram quinzenalmente ao longo de seis meses, com o propósito de reduzir o consumo de calorias, perda de peso, desenvolvimento de habilidades necessárias às práticas alimentares posteriores à cirurgia e uso de suplementos nutricionais. Durante os referidos encontros, a partir das vivências reveladas por essas mulheres, emergiram características singulares da vivência da obesidade na perspectiva de gênero. Tal evento, por consequência, motivou o aprofundamento da pesquisa, para além dos dados clínicos, o que sugeriu a aplicação de um método qualitativo, dando origem ao estudo aqui apresentado. Nesse contexto, a questão que gerou o presente artigo foi: como as mulheres vivem o processo preparatório da cirurgia bariátrica metabólica e quais os sentimentos que permeiam tal processo? Os objetivos, por sua vez, foram buscar a aproximação de referenciais teóricos que tratam da obesidade na perspectiva de gênero com as vivências dessas mulheres e compreender a vivência grupal de mulheres em fase preparatória de cirurgia bariátrica metabólica, observando como elas relacionam a perspectiva de emagrecimento aos padrões sociais femininos.
Percurso metodológico
Contextualização e produção dos dados da pesquisa
Este trabalho de abordagem qualitativa é o desdobramento de um estudo clínico, inserido em um projeto temático (Flávia MARIN, 2014) que realizou o acompanhamento nutricional pré-cirurgia bariátrica de 17 mulheres durante seis meses, por meio de reuniões grupais com frequência quinzenal, totalizando 12 encontros. Esse acompanhamento tinha por objetivo reduzir o consumo de energia para a perda relativa de peso e melhorar as condições clínicas para a cirurgia. Além disso, tinha como finalidade, também, auxiliar no desenvolvimento de habilidades necessárias às práticas alimentares posteriores à cirurgia (Patrícia NOVAIS et al., 2014) e implementar o uso de suplementos nutricionais em virtude da participação no estudo clínico (MARIN, 2014).
Neste artigo, busca-se o aprofundamento dos significados e das experiências vividas pelas participantes do referido estudo clínico, seguindo uma abordagem qualitativa a qual, diferente da quantitativa que se ocupa, majoritariamente, de dados concretos, busca a compreensão da subjetividade do seu objeto de estudo (Christen ERLINGSSON; Petra BRYSIEWICZ, 2013).
Essas mulheres, durante o encerramento do estudo clínico, no 12º encontro, foram convidadas a participarem de uma roda de conversa com o objetivo de se registrar as suas experiências prévias à cirurgia. Sabendo que esse registro seria utilizado para fins de pesquisa, todas deram um consentimento expresso para uso das informações, guardado o sigilo dos nomes. A pesquisa que deu origem ao material analisado e ao atual artigo obteve aprovação do Conselho de Ética de Pesquisa em Seres Humanos de uma faculdade de medicina presente no município onde os encontros ocorreram.
O convite e a condução da roda de conversa foram feitos pela nutricionista responsável pelo grupo na clínica que sediou o estudo, atuante há dez anos no preparo de pessoas para cirurgia bariátrica, e pela pesquisadora orientadora do estudo clínico, cujo objeto de pesquisa era a suplementação alimentar. Ambas participaram, ainda, dos encontros prévios que antecederam a roda de conversa. Embora menos familiarizada com o grupo, a pesquisadora orientadora do estudo também participou, auxiliando no planejamento das atividades da pesquisa como um todo e na promoção do acolhimento e da escuta qualificada (MARIN; Irineu RASERA JUNIOR; Celso LEITE; Maria Rita OLIVEIRA, 2015). Todas as participantes do estudo aceitaram participar, no entanto, duas não compareceram à roda de conversa que se concretizou como o 13º encontro.
As questões disparadoras que nortearam a roda de conversa foram construídas a partir das vivências do grupo de pesquisa com o cuidado e o tratamento da obesidade. O evento resultou em uma gravação audiovisual (67’), realizada pela pesquisadora, que gerou o conjunto de dados analisados no presente artigo.
