Introdução
Após o levantamento bibliográfico sobre as escolas renovadas na década de 1960, percebemos que havia uma afinidade narrativa em torno de três instituições escolares: o Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras1 (1957-1969), os Ginásios Vocacionais (1961-1969)2 e o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem.3 Apesar de terem utilizado práticas pedagógicas semelhantes, pouco se consegue comparar as três escolas em termos de gestão e da história da instituição, pois destinavam-se a públicos distintos.
Na década de 1990 e no início dos anos 2000, alguns ex-discentes e ex-docentes produziram um repertório imagético e textual sob a forma de ensaios, livros e documentários4 que fixaram registros memorialísticos e comemorativos sobre as respectivas instituições. Ainda que a natureza deste material seja heterogênea na forma e na linguagem, encontramos muitas afinidades narrativas entre eles. Os livros/artigos, a princípio, eram apenas fontes de consulta da pesquisa sobre a renovação educacional. Comecei a pesquisa, como juiz (GINZBURG, 2011), pois tinha como objetivo decidir quem merecia o “verdadeiro” status de vanguarda pedagógica e rastrear as origens das práticas educacionais renovadas. Ao me aprofundar nas discussões teórico-metodológicas sobre as relações entre memória e história, a grande questão não seria discutir quem era a “legítima” “vanguarda pedagógica”, mas sim por qual razão essas instituições rememoravam suas experiências escolares no presente.5 Ou seja, os registros deixaram de ser apenas fontes e viraram o próprio objeto da pesquisa.
Assim, as edições comemorativas reafirmam a importância histórica daquelas experiências educacionais e traduzem o desejo de divulgação das práticas do passado para um público mais amplo. O que levou grupos de ex-alunos de escolas renovadas a promover, a partir do reencontro da turma da escola, comemorações sobre a instituição em que estudaram. Afinal, o que se comemora quando se relembra uma instituição escolar? Procuramos estabelecer conexões com as memórias referentes à escola renovada, delineando quais as práticas pedagógicas evocadas pelos ex-participantes ao autoproclamarem suas escolas enquanto “vanguarda pedagógica”.
Tendo em vista as suas vivências no passado, eles mobilizaram recursos e instituíram eventos que permitiram materializar uma versão para a história das práticas educacionais dessas instituições. Ao manipular de maneira caleidoscópica os diversos registros memorialísticos sobre sua antiga escola, os ex-alunos cristalizaram uma versão para a história da instituição e traçaram elementos que conferem uma identidade entre o grupo no presente. Neste sentido, a edição comemorativa fornece pistas sobre o exercício de atribuir um sentido ao passado com base na atualidade.
Por isso, o objetivo deste artigo é compreender tanto as motivações que levaram à rememoração, nesse contexto específico, quanto a seleção das memórias em relação aos usos (e abusos) que se fazem desta no presente. Entretanto, cabe destacar que não temos como finalidade estabelecer regras sobre o ensino na atualidade, nem traçar comparações entre experiências passadas e atuais, ou ainda questionar o valor e a importância dessas iniciativas e muito menos defini-las. Nosso intento é compreender o processo de construção dessas memórias educacionais e o que elas propõem para a melhoria da educação, assim como identificar as contradições implícitas nesses discursos.
Os livros comemorativos: História, Memória e comemoração
A memória coletiva não é estática e faz parte do processo de (re)construção constante no presente. Alvo de um processo negociado entre diversos atores sociais e em constante transformação. O passado, desse ponto de vista, não é uma entidade rígida e fixa, mas sim, ao mesmo tempo, permanente e mutável. Permanente, pois não é possível alterar o que aconteceu, e mutável por adequarmos o acontecido conforme aos anseios do presente (BURKE, 2000).
Segundo Pollak (1989), assim como o esquecimento, a lembrança participa da construção da identidade. A partir da noção de memórias em disputa, o trabalho de enquadramento da memória reinterpreta continuamente o passado em razão dos embates travados no presente pelos grupos detentores da memória. Assim, a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, além de definir seu lugar respectivo, como também as oposições irredutíveis. Segundo esse autor, há um trabalho de enquadramento da memória ao enfatizar datas, personagens, acontecimentos, como também, queremos demonstrar nesse trabalho, em relação às práticas de ensino.
Contudo, a comemoração busca forjar uma identidade a essas comunidades, por não se tratar mais de uma operação natural. Dessa forma, ao anunciar o fim da história-memória, Nora (1993) aponta para a emergência de lugares de memória. Esse conceito é importante, pois justifica o que esse autor enunciará como a “Era das Comemorações”. Na medida em que a memória não é mais uma prática social e não é mais vivenciada, é necessário forjá-la. Segundo Rioux (1998, p. 328), “a febre das comemorações revela a existência de uma obsessão pela memória nos dias atuais”.
Nesse mesmo sentido, Connerton (1993) destaca que os eventos comemorativos não são inócuos: expressam estratégias de controle do passado para poder comandar o presente. Na medida em que o ressignificam no presente, o passado pode se apresentar como instrumento de reflexão da atualidade. As celebrações significariam o alimento que fortifica as narrativas coletivas e reforçam os acontecimentos que marcaram a memória coletiva. Sendo assim, a seleção da lembrança passa essencialmente à instrumentalização da memória, para impedir o esquecimento. Na comemoração, revive-se de forma coletiva a memória de um acontecimento, considerado um ato fundador. Há também a sacralização dos grandes valores e ideais de uma comunidade, buscando-se, nesse sentido, a significação do passado lembrado, para seu uso no presente (OLIVEIRA, 2000).
As comemorações permitem refundar e reatualizar identidades, ambicionando criar uma linearidade capaz de domar a descontinuidade do tempo. Sacraliza-se uma memória em comum fundamentando uma memória coletiva e um local, nos quais se (re)criam as tradições nacionais ou comunitárias. Portanto, a unidade impossível do momento é ocultada pela celebração da união passada. Sendo assim, quais os motivos de comemorar essas experiências no presente? Qual o conjunto de memórias que esses grupos mobilizaram para relembrar essas instituições?
Os livros comemorativos renovam e perpetuam, portanto, mitos, façanhas e nomes caros a essa comunidade, pontos nodais de narrativas que promovem a identidade [...] Os memorialistas e historiadores em suas crônicas, bibliografias e volumes comemorativos cumprem a função de guardiões de um imaginário social, mediante o qual erigem e expõe ao público a autoimagem preferida do profissional, a missão da escola que o forma e, por desdobramento, sustentam a legitimidade de projetos de intervenção social que sustentam. (BONTEMPI JÚNIOR; LANÇA; SILVA, 2014, p. 10).
