Introdução1
Nós, de candomblé, de matriz africana, a coisa maior que a gente pede é respeito. Se você não gosta, se você não entende, não quer saber, respeite! Respeite nosso fio de conta, respeite nosso branco, respeite nosso torso, porque assim: os escravos sofreram, tiveram que reprimir a fé no sincretismo. Então, hoje, a gente ainda pode mostrar que a gente é de candomblé, que a gente ama os orixás e a gente não incomoda ninguém. É isso, a gente pede respeito. (Entrevista, jovem do Recôncavo Baiano).
Em julho de 2021, uma adolescente de 13 anos foi impedida de entrar em uma escola municipal de Salvador, capital do Estado da Bahia, na qual estava devidamente matriculada, por estar com vestimenta própria de religião de matriz africana. A menina havia sido iniciada no candomblé e, como estava em regime religioso, usava vestuário específico e kelê2. Naquela manhã de quarta-feira, no portão, a mãe da adolescente tentou argumentar para que a filha não perdesse aula, mas ouviu a diretora dizer, de dentro dos muros da escola, que voltasse com a menina para casa e não se preocupasse porque não lhe seriam atribuídas faltas. Ao comunicar o ocorrido à líder religiosa da adolescente, decidiram registrar boletim de ocorrência por racismo religioso. Depois do fato, o sofrimento da adolescente: “Isso constrangeu muito. Agora ela está com medo de ir para o colégio pela vergonha que ela passou e de os coleguinhas começarem a chamar ela de macumbeira”, relatou a ialorixá à jornalista (Portal G1 BA, 2021).
Exatamente um ano depois, tomou os noticiários a situação de outra adolescente, agora de Ribeirão das Neves, município localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. No caso, a adolescente chegou a ser afastada do lar e colocada em instituição de acolhimento3. Em razão de rituais religiosos que preconizam isolamento, a mãe da adolescente foi acusada de cárcere privado, de negligenciar a saúde da filha por motivação religiosa e por tortura, por conta de pequenos traços feitos na superfície da pele, que são procedimentos próprios dos rituais de iniciação no candomblé, mas que não caracterizam ferimentos. A escola comunicou o caso ao Conselho Tutelar, que entendeu haver violação de direitos e tomou as providências para o afastamento da menina de casa. Para que a filha deixasse a instituição de acolhimento, a mãe impetrou mandado de segurança; depois de 40 dias, a adolescente voltou para casa. Na ordem concedida, o magistrado concordou com o relatório elaborado por assistente social do município que havia apontado preconceito religioso no caso (Portal G1, por Fantástico, 2022).
Dados recentes apontam o aumento dos ataques às religiões afro-brasileiras. Entre os anos de 2018 e 2019 houve crescimento de 21% nos casos de intolerância religiosa registrados no Estado de São Paulo: de 3.260 casos em 2018 para 3.969 em 2019, segundo dados da Polícia Civil (LÜDER, 2020). No ano de 2020, o Estado do Rio de Janeiro registrou 1.355 crimes relacionados à intolerância religiosa, conforme informações do Instituto de Segurança Pública (ISP, 2021). Ainda em 2020, o Ministério Público do Estado da Bahia registrou, pela primeira vez, queda nos casos de intolerância religiosa. Contudo, representantes de terreiros, de associações vinculadas à religiosidade afro-bra-sileira e do próprio órgão argumentam que as causas da redução nos números podem estar relacionadas às restrições das atividades religiosas e à subnotificação devido ao isolamento social, ambas provocadas pela pandemia de COVID-19 (A TARDE ON-LINE, 2021).
O Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, plataforma que congrega dados de relevantes canais de denúncias do país, informa que no ano de 2021 foram recebidos 583 relatos de situações relacionadas à violação da liberdade religiosa ou de crença, dentre os quais 50 partiram da Bahia. Em 2022, apenas até junho, foram registradas 383 ocorrências, o que significa 65% do total de denúncias do ano anterior4.
Segundo organização não-governamental que recebe denúncias especialmente contra crianças e adolescentes em suas plataformas digitais, registros de crimes que envolvem discurso de ódio na internet aumentaram 67,5% no primeiro semestre de 2022 em comparação com o mesmo período do ano anterior. Chama a atenção que discursos de intolerância religiosa foram os que mais cresceram: 654% de um período a outro (MOTTER, 2022).
Não é de hoje que pertencentes às religiões de matriz africana sofrem perseguição no Brasil. Nossa historiografia mostra que as religiões afro-brasileiras, seus membros e símbolos, sofrem há séculos com discriminação, repressão e marginalização, resultado do racismo organizador da sociedade brasileira desde a montagem colonial. Ao longo do tempo, foram produzidas representações negativas sobre as práticas religiosas diferentes do cristianismo europeu e, em particular, concepções depreciativas sobre as religiões de matriz africana. Entre as representações hostis de longa duração histórica estão as associações das religiões africanas com o diabo (demonização), as ligações das liturgias afro-brasileiras com feitiçarias e as ideias de que as religiões de origem africana não passam de superstição (PARÉS, 2016; SANTOS, 2009; SOUZA, 1986). Esse discurso sobre a religiosidade dos negros é, fundamentalmente, elemento constitutivo da estrutura racista da sociedade brasileira.
