Introdução
Consideramos o corpo como o instrumento pelo qual o ser humano se apresenta e se representa no mundo. Ao nascer, o indivíduo tem em seu corpo reflexos e sentidos involuntários. Conforme este indivíduo cresce, seu organismo vai se acostumando ao ambiente e seus sentidos se refinam gradativamente, passando de simples reflexos a movimentos voluntários. Começa a escolher para onde ir, consegue pegar o que deseja, passa a consumir alimentos de diferentes texturas e assim segue se desenvolvendo até tornar-se independente. Porém desenvolver-se não ocorre de forma livre e espontânea, sem controles e imposições, pois para se considerar e ser considerado parte de uma sociedade complexa como a nossa, é preciso mais do que aquisição de controle motor e adaptação fisiológica ao meio em que se vive. Uma série de comportamentos é esperada e demandada para que o indivíduo se veja e seja enxergado como cidadão.
Desde o nascimento, o ser humano observa as atividades, atitudes, hábitos e costumes do seu entorno. Assimila o que é certo e errado, bom e ruim, adequado e inadequado e, com base nessas observações, começa a efetuar suas decisões e a se enquadrar no sistema social, bem como aprende por meio de instruções que lhe são passadas por responsáveis, escola etc. Todos esses comportamentos aprendidos independentemente de fatores genéticos é o que Tylor, em 1871, define por cultura (LARAIA, 2009).
A cultura varia de sociedade para sociedade, tendo em cada grupo, suas especificidades e limitações e é isso que torna o mundo tão diversificado e interessante. As características e singularidades de cada cultura são fruto da história e vivências do seu povo, os quais emergiram da transformação que o processo evolutivo propicia. Com o desenvolver das particularidades de cada grupo social, no entanto, tendeu-se mais a efetuar transmissão de informações sem realizar as devidas reflexões e críticas sobre como determinadas atitudes são consideradas certas ou erradas, justas ou injustas, cabendo à população apenas assimilar e reproduzir.
Em seu Art. 2°, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 2005, p. 7) define a educação como sendo “dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Neste sentido, a escola é lugar de construção e reconstrução, tanto do conhecimento da realidade quanto de si mesmo. Apesar da LDBEN (BRASIL, 1996) mencionar que a escola possui liberdade para organizar seu sistema de ensino, a instituição encontra dificuldades em pautarse nos “princípios de liberdade”, quando em construção dos seus processos formativos, não conseguindo, assim, promover uma educação libertadora e, consequentemente, falhando do desenvolvimento pleno dos seus educandos.
Dentre as disciplinas obrigatórias disponibilizadas nas escolas, a Educação Física apresenta um destaque no que concerne as possibilidades de debates sobre o tema corpo. Devido a sua dinâmica teórico-prática e as temáticas que aborda, sua aproximação com questões pessoais e interpessoais dos discentes em meio a sociedade são mais palpáveis. Em meio à prática dirigida, por exemplo, há um espaço de liberdade no qual o estudante pode manifestar atitudes conscientes e/ou inconscientes, o que possibilita reflexões diversas sobre o corpo na sociedade. Neste sentido, pretendemos analisar a estrutura curricular do curso de Licenciatura em Educação Física da UFRRJ para compreender os possíveis diálogos que se pode estabelecer com a cultura local por meio de uma perspectiva decolonial.
Esta pesquisa objetiva analisar a estrutura curricular do curso de Licenciatura em Educação Física da UFRRJ para compreender os possíveis diálogos que se pode estabelecer com a cultura local por meio de uma perspectiva decolonial. Para tanto, buscamos identificar se as disciplinas propiciam percepções sobre as diferentes formas de lidar com o corpo no ambiente escolar; problematizar a formação do professor de Educação Física da UFRRJ no contexto da construção libertadora do cidadão; e analisar se as disciplinas estudadas apresentam uma perspectiva pedagógica decolonial da Educação Física Escolar que dialoguem com os fundamentos das relações de poder que perpassam a questão do corpo na Educação Básica.
De acordo com Minayo (2002) o estudo qualitativo não se caracteriza pela quantidade ou pelo que pode ser mensurado, mas pela especificidade e peculiaridade de certo recorte da realidade. Logo, as ementas foram analisadas de forma a qualificar os aspectos sobre o corpo que são abordados, a fim de compreender a preparação dos futuros docentes formados pela instituição.