Os volumes comemorativosanalisadas por Bontempi Júnior, Lança e Silva (2014), por exemplo, o caso da Escola Politécnica e as biografias dos diretores da instituição, buscam ressaltar uma autoimagem, a missão da escola, o aluno que pretende formar e reafirmar uma legitimidade da instituição. Esses são guardiões de um imaginário social e de identidade dos alunos. Agora, o que se comemora quando se rememora um conjunto de instituições de ensino secundário que não existem mais? O que se busca naturalizar em relação ao passado? Quais as intenções de, no presente, comemorar-se essas experiências?
As comemorações da renovação pedagógica
Os Vocacionais têm uma maior quantidade de produtos memorialísticos, pois existiram em maior número, foram objeto de inúmeras pesquisas (ASSOCIAÇÃO DOS EX-ALUNOS, EX-COLABORADORES E AMIGOS DO SISTEMA DE ENSINO VOCACIONAL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020) e houve uma preocupação maior com a guarda da documentação das escolas. Cabe destacar que a comemoração do Vocacional é a mais elaborada dos três casos, pois houve um conjunto de dispositivos que celebraram a sua memória, organizada pela Associação dos ex-alunos e Amigos do Vocacional (Gvive), fundada contemporaneamente à produção do livro (ROVAI, 2005) e do documentário Sete vidas eu tivesse, em 2006. Em comparação, o Colégio de Aplicação até hoje não tem uma associação de ex-alunos organizada de forma orgânica e o GIBSA teve o Grupo Memória Scholem que atualmente está voltado à reconstrução do Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB) (ALMEIDA, 2015).
Essas são as razões pelas quais há um peso maior para os discursos referentes aos Ginásios Vocacionais, embora estejam também presentes nos outros trabalhos. A importância de uma associação de ex-alunos como o Gvive é ressaltada por Joana Neves (2010), que, ao desenvolver um trabalho de reconstituição da memória do sistema de ensino vocacional, o qual a ajudou na recuperação de fontes para seu trabalho, declarou:
[...] o fato de muitos desses agentes ainda se reunirem como um grupo identitário - a família vocaciana - e se manifestarem em tantos eventos concretos: encontros, seminários, festas, como virtualmente por meio de sites e e-mails. A Associação dos ex-alunos e Amigos do Vocacional - GVive - desenvolve um trabalho de reconstituição da memória do sistema de ensino vocacional, reunindo e produzindo documentos escritos, vídeos e fotos e registros toda a sorte que têm por objetivo o resgate de uma história vivida, mas sentida na memória das pessoas como ainda viva, contínua e sem fim [...] Não pense, porém, em unicidade, homogeneidade ou consenso sobre o significado de uma experiência que marcou, indelevelmente, a vida daqueles que participaram. (NEVES, 2010, p. 12, grifo do autor).
Em certo sentido, concordamos com essa autora em que não existe uma homogeneidade sobre os significados da experiência, entretanto existe uma aproximação nas motivações da rememoração no presente. Como membros de uma família que compartilha a mesma formação, eles procuram restaurar os laços de pertencimento ao grupo, no caso, dessas intuições educacionais. A memória ancorada nas referências do passado alimenta-se da seleção das práticas pedagógicas, tornando-se promessa de futuro, como aponta Pollak (1992). Os conflitos, então, são diluídos a favor da comemoração e, baseados nos exemplos do passado, apresentam-se como prescritivos para a transformação da educação na atualidade. Outra questão fundamental é a ideia de concepção de uma família vocaciana; existe uma criação de identidade entre esses ex-participantes que justifica a importância histórica da comemoração. A introdução do livro sobre o Scholem apresenta características análogas
A qualidade educacional do Scholem se manteve até o final. Foi um apagar de luzes doloroso e traumático para os envolvidos. Após os 25 anos que nos separa daquela data, o Scholem se mantém vivo nas pessoas que de alguma forma participaram dessa experiência: professores, alunos, diretores, pais. O legado de uma vanguarda pedagógica não se perdeu. Os caminhos abertos por tantos idealistas e entusiastas ligados à ‘Casa do Povo’ inspiraram novas sendas, em busca de uma educação de qualidade no Brasil. Voltar os olhos para estas histórias, recuperando a herança afetiva e desvelando a competência educacional, com iniciativas como a que desenvolve agora o Grupo Memória Scholem, é uma forma de melhor compreender o diferencial desta escola que tantas raízes deixou. (STAROBINAS, 2008, p. 18).
Nesse trecho, Starobinas (2008) estabelece uma identidade coletiva para esse grupo. Utilizando termos como “vanguarda” ou “abertura de caminhos”, seus protagonistas são colocados como desbravadores e inventores de uma nova pedagogia que inspirou as novas gerações. De forma semelhante aos vocacionais, apesar do fim dessas experiências, afirma-se a “memória que permanece viva”, que “inspirou novas sendas” e tem raízes a serem resgatadas. Não obstante, a alegria do reencontro e a motivação para a reconstrução dessa memória são comuns e “vivas” também no Colégio de Aplicação, como indica a passagem do texto de Janotti e Souza (1997), quando cita o trabalho de “recuperação dessas memórias” por meio de depoimentos:
Certamente, poucas vezes encontra-se tanto entusiasmo para a realização de um trabalho exigente como este da parte de pessoas com mais de 40 anos de idade, de profissões mais diversas e com encargos de família. [...] perceber a importância da experiência passada tem sido motor, incrementado pela afetividade, que impulsiona a todos. (JANOTTI; SOUZA, 1997, p. 278).
A reafirmação constante da importância da recuperação dessas instituições e as motivações pelas quais cativam e mobilizam esses agentes no presente é comum nessas três experiências e corrobora os argumentos desenvolvidos por Nora (1993), de que as operações de memória já não são naturais. Dessa forma, demonstrando o esforço dessas comunidades escolares extintas que precisam da vigilância comemorativa, como a criação de associações de ex-alunos, senão a “história depressa as varreria” (NORA, 1993, p. 13). Como veremos adiante, existem alguns pilares em comum que se apresentam nesses trabalhos e embasam a memória do ensino renovado na década de 1960. Essas três experiências possuem pontos de contato, pois partem da crise no sistema de ensino público iniciada na década de 1970, que espelha tanto a corrosão da identidade profissional dos professores (representada por eles como uma profissão de prestígio), quanto a baixa qualidade de ensino das escolas públicas na atualidade.