Importa rememorar que o catolicismo permaneceu como religião oficial no Brasil até a Proclamação da República em 1889. A independência política em relação a Portugal (1822) e a elaboração da Constituição Política do Império do Brazil (1824) não tocaram no status do catolicismo, ainda que a primeira constituição do país tenha sido influenciada pelo pensamento liberal. Apenas a Constituição da República de 1891 extinguiu o caráter confessional do Estado brasileiro, transformando-o em juridicamente laico (SILVA JÚNIOR, 2007). No entanto, pouco mudou para as religiões afro-brasileiras, que seguiam sendo perseguidas, comumente criminalizadas e enquadradas nos crimes de charlatanismo e curandeirismo, previstos no Código Penal de 1890 e mantidos no Código Penal de 1940. Na Bahia, a liberdade de culto para as religiões afro-brasileiras ocorreu apenas nos anos de 1970, com o Decreto-Lei nº 25.095, de 15 de janeiro de 1976, que extinguiu a necessidade de os terreiros solicitarem registro e licença junto à Delegacia de Jogos e Costumes para realizar suas liturgias (BRAGA, 1995; SANTOS, 2021; SOUSA JÚNIOR, 2018).
Com o processo de redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal em 1988, liberdade religiosa tornou-se direito fundamental: o artigo 5º, inciso VI, prevê a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença por indivíduos que optam por ter uma religião (BRASIL, 1988). De igual modo, no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente, o direito à crença e ao culto religioso integram o direito fundamental à liberdade, segundo o artigo 16, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Porém, como sugerido pelos casos relatados no início deste artigo, nos dados disponíveis em plataformas, noticiários e outros que apresentaremos, situações distintas identificadas como intolerância religiosa e violações do direito à liberdade religiosa não poupam crianças e adolescentes. É para compreender um pouco mais sobre como essas violências e violações se manifestam no ambiente escolar que propomos esta reflexão, por sua vez, desdobramento de pesquisa desenvolvida no ano de 2021 em Salvador e em nove municípios do Recôncavo Baiano (Cachoeira, Cruz das Almas, Maragogipe, Muritiba, Nazaré, Salinas da Margarida, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus e São Félix), que teve por objetivo geral identificar percepções e sentidos sobre racismo, sexismo e intolerância religiosa, especialmente praticada contra crianças, adolescentes e jovens, de agentes e profissionais do sistema de garantia de direitos, bem como lideranças religiosas e comunitárias e jovens.
Segundo a divisão territorial do Estado da Bahia, 19 municípios compõem o Recôncavo Baiano. A seleção dos nove municípios deu-se em razão dos dados relacionados à infância e à juventude, especialmente de violências praticadas contra crianças e adolescentes, assim como em razão dos respectivos indicadores sociais. Salvador, por certo, foi escolhida por ser a capital (IA, 2021; 2022). O Recôncavo Baiano é uma das regiões de povoamento mais antigas do país e foi palco das principais lutas pela independência. Hoje tem significativo número de comunidades quilombolas: levando em conta somente os nove municípios em questão, são 34 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Falar sobre a infância e a juventude de Salvador e do Recôncavo Baiano é, segundo projeção de dados oficiais, falar sobre 85,5% de meninas e meninos negros (IA, 2022).
Este texto toma por foco a manifestação e a percepção de atos e práticas identificados como intolerância religiosa no ambiente escolar, tendo em vista que, na coleta de dados, foi recorrente a menção à escola como lócus privilegiado para manifestação dessa forma de violência.
Considerações metodológicas
De natureza mista (quali-quantitativa), a pesquisa foi desenvolvida entre os meses de abril, maio e junho de 2021, como uma das ações do Projeto Àwuré, e adotou como técnicas de coleta de dados a aplicação de questionário e realização de entrevistas semiestruturadas. Os dados foram coletados em período crítico da pandemia de COVID-19, motivo pelo qual foram adotadas as modalidades on-line: o questionário foi criado no Google Forms e as entrevistas foram realizadas por meio da plataforma Zoom, observadas as orientações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) previstas no Ofício Circular nº 2, de 24 de fevereiro de 2021.
O questionário comportou questões fechadas e abertas e foi respondido por 426 profissionais que integram a rede de atendimento de crianças e adolescentes e serviços do sistema de garantia de direitos. Os respondentes foram mobilizados a partir do curso de formação ministrado remotamente para mais de 300 profissionais, no âmbito do Projeto Àwúre. Os objetivos do questionário foram captar percepções sobre a compreensão do racismo, sexismo e da intolerância religiosa e a identificação, por parte dos respondentes, de ocorrências dessas situações na atuação profissional.
As entrevistas foram realizadas com 57 pessoas, todas maiores de 18 anos. Os sujeitos entrevistados tiveram perfil distinto dos respondentes do questionário, pois buscamos gestores públicos e agentes estratégicos do sistema de garantia de direitos, bem como jovens e lideranças comunitárias e religiosas. A identificação dos sujeitos a serem entrevistados deu-se também a partir da capacitação para profissionais anteriormente citada e de curso específico voltado apenas para adolescentes e jovens, igualmente desenvolvido como ação do Projeto Àwúre. A seleção dos sujeitos seguiu amostragem intencional e não aleatória para: 1) em relação aos gestores e agentes estratégicos do sistema de garantia de direitos, contemplar diferentes áreas (educação, assistência social, segurança pública etc.) dos dez municípios e ao menos um membro do Conselho Tutelar de cada localidade, considerando a importância do órgão para a garantia e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes; 2) quanto aos jovens, identificar aqueles que tinham mais de 18 anos para observar a capacidade para adesão ao termo de consentimento livre e esclarecido, assim como respeitar a diversidade de gênero e município de origem; e 3) em relação às lideranças comunitárias e religiosas, pessoas dos municípios de atuação do Projeto Àwúre, a partir da metodologia de cadeia de informantes (VINUTO, 2014). No termo de consentimento livre e esclarecido ficou acordado o compromisso com o sigilo em relação à identificação dos entrevistados, tanto por meios diretos como indiretos. Assim, a referência aos respondentes do questionário e entrevistados informa apenas o cargo/ocupação, uma vez que em municípios de pequeno porte (o caso de seis dentre os 10 trabalhados) a simples indicação da ocupação e do lugar de atuação são suficientes para identificar os sujeitos.