As mulheres que participaram do estudo atendiam aos critérios de inclusão e exclusão estabelecidos pela Portaria nº 425/GM/MS, que estabelece o regulamento técnico, normas e critérios para a realização da cirurgia bariátrica (BRASIL, 2013) e estipulados pelo estudo clínico. Os critérios de inclusão na investigação definiram mulheres com idade entre 30 e 45 anos em menacme e com ausência de gestação, de insuficiência renal, de coronariopatia confirmada e de cirurgia gástrica ou intestinal prévia, exceto colecistectomia; ausência, também, de neoplasia maligna, de tratamento antineoplásico, de etilismo crônico confirmado, de tabagismo recente (nos últimos seis meses), de hemoglobinopatias, de neuropatia autonômica grave, de HIV positivo e de processos agudos recentes (cirurgias, tromboses, processos infecciosos que necessitaram de internação nos últimos seis meses).
O quadro 1 representa o processo da coleta de dados.
#PraTodoMundoVer A imagem é formada por cinco cartões retangulares, com cantos arredondados, que trazem, respectivamente, as seguintes informações: Quadro 1 - “Descrição das participantes”: 1 grupo de mulheres (17 participantes), 30 a 45 anos, IMC 35 a 59,9 g/m2, ≥Ensino Médio; Quadro 2 - “Acompanhamento nutricional”: Estudo de intervenção prospectivo, Encontros quinzenais, 12 encontros; Quadro 3 - “12º encontro ‘Encerramento’": No encerramento, as mulheres foram convidadas a participarem de uma roda de conversa, o 13º encontro, para contarem sobre a experiência com o excesso de peso; Quadro 4 - “13º encontro ‘A gravação audiovisual’”: 15 mulheres. Foram feitas perguntas semiestruturadas sobre as experiências e vivências, Gravação audiovisual 67’; Quadro 5 - “Cirurgia bariátrica”: Realização do procedimento cirúrgico. Esses cartões estão dispostos na horizontal, um ao lado do outro. Abaixo deles, uma seta que parte do primeiro cartão e vai até o último, apontando para a direita, com os dizeres: “Desenvolvimento de vínculos afetivos”.
No processo de análise do conjunto de dados, sobressaiu-se, entre as pesquisadoras, a percepção de que as mulheres envolvidas no projeto, sejam elas na condição de paciente ou de profissionais que conduziram o grupo, desenvolveram vínculos afetivos, empatia e entrosamento. Para além de participações ativas e adesões importantes às orientações alimentares tratadas, concernentes ao período que precede a realização da cirurgia bariátrica, a expressão das mulheres sobre suas vivências, enquanto mulheres obesas, aponta que o grupo desempenhou papel terapêutico, apesar de não ter esse objetivo claramente expresso. O grupo abordado auxiliou as mulheres a racionalizarem as emoções e o alívio do sofrimento relacionado à experiência de ser uma mulher fora dos padrões sociais. Essa realização foi possível na medida em que a prática profissional humanizada, capaz de estabelecer e cultivar o vínculo, norteou a conduta da equipe. E possibilitou que os encontros fossem compostos para além de profissional-paciente, mas que reunissem sujeitos, carregados de suas histórias, subjetividades, implicações e mobilizações (José Ricardo AYRES, 2004; Rosana CAMPOS, 2014). Essa condução favoreceu a ruptura entre questões objetivas e subjetivas, ou seja, a promoção de um alinhamento entre seus sentimentos, pensamentos e ações. Esse mecanismo foi viabilizado pela quebra da lógica individualista contemporânea e alcance de significados subjetivos de vivências individuais compartilhadas como uma experiência coletiva entre seus participantes (Joel BIRMAN, 2003; Sueli MARTINS, 2007).
Para a apresentação dos resultados, as participantes foram codificadas pela letra “P”, seguida por uma sequência numérica crescente (P1, P2...P15). A caracterização e a organização dos dados apresentados foram realizadas de acordo com o instrumento de pesquisa qualitativa COREQ - Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Studies (Karin HANNES et al., 2015).