No que tange à definição da escola renovada,6 partem do contraponto ao “ensino tradicional” estereotipado, de certa forma, como distante do discente, que seria receptor passivo de um conhecimento abstrato imposto pelo professor, enquanto as disciplinas não estabeleceriam nenhuma relação com a realidade do aluno. Argumentos semelhantes aparecem no texto dos organizadores do livro comemorativo do Scholem, que o colocam como uma escola que “[...] rompia com a camisa de força do ensino tradicional” (STAROBINAS, 2008, p. 13). Nesse sentido, definem as escolas renovadas como inovadoras, que formam o aluno consciente, “[...] apto a compreender e analisar a realidade em que está inserido” (TAMBERLINI, 2005, p. 33). Na passagem a seguir, um dos textos define a escola renovada:
A equipe do Ensino Vocacional identificou-se com os princípios do ensino renovado. Este pode ser definido como um ensino de cunho transformador que objetiva formar o educando integralmente, desenvolvendo-lhe tanto as aptidões teóricas, quanto as práticas, para que ele se torne capaz de atuar na sociedade em que está inserido. O professor é uma espécie de orientador que cria situações educativas que propiciam o desenvolvimento das potencialidades do aluno. (TAMBERLINI, 2005, p. 33).
Apesar do excerto se referir aos Ginásios Vocacionais, ele bem que poderia corresponder a qualquer uma das três escolas analisadas. Assim, a renovação pedagógica é definida como uma proposta educacional preocupada com a formação integral do educando, levando o jovem a conhecer sua personalidade, interesses e aptidões. O aluno passa a ser ativo construtor do conhecimento e as disciplinas partem do cotidiano para questões mais gerais, “deixando” de ser abstratas. A avaliação é descrita como parte do processo educativo e não como medição quantitativa de memorização de conteúdos desconectados da realidade do aluno. Sob este enfoque, o professor atua como mediador entre os alunos e o conhecimento, abandonando a postura de transmissor de informações. Nas memórias dessas escolas exaltam-se os trabalhos em grupo e a construção coletiva dos conceitos, em especial os estudos de meio, considerados avançados para a época. Os docentes, por sua vez, relatam que passaram a se sentir educadores e não somente professores e, nesse sentido, trabalhavam com entusiasmo, além de destacar as relações de proximidade com os alunos. Como exemplo apontamos o depoimento de Balzan (2005), que tece comentários sobre a formação de professores realizada pelo Vocacional:
[...] o Vocacional, embora não tivesse como objetivo a formação de professores, acabou por formar toda uma geração de excelentes professores e, mais do que isso, educadores, aqui ocorre o contrário: os cursos oferecidos aos jovens universitários, apesar de voltados para a docência, não conseguem despertar a paixão, o entusiasmo, a vibração, tão comum aos professores formados no Vocacional. (BALZAN, 2005, p. 141-142).
No cotidiano escolar, as memórias desses participantes declaram a felicidade que era ir para a escola que os ensinava a aprender. Muitos relatam que se sentiam mais livres, que podiam se expressar nas aulas, tanto para expor opiniões como artisticamente. Os alunos ressaltam a importância na sua formação das atividades culturais promovidas pelas escolas, de leituras significativas e idas ao teatro, bibliotecas e cinema. Também descrevem que conviviam harmoniosamente, independentemente das suas diferenças, especialmente étnicas7 (no caso do Scholem), sociais e econômicas - mais comuns no caso dos Ginásios Vocacionais e do Colégio de Aplicação.
Os alunos vinham de todas as classes sociais. Só mais tarde compreendi que meu perfil de filho de trabalhadores fazia parte da própria proposta pedagógica. Na mesma classe, havia filhos de empresários, de pequenos comerciantes, de profissionais liberais da classe média, e colegas de origem ainda mais humilde que a minha. O filho da patroa para quem minha mãe lavava e passava roupa era meu colega de classe. (BIANCHARELLI, 2005, p. 156).
O tom das afirmações no relato de um aluno do Vocacional é muito comum nas memórias referentes a essas instituições. Rovai (2005), por exemplo, afirma que a equipe do SEV buscou reformular o seu processo de seleção, tendo em vista assegurar o “[...] direito à educação de forma mais equitativa”, pois “ao combater as assimetrias de oportunidades, visava ampliar o acesso à educação para os segmentos sociais de menor renda” (ROVAI, 2005, p. 44). Rovai (2005, p. 51) chega a afirmar que “[...] foi a primeira vez, talvez a única, em que filhos de operários e intelectuais partilharam das mesmas oportunidades de educação”. O diretor do documentário (VOCACIONAL, 2011) selecionou, nas diversas entrevistas, que não havia diferenças de classe e todos conviviam de forma solidária. Como exemplo, cita que trocavam materiais e usavam os mesmos uniformes, sinônimos de igualdade. No final chega a afirmar que “o Vocacional é a escola do rico e do pobre, que forma gente que pensa” (VOCACIONAL, 2011).
Da mesma forma, Souza e Janotti (1997) se contrapõem às críticas de que as escolas renovadas eram elitistas, argumentando e selecionando depoimentos de alunos oriundos de famílias de classe média baixa e, portanto, não compunham as elites que defendiam os seus privilégios de acesso aos níveis mais altos de escolaridade, como o ingresso no ensino secundário e no superior. Essas autoras exploram de forma dualista a qualidade de ensino, isto é, ou se defendia a qualidade ou a democratização do ensino, sendo que se declaram como portadoras da “democratização de qualidade”, pois, naquele período, não eram ideias que poderiam coexistir. De certa forma, elas se posicionam não apenas em relação aos debates daquele período, mas também em relação às leituras posteriores realizadas a partir dessas experiências educacionais. Por exemplo, para Saviani (2007), o movimento renovador das décadas de 1950 e 1960 é a realização dos ideais do movimento da “Escola Nova”, que não aboliu a escola convencional, pois estava mais voltada para a adoção de modelos que atendessem às exigências da pedagogia do que às necessidades do contexto socioeconômico do período. A reforma foi uma maneira radical de levar a cabo os ideais liberais que afirmavam o poder do conhecimento como forma de acabar com a opressão e a ignorância dos homens. Apesar da tentativa de inovar em termos curriculares, esse autor defende que foi uma renovação da educação destinada à elite.
A ‘escola nova’ é que constitui uma exceção, organizando-se a título de escolas experimentais ou como núcleos raros, muito bem equipados e destinados a reduzidos grupos de elite. O movimento da ‘escola nova’ não logrou constituir-se em ‘sistema público de ensino’ e influenciou apenas superficialmente os procedimentos adotados nas escolas oficiais. (SAVIANI, 2007, p. 158, grifo do autor).
Warde e Ribeiro (1989) também defendem que o movimento de renovação educacional teve um caráter socialmente conservador. Apesar de almejar aumentar a qualidade de ensino, acabou servindo a um número limitado de alunos devido à falta de verbas, pois eram projetos dispendiosos. Nesse sentido, a legislação abria caminhos para as mudanças educacionais, mas estas não penetraram na ampla estrutura do sistema educacional.