Considerando que no Projeto Àwúre a realização da pesquisa pretendeu como resultado qualificar a atuação da rede para melhor identificar, coibir, prevenir e intervir nas violências contra crianças, adolescentes e jovens que têm hierarquias de gênero e raça, a equipe de pesquisa entendeu como fundamental ouvir agentes estratégicos do sistema de garantia de direitos e os sujeitos aos quais se dirigem as violências.
O método adotado para análise dos dados foi a interpretação de sentidos, que busca compreender não apenas o conteúdo, mas também a interpretação do contexto, as lógicas de falas e as inter-relações entre grupos e/ou agentes institucionais acerca de determinado tema (GOMES et al., 2005; MINAYO, 2009).
Para elaboração deste artigo, a primeira etapa desenvolvida foi destacar as respostas da questão aberta do questionário (de resposta opcional), relacionada à categoria intolerância religiosa. A questão indagava se, no desempenho de suas funções, o respondente já havia identificado, ou sido informado, ou notificado sobre a ocorrência de intolerância religiosa praticada contra crianças, adolescentes ou jovens; se sim, que comentasse ao menos uma das situações.
Em seguida, identificamos apenas as respostas que citam situações ocorridas no ambiente escolar ou que, em alguma medida, envolvem a escola. Dos 426 respondentes, 79 reagiram à questão aberta e citaram intolerância religiosa dirigida ao segmento infantojuvenil. Precisamente 50 respostas atenderam ao critério de seleção estabelecido para este momento de reflexão.
Seguindo a metodologia proposta (GOMES et al., 2005), na segunda etapa, após leitura compreensiva das entrevistas, selecionamos aquelas que mencionaram situações identificadas pelos sujeitos como intolerância religiosa. Depois, destacamos trechos das entrevistas para atender ao objeto deste artigo. Após correlacionar os contextos e as referências a situações similares, considerando as características das situações descritas na questão aberta do questionário e entrevistas, foi possível sintetizar ocorrências identificadas pelos participantes como intolerância religiosa praticada por estudantes (entre si, contra docentes ou pais de outros estudantes) e praticada por professores ou gestores escolares (entre si ou contra estudantes) envolvendo: 1) recusas relacionadas às práticas e atividades pedagógicas, especialmente na órbita da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003; 2) recusas relacionadas ao respeito ao recolhimento religioso ou permissão para uso de vestimentas ou outros símbolos religiosos; 3) interdições, discriminação ou preconceito relacionados às vestimentas ou outros símbolos religiosos; e 4) intimidação sistemática (bullying). Destacamos que, não raro, a prática foi associada aos evangélicos (pais, professores, estudantes etc.), especialmente neopentecostais, e que num único caso mencionado a identificação da intolerância religiosa não foi direcionada às religiões afro-brasileiras.
Abordagem analítica
Preliminarmente, é importante definir e distinguir racismo, preconceito e discriminação racial, conceitos próprios do campo de estudo das relações étnico-raciais que se interligam, mas guardam particularidades. De maneira geral, racismo é considerado uma ideologia que sustenta a existência de raças diferentes e que, para além das diferenças, há hierarquia entre os grupos raciais. Carlos Moore (2015) entende que racismo é o problema mais perigoso e o mais persistente dos dilemas enfrentados pela humanidade em toda a história e discorda de abordagens que o tratam como costura de preconceitos ou como espécie de confabulação ideológica descartável. Racismo é “[…] uma forma de consciência/estrutura de origem histórica, que desempenharia funções multiformes, totalmente benéficas para o grupo, que, por meio dela, constrói e mantém um poder hegemônico em relação ao restante da sociedade”. (MOORE, 2015, p. 405). Logo, racismo é institucionalizado e instrumentalizado pelo grupo dominante que, mediante construção do imaginário social, engendra práticas de exclusão racial, garantindo manutenção de privilégios e total acesso aos recursos produzidos pela sociedade (MOORE, 2015). Essa ordem se reproduz ao longo das gerações e mantém a centralização do poder político, econômico e simbólico: justamente por isso o racismo é estrutural (ALMEIDA, 2019; MOORE, 2015).
O preconceito é opinião formada caracterizada por visões pré-concebidas de sujeitos e/ ou grupos sociais ou étnico-raciais que estão em posição social de poder ou privilégio em relação a outros sujeitos ou grupos. Por se tratar de julgamento, muitas vezes não precisa ser verbalizado para existir: olhares, posturas corporais, julgamentos prévios que veem como suspeito ou inferior em razão da raça ou cor evidenciam o preconceito racial (GOMES, 2005).
Discriminar significa diferenciar, distinguir, discernir, excluir, separar ou segregar. Se racialmente motivada, a discriminação “[…] pode ser considerada como a prática do racismo e a efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam” (GOMES, 2005, p. 55).
Apesar de o projeto do qual este artigo é fruto ter adotado intolerância religiosa, consideramos aqui racismo religioso como categoria analítica, uma vez que, como ventilado na introdução, no Brasil, as agressões, perseguições, discriminações e violências (física, patrimonial ou simbólica) praticadas contra grupos religiosos são predominantemente dirigidas às religiões de matriz africana e, portanto, são racialmente caracterizadas (NOGUEIRA, 2020; OLIVEIRA, 2017; SANTOS, 2022)5.
Do ponto de vista teórico-conceitual, racismo religioso emerge das discussões sobre o caráter estrutural do racismo. De uma perspectiva política, confronta a invisibilidade do caráter racial das perseguições dirigidas às religiões afro-brasileiras para afirmar que as ofensivas são, em suma, práticas racistas (AL- MEIDA, 2019; CAMURÇA; SILVA, 2022; FLOR DO NASCIMENTO, 2017; OLIVEIRA, 2017; SANTOS, 2022), bem como problematiza os limites da noção de tolerância, destinado àquilo (ou àquele) que não é reconhecido como igual (NOGUEIRA, 2020).