O estudo se concentra na análise documental das ementas das disciplinas do curso de Licenciatura Plena em Educação Física da UFRRJ e, neste sentido, em relação ao seu objetivo, é desenvolvida de forma descritiva, buscando estabelecer a relação entre variáveis por meio de coleta de dados padronizadas a fim de descrever as características da problemática (GIL, 1991).
A análise de dados foi feita com base na análise de conteúdo de Bardin (2011), por meio de leitura das informações coletadas, podendo ser sucintamente explicada a partir de três etapas: pré-análise (para a autora, deve-se realizar, após a coleta dos dados, uma leitura flutuante a fim de ter uma ideia geral dos dados, bem como selecionar o material coletado para análise, separar o corpus da pesquisa, formular hipóteses e objetivos e preparar o material); exploração do material (codificação através do recorte das unidades de registro e contexto, assim como categorização do material, que deve seguir os critérios expressivo, léxico, semântico ou sintático) e tratamento dos resultados obtidos e interpretação (por meio da inferência e interpretação controlada, processo que deve considerar a mensagem, o emissor, o receptor e o canal pelo qual a mensagem foi enviada).
Por uma licenciatura em educação física decolonial
O poder faz parte do histórico coletivo das espécies (QUIJANO, 2011). Uma vez em grupo, o poder se manifestará no intuito de organizar/ sistematizar as relações interpessoais. Porém, essas estruturas “descentralizadas” de poder (organização de cada grupo) sofreram mudanças após serem colonizadas. Apesar da América Latina ter sido a primeira nova identidade histórica da colonialidade do poder, a partir do século XVIII, grande parte dos demais países do mundo foi colonizada pela Europa Ocidental, gerando uma modificação na forma de ser e agir dos indivíduos. O poder, então, se insere em uma estrutura colonial global de poder, que tem sua base na eurocentricidade (QUIJANO, 2011).
Os conceitos coloniais se impregnaram na cultura de suas colônias e se instauraram de forma estruturada. De acordo com Mignolo (2003), a reprodução da colonialidade é complexa e entrelaçada, pois utiliza três dimensões distintas para se instaurar: o poder, o saber e o ser. Como o poder está nas mãos de quem fortalece os ideais coloniais, as informações, o conhecimento que é destinado à população é de seu controle. Este conhecimento, por sua vez, interfere indubitavelmente no ser, ou seja, na definição de si e do outro. Considerando que a formação do capitalismo mundial colonial/ moderno do século XVI, como nos afirma Quijano (2000), foi alicerçada principalmente em gênero, raça e trabalho, torna-se mais evidente as disparidades atuais de classe e suas relações com o processo colonial.
Quijano (2011) aponta que, para efetivamente se “bien vivir”1, não se pode produzir e/ ou reproduzir os parâmetros preestabelecidos pela sociedade democrática atual, visto que é construção e meio de reprodução de uma estrutura colonial global de poder eurocêntrica. Para se viver bem é preciso decolonizar o poder, promover uma existência social alternativa ao formato de sociedade vigente.
Para decolonizar o poder, é preciso compreender, basicamente, o sistema que o alimenta na atualidade. De acordo com Grosfoguel (2008), o “Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN” é utilizado pelos Estados Unidos da América para implementar um regime de “colonialidade global”, afetando diretamente os povos não europeus e nações periféricas. Este regime faz com que estes territórios, mesmo com o fim do colonialismo, continuem sob influência dos ideais coloniais.
A ciência das sequelas causadas pelo colonialismo é de suma importância para que não sejam inquestionavelmente reproduzidas. Dentre os diversos locais promotores dos ideais coloniais, a escola se apresenta em destaque. A colonialidade pode ser identificada nas instituições escolares por meio de seus processos educacionais que desvalorizam as diversidades presentes neste território. Subalternizando os conhecimentos e práticas dos educandos que não se enquadram nos modelos pré-estabelecidos pela sociedade, suas identidades, histórias e vivências são suprimidas e remodeladas, inibindo a compreensão e desenvolvimento de suas individualidades (SOUZA, 2016).
Nesta mesma perspectiva, encontra-se a implementação da Educação Física no ensino superior no Brasil como exemplo de supressão da realidade e história do país. Atrelada ao esporte, Betti (2004) esclarece que no período de 1969 a 1974 (período da ditadura militar), a Educação Física era amplamente incentivada, pois o Estado fomentava pessoas mais preocupadas com a Copa do Mundo do que com a situação política do país. De acordo com Cunha e Góes (1985), sua implementação visava a desatenção a fim de desmantelar as ações e movimentos estudantis assim como, também, a construção de um pensamento crítico sobre a realidade. Os líderes políticos enxergavam as regras de um esporte como capazes de esgotar os discentes ao ponto de deslocá-los das pautas políticas.