Segundo Chiozzini (2014), a bibliografia sobre os vocacionais aponta que, embora as escolas atendessem uma pequena parcela da população, defendiam políticas educacionais voltadas para a expansão quantitativa do ensino secundário. Por exemplo, Fontes (1999) defende que, na década de 1960, o movimento de Renovação Educacional atuaria em um duplo sentido democrático: “[...] de um lado, propunha mudanças no interior da escola e, de outro, a expansão do ensino para novos públicos, e não mais direcionado às elites” (FONTES, 1999, p. 16). Assim como Chiozzini (2010), apresenta que a ênfase dos renovadores na qualidade do ensino esteve sempre conjuminada com proposições políticas que previam a expansão das experiências de ensino renovadas. Embora o governo não atendesse toda a demanda pela educação no mesmo nível de qualidade, para os renovadores esta questão esteve sempre atrelada ao seu projeto de expansão do ensino. As divergências entre eles situavam-se em torno dos questionamentos sobre como se daria essa expansão.
Janotti e Souza (1997), seguindo a mesma linha argumentativa, justificam as dificuldades de expansão das experiências de renovação pedagógica para todo o sistema de ensino, em razão da política educacional imposta pelos militares:
Em síntese podemos afirmar que em nome de uma equivocada ideia de democracia, rejeitaram-se opiniões em defesa da qualidade, como se todas fossem oriundas de uma mesma concepção elitista e ressentida de ensino. Usando esses sinuosos argumentos extinguiram-se sumária e abruptamente todas as experiências de ensino renovado da época. Basicamente, nada impedia que a defesa de um ensino aberto a todos fosse também a defesa de um ensino de qualidade. Nem havia provas de que a denúncia dos professores em relação à queda da qualidade de ensino fosse, necessariamente, fruto da rejeição à presença em sala de aula de alunos pobres. De qualquer maneira, durante muitos anos, esta acusação pesou sobre os professores e serviu para acobertar a complexidade de causas que, de fato, em pouco mais de vinte anos, levaram a uma inegável deterioração do ensino público [...]. Foram extintos, dessa forma, lugares onde se podia cultivar utopias de ensino e a livre circulação entre cultura e educação que as experiências de ensino renovado sustentavam e praticavam. (JANOTTI; SOUZA, 1997, p. 271, grifo nosso).
Segundo essas autoras, a ampliação do acesso do ensino engendrada nesse contexto levou à deterioração de um ensino de qualidade e as escolas renovadas foram abruptamente extintas. Esses casos levam em consideração somente os Ginásios Vocacionais e o Colégio de Aplicação-FFCL, que foram extintos em 1969. Destacamos que, apesar de aparentemente isso não estar efetivamente ligado ao Scholem, pois se tratava de escola de gestão privada, as memórias que foram engendradas em relação ao Regime Militar sobre o método de ensino renovado utilizam argumentos muito próximos. Nesse sentido, apesar de o GIBSA não ter sido fechado, ele foi perseguido pelos mesmos motivos, ou seja, por ser um espaço de cultivo de utopias e de livre circulação de cultura e educação (STAROBINAS, 2008, p. 16).
A necessidade de reafirmar esses fatores se deve à busca de reiterar no presente a experiência educacional como cultivadora de ideais democráticos, que permitia o acesso de todas as classes sociais. No entanto, esse período não pode ser entendido se não se levar em consideração o acesso restrito à educação, pois, embora houvesse a presença de muitos alunos originários de “classes menos favorecidas”, como apontam Janotti e Souza (1997), o sistema de ensino permanecia elitizado e de difícil acesso para significativa parcela da população.8 Apesar de toda a boa vontade percebida nas três celebrações das escolas renovadas de inserir todos os segmentos da sociedade, tais argumentos não se sustentam, pois estavam arraigadas em um sistema educacional elitista e excludente. A asserção, porém, de que as escolas renovadas eram elitistas não denega a importância histórica dessas experiências, como afirmam outros autores. Saviani (1989, p. 25), por exemplo, defende que o movimento de renovação educacional “[...] aprimorou a qualidade do ensino destinado às elites, forçou a baixa qualidade do ensino destinado às camadas populares, já que sua influência provocou o afrouxamento da disciplina e das exigências de qualificação nas escolas convencionais”.
A referência constante ao argumento de defesa das escolas renovadas serem elitistas, no entanto, busca muito mais do que isentar essas experiências de uma exclusão das demais classes sociais, procura referendar sua importância para recuperar essa proposta pedagógica no presente. A ampliação do ingresso à educação nas últimas duas décadas no Brasil - tendo em vista que boa parte da população em idade escolar tem acesso à educação -seria, para estes educadores que comemoram essas experiências, de conferir qualidade para essa educação de massas. Afinal, o que poderia ser melhor do que um projeto democrático que atenda a todas as camadas sociais, ancorado em experiências que já deram certo no passado? Nesse sentido, acreditamos que esses grupos buscam reafirmar um projeto de educação para o presente baseado em suas experiências passadas.
O ensino renovado e a vanguarda pedagógica
As memórias dos ex-participantes sobre a renovação pedagógica estão atreladas a sua reafirmação enquanto vanguardas; quanto a isso o Grupo Memória Scholem não é uma exceção. Nos dispositivos comemorativos dessas instituições, esses grupos reafirmam práticas educacionais muito avançadas para o seu tempo histórico, adiantadas para a década de 1960. A nosso ver, a recuperação dessas memórias da renovação educacional na atualidade, exaltadas como uma proposta vanguardista, é portadora de um traço melancólico e saudosista dessa experiência partilhada que foi perdida e deveria ser resgatada na atualidade. Nesse sentido, apresentam proposições para a educação no presente, baseadas nas suas práticas educacionais do passado, se autoproclamando uma pedagogia ainda atual e, portanto, de vanguarda.
É exatamente nessa direção que se encaminha a avaliação de Rovai (2005), que pode ser estendida aos outros grupos de ex-alunos ao afirmar que o diferencial do livro é trazer o conhecimento de uma iniciativa que deu certo e que traz intrinsicamente o germe da atualidade. Da mesma maneira, as experiências geradas no contexto das escolas vocacionais também parecem investidas de valores e significados que transcendem o passado, conforme sugere Tamberlini (2005) ao apontar que os Ginásios Vocacionais, por terem sido fundados em valores humanistas, e em decorrência disso, fez com que eles “possua[m] uma carga de atualidade eterna” (TAMBERLINI, 2005, p. 47).