Referencial teórico
Esta pesquisa é conduzida por referenciais psicodinâmicos e pelas teorias feministas que abordam reflexões a respeito de como o gênero, especialmente como “ser mulher”, molda o comportamento individual e a vivência coletiva. Essa conformação é construída socialmente, ou seja, varia de acordo com o contexto temporal-espacial (GOMES, 2018; SCOTT, 1989; 2010). Buscando elucidar as relações compreendidas entre a mulher e seu corpo e a sociedade, e entender como são significados, contemporaneamente, os termos “gordura” e “beleza da mulher”, utilizou-se, neste trabalho, um referencial que mescla psicanálise e feminismo (ORBACH, 1978). Além disso, empregou-se, também, a utilização de recortes históricos (WOLF, 1990) e, ainda, a teoria da objetificação que discute o fato de as mulheres, ao experimentarem sucessivas objetificações, passarem a se auto-objetificarem, causando, com isso, um impacto negativo em sua saúde mental (CALOGERO, 2012; FREDRICKSON; ROBERTS, 1997).
Análise dos dados
A representação e a análise dos dados foram realizadas segundo a técnica de Análise de Conteúdo na abordagem temática (Débora FARIA-SCHUTZER et al., 2021; Hsiu-Fang HSIIEH; Sarah SHANNON, 2005; Maria Cecília MINAYO, 2014). Caracterizada por um conjunto de estratégias metodológicas aplicadas a diferentes discursos, essa técnica parte da decodificação superficial de um material escrito para atingir níveis mais profundos, possibilitando, com isso, o confronto entre os significantes e os seus significados e articulando o dito e o não dito.
Dessa maneira, a análise feita organizou-se em três polos cronológicos: a) pré-análise: organização e impregnação do material coletado na roda de conversa, com identificação das unidades de registro e identificação dos núcleos de sentido; b) exploração do material: classificação das unidades de registro e dos fluxos de sentido e construção das categorias, com validação externa; e c) tratamento dos resultados obtidos e interpretação: construção de uma síntese interpretativa por meio do diálogo entre os objetivos e os pressupostos da investigação a partir da base teórica adotada (FARIA-SCHUTZER et al., 2021; HSIIEH; SHANNON, 2005; MINAYO, 2014).
Como estratégia de validação, a elaboração e a análise dos resultados foram realizadas conjuntamente por duas pesquisadoras, sendo uma delas sênior, e a revisão entre pares deu-se com a apresentação em congressos e reuniões científicas (Claudinei CAMPOS, 2004; Immy HOLLOWAY; Wheeler STEPHANIE, 2010).
Resultados e discussão
As autoras buscaram compreender a vivência grupal de mulheres em fase preparatória de cirurgia bariátrica e como elas relacionam a perspectiva de emagrecimento aos padrões sociais femininos. Para tanto, assumiram como pressuposto que encontrariam grande preponderância dos aspectos subjetivos na decisão e nas expectativas de mulheres que se encontravam em fase de preparo para a cirurgia da obesidade. Muito mais do que a subjetividade, foram identificados o sofrimento e o sonho sendo expostos pelas participantes. Dessa forma, pôde-se extrair três categorias das gravações: a) aposta no procedimento cirúrgico como promessa de vida; b) o significado do corpo gordo; e c) a objetificação da mulher.
As autoras observaram uma importante relação entre como aquelas mulheres vivenciam a construção do seu gênero e os seus corpos. As mulheres daquele grupo buscavam, por meio da cirurgia bariátrica, a adequação aos padrões socialmente impostos. Para elas, a razão de suas comorbidades e de suas infelicidades estava atrelada à gordura de seu corpo. Os conteúdos dos depoimentos analisados permitiram que as autoras discutissem aspectos relacionados à interface da vivência da obesidade com o cumprimento dos papéis sociais que geralmente são esperados de uma mulher contemporânea.
A. “Eu quero viver”: a cirurgia bariátrica como uma aposta para “ser mulher”
No grupo analisado, a cirurgia bariátrica representa a solução de conflitos subjetivos, visto que as mulheres projetam-se após o emagrecimento resultante da cirurgia como capazes de reproduzirem símbolos atrelados aos papéis sociais que dizem respeito aos significados de “ser mulher” na contemporaneidade. Existe a expectativa da cirurgia bariátrica “habilitar” a mulher a exercer certos comportamentos femininos “barrados” pelo corpo gordo. Vejamos a fala da participante 14.