A fundação do curso de Educação Física na UFRRJ ocorreu neste mesmo período fundamentada por estes mesmos motivos. Refletindo sobre a Lei de Reforma Universitária, n° 5.540/68, Alcântara (2015) ressalta que o governo impôs a criação do curso à revelia da comunidade acadêmica da época, pelos mesmos motivos supracitados. A implementação do curso de Educação Física no ensino superior ficou marcada como uma área não intelectualmente desenvolvida, posta para desmantelar organizações estudantis e favorecer o obscuro cenário político da ditadura militar.
Com este viés no ensino superior, não seria incomum que sua implementação na educação básica possuísse base semelhante. Por muito tempo a Educação Física escolar teve papel distrativo, recreativo e desportivo na educação básica2, gerando pouca ou nenhuma reflexão e muita reprodução de movimentos. Esta situação, entretanto, começou a modificar-se quando a área precisou embasar-se cientificamente para justificar sua atuação e existência.
Em contrapartida, sua fonte de informações, bases esportivas, desportivas e recreativas provinham quase que inteiramente do continente europeu. Promovidas pelos Jogos Olímpicos (cuja fundação é na Grécia) e pela mídia, esses esportes/atividades físicas, mesmo que nem sempre tão acessíveis, são visadas e incentivadas massivamente, bem como são componentes curriculares da formação dos professores de Educação Física no Brasil: seria esta uma inclinação natural ao que circunda a sociedade diariamente ou um ideal colonial enfincado na cultura brasileira?
O curso de licenciatura em educação física da ufrrj
A implementação do curso de Educação Física na instituição gerou muitos debates internos, uma vez que a comunidade universitária não desejava a sua criação. Seu surgimento ocorreu por meio de “imposição” do governo na época (ditadura militar). O governo militarista desejava entreter e enfraquecer os movimentos estudantis e para isto, orientou que o curso fosse criado, tanto para entreter os discentes, quanto para criar atletas para competições com universidades internacionais (ALCANTARA, 2015).
O curso de graduação de Licenciatura Plena em Educação Física foi criado no dia três de março de 1976, através da Deliberação 16/74 pelo Conselho Universitário da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Apesar da criação, o Ministério da Educação somente reconheceu oficialmente sua existência no ano de 1979, por meio do Parecer n° 1.211/79 do Conselho Federal de Educação (CFE) - Decreto n° 1.704/79 - MEC (UFRRJ, 2021).
Sua criação foi marcada pelo esportivismo, ou pelo Competitivismo, como nomeia Ghiraldelli Junior (1998), direcionando desta forma o seu viés. O período do golpe militar foi marcado pelo encerramento das atividades do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e início das Atléticas. O ideal era neutralizar as mobilizações contra o governo e substituí-las pelo fomento ao esporte e a competitividade, através de participação de competições universitárias. No que tange o curso de Educação Física, as matérias práticas eram divididas por sexo e haviam disciplinas como, por exemplo, o salto com vara e o futebol que eram proibidos para as mulheres. Esta segregação era fortalecida também pelas próprias discentes que, por receio de se machucarem, preferiam que algumas das disciplinas práticas de contato físico, como o judô, fossem em turmas distintas das dos homens (ALCANTARA, 2015).
Com o fim da ditadura militar, o curso, segundo Alcantara (2015), passou por uma crise de identidade. Isto se deu pelo fato de haver pouca fundamentação científica para sustentá-lo. O avanço na área da educação gerou uma modificação significativa na estrutura do curso, pois a partir de então, com base científica, iniciou-se um processo de estruturação direcionando-o para esta área, mesmo sendo considerado área da Ciência da Saúde. A autora destaca que, apesar do curso ter se desenvolvido em qualidade e ter crescido em quantidade, a universidade não conseguiu manter a estrutura física, que na época da ditadura era de excelência, gerando assim uma nova problemática interna, dispondo de salas de aula para as disciplinas teóricas, mas sem a estrutura para ministrar efetivamente as aulas práticas.
O curso inicialmente formava profissionais para atuarem na licenciatura e área técnica desportiva e continuou formando discentes para as duas áreas após a divisão do curso em licenciatura e bacharelado, promovida pela Resolução nº 03/87. A partir da Resolução do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CNE/CP) 2 de 19/02/2002, que modificou a carga horária dos cursos de licenciatura, as universidades precisaram realizar uma nova reformulação (UFRRJ, 2021), tendendo, nos anos seguintes, direcionar seu foco na formação para a licenciatura.