Em termos jurídico-normativos, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 prevê crime de racismo na forma de preconceito religioso, ao passo que o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia (Lei Estadual nº 13.182, de 6 de junho de 2014) dirige-se às religiões de matriz africana para definir intolerância religiosa. Para o Estatuto, intolerância religiosa é toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou seja capaz de fomentar ódio religioso, ou menosprezo às religiões e seus adeptos. Outrossim, em junho de 2021, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia confirmou condenação e reconheceu racismo religioso nos atos praticados por mulher evangélica contra uma ialorixá e o terreiro por esta liderado (BAHIA, 2021)6.
Como apresentaremos nos resultados, o conjunto de dados revelou aspectos importantes sobre como violências e violações de direito - manifestas discriminações raciais fundadas na intolerância religiosa - podem ocorrer no ambiente escolar. As situações relatadas criam interdições muito específicas para crianças, adolescentes e jovens de religiões de matriz africana e desvelam, em última instância, o racismo religioso institucionalizado na escola.
Resultados
O problema da intolerância religiosa na escola intrinca diferentes aspectos históricos da sociedade brasileira. As implicações de séculos de escravismo e as relações de dominação continuamente estruturadas pelo racismo atuam na construção de uma cultura de violência e exclusão social que marca a experiência da população negra.
De imediato, destacamos a imprecisão com que profissionais da educação relacionam-se com a noção de estado laico, bem como o entendimento ambivalente acerca dos limites entre o público e o privado em assuntos religiosos. Isso se evidencia na diferença de condutas e no tratamento dispensado às religiões afro-brasileiras e às cristãs. A interpretação de uma entrevistada nos aproxima das maneiras como algumas dimensões do problema emergem no cotidiano da escola:
[…] Eu vejo a intolerância religiosa clara no movimento de rezar que algumas unidades fazem, de, ao receber os alunos, rezar [as orações] o pai nosso, o creio-deus-pai e a ave maria sem fazer a pergunta a esses indivíduos que estão ali como cidadão, mesmo sendo criança, mas tendo o seu direito de não ficar em pé, de não querer rezar mecanicamente uma oração que não é da sua religião […]. Muitas vezes apenas para cumprir uma tabela e pelo interesse de quem está ali na frente, sendo o professor, sendo o coordenador, sendo gestor, e não como momento de acolhimento onde cada um possa rezar cada dia uma coisa, cantar uma música em iorubá, fazer uma oração para um orixá, no outro dia alguém do espiritismo cantar ou falar alguma coisa e mexer com essa questão do ecumênico dentro da escola, que é dita laica. Quando eu vejo que a escola fala assim, “eu tenho o nosso momento de oração”, sempre me preocupei e eu pergunto: “mas reza o quê?”. Quando dizem que é cada dia uma coisa eu fico numa alegria, mas, normalmente, não é. […] (Entrevista, coordenadora pedagógica em Salvador).
Em síntese, em um Estado democrático de direito, laico significa a separação entre poder político e instituições religiosas, garantida a não interferência de determinados grupos religiosos ou religiões nas questões de Estado. Logo, Estado laico não é antirreligioso, mas sim um modelo político que, em sua essência, é “[…] instrumento jurídico-político para a gestão das liberdades e direitos do conjunto de cidadãos” (BLANCARTE, 2008, p. 25). Laicidade é definida como “[…] regime social de convivência, cujas instituições estão legitimadas principalmente pela soberania popular e já não mais por elementos religiosos” (BLANCARTE, 2008, p. 19).
Vejamos que a entrevistada não problematiza orações ou similares na escola, mas sim que, ao menos, seja garantido que religiões distintas estejam contempladas em momentos de acolhimento de estudantes e que seja considerado o desejo dos estudantes em participar ou não. Muito embora haja reflexões valorosas à escola laica, persiste a ideia de que momentos para orações (ou similares), se contempladas religiões distintas, dão conta da laicidade nas escolas. Em sua fala, a dimensão religiosa na dinâmica escolar é aceitável, sugerindo proximidade entre laico e ecumênico.
Uma possibilidade para abordar o assunto é entrar nas críticas ao Ensino Religioso presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (CUNHA, 2016), bem como nas discussões e na distinção relativas a ética laica e ética religiosa (CUNHA, 2009). Todavia, neste momento, atemo-nos a realçar que, como fundamento do Estado laico, a laicidade é manifestação político-institucional que deve caracterizar os espaços públicos, o que inclui as escolas; por sua vez, o ensino laico e a escola laica são fundamentais para o Estado democrático (CUNHA, 2009).
Por outro lado, lembramos que ecumenismo nasce da necessidade de diálogo entre cristãos divididos em confissões distintas e motivados pela vontade de reestabelecer a unidade desfeita a partir da época moderna (FRANCO, 2007). Contudo, com a globalização, o conceito se expandiu e passou a contemplar a ideia de entendimento e respeito mútuo entre diferentes religiões, baseada no diálogo, “[…] em particular aquelas que têm tradição conflitual entre si” (FRANCO, 2007, p. 11). Não precisamos de muito para concluir que, ao menos no Brasil, se a ideia do ecumenismo trouxe alguns ganhos, poucos envolvem as religiões afro-brasileiras7.