No documentário Sete vidas eu tivesse (2006), Rovai salienta que, apesar da resistência da Universidade em relação aos Vocacionais, todas as práticas que foram gestadas nessas escolas, posteriormente, foram transformadas e apropriadas pelo discurso acadêmico. A argumentação apresentada por Fanny Abramovich (2008) é muito enfática ao sublinhar que não aprendeu nada com os professores da Universidade de São Paulo (USP), instituição na qual ela se formou. Na avaliação que faz sobre a sua trajetória intelectual e profissional, ela ressalta o fato de que foi na experiência com os alunos que aprendeu a dar aulas de arte. Nesse sentido, ela coloca em segundo plano o lugar atribuído às teorias, reafirma a importância da prática e da relação com os alunos, considerando a formação acadêmica desnecessária perto da intuição que tinha com as crianças. Com argumentação análoga, o livro comemorativo do Ginásio Vocacional (ROVAI, 2005) ressalta práticas educacionais daquele período como a interdisciplinaridade, a participação dos alunos nas decisões da escola, o trabalho em torno de determinados conceitos-chave. Assim, o Vocacional fez melhor na prática do que a teoria acadêmica havia conseguido elaborar para propor mudanças ao sistema educacional tradicional.
Esses são apenas alguns exemplos das ‘novidades pedagógicas’ que consagravam uma a uma o avanço da proposta pedagógica educacional, que as experimenta em um contexto histórico em que essas questões apenas se insinuavam na leitura e no debate acadêmico [...] é com propósito de mostrar a Vanguarda de seus pressupostos, do modo de sua organização curricular e da articulação teoria e prática, que propus a alguns colegas, com estudos acadêmicos realizados sobre essa experiência a divulgação para um público maior que das universidades [...] que encontram referencias nossas no fazer pedagógico. (ROVAI, 2005, p. 20, grifo nosso).
Podemos notar que as marcas de comemoração dessas experiências são os avanços teóricos na área pedagógica adquiridos na prática das escolas renovadas. Como apontam Janotti e Souza (1997, p. 271), as “[...] lembranças dos participantes expressam o sentimento de ter vivido um momento histórico importante do ensino de qualidade, interrompido bruscamente pela repressão da ditadura militar e pelos equívocos dos rumos da política educacional”. Esse balanço é realizado nos documentários, livros comemorativos, depoimentos e, não raro, nas falas dos próprios investigadores dessas experiências. Joana Neves (2010), ex-professora de Estudos Sociais no G.E.V. Embaixador Macedo Soares (Barretos),9 em pesquisa de doutorado retrata as marcas indeléveis na vida dos alunos. Ela registrou que, apesar das críticas e divergências que possam ter existido contra a experiência dos Vocacionais, os estudantes entrevistados “[...] não são capazes de colocar em questão o persistente e, absolutamente, majoritário reconhecimento da força inovadora de uma experiência interessante e original” (NEVES, 2010, p. 25).
Reafirmamos que não se trata aqui de questionar a importância das experiências de ensino, mas reconstituir a linha argumentativa dessa comemoração e as proposições para a educação atual. Em uma fala contundente, Newton Balzan (2005) condensa as atitudes de celebração das escolas renovadas a que queremos dar ênfase. No livro sobre o Vocacional, ele retrata a sua trajetória profissional. Quando foi fazer seu pós-doutorado na década de 1980 na Universidade de Harvard, diz ter se deparado com uma tese sobre uma experiência educacional que “tinha fortes traços de semelhança com o Vocacional”, mas durou somente quatro anos. Assim ele conclui a comparação:
Se no nosso caso, o regime militar foi o responsável pelo encerramento de oito anos de experiência, taxando-a de subversiva, lá a mesma acusação foi feita por uma das vertentes da Igreja Protestante.
Pude extrair duas conclusões a partir da leitura que fiz.
A primeira delas: o fim das duas experiências, até certo ponto coincidente, infelizmente vem comprovar a hipótese de que a educação, para não enfrentar barreiras, deve vir sempre a reboque dos avanços sociais. Cada vez que propostas inovadoras pretendem situá-la lado a lado com a sociedade - ou, mais grave ainda, adiante dela - as mesmas são acusadas de subversivas, desarticuladoras do saber, fracas quanto aos conteúdos e até mesmo imorais. Daí à extinção é apenas questão de tempo.
A segunda: se uma das universidades de maior prestígio do mundo - senão a mais notável - conduziu uma séria e arrojada experiência pedagógica que, sob diversos aspectos ficou aquém da experiência do Vocacional, há possibilidade de esta última ter sido a mais profunda e brilhante do século XX. Com isso não pretendo afirmar que o Vocacional tenha sido a melhor escola do mundo, não estou ignorando as falhas havidas ao longo dos anos em que ele existiu tampouco negando que poderia ter dado mais frutos do que acabou dando. Estou apenas constatando que dificilmente a história da educação acabará descobrindo algo mais significativo que o Vocacional ao longo do século passado e no começo do atual. (BALZAN, 2005, p. 143, grifo nosso).
Esse texto traz a marca significativa da comemoração. Em primeiro lugar por conceder o crédito para o Vocacional não só de Vanguarda Pedagógica, mas como a maior experiência educacional do século XX. Ademais, Balzan (2005) protagonizou diversos embates internos que permearam seu trabalho nos Vocacionais, por exemplo, Chiozinni (2010) aponta que o professor foi demitido em 1967 por se contrapor às ideias de Maria Nilde Mascellani, e também Joana Neves (2010) ataca-o impetuosamente em sua tese.10 Nesse sentido, podemos perceber no relato de Balzan (2005) que essas divergências do passado foram apenas pequenas falhas, mas que, se solucionadas, só engrandeceriam mais a história da instituição. No texto comemorativo, as diferenças existentes no passado se diluem em benefício da comemoração. Portanto, é possível destacar mais um traço comum entre os efeitos da celebração na construção da memória, a saber, as divergências são apaziguadas, passam para o plano das entrelinhas ou são veementemente caladas, como é o caso de professores que não deram permissão de publicação de suas falas para o livro (CHARNIS et al., 2008) sobre o Scholem (ALMEIDA, 2015).
As associações de ex-alunos, ao formularem uma narrativa homogênea e pacífica da construção da memória das instituições, invariavelmente apontam os militares como algozes da renovação pedagógica. De acordo com Balzan (2005, p. 149), “[...] a quantidade - a massificação - falou mais alto e acabou ganhando da qualidade”, ou seja, a expansão do ensino realizada pelos militares teria resultado na massificação do sistema escolar em detrimento da qualidade preconizada por projetos como o dos Vocacionais.
Cumpre destacar agora o efeito da caracterização dessa experiência pedagógica como vanguardista. Balzan (2005, p. 144) afirma que é “[...] por ser uma experiência fora do seu tempo”. No mesmo sentido, Rovai (2005, p. 18) aponta que “[...] antecipando-se ao paradigma moderno para época, foi ela uma proposta revolucionária, com certeza por isso, incompreendida”.
Como se vê, tais discursos conferem a essa experiência os atributos de uma vanguarda; como vanguarda ela é modelo e exemplo, guarda precursora e avançada; promove ruptura e abre caminhos. Enzensberger (1985) faz um exame crítico das definições deste conceito e como foram apropriadas pelas vanguardas artísticas. Aqui, será capaz de esclarecer a eficácia que ele ganha no discurso educacional.
O conceito, originário do contexto militar, dizia respeito à guarda avançada que marcha adiante do grosso da tropa. Nesse contexto, a vanguarda assumia não somente o papel de orientadora do avanço do exército, mas era “[...] ao mesmo tempo o estado-maior, cujos planos orientam todas as operações; ela não apenas realiza a ditadura do proletariado, mas realiza a ditadura sobre o proletariado” (ENZENSBERGER, 1985, p. 63).
Enzensberger (1985) aponta como o conceito foi apropriado para o campo do político em 1919, quando Lênin definiu o Partido Comunista como “Vanguarda do proletariado”, acepção incorporada por comunistas do mundo inteiro. Desta forma, a crítica às apropriações do termo segue no seguinte sentido:
A Vanguarda pretende realizar doutrinariamente nas artes o que o comunismo faz na sociedade. Exatamente como o Partido, ela, como elite revolucionária, ou seja, como coletivo, pensa ter arrendado para si o futuro. Da forma mais determinada, quer dispor do mais indeterminado. Dita arbitrariamente o que deverá ser válido amanhã e ao mesmo tempo submete-se, disciplinada e dócil, ao mandamento de um futuro que ela própria se impõe. (ENZENSBERGER, 1985, p. 65).
Para nossa análise, interessa esse uso valorativo do termo vanguarda. Segundo Enzensberger (1985, p. 57), “[...] o Pathos do conceito de Vanguarda alimenta-se da ideia de que o lugar à frente do processo distingue uma obra, conferindo-lhe um lugar que as outras não alcançaram”. Ao se autodenominar Vanguarda, um grupo social se coloca em um local inalcançável pelos seus contemporâneos, ou seja, eles estão en avant, avançados no curso da história. Enzensberger (1985) argumenta que a Vanguarda nas artes aparece de forma confusa, pois lida com um futuro que não lhe pertence, contudo pretende ditar arbitrariamente as regras para as produções no presente.
De modo análogo, as associações de ex-alunos, ao se posicionarem à frente das massas educacionais da época, se colocam em um lugar inalcançável por outras experiências educacionais realizadas no período e que influenciaram as práticas atuais de inovação pedagógica. Dessa forma, como diz Enzensberger (1985), o conceito torna-se um talismã que deveria isentar seus portadores de críticas e objeções.
Esse efeito-talismã permite que, nas comemorações da Vanguarda Pedagógica, seus protagonistas tornem-se então os porta-vozes da solução para a crise da educação pública na atualidade. Dessa forma, forja-se um movimento linear e unívoco dos experimentos educacionais, como se eles fossem pré-determinados, desconsiderando as particularidades do contexto educacional do passado e do atual. É o que se observa nos depoimentos sobre essas experiências quando são levantadas as motivações para a sua rememoração.
[...] se os temas atuais que defendem mudanças na educação atestam a vanguarda da proposta pedagógica do Ensino Vocacional, ela, em contrapartida, serve de referência para atestar o valor do que se postula como princípios básicos de uma nova educação para o momento atual. Por isso, vale rememorar esse passado que só é passado porque já vivido, mas traz em si um futuro ainda não alcançado [...] é o que eu chamo de um encontro com o passado, para compreender o presente e pensar o futuro. (ROVAI, 2005, p. 22-23).
Ao se colocarem como uma proposta pedagógica fora do seu tempo, as rememorações são impulsionadas para a proposição da recuperação dessas práticas no presente educacional. As comemorações são permeadas por soluções educacionais e, no livro sobre o Scholem (CHARNIS et al., 2008), a fala de Antonio Dimas (2008) parece demostrar a mesma preocupação:
Dessas escolas renovadas é preciso lembrar o seguinte: o Scholem fez parte de um sistema de ensino renovado desse País, que a todo custo precisa ser recuperado. Não em termos de ‘resgate’, como gostam de dizer os que descobriram essa palavra há pouco tempo. Não em termos de lembrança museológica. Mas em termos de treino pedagógico, de vivência educacional, de aposta efetiva na educação primária e média, base incontestável para uma educação sem fanfarronice publicitária. [...] até hoje não há, nenhum sistema político ou governamental que tenha se interessado a sério por uma instância chamada educação. E isso acontece até hoje, infelizmente. (DIMAS, 2008, p. 61, grifo do autor).
No balanço de Dimas (2008), o Estado brasileiro nunca teria levado a sério a questão educacional, enquanto as iniciativas de renovação teriam lhe dado a importância devida. De forma semelhante ao texto de Esméria Rovai (2005), as lembranças dessas instituições no presente têm o dever de memória de reformular projetos educacionais do passado de forma prescritiva. Como a expressão do projeto das escolas renovadas ainda é bastante atual, na medida em que a escola contemporânea padece de muitos males que foram enfrentados de forma satisfatória no passado, a comemoração dessas instituições renovadas consiste em recuperar os ideais do projeto e, como consequência prática, colaborar com os debates sobre as necessidades de mudanças atuais na educação, como vimos anteriormente no texto de Janotti e Souza (1997). Argumento semelhante de Rovai (2005) na conclusão do livro sobre os Vocacionais corrobora o tom do balanço realizado por Dimas (2008):
Para finalizar, este é o desafio que autoridades e lideranças, com real interesse, precisam enfrentar para colocar a escola pública nos caminhos de um projeto educativo encarado com seriedade e competência, em especial para a clientela da rede pública de ensino que necessita de ambientes estimuladores e promotores de desenvolvimento: uma proposta de educação mediada por uma pedagogia inovadora, própria para o século XXI. A referência concreta é a experiência dos Ginásios Vocacionais. Ela não é apenas mais uma teoria; ela é uma prática bem fundamentada que se mostrou efetiva, porque muito bem estruturada e implementada. (ROVAI, 2005, p. 191).
O embasamento do livro de Rovai (2005), que é voltado para os professores da escola pública, indica que houve uma experiência prática de mudança que deu certo no passado e é perfeitamente aplicável no presente, dependendo da boa vontade das “autoridades e lideranças”. Além disso, percebe-se no discurso que a falência da educação pública na atualidade não precisa mais de novas teorias pedagógicas, mas de exemplos práticos que elaboraram uma aposta educacional sem “fanfarronice publicitária” (STAROBINAS, 2008).
Janotti e Souza (1997), utilizando o aporte teórico de Michel Halbwachs (2006), demonstram que essas são memórias subterrâneas, pela ausência de estudos desse campo que foi “tombado no silêncio” por conta da repressão e da ditadura militar, tanto por agentes externos (militares) quanto por internos (professores da FFCL-USP). Essas autoras apontam para as divergências e “jogos de poder” que ocorreram no decorrer do processo de consolidação do Colégio de Aplicação-FFCL. A pesquisa é justificada pela
[...] necessidade de recuperação da memória e da história dos colégios, como o de Aplicação da USP, insere-se, pois, num momento em que a escola pública de qualidade tem sido amplamente reivindicada e discutida, em nome da mesma ideia de democracia que, de certa forma, justifica seu fechamento. (JANOTTI; SOUZA, 1997, p. 271).
De acordo com esse raciocínio, se no passado as experiências eram avançadas para o seu tempo e foram exterminadas pelos militares, agora, em tempos de “liberdade democrática”, pós-Ditadura Militar, deveriam ser retomadas. De forma análoga, na apresentação do livro sobre os Vocacionais, Rovai (2005, p. 13) afirma que a “[...] releitura do Sistema de Ensino Vocacional para os novos tempos [...] [seria] o aproveitamento do que deu certo da experiência, perfeitamente aplicável ao ensino público. Momento oportuno de implantação da Progressão Continuada”.
As comemorações da renovação educacional partem da análise da falência da educação, sendo que esta rememoração tem um sentido pragmático, ou seja, pode ser utilizada para mudar o perfil da escola pública na atualidade. Balzan (2005, p. 149) chega a afirmar que as experiências educacionais da atualidade, “[...] com raras exceções, não passa[m] de mediocridade” e, por isso, propõe retomar os padrões pedagógicos da escola pública da década de 1960 “que fizeram dela [Vocacional] uma escola diferente. E atraente. Qualidade de que não se revestem nossas escolas” (BALZAN, 2005, p. 149).
Tendo como base as asserções acerca da comemoração - Pollak (1992) afirma que nesses eventos existem diversas tentativas de estabelecer uma continuidade entre presente, passado e a perspectiva do futuro, almejando manter a coesão -, podemos traçar um paralelo com as associações de ex-alunos na atualidade. Desta forma, reunir os ex-participantes para rememorar seria uma forma de propor uma reconstrução dessas práticas no presente. Ademais, criam uma identidade desse grupo que teve a oportunidade de compartilhar essas experiências educacionais.
Essa identidade é ressaltada na medida em que os sujeitos dessas rememorações apresentam o que acreditam ser o legado dessas instituições educacionais, semelhante ao que ocorre no livro do Scholem (CHARNIS et al., 2008). Além das práticas de ensino renovadas, afirmam que o fator que evidencia a qualidade dessas escolas está relacionado aos alunos que elas formaram, ligado às trajetórias de vida dos seus principais professores e alunos e ao papel que ocupam na sociedade, “[...] que pela mediação da pedagogia encontraram seu lugar ao sol” (ROVAI, 2005, p. 22). Contribuem para essa argumentação alguns elementos levantados novamente por Balzan (2005) em seu depoimento, dessa vez descrevendo como escolheu o seu objeto de doutorado (os ginásios vocacionais). A pesquisa que ele empreendeu revelou os seguintes objetivos e resultados:
Escolho para tema de doutorado o ginásio vocacional: o que teria acontecido com os alunos das duas primeiras turmas após o intervalo de oito anos? O que estariam fazendo agora? [...] realizei um estudo, tomando como sujeitos 32 ex-alunos: os dezesseis que haviam obtido as medias mais baixas e que apesar disto tinham sido aprovados ao longo dos quatro anos. Meu objetivo era identificar o desempenho e os níveis de realização pessoal de cada um dos grupos em termos de carreira profissional e de escolaridade, no período posterior à conclusão do Vocacional.
Os resultados alcançados foram surpreendentes e atestaram mais uma vez a validade filosófica que regeu essa escola. [...] Foi possível constatar que em termos de sucesso na vida - expressão pela qual não nutro qualquer simpatia - não havia diferença entre os dois grupos. (BALZAN, 2005, p. 140).
As limitações da interpretação formulada por Balzan (2005), e também endossada por outros investigadores, acerca da relação entre a qualidade de ensino proporcionada por esta modalidade de escola e o sucesso profissional dos alunos nos parece no mínimo equivocada. As razões para esta discordância repousam no fato de que o argumento empregado faz tábula rasa do contexto histórico e educacional onde emergiu o complexo e variado experimento denominada escola renovada. Sem apelar para qualquer tipo de reflexo ou para um argumento de causalidade, me parece que a inferência não resiste aos indícios históricos sobre o milagre econômico experimentado nos anos 1970 e a sua voragem por trabalhadores mais qualificados.
Nesse período, a demanda que se tinha por mão de obra especializada não era suprida pela pequena parcela da população capacitada, ou seja, quem teve acesso à educação tinha prioridade nesse mercado em acelerado crescimento. Esses estudantes que frequentaram os Vocacionais, por exemplo, dificilmente não ascenderiam socialmente neste contexto.11 Não que o “sucesso” fosse inevitável e não estivesse ligado à formação em uma determinada escola, mas, se nas décadas de 1950 e 196012 somente uma pequena parcela tinha acesso à educação, a expansão econômica da década posterior absorveria esses grupos minoritários de mão de obra especializada.13 Portanto, a nosso ver, não é de se espantar que os bons e maus alunos, que tiveram acesso à educação nesse contexto, alcançassem o “sucesso na vida”. Os alunos e professores formados pelas escolas passaram a ocupar cargos e postos de prestígio na sociedade, o que se apresenta como um grande legado dessas escolas (OLIVEIRA, 2007).
O filme de Toni Venturi (VOCACIONAL, 2011) também demonstra um argumento solidário à tese do sucesso profissional dos ex-alunos dos vocacionais. Ao selecionar depoimentos de atores famosos, músicos renomados e jornalistas midiáticos, ele reitera o papel da escola como um diferencial na trajetória destes indivíduos e, por conseguinte, reafirmam a notoriedade dessa experiência.14 Esta relação não fica circunscrita à seleção dos depoentes, mas também aparece na sucessão de frases extraídas dos entrevistados. As falas corroboram o propósito do filme, isto é, a celebração da positividade daquela experiência educacional, a reafirmação do seu caráter vanguardista e, coroando o seu propósito duplamente elegíaco e teleológico, a ideia da contemporaneidade daquele projeto. É desta perspectiva que podemos compreender as seguintes asserções, já mencionadas em outros momentos: “é possível educar de forma mais ampla e aberta”; “é possível criar uma escola pública de qualidade”; “a mais bela página da história da educação brasileira”; “continua completamente atual, principalmente pelos seus princípios psicopedagógicos” e talvez aquela que receberia o prêmio do autoelogio mais desbragado: “o Vocacional formou o que hoje são as cabeças pensantes desse país” (VOCACIONAL, 2011).
Dessa forma, a construção da identidade desses grupos busca referendar uma elite “pensante” formada por essas escolas que deve propor algo para a educação. É curioso notar como o argumento elitista ora é utilizado para se vangloriar, e o Vocacional aparece como instância agregadora de uma elite esclarecida e pensante, ora, na mão oposta, denegando o atributo de ela ser uma escola de elite no passado, pois todos eram tratados como iguais. As comemorações dessas memórias no presente representam um chamado ao voluntarismo para que as “cabeças pensantes” ajudem a melhorar a educação pública do país, a partir das suas experiências no passado.
Assim, os grupos de memória voltam ao passado para comemorar e construir um patrimônio que no presente aparece como uma experiência pedagógica inquestionável. O retorno ao passado presta-se a defender a expansão das escolas renovadas como a única forma efetiva de ampliação qualitativa do ensino atualmente - solução garantida pela autoridade de vanguarda autoproclamada. Janotti e Souza (1997) têm como mérito colocar em questão que a formação das elites continua sendo feita por esses métodos “construtivistas”, na atualidade, somente em escolas particulares, o que corrobora os nossos argumentos:
A sociedade percebeu com o passar dos anos que, extintos os colégios públicos renovados, apenas alguns colégios particulares poderiam ser classificados como de boa qualidade: só que agora já não há possibilidade de um bom estudante experimentá-lo, a não ser que tenha condições financeiras de fazê-lo. Continua-se, assim, a formar elites condutoras do país, desta vez, fora das escolas públicas. (JANOTTI; SOUZA, 1997, p. 271-272).
A questão, portanto, é que esses projetos existem, só que permanecem restritos ao âmbito privado. O argumento é baseado na ideia de que, pelos menos, naquela época os “bons alunos” ainda podiam ter acesso à uma escola de qualidade pelo seu mérito, o que atualmente só é possível por conta de seu poder aquisitivo. Então, por qual razão essa geração quer lembrar a escola do passado? Para provar que uma escola pública de qualidade podia existir. Entretanto desconsideram dois contextos históricos distintos, quando colocam em comparação o sistema de ensino da década de 1960 e o do início dos anos 2000.
Considerações Finais
A memória é uma ilha de edição. (SALOMÃO, 2007, p. 43).
Ao comemorar a sua formação dentro dessas instituições, os ex-alunos não vivenciam somente o reencontro entre pessoas que coabitaram o mesmo ambiente educacional, mas buscaram rememorar o legado dessa instituição, tendo em vista proposições para a reconstrução educacional no presente. Assim, ao revés do efêmero e fugaz da palavra oralizada dos reencontros e das memórias individuais, convertem o encontro em texto e materializam o livro como um dispositivo para a rememoração. Ao utilizar estratégias como convocar pessoas renomadas nos campos da educação, acrescentam fatos que atestam “o que de fato se passou”, ganham um peso efetivo e fazem o livro se transformar em monumento.
O consenso em relação a essa “crise da educação” tem levado os educadores a sugerir “novos” caminhos para a educação. Ao longo do artigo, procuramos reconstruir a linha argumentativa presente nessas comemorações das vanguardas pedagógicas que almejam uma legitimação dos ex-participantes como portadores das resoluções da falência da educação.
Esses grupos de ex-alunos e ex-professores, celebrando a lembrança das experiências do passado, prescrevem soluções ao presente, sob a justificativa de que no passado já foram bem-sucedidas, elemento este que confere legitimidade às propostas, segundo eles não mais baseadas em abstracionismos acadêmicos, mas em práticas implementadas com sucesso no passado na esfera pública.
Cabe destacar que em nenhum momento procurei definir o que foi a renovação pedagógica, mas entender como esses sujeitos a definem e mobilizam essas memórias para a comemoração das suas experiências pessoais de forma coletiva. Nos dispositivos celebrativos, as associações de ex-participantes selecionam práticas baseadas em princípios democráticos como: o trabalho coletivo; o respeito à diversidade; o aluno com autonomia e construtor do seu conhecimento e o professor como mediador e não mais como autoritário transmissor de saber; a preocupação com a formação cultural e com o pensamento crítico dos alunos e o incentivo a uma participação consciente na vida política.
As estratégias utilizadas para seleção do passado são diversas. As associações de ex-alunos escolhem o que almejam lembrar do passado e como estratégia convocam pessoas renomadas, que se formaram nessas escolas, para dar legitimidade a essa experiência educacional. Essas, quando convocadas, colocam os conflitos do passado em segundo plano, em prol da comemoração no presente.
Outro ponto comum nos atos de comemoração é o processo de homogeneização do passado, que ocorre quando apenas alguns elementos (selecionados) de determinada experiência histórica são apresentados como a sua totalidade. Sendo assim, tal qual o trabalho de Chiozzini (2010) sobre os Ginásios Vocacionais, o passado de 32 anos do Scholem foi representado nas celebrações do Grupo Memória Scholem como algo linear e sem nuances. Até mesmo as inovações gestadas na escola foram retratadas como se envolvessem um processo contínuo, sem contradições e percalços.
Na narrativa construída por esses personagens, em contraponto à harmonia das suas práticas educacionais, o fim das experiências se deve a agentes externos, ou seja, mais exatamente à truculência do Regime Militar, que optou por uma expansão do ensino quantitativo em detrimento do projeto qualitativo, representado pelo movimento de renovação pedagógica. As memórias de resistência política também são elementos fundamentais da legitimação dessas experiências, justamente por formarem alunos questionadores do status quo baseados em práticas experimentais que proporcionavam uma educação baseada em princípios como liberdade e autonomia.
A narrativa criada reafirma que após o período ditatorial, no começo do século XXI, com a consolidação da democracia no país, tais práticas que foram submetidas ao ostracismo poderiam enfim retomar o seu projeto de expansão qualitativa para o ensino público. Contudo, o contexto educacional da década de 1960 e do início dos anos 2000 são desconsiderados nos seus princípios mais básicos, por exemplo, o acesso à educação foi ampliado de maneira substancial nesse período.
Os atores sociais, a partir de seus interesses no presente, buscam fazer das memórias ancoradas no passado uma “ilha de edição”, pois manipulam as imagens do passado, mudando seus enfoques, ou seja, aumentando a visibilidade de determinadas práticas e diminuindo outras, e os próprios embates em torno do processo são silenciados, com o objetivo de criar uma comemoração da renovação pedagógica.