Desde a sua criação, o Departamento de Educação Física (DEFD) foi aumentando gradativamente seu quadro de docentes, partindo de cinco professores efetivos no seu primeiro ano, para dezesseis no ano de 2022. No entanto, o curso não é somente atendido por este colegiado uma vez que professores de disciplinas específicas da Educação Física são vinculados ao Departamento de Teoria e Planejamento do Ensino (DTPE). Cabe ressaltar que, apesar de não estarem diretamente vinculados ao DEFD, eles atendem exclusivamente os alunos do curso.
A oferta de vagas também sofreu alterações com o passar do tempo - aumentou, subindo de trinta vagas semestrais, para quarente, cinquenta, alcançando a marca de sessenta vagas em 2010, o que vigora até os dias atuais (UFRRJ, 2021). Outra modificação que merece destaque situa-se na distribuição das vagas que, até meados de 2005, era subdividida por sexo, ou seja, eram divididas igualmente entre homens e mulheres. Isto deixou de ser critério de seleção a partir da entrada de uma gestão mais participativa e democrática na UFRRJ, chamada de Gestão um Novo Tempo, cujo Magnífico Reitor foi o Professor Doutor Ricardo Miranda do Instituto de Agronomia.
As disciplinas do curso e seu foco
Com o passar dos anos, o curso foi se adaptando ao conhecimento científico gerado dentro da área, bem como as diretrizes nacionais para a sua existência. Com isto, algumas disciplinas foram se modificando, se reestruturando ou deixando de existir.
No site da instituição, não tem disponíveis as matrizes curriculares desde a fundação do curso de Educação Física. Entretanto, há disponíveis, as matrizes curriculares criadas desde o ano de 1990. Entre 1990 e 2021 foram sete matrizes curriculares, criadas nos seguintes anos: 1990, 2003, 2006, 2009 (foram duas neste ano), 2010 e 2013 (UFRRJ, 2022). Para efeito de comparação, a fim de vislumbrar as modificações realizadas na matriz curricular do curso nos últimos 21 anos, uma comparação quantitativa foi realizada entre a mais antiga (1990) e a mais recente (2013):
Em relação à carga horária mínima exigida, houve um aumento de 800h (de 2925h em 1990.1 para 3725h em 2013.1). Este aumento da carga horária ocorreu por diferentes fatores, tais como: o aumento na carga horária mínima de disciplinas obrigatórias, de 2523h para 2580h; e o surgimento de demandas outrora inexistentes, como carga horária de orientação acadêmica/profissional (585h), carga horária complementar mínima (200h) e carga horária de atividade acadêmica específica (135h). O único componente a sofrer um decréscimo na carga horária mínima foi a de disciplinas optativas, reduzindo de 390h para 360h.
Disciplinas Optativas (reduziram de 54 para 52 opções presentes na matriz curricular). Das disciplinas que sofreram alguma alteração, pode-se notar que:
Algumas modificações em relação às disciplinas optativas podem ser observadas quando se compara a matriz curricular de 1990.1 e 2013.1. O curso deixou de ofertar sete disciplinas e duas passaram a ser obrigatórias. No entanto, criou três disciplinas e transformou quatro disciplinas obrigatórias em disciplinas optativas. Também trocou o código de duas disciplinas, ou seja, as substituiu por disciplinas que trabalhassem o mesmo conteúdo, porém com uma nova roupagem. Apesar de não retirar da matriz curricular, o DEFD passou a não abrir turmas para seis disciplinas optativas.
Disciplinas Obrigatórias (aumentou de 54 para 58 disciplinas). Das disciplinas que sofreram alguma alteração, pode-se notar que:
Destarte, dez disciplinas são retiradas da obrigatórias são criadas e duas disciplinas que matriz curricular do curso, enquanto três eram optativas passam a ser obrigatórias. Além passam a ser optativas. Quatorze disciplinas disso, quinze disciplinas foram substituídas, ou seja, seu código e as vezes até mesmo o nome foram modificados, o que significa que seu conteúdo foi reestruturado a tal ponto, que apenas algumas atualizações não dariam conta de adequá-las de forma precisa.