Os ataques contra a religiosidade afro-brasileira têm abarcado diferentes práticas, dentre as quais: ameaças, agressões físicas, humilhações, constrangimentos e hostilidades em instituições públicas e privadas, invasão e destruição de terreiros, violação de objetos sagrados e monumentos dedicados à religião e à memória afro-brasileira. Estudos indicam que essa cultura de violência tem sido carreada nos últimos tempos, sobretudo por grupos evangélicos neopentecostais que, pelo menos desde os idos de 1970, parecem ter elegido a religiosidade de matriz africana como alvo de uma espécie de cruzada proselitista (PRANDI, 2021; SILVA, 2007). Essa percepção também foi significativa nos dados gerais da pesquisa que origina este artigo, apesar desses grupos religiosos não serem os únicos responsáveis por práticas de racismo religioso no Brasil. Além dos históricos artifícios de demonização, vemos ridicularização, interdições e resistências muito específicas direcionadas aos membros de religiões afro-brasileiras:
[…] eu ouvi da minha afilhada quando chegou dizendo que, ao sair do terreiro com a saia e com o turbante, porque estavam em atividade religiosa durante o dia [casualmente encontrou um de seus professores], ela ouviu do professor dela, que é um representante religioso cristão de uma igreja evangélica, dizer que todas as pessoas do candomblé iriam para o inferno. Ela chegou em casa super triste. Eu estava na hora quando ela relatou à mãe porque era o professor que logo depois estava dando aula no ensino remoto. (Entrevista, liderança quilombola do Recôncavo Baiano).
Nada muito evidente e declarado, porém, por termos muitos educandos evangélicos, toda vez que é comentado sobre a cultura africana ou utilizado músicas que falem de orixás, é sentido algum tipo de resistência, seja apenas pela expressão ou pela negativa em participar da atividade. (Questionário, educador social em Salvador).
Encontramos outros contornos, agora em relação à garantia do dia de guarda para sabatistas:
Nós tivemos uma greve extensa em 2018 e tivemos uma rotina desgastante de aulas aos sábados. Nós tivemos casos de alunos que não podiam frequentar [por causa da religião] e isso sempre aconteceu de forma muito tranquila, sem nenhum prejuízo, sem brincadeirinhas, sem graça, sem nada. Quando eu vou para outra ponta, que é a ponta que traz uma religião de matriz africana, a coisa é muito diferente. (Entrevista, coordenadora pedagógica em Salvador).
Em uma das respostas do questionário, mencionou-se o caso de uma “Jovem em obrigações na roça de candomblé (recolhida) que teve o atestado de 15 dias recusado pela unidade escolar.” (Questionário, gestora de projeto social no Recôncavo Baiano).
Neste momento, a seletividade para aceitar ou não justificativa (ou mesmo atestado) às ausências revela-se como discriminação e tratamento desigual entre estudantes de religiões distintas. Desvela o não reconhecimento das práticas de religiões afro-brasileiras e, ainda que não o diga expressamente, as concebem como inferiores e ilegítimas. É reconhecida a legitimidade das religiões sabatistas, mas não das afro-brasileiras, com negativas que repercutem na vida escolar do estudante, prejudicando-o no exercício do direito fundamental à educação.
Tal como nos dois casos emblemáticos apresentados na introdução, o uso de vestimentas e símbolos religiosos afro-brasileiros motivaram discriminações e hostilidades por gestores, professores, funcionários e estudantes, revelando oposição e repulsa a essas expressões religiosas. A prática discriminatória relativa a vestimenta e símbolos manifesta-se de distintas formas, umas mais explícitas, outras menos:
Um adolescente foi ridicularizado por ter ido com suas vestimentas religiosas após saída do recluso religioso. (Questionário, professora em Salvador).
A intolerância religiosa é uma regra tácita do funcionamento da escola. Porém, os olhares denunciam a intolerância quando é exposto qualquer símbolo da religiosidade de matriz africana. Não se pode usar branco nas sextas, não se podem usar contas etc. (Questionário, professor em Salvador).
É comum durante a exposição ou apresentação de temáticas ligadas às religiões de matrizes africanas o uso de palavras grosseiras que desrespeitam e ferem a dignidade de seus praticantes […]. (Questionário, professor em Salvador).
Constantemente, alunos e alunas adeptos de religiões de matriz africanas sofrem com chacotas de colegas, professores e funcionários. (Questionário, gestora escolar em Salvador).
Eu sou feita do candomblé, de matriz africana, vou fazer dez anos de feita em julho, eu passei por racismo no tempo que eu estava de kelê, principalmente por parte de alguns professores. Os professores estavam indagando porque eu estava de branco e porque eu não podia suspender a cabeça. Teve até uma professora que me deu o piloto para eu ir ao quadro para eu suspender minha cabeça, mas eu neguei e ela tirou um ponto na caderneta. Ela falou que não tinha nada a ver com a minha religião, que foi só porque toda vez que um aluno rejeitasse ir à lousa, ela ou adicionava ou tirava um ponto. Ela justificou assim. (Entrevista, jovem do Recôncavo Baiano).
No geral, tanto nas entrevistas como nas questões abertas do questionário, foi recorrente a menção ao bullying para referenciar práticas racistas e de intolerância religiosa. Ainda que não textualmente relatada como bullying, ao modo de parte das transcrições logo acima, foram citadas diversas situações que, pela natureza, são comumente associadas à intimidação sistemática.
Na literatura especializada, bullying é “[…] um tipo específico de violência escolar entre pares, caracterizado por comportamentos violentos que envolvem atitudes hostis” (ESTEVES, 2019, p. 3). Em regra, para a prática do bullying, as motivações “[…] não são plenamente racionalizáveis do ponto de vista das justificativas morais e exprimem sentimentos de intolerância à diferença”. (ESTEVES, 2019, p. 3, grifo nosso).
