Ao aprofundar discussões sobre a interseccionalidade, a publicação em português de Política sexual negra: afro-americanos, gênero e o novo racismo contribui para discutir sobre a produção de Patrícia Hill Collins no Brasil. Apesar de ser publicada originalmente em 2003, a obra permanece suscitando indagações relevantes sobre as nuances generificadas do racismo na contemporaneidade. A autora vem tendo uma recepção positiva no Brasil (Winnie BUENO, 2020), além dos diversos artigos, desde a tradução de Pensamento Feminista Negro (Patricia Hill COLLINS, 2019) em 2019, duas obras da autora que abordam a interseccionalidade já foram traduzidas para o português, são elas: Interseccionalidade (COLLINS; Sirma BILGE, 2021) e Bem mais que ideias (COLLINS, 2022b), as quais trazem discussões acerca dos conceitos de interseccionalidade e sua aplicação enquanto uma teoria social crítica.
Diferentemente dos outros livros traduzidos anteriormente, neste volume a socióloga estadunidense se dedica menos a teorizar sobre a interseccionalidade enquanto orientação metodológica em prol de fazer uma pesquisa empírica a partir dos pressupostos interseccionais. Ao fazer uma demonstração “prática” acerca da análise interseccional, Collins (2022a) amplia a compreensão dos limites e potencialidades da pesquisa que combina diferentes marcadores sociais. No caso da referida obra, são interseccionados, primordialmente, os marcadores de gênero, etnia-raça e sexualidade, no entanto, em diversos momentos a classe, a idade e o local de moradia são agregados na interpretação.
Uma das discussões mais profícuas de Pensamento feminista negro (COLLINS, 2019), o conceito de imagens de controle, é retomado em diversos momentos ao longo de Política sexual negra: afro-americanos, gênero e o novo racismo. Em linhas gerais, imagens de controle são representações feitas pelos segmentos hegemônicos da sociedade sobre as pessoas negras que resultam em dominação simbólica que se estende ao comportamento e a subjetividade dos indivíduos. Ao mesmo tempo, a autora afirma que “Certamente, imagens e representações não determinam o comportamento, mas fornecem uma parte importante do contexto interpretativo para explicá-lo” (COLLINS, 2022a, p. 36).
A primeira parte do livro apresenta uma base conceitual e histórica para a compreensão da política sexual negra contemporânea. Por mais que a sociedade reforce tabus em torno da sexualidade, Collins (2022a) argumenta que as corporações reconhecem que o sexo pode ser vendido como mercadoria. Essa compreensão faz com que a sociedade conviva com uma contradição entre a repressão e a exposição. No âmago dessa contradição homens e, sobretudo, mulheres são objetificados/as por imagens de controle que sugerem que pessoas negras possuem uma sexualidade animalizada, exacerbada e irresponsável.
Em que pese as diferenças entre os marcadores de raça e sexualidade, Collins (2022a) aponta que o racismo e a LGBTfobia possuem diversos pontos de contato. A autora demonstra isso a partir de uma reflexão sobre as prisões e os armários enquanto metáforas que aproximam questões de raça e sexualidade. Assim, racismo e heterossexismo possuem convergência, haja vista que ambos usam mecanismos institucionais que se assemelham para manter hierarquias raciais e sexuais, compartilham de práticas destinadas a disciplinar a população a aceitar o status quo. Para tanto utilizam uma lógica binária que compõe a percepção sobre o normal/desviante como marco zero para justificar opressões, bem como aplicam estigmas de promiscuidade tanto em pessoas negras quanto em pessoas LGBT. Ao mesmo tempo, a partir da perspectiva interseccional, Collins (2022a) ressalta a necessidade de reconhecimento das pessoas negras no movimento LGBT, especialmente para evitar o embranquecimento da agenda de luta. As metáforas da prisão e do armário possuem atualidade e relevância para compreender a condição de pessoas negras e pessoas LGBT no Brasil. Dados recentes apontam que o Brasil é o país que mais mata transsexuais no mundo, além de incorrer com riscos cotidianos de crimes motivados por LGBTfobia (Bruna BENEVIDES, 2022). Esse mesmo país possui a terceira maior população carcerária do mundo, composta majoritariamente por homens negros jovens (Juliana BORGES, 2019).