Dentre as disciplinas substituídas, destacase a disciplina IE169 - Estágio Supervisionado, que se subdividiu em 4 atividades complementares: AA145 - Estágio Supervisionado I - Educação Infantil; AA146 - Estágio Supervisionado - Ensino Fundamental; AA147 - Estágio Supervisionado - Ensino Médio/EJA; AA148 - Estágio Supervisionado IV;
Os estágios passaram por grandes modificações3. A disciplina, na matriz curricular de 1990.1, quando ainda era Licenciatura Plena em Educação Física (Licenciatura e Bacharelado), possuía 6 créditos (90 horas) e poderia ser cursada em qualquer uma das áreas: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e informal (não escolar). Com o tempo, aumentou-se sua carga horária e realizou-se as demais modificações, uma vez que o curso já se apresenta somente como Licenciatura em Educação Física. Na matriz curricular antiga, o discente costumava cursar esta disciplina quando já estivesse perto de se formar, pois possuía uma carga horária expressiva. Além disso, as exigências do Departamento e da Coordenação do Curso não eram muito fortes, deixando o discente mais à vontade para de fato realizar o estágio ou não, muitas vezes cumprindo somente a parte burocrática, sem realizar a prática.
Ao perceber esta situação, e após o Decreto de 2008 do governo sobre estágio e em seguida a deliberação da Universidade em 2009, o Departamento reestruturou sua grade curricular, modificando, dentre outras coisas, o formato dos estágios. A partir de 2010, os estágios obrigatórios passam a ser divididos em 4 disciplinas: AA145 - Estágio I - Educação Infantil; AA146 - Estágio II - Ensino Fundamental; AA147 - Estágio III - Ensino Médio; e AA148 - Estágio IV - Informal (este último, atualmente é voltado para o aprofundamento de um dos estágios já realizados, sendo seu maior intuito o aprofundamento no ensino médio). No decorrer da organização das disciplinas, fundou-se a Comissão de Estágio, com dois professores do Departamento de Educação Física e Desportos responsáveis.
Atualmente o Curso passa por diversas mudanças curriculares, oferecendo a Licenciatura e também o Bacharelado. Por óbvio, é importante ressaltar que as mudanças curriculares ocorridas a partir de 1990, procuram adaptar o curso à realidade institucional em articulação com os demais cursos ofertados pela rede federal. Ressaltamos que foram grande parte das alterações ainda não revela a formação de um curso que tenha como eixo central a realidade educacional do seu entorno, trazendo para os bancos das universidades os conhecimentos específicos que descortinam o caráter crítico da Educação Física escolar. Pretendemos, em momento futuro tecer novas considerações sobre a matriz construída no período pós-pandêmico e compará-la com os avanços e retrocessos que se encontram já cristalizados na história do Curso.
A matriz curricular de 2013.1 em análise
Como já exposto, o curso surgiu com um viés esportivista e, neste sentido, constata-se o foco nas disciplinas que tratam de modalidades esportivas, envoltas de avaliações práticas e alcance de certo grau de performance.
Com o passar do tempo, diferentes conteúdos, demandas e regulamentações foram promovidas em prol de melhor organizar a fundamentação do curso no Brasil. Essas discussões em torno da dimensão dos conhecimentos que a Educação Física abarca, bem como mudanças necessárias a serem feitas, geraram alterações significativas em sua estrutura.
Além do curso crescer em quantidade de matérias e consequentemente em carga horária, sua matriz passou a ser mais direcionada para a área da licenciatura. Logo, as disciplinas que deixaram de existir, por exemplo, são disciplinas voltadas majoritariamente para a biodinâmica, ou seja, enquadram-se mais na Educação Física - Bacharelado. Isto ocorreu tanto com disciplinas obrigatórias quanto com disciplinas optativas. Essas modificações foram realizadas na direção de normas e padrões estabelecidos entre os demais cursos em âmbito nacional.
Tendo como base de análise a matriz curricular de 2013.1, verifica-se que o curso de Licenciatura em Educação Física atualmente possui uma carga horária (mínima) total de 3725 horas. Essas horas são subdivididas da seguinte maneira (UFRRJ, 2022):
No gráfico acima, constam as cargas horárias mais carga horária mínima (3860) do que a real do curso de Educação Física da UFRRJ segundo a carga horária total mínima do curso (3725). Por divisão disposta no site da instituição. No entanisto, segue abaixo uma tabela com a possível to, ao somar as horas de cada subitem, obtém-se subdivisão da carga horária mínima do curso.
Subdivisão das disciplinas | Carga horária | Número de disciplinas | Discrição