Legalmente, bullying é a intimidação sistemática marcada por todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas, conforme Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Noutras palavras, é caracterizado quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, não à toa, está definido na lei que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha como uma das formas de violência psicológica, nos termos do artigo 4º, inciso II, alínea “a” da Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017 (BRASIL, 2017). A intimidação sistemática pode ser classificada conforme suas ações, que podem ser: verbal, moral, sexual, social, psicológica, física, material e virtual (cyberbullying) (CNJ, 2010; BRASIL, 2015). No ordenamento jurídico brasileiro, bullying não é crime, mas diversos crimes podem ser praticados por meio do bullying, tais como: lesão corporal, injúria, difamação, incitação ao suicídio etc. Vale lembrar que crianças não estão sujeitas a serem responsabilizadas pela prática de atos infracionais, enquanto adolescentes estão sujeitos à imposição de medidas socioeducativas (ARRUDA, 2021).
Mesmo a lei que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (BRASIL, 2015) não previu punição para aqueles que cometem bullying: concebido como um fenômeno social complexo que impacta principalmente as relações interpessoais na escola, deve ser prevenido e combatido com formação docente, campanhas educativas, assistência psicológica, promoção da cidadania baseada em uma cultura de paz e tolerância mútua. Por outro lado, não deve ser concebido tão-somente como ato de indisciplina, ou como sinônimo de atividade agressiva ou antissocial. Tampouco deve ser naturalizado no ambiente escolar ou aceito como mero conflito de convivência na socialização de crianças e adolescentes. Acima de tudo, bullying deve ser enfrentado com um modelo educacional voltado para o respeito às diferenças (ESTEVES, 2019) e baseado em princípios da educação para os direitos humanos.
Em relação ao recorte para este artigo, a motivação para o bullying, inclusive, pode estar relacionada às pessoas da família ou da convivência da criança ou adolescente, bem como ser praticado de maneira direta (frontalmente contra a criança ou adolescente) ou indireta (forçar o isolamento social e impedir a socialização):
Uma aluna compareceu à escola com a cabeça raspada e os colegas ‘discretamente’ se afastaram dela. (Questionário, gestor escolar no Recôncavo Baiano).
Uma criança se recusou a brincar com outra criança alegando que o mesmo era ‘macumbeiro’. (Questionário, cozinheira escolar no Recôncavo Baiano).
Mãe que foi iniciada na religião de matriz africana e os alunos faziam bullying com a criança […]. (Questionário, professora em Salvador).
Na semana do folclore na escola a coordenação convidou uma mãe para vender acarajés aos alunos, então, alguns alunos chamaram essa mãe de macumbeira […]. (Questionário, professor no Recôncavo Baiano).
Em duas situações específicas, a intolerância religiosa identificada como bullying motivou acionamento de outros órgãos, em especial o Conselho Tutelar. Dos fatos, duas reflexões importantes: primeiro, é o reconhecimento de que se trata de violação de direito, uma vez que Conselho Tutelar é órgão responsável para zelar pelos direitos de crianças e adolescentes e atuar nos casos em que esses direitos estejam ameaçados ou violados. Convocar o Conselho Tutelar para uma conversa com os pais é a escola reconhecer que, no caso, houve um tipo de violação cometida. Segundo, para a legislação especial, a prática de ato infracional por criança não está passível de responsabilização, mas sim de aplicação de medida pelo Conselho Tutelar, que também pode aplicar medidas específicas aos pais ou responsáveis. Ao acionar o órgão, a repercussão do caso extrapola o ambiente escolar e são dadas respostas ao fato para além das práticas pedagógicas adotadas pela escola:
[…] foi uma criança na faixa dos seus 10-11 anos. […]. A escola nos procurou e aí a gente teve uma conversa com os pais das crianças. Neste caso resolveu, não continuou mais a situação. […] foi bullying na escola por conta da religião dela [candomblé]. Acho que termina sendo também intolerância religiosa, mas se resolveu tudo. (Entrevista, conselheiro tutelar no Recôncavo Baiano).
Um adolescente foi iniciado no candomblé e retornou para escola vestindo branco e com suas contas, os colegas não queriam ficar na mesma sala que ele e, ao passar por ele, faziam o sinal da cruz, e por fim algumas mães fizeram abaixo-assinado para que o aluno fosse transferido. Solicitei a Secretaria de Educação, ao Conselho Tutelar e ao MP [Ministério Público] da cidade apoio para garantir a permanência do aluno e aproveitamos o problema e desenvolvemos na escola um projeto sobre respeito às diversidades. (Questionário, gestor escolar no Recôncavo Baiano).
É muito importante que o Conselho Tutelar, pelas atribuições que lhe foram conferidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, esteja apto a atuar em casos que envolvam quaisquer tipos de discriminação e violência. Contudo, a depender do contexto, pode indicar que o órgão foi chamado para cumprir papel de viés punitivo e ameaçador àquele que cometeu bullying. Estudos sinalizam que não é incomum que o Conselho Tutelar seja acionado pela escola para atuar como agente punitivo para com crianças e adolescentes indisciplinados (ALCANTARA, 2013; SCHEINVAR, 2012). Além disso, os casos relatados sugerem que, nas escolas em questão, não havia metodologia de intervenção e/ou propostas pedagógicas para dar conta de contornar os desafios colocados pela intolerância religiosa, identificada pelos participantes como bullying. No segundo caso, a mobilização para que o estudante fosse transferido da escola foi o que motivou, após acionar outros atores, projeto de respeito à diversidade.
Noutra entrevista, há articulação da importância da escola como espaço de discussão sobre as diferenças, assim como a hipótese de evasão escolar em razão de intolerância religiosa:
[…] A criança que muitas vezes vai com a indumentária de sua religião e é motivo de bullying, fica o diferente no espaço, e se aquele espaço não é um espaço de discussão, se sua família também disse que aquilo é do demônio, que aquilo é ruim, é difícil para um indivíduo entender que não é. Então, ele vai reproduzir o que ouve nos espaços e vai fazer. […] Se a gente for debruçar, pesquisar um pouquinho [a evasão escolar], está nesse lugar também, eu acho que é um dos itens pautados como um motivo para eu [em referência a estudante] não querer ficar. Se eu não sou aceito, se eu sou visto como diferente, como feio, como aquele que faz culto a coisas que ninguém acredita, eu não quero ficar ali. (Entrevista, coordenadora pedagógica em Salvador).