A minha expectativa, além da saúde melhorar, [é] parar de tomar os remédios, é poder calçar um sapato e eu fechar a minha sandália. E colocar a minha bota de cano alto, sobretudo e nada por baixo, e abrir só pro meu marido, lógico! (P14). [Enquanto ela falava, o grupo dizia ao fundo as palavras-chave que ela diria, e ela repetiu todas essas palavras. No momento em que ela fala do sobretudo, o grupo cai em forte riso]
E também para ser a daminha de honra da Nathalia [nutricionista] , porque se eu for desse jeito eu vou tampar a noiva [risos frenéticos do grupo] . Então, eu magrinha, eu vou ficar bonitinha (P14).
As mulheres que nos proporcionaram seus depoimentos apresentavam expectativas que, em alguma medida, são concretizadas após a cirurgia. Marcela Castro e colaboradores (2010), em um estudo qualitativo dirigido a mulheres que haviam realizado a cirurgia há dois anos e oito meses, identificaram mudanças consideradas positivas no pós-cirúrgico. Sentir-se reconhecida pelos pares foi considerada uma mudança importante e tal sentimento surge por se considerar apta a realizar as tarefas cotidianas do ambiente doméstico, por receber elogios à sua aparência física e por uma melhora na qualidade da vida sexual (CASTRO et al., 2010).
A expectativa de reconhecimento como indivíduo pelo atendimento a padrões sociais é normatizada para as mulheres em diversos âmbitos sociais. Na percepção das mulheres do grupo, é a gordura que as impede de “ser mulher”. Assim, o entrelaçamento entre o conjunto social e o individual resultaria na decisão pela cirurgia bariátrica, objetivando a perda de peso (GROVEN; ENGELSRUD, 2015).
A iminência da cirurgia bariátrica carrega significados paradoxais - a obesidade versus a magreza, a feiura versus a beleza, a tristeza versus a felicidade, os problemas versus as soluções - e a cirurgia em si representa um “marco” na vida das mulheres: o antes e o depois dela. O sofrimento de tentativas frustradas de emagrecimento somado ao sofrimento psíquico inerente à vivência do fenômeno da obesidade fazem as mulheres tenderem a superar o medo relativo à intervenção cirúrgica e decidirem pela cirurgia bariátrica (OLIVEIRA; MERIGHI; JESUS, 2014).
A expectativa é que a conquista da magreza, pela cirurgia bariátrica, promova a dissolução dos paradoxos presentes no período pré-cirúrgico e resulte na predominância dos aspectos considerados positivos - a magreza, a felicidade, a solução dos problemas existentes, e a aceitação social. Não obstante, a literatura também relata a recorrência dessa expectativa de que a cirurgia seja um “milagre” que resolverá os dilemas vividos, tanto os de ordem objetiva, quanto os de ordem subjetiva. Os participantes dos estudos que reportaram tais achados foram compostos por mulheres e homens, apesar de os indivíduos do gênero masculino representarem a minoria da amostra (Lashaune JOHNSON; Fiona ASIGBEE; Rebecca CROWELL; Ashley NEGRINI, 2018; Susana SILVA; Ângela MAIA, 2012).
No que concerne às mulheres autoras dos depoimentos aqui analisados, elas esperavam tornarem-se ou recuperarem o status de estarem fisicamente aptas para desenvolverem os papéis socialmente atribuídos à figura da mulher. Isso simboliza a decisão pela cirurgia bariátrica como uma aposta para “ser mulher”, como podemos ver no depoimento da participante 6, que diz necessitar da cirurgia bariátrica para voltar a viver, tarefa que implicaria a existência da magreza para realizar tarefas domésticas, cuidar da família e sentir-se bonita.
Depois que eu fui parar no pronto-socorro [...] Nossa, fiquei com medo de morrer, aí eu virei chega, não dá mais. Aí eu voltei no médico, ‘Você quer mesmo? Porque tem vários riscos’, falou todos os riscos que tinha a cirurgia. Após tudo [o que] ele falou pra mim. [...] Então, eu falei chega! Sabe, eu preciso, eu quero viver, quero ver meu filho crescer, quero ir no quarto, sentar com o meu filho, levantar, eu quero limpar a minha casa direito. Eu não estava conseguindo limpar a minha casa, não é grande, mas eu não estava conseguindo. Eu quero botar uma roupa bonita, quero ficar do jeito que eu era, me olhar (P6).