Para as mulheres negras, as imagens de controle emergentes no novo racismo1 podem ser definidas a priori por um recorte de classe: na classe trabalhadora estão as imagens das “bitches” e “mães negras ruins” (COLLINS, 2022a, p. 186). As primeiras dizem respeito à objetificação das mulheres negras da classe trabalhadora, concebendo-as como excessivamente sexualizadas e perversas. Já a mãe negra ruim é uma representação que também concebe mulheres negras como descontroladas e desprovidas dos atributos da feminilidade hegemônica, pois não conseguem atingir os ideais de maternidade socialmente impostos. Na classe média, as imagens e políticas corporais de promiscuidade e fertilidade abundante devem ser evitadas para alcançar status e respeitabilidade. Assim, a mulheres negras da classe média são concebidas a partir de imagens de controle que as definem como mais focadas na carreira profissional e com maior poder sobre os homens frente as mulheres da classe trabalhadora, embora frequentemente sejam retratadas como solitárias.
Se em Pensamento feminista negro (COLLINS, 2019) as mulheres negras recebem protagonismo na análise, a presente obra traz elementos para refletir sobre masculinidades negras. Desprovidos dos atributos de masculinidade hegemônica, os homens negros da classe trabalhadora enfrentam imagens de controle que associam seus corpos e política de gênero à força dos esportes ou da transgressão das leis. No que diz respeito à sexualidade, assim como ocorre com as mulheres negras, os homens negros são associados à promiscuidade; contudo, as lógicas de afirmação da masculinidade que recaem sobre esses homens produzem uma expectativa em relação a proezas sexuais. Todavia, ao mesmo tempo que a força e a violência são usadas para desqualificar os homens negros, esses atributos também podem ser ressignificados em ações de luta e resistência. Já na classe média, esses atributos de força são suprimidos, dando lugar a uma emasculação e uma percepção de lealdade aos brancos a partir da ideia de um “parceiro negro” (COLLINS, 2022a, p. 246). Esse processo de supressão da força é mais acentuado nas percepções homofóbicas que recaem sobre homens gays e bissexuais. Nesse sentido, a obra estabelece pontos de contato com estudos recentes sobre masculinidades negras (Mara VIGOYA, 2018; Bell HOOKS, 2022).
Se a expressão “ideologia de gênero” é utilizada por conservadores como meio de propagação do pânico moral (Judith BUTLER, 2019), na obra de Collins (2022a) possui um significado científico e opera como um catalisador de representações para a construção de políticas de gênero. Ao longo da obra, percebe-se que há uma ideologia de gênero hegemônica que produz representações carregadas de estereótipos e discriminação contra a população negra. Em síntese, a imagem espelhada para a ideologia de gênero hegemônica retrata os homens negros como sendo inadequadamente fracos e as mulheres negras como inadequadamente fortes. Mais do que representações de força e fraqueza, do ponto de vista simbólico, é necessário reconhecer a condição social na qual a população negra está inserida.
O fato de a obra ter sido escrita originalmente há 20 anos (em 2003) fica perceptível em alguns momentos da leitura. Os dados expressos na pesquisa e as referências utilizadas têm uma localização no tempo, diversas transformações ocorreram no campo da cultura que impactaram - e por vezes reforçaram - os argumentos propostos ao longo do texto. As lutas dos movimentos sociais obtiveram relativos êxitos na demanda por reconhecimento e representatividade nas últimas duas décadas, mas também o fenômeno classificado por Nancy Fraser (2018, p. 46) como “neoliberalismo progressista” - no qual a lógica capitalista transforma a militância e as identidades políticas em mercadoria - ganhou força. Cada vez mais artistas negros/negras, mulheres e LGBT passaram a ocupar as telas dos cinemas com a questão da representatividade. Mais do que refletir sobre a representatividade na mídia de massa, a obra nos convida a pensar sobre o conteúdo que envolve a representatividade, questionar quais imagens estão sendo representadas e em que medida a arte está reproduzindo ou subvertendo as representações que o novo racismo tem feito sobre a negritude, masculinidade, feminilidade e a performatividade queer.
Ao fim, o volume reafirma a necessidade de diálogo entre os diferentes movimentos sociais. Por vezes, as diferentes organizações têm dificuldade em articular diálogos e estabelecer pontos de contato entre as diferentes opressões, o que tende a invisibilizar demandas específicas no interior dos diferentes movimentos sociais. Essa denúncia e demanda por reconhecimento dos elos nas lutas sociais é fortemente impulsionada pelo feminismo negro e um dos pilares da metodologia interseccional. Em síntese, Política sexual negra: afro-americanos, gênero e o novo racismo aproxima diferentes formas de opressão e traz contribuições importantes para o debate sobre interseccionalidades no Brasil