A sugestão levantada pela entrevistada merece investigação específica. Estudos dedicados à evasão escolar indicam que racismo, sexismo e LGBTQIA+fobia impactam nas motivações para deixar de frequentar a escola (ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2004; SANTANA, 2021). É por questões assim que bullying e racismo - no caso em estudo, na modalidade religiosa - não podem ser tratados como sinônimos, pois bullying é violência interpessoal e ocorre principalmente no ambiente escolar, ao passo que o racismo é ideológico, estrutural e está para além dos muros da escola. Nomear práticas racistas na escola como bullying é uma forma de negar o racismo e, facilmente, pode incorrer na mesma lógica do racismo “à brasileira”, uma vez que há desconsideração da complexidade de raça como categoria que organiza e hierarquiza as relações sociais (SOUZA, 2016)8.
Ao encontrarmos relatos que nos fazem questionar se somos capazes de promover um ambiente escolar de respeito às diferenças, laico, democrático e que garanta e promova direitos ao invés de violá-los, nos perguntamos sobre caminhos possíveis para incidir sobre essa realidade. Sem pretensão de darmos soluções simples para questões complexas, socialmente estruturadas e historicamente construídas, para o problema em discussão é preciso nos remeter ao próprio processo educacional. Neste sentido, o advento da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 é um instrumento imprescindível.
A Lei nº 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos ensinos fundamental e médio e compõe o conjunto normativo que orienta a política educacional no país por ter alterado os artigos 26 e 79 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, quer seja, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Trata da educação para as relações étnico-raciais e da política curricular, estando para além da mera inclusão de novos conteúdos nas disciplinas escolares. Por tudo dito na abordagem analítica deste artigo, a efetiva implementação da lei é um caminho para a prevenção e o enfrentamento do racismo religioso na escola.
Em complemento, o Parecer nº 03, aprovado em 10 de março de 2004 do Conselho Nacional de Educação (CNE), instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004). O documento orienta os sistemas educacionais para a elaboração de políticas educacionais para todos os níveis e modalidades da educação nacional, conectadas aos preceitos da Lei nº 10.639/2003 e aponta o seu significado ético e político. Políticas educacionais voltadas para a reeducação das relações étnico-raciais têm o objetivo final de contribuir para a construção de outra sociedade que, além de respeitar e valorizar as diferenças, promova a equidade racial e a justiça social.
Tanto a Lei nº 10.639/2003 como o Parecer nº 03/2004 (BRASIL, 2004), alertam para a necessidade de desconstruir equívocos relacionados à história e cultura negra, assim como estereótipos e preconceitos contra a população negra. A revisão histórica necessária nos currículos e nas práticas pedagógicas precisa abordar as contribuições de africanos e seus descendentes para a construção da sociedade brasileira em diferentes dimensões, superando as concepções exóticas e fetichistas com as quais a cultura negra foi concebida.
Apesar de, recentemente, ter completado 20 anos e de contar com experiências exitosas de implementação, resultados de estudos e pesquisas indicam que ainda há lacunas a serem preenchidas no que se refere à formação dos professores e às condições materiais e humanas para a efetiva implementação da Lei nº 10.639/2003 (GOMES; JESUS, 2013; SILVA; RÉGIS; MIRANDA, 2018).
Os dados coletados revelaram impasses que esbarram em aspectos relacionados à formação docente, assim como o racismo religioso por parte dos próprios professores:
[…] professor se recusou a falar da História da África no Dia da Consciência Negra e mudou totalmente o plano de aula. (Questionário, educador social em Salvador).
A professora que não quis entrar na sala de aula porque tinha imagens das entidades do candomblé. (Questionário, professor em Salvador).
Estes são exemplos de respostas que demonstram a associação, realizada por alguns docentes, de elementos da história, cultura e religiosidade negras como algo negativo que deve ser rejeitado. São sentenças e comportamentos que podem ser caracterizados como racistas e revelam incompreensões (ou inconsistências) sobre o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, do respeito à diversidade religiosa e que contribuem para manter e reproduzir no ambiente escolar estereótipos e a demonização das religiões de matriz africana.
Os dados se encontram com pesquisa desenvolvida com professores da educação básica das redes públicas e privadas de Minas Gerais, na qual o pesquisador, por diversas vezes, ouviu que as temáticas sobre diversidade religiosa e religiões de matriz africana não eram conteúdos importantes para serem trabalhados em sala de aula sob o argumento de que a maioria dos estudantes pertencia a tradições religiosas judaico-cristãs (SANTOS, 2005).
Entretanto, fato é que, ainda que determinados grupos não sejam maioria, a escola é espaço onde as diferenças se encontram. A escola tem papel fundamental no acolhimento da diversidade que, por sua vez, não pode ser compreendida de forma superficial ou ‘folclorizada’, mas concebida como elemento das relações assimétricas de poder. A percepção crítica da diversidade possibilita o reconhecimento dos diferentes modos, fazeres e saberes da população negra. Afinal, a cultura negra brasileira, historicamente negada nos currículos escolares, foi forjada a partir da resistência a todas as formas de opressão e perseguição. Uma abordagem nessa direção muda substancialmente a maneira como a história e a cultura negra foram tradicionalmente ensinadas nas escolas e se encontra com propostas de educação antirracista.