Porém, dentre as expectativas existentes, permeia certa irrealidade quanto ao corpo a ser conquistado na vida pós-cirurgia, como se fosse possível conquistar um corpo que nunca viveu a obesidade. O excesso de pele e as cicatrizes consequentes da cirurgia, além das modificações que ela causa no corpo são, por exemplo, considerados como um fracasso por parte das mulheres e essas questões, inclusive, impactam negativamente a vida sexual delas (Christine ALEGRÍA; Bárbara LARSEN, 2015; Johann KINZL et al., 2001; Sofia RAMALHO et al., 2014).
Para a modificação da percepção do próprio corpo, para além das mudanças físicas, é necessária a construção psíquica da própria imagem corporal. Tamara Perdue e colaboradores (2018) apontam que, mesmo após dois anos da realização da cirurgia, mulheres tendem a ver a si próprias como gordas e preocupam-se em não serem capazes de desenvolverem o autocontrole. Esse é um aspecto que merece atenção, uma vez que pacientes e profissionais divergem sobre aquilo que consideram como sucesso alcançado pela cirurgia. Enquanto profissionais da saúde privilegiam a redução de peso e a atenuação de comorbidades, os pacientes interpretam como sucesso a resolução de conflitos subjetivos, conjugados às suas relações interpessoais (JUMBE; MAYRICK, 2018). Logo, explorar a perspectiva das mulheres tem potencial para aperfeiçoar e endereçar os aspectos a serem abordados no tratamento que acompanha a realização da cirurgia bariátrica. Orbach (1978), em sua abordagem, que conjuga aspectos psíquicos aos processos sociais que atribuem papéis aos gêneros, sugere que a tomada de consciência pelas mulheres sobre as tensões sociais às quais estão sujeitas corrobora o rompimento delas com o comer exageradamente e, por consequência, contribuiria para o manejo do peso corporal.
B. “Um tribufu”: o corpo gordo é o corpo feio
Nas narrativas expressas no contexto do grupo analisado, as mulheres revelaram a magreza como um pressuposto para a existência da beleza. Em oposição ao corpo magro e belo, o corpo gordo é extremamente feio na expressão daquele grupo. O corpo gordo é caracterizado como “tribufu” pelo grupo. Tal palavra, de acordo com o Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis (2019), significa uma pessoa maltrapilha ou muito feia.
Então, aí eles falam pra gente que precisa emagrecer e passa remédio. E você toma o remédio, você emagrece, você para de tomar o remédio você vira um tribufu de novo (P8).
Mulheres tendem a experimentar a obesidade de forma mais negativa quando comparadas aos homens. A qualidade de vida reduzida experimentada pelas mulheres obesas é justificada pela internalização de padrões de beleza associados à magreza (ALEGRÍA; LARSEN, 2015). A internalização acontece por meio da difusão dos meios midiáticos e pela influência de pares que estimulam a busca por cirurgias plásticas estéticas (Amanda NERINI; Camilla MATERA; Cristina STEFANILE, 2014). Nessa perspectiva, a cirurgia bariátrica é simbolizada como a conquista da beleza, pois parte do pressuposto de que resultará na magreza. Na percepção do grupo, a suposta produção da magreza desencadeada pela cirurgia bariátrica é pressuposto essencial para a existência da beleza, característica ilustrada nas falas das participantes 8 e 9, que relacionam a perda de peso à figura de bela e bem-sucedida.
Agora você vai mostrar pra ele, vai desfilar pra ele bem bonita (P8) [Fala da participante 8, aconselhando a participante 9 a respeito de como ela deveria se portar após a realização da cirurgia bariátrica frente ao ex-companheiro que a chamou de vaca].
aquela que perdeu cento e poucos, [...] Uma loira bonita (P9). [Participante referindo-se a uma mulher que já havia realizado a cirurgia bariátrica]
As características corporais simbolizadas como belas flutuam ao longo da história (Nara SUDO; Madel LUZ, 2010), entretanto, contemporaneamente, entre as mulheres, a beleza é simbolizada pela magreza, cuja manutenção demanda do consumo de serviços e produtos estéticos (Julia NEWHOOK; Deborah GREGORY; Laurie TWELLS, 2015; WOLF, 1990).
Portanto, a partir da realização da cirurgia bariátrica, supõe-se a conquista da beleza, em virtude do drástico emagrecimento. Então, a partir dessa suposta conquista da beleza, como consequência da conquista da magreza, essas mulheres esperam sentirem-se habilitadas para exercerem a sua sexualidade. Isso se dará pelo despertar do desejo, conforme alegou a participante 12, enquanto falava sobre os aspectos que haviam se modificado no período de preparo da cirurgia bariátrica; pela capacidade de conquistar um homem “perfeito”, como diz a participante 10; ou, ainda, por sentir a liberdade de exibir o corpo para o companheiro. Importante notar e salientar que essas perspectivas passam pela necessidade da presença do homem para a validação da vivência da mulher. Essas mulheres esperam que, no futuro, enquanto magras e belas, serão capazes de vivenciar sua sexualidade, seja pela expectativa de sentir desejo sexual, seja pela reprodução de símbolos atrelados à sexualidade.
só não mudou o desejo sexual, que eu não tenho ainda (P12).
fala pra ele agora, agora eu estou liberta, vou arranjar um príncipe encantado, lindo, maravilhoso (P10) [Aconselhamento à outra participante de como se portar diante do ex-companheiro após a realização da cirurgia bariátrica]
colocar a minha bota de cano alto, sobretudo e nada por baixo, e abrir só pro meu marido, lógico (P14).
As mulheres desse grupo demonstram relacionarem-se com a sua beleza e sua sexualidade através da dimensão material do corpo. Dessa forma, tratam a si próprias como objeto, visto que tendem a sumarizarem suas qualidades ao cumprimento de padrões estéticos corporais socialmente preconizados. A prioridade da mulher de se colocar na perspectiva masculina reflete a desigualdade simbólica de poder (BOURDIEU, 2012; SCOTT, 1989), ao mesmo tempo que reitera a sua auto-objetificação (CALOGERO, 2012; FREDRICKSON; ROBERTS, 1997), culminando em uma vivência na qual predomina a sujeição da mulher aos padrões sociais.
Esse comportamento individual é reflexo do espaço que a beleza feminina ocupa na cultura contemporânea. Nesse contexto, no Brasil, a mulher é valorizada de acordo com os seguintes critérios: “beleza em primeiro lugar, o corpo, em seguida, e inteligência em terceiro lugar”; enquanto que, para o homem, os critérios mudam de lugar: “inteligência, poder econômico, beleza e o corpo” (GOLDENBERG, 2011, p. 49). Outras culturas também privilegiam o valor da beleza feminina e colocam a magreza como pressuposto para a sua existência. Na Arábia Saudita, por exemplo, país que apresenta uma cultura relativamente distante da brasileira, as mulheres relatam que o preconceito é sentido tanto por pessoas estranhas quanto por familiares. Se a família, que é a instituição responsável por intermediar o casamento, achar que a mulher está gorda, dificilmente intermediará um casamento para ela (Ohud ALQOUT; Frances REYNOLDS, 2014). Com o processo de globalização, torna-se mais recorrente a difusão de ideais de beleza atrelados à magreza nas mais diversas culturas (Viren SWAMI, 2015).
C. “O que ele vai olhar dentro de uma vaca?”: a sexualidade e a objetificação do corpo da mulher
Autores que se dedicam ao tema apontam que a sexualidade da mulher pode estar condicionada ao cumprimento de requisitos estéticos e comportamentais, o que pode ser um disparador de conflitos. Assumir uma postura “sexy” pode equivaler à objetificação de si própria, pois exige abrir mão de expressar-se enquanto sujeito que pode vivenciar a ambivalência de assumir uma postura de objeto - que consiste em atender aos requisitos estéticos e sociais que lhe são requisitados, que rogam pela submissão feminina - ou de sujeito - que se expressa de acordo com seus próprios desejos (BOURDIEU, 2012; ORBACH, 1978).
A objetificação consiste em sumarizar uma pessoa de acordo com as suas características físicas e tratá-la de acordo com o juízo de valores que se faz de tais características (CALOGERO, 2012; FREDRICKSON; ROBERTS, 1997). Quando tal objetificação é direcionada à capacidade do indivíduo de despertar o desejo sexual no outro, acontece a objetificação sexual (VAES; PALADINO; PUVIA, 2011).
No contexto do grupo abordado, as mulheres expressaram serem tratadas de forma desumana, justificada pelo seu excesso de peso. Nos relatos apresentados, as participantes revelaram serem reconhecidas como “vaca gorda” e com um corpo que se distancia do que o parceiro deseja. Acompanhados de culpa e humilhação, tais relatos podem ser compreendidos como expressões de objetificação da mulher:
Dentro de casa eu ouvia vaca gorda, sua vaca gorda, ah porque lá fora tem, lá fora tem, o que eu vejo nas mulheres lá fora eu não vejo em você aqui dentro de casa. Que é o corpo né, ele estava me humilhando muito (P9). [Referindo-se ao ex-companheiro]
Mulheres objetificadas tendem a ser desumanizadas e comparadas a animais (MORRIS; GOLDENBERG; BOYD, 2018) e os homens com esse tipo de comportamento são mais propensos a cometer violências sexuais (RUDMAN; MESCHER, 2012).
Estudos de imagens publicitárias realizados por Vaes e colaboradores (VAES; PALADINO; PUVIA, 2011) mostram que mulheres sexualmente objetificadas tendem a ser comparadas a animais pela mídia e pelas próprias mulheres que passam a se reconhecerem como objetificadas, o que não foi verificado para homens.
A resignação das mulheres em relação à objetificação expressada pelo grupo estudado tende a se perpetuar na medida em que essas mulheres identificam, na cirurgia bariátrica, um meio de deixarem de ser gordas e tornarem-se atraentes para o outro e não para si próprias:
[...]ela vai fazer redução de estomago, ela vai ficar magrinha”, ele fala. Então ele está mais empolgado do que eu (P11). [Paciente referindo-se ao companheiro]
Eu não tenho mais vontade [...]. Mas eu queria, lógico que eu quero, que meu marido sinta prazer comigo (P12). [Paciente referindo-se à vida sexual com o companheiro]
A decisão da mulher de realizar a cirurgia bariátrica trata da introjeção de valores e medidas sociais em sua subjetividade. Ela busca deixar para trás um passado de dor e sofrimento e iniciar uma nova fase a partir de um corpo aperfeiçoado para cumprir aquilo que se espera dela, que se espera de uma mulher. Seria como abandonar o estereótipo de vaca e, “finalmente”, tornar-se uma mulher, através do aperfeiçoamento da sua feminilidade.
Contudo, é reconhecido, na literatura, que a cirurgia bariátrica não é a garantia de que as mulheres alcancem o aperfeiçoamento desejado. Um estudo estadunidense de base populacional (61.708 participantes, sendo 48.172 mulheres e 13.536 homens) aponta uma tendência proporcionalmente inversa entre mulheres e homens em relação à satisfação alcançada, considerando o pré e o pós-operatório da cirurgia bariátrica. Comparados às mulheres, os homens perdem menos peso, apresentam maiores comorbidades e estão mais satisfeitos com os resultados alcançados na vida pós-cirurgia, ou seja, embora as mulheres percam mais peso e apresentem menos comorbidades, apresentam piores indicativos referentes à saúde mental (KOCHKODAN; TELEM; GHAFERI, 2018).
Apesar de uma parcela significativa reportar melhoras na qualidade da vida sexual e no relacionamento, ainda há aquelas que não são contempladas por tal mudança ou ainda relatam piora. Isso pode se dar, pois, para a qualidade da vida sexual, a satisfação com a própria imagem corporal é mais importante do que a perda de peso em si (Paulo CARRILHO et al., 2015; Alexis CONASON; Kimberly BRENCHLEY; Andrea PRATT; Allan GELIEBTER, 2017; KINZL et al., 2001; Ronette KOLOTKIN et al., 2006).
Em síntese, é possível afirmar que a relação da mulher com o seu corpo e sua sexualidade tende a passar pelo crivo de terceiros, do outro, em especial pela figura de um homem. A cirurgia bariátrica surge como uma via para atender aos critérios desejados por esse terceiro que diz desejar um corpo feminino, traduzido em uma figura magra. Todavia, a satisfação com o próprio corpo é algo muito mais complexo do que atender ao desejo de sujeitos externos, pois demanda, potencialmente, a implicação da mulher na transformação de como ela enxerga a si mesma.
Conclusão
Para as mulheres deste estudo, a cirurgia bariátrica representa um dispositivo para a adequação social dos seus corpos, visto que elas demonstraram acreditar que essa suposta adequação à dimensão estética equivale à solução de seus conflitos. Tal procedimento simboliza a conquista da magreza, assumida, em nossa sociedade, como pressuposto para a existência da beleza e, consequentemente, para a validação da existência das mulheres. A cirurgia bariátrica é vista como a viabilização da tríade beleza, magreza e validação enquanto mulher.
Esse processo de validação social é reflexo da estigmatização infringida às mulheres, que faz com que elas objetifiquem seu próprio corpo, ou seja, sumarizem seu valor às características físicas. Assim, na busca pela validação de si perante a sociedade, a mulher se destitui de si mesma na medida em que interioriza critérios externos e passa a ser motivada por eles. No processo de objetificação, a mulher busca alcançar as características ideais para “ser mulher”, que passam pela conquista da magreza, para poder se sentir capaz de desempenhar tarefas atreladas à maternidade, ao ambiente doméstico e ao sentir-se bonita e sensual.
As expectativas para a vida pós-cirurgia bariátrica são estruturadas pelo anseio de corresponder a essa série de requisitos sociais e estéticos construídos. Nessa perspectiva, o período preparatório para a realização da cirurgia representa uma janela para trazer a reflexão sobre os anseios que fundamentam as expectativas existentes, de maneira que auxilie na corresponsabilização para com as mudanças almejadas pelas mulheres no processo de tratamento cirúrgico da obesidade. Essa corresponsabilização pode contribuir para o desenvolvimento de uma expectativa mais verossímil quanto aos resultados proporcionados pela cirurgia bariátrica. Portanto, os profissionais da saúde envolvidos no cuidado de mulheres obesas podem contribuir para a construção de novos sentidos, que reorientem a expectativa expressada por elas de que se livrar da obesidade e suas comorbidades teria como desfecho a solução de conflitos para consigo mesmas, para com os outros e para com a sociedade.
Por fim, com o objetivo de contribuir para a melhora do cuidado de mulheres obesas, este estudo buscou aproximar a realidade das mulheres abordadas com a prática do serviço de saúde a respeito da cirurgia bariátrica. Nesse sentido, o acompanhamento grupal, conduzido de maneira qualificada - pautado no vínculo, no respeito, no carinho e na corresponsabilização da produção de saúde -, demonstrou ser capaz de propiciar um ambiente seguro que possa acolher e estimular as mulheres a tratarem de questões de gênero no período pré-cirúrgico.
A utilização apenas de dados secundários, visto que não tivemos acesso ao perfil socioeconômico individual das mulheres que participaram da pesquisa, caracteriza-se como limitação do estudo, na medida em que possibilitou apenas o acesso indireto às mulheres. Dessa forma, a intersecção entre as experiências dessas mulheres e o seu perfil socioeconômico poderia ampliar ainda mais a discussão, resultando em um aprofundamento dos dados abordados nesta pesquisa. Sendo assim, tal intersecção representa um potente campo de pesquisa para aprimorar o cuidado dedicado a mulheres que realizam tratamentos de saúde, especialmente às mulheres obesas. Essa perspectiva de cuidado proposta tem potencial para auxiliar as mulheres a extrapolarem o objetivo de atender aos padrões socialmente estabelecidos e para auxiliá-las a tornarem-se sujeitos da sua vida.