Considerações finais
Os dados coletados indicaram que, apesar de muitos profissionais e agentes perceberem que intolerância religiosa relaciona-se com o racismo e que é fenômeno recorrente nas escolas, as atuações mais criativas e comprometidas foram viabilizadas individualmente. Os respondentes e entrevistados não indicaram propostas institucionalizadas, mesmo com a existência de ampla normativa e orientações sobre o tema. No geral, há dificuldade de saber o que fazer e como fazer para assegurar direitos e promover um ambiente seguro e acolhedor para meninos e meninas de religiões de matriz africana que, ao fim, tende a tornar a escola um ambiente hostil para crianças e adolescentes de religiões afro-brasileiras.
Relatos evidenciam que racismo religioso tende a ser ignorado ou tratado como ‘brincadeira’ ou bullying, tornando-se algo tolerável, nada ou pouco nocivo e normalizado no cotidiano da escola. Fatalmente, a conivência pedagógica e a fragilidade de perspectivas antirracistas no projeto político pedagógico das unidades escolares corroboram para a perpetuação da discriminação racial e do racismo religioso.
Com essas reflexões, não queremos colocar todos os problemas na educação e na escola: como fruto da construção histórica, são marcadas pelo colonialismo. O histórico da colonização nos espaços da educação regular afetou diretamente o texto curricular escolar (conteúdos, livros didáticos, imagens, datas comemorativas etc.), impactando negativamente na representação e formação dos grupos étnico-raciais negros e indígenas. Uma prática educativa que não questiona o racismo em todos os seus aspectos não está atenta à colonialidade do currículo e às mudanças da sociedade contemporânea, tornando-se reprodutora da discriminação racial. Diante disso, é preciso confrontar os parâmetros raciais com políticas públicas afirmativas, com formação continuada de professores e funcionários escolares, promover a diversidade nas representações sociais e, sobretudo, respeitar e valorizar as diferenças.
Não obstante a relevância da teorização crítica da educação e das abordagens herdeiras ou revisionistas da tradição marxista, são poucas as reflexões que consideram as dinâmicas de raça e gênero na reprodução das desigualdades sociais. Certo é que, apesar de diferenças teórico-metodológicas entre teóricos dedicados à Sociologia da Educação, é consenso a compreensão sobre a contribuição decisiva da Educação para a produção e reprodução das classes sociais (e também das desigualdades raciais), bem como para a manutenção do status quo em razão da capacidade de moldar consciências (SILVA, 1992).
Práticas racistas, inclusive de racismo religioso, precisam ser tratadas a partir da concepção de raça como categoria social estruturante. Ainda, do ponto de vista social e político, é importante nomear as violações de direito. A escola precisa conceber que se um estudante, criança ou adolescente, humilha seu colega ou se nega a efetuar tarefas escolares em sua companhia por ser candomblecista, há falhas no projeto de uma educação antirracista. Se pertencer a uma religião de matriz africana é motivo para discriminação e preconceito na escola, e não contamos com um sólido projeto de educação para as relações étnico-raciais - ao modo sustentado na Lei nº 10.639/2003 -, algo precisa ser revisto urgentemente. Do mesmo modo, assim como identificado nos resultados mais amplos da pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Àwuré, é fundamental implementar processos de formação continuada para profissionais da educação e todos os demais que atuam na escola, conforme previsto no Parecer nº 03/2004 (CNE) e no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2013).
No âmbito do Direito da Criança e do Adolescente, a doutrina da proteção integral, instituída pela Constituição Federal, determina que família, sociedade e Estado devem manter crianças e adolescentes a salvo de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não podemos esquecer que o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de crença religiosa estão previstos na Convenção sobre os Direitos da Criança e que, no Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à crença e ao culto religioso integram o direito fundamental à liberdade. Igualmente, não podemos ignorar que crianças e adolescentes, sujeitos na condição peculiar de desenvolvimento, se desenvolvem também a partir da identidade racial e do pertencimento religioso.
Ainda, a omissão de professores e/ou responsáveis por estabelecimentos de ensino fundamental, pré-escola ou creche diante de casos de suspeita ou confirmação de maustratos praticados contra o segmento infantojuvenil é definida na legislação especial como infração administrativa, cuja pena é multa de três a vinte salários, aplicando-se o dobro em caso de reincidência, conforme artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Ademais, não podemos afastar a responsabilidade civil das escolas, quer públicas ou privadas. Certamente, ações judiciais não são as melhores respostas ou as melhores soluções para o fenômeno do racismo religioso nas escolas. Entretanto, são importantes por imprimir sanções e provocar práticas e mudanças institucionais atentas às violências que ocorrem no ambiente escolar e podem ser ignoradas (quando não perpetradas) pelos sujeitos que devem coibi-las.
O material analisado evidencia o racismo religioso como prática naturalizada e institucionalizada na escola, embora por vezes assuma características veladas. A percepção de respondentes e entrevistados revela uma ambiguidade condizente com as análises do racismo “à brasileira”: ao mesmo tempo em que se classifica a intolerância religiosa como “regra tácita”, são apresentadas características sutis que permeiam o cotidiano escolar e o tornam terreno fértil para a violência simbólica racista; no fim das contas, verificam-se manifestações de racismo religioso que devem ser enfrentadas com sólidas propostas para uma educação antirracista.
Por fim, convém repensar a noção de tolerância, mesmo na comunidade escolar. Tolerar o que é diferente consiste em “[…] atribuir a ‘quem tolera’ um poder sobre ‘o que se tolera’ […]”, pois a tolerância “[…] funciona como um expediente do desejo de quem se considera ao lado do mais aceitável para estigmatizar o diferente e manter este às margens da cultura hegemônica”. (NOGUEIRA, 2020, l. 498). Como lição, é nos voltarmos para o clamor da jovem entrevistada, aqui citada na epígrafe, e garantir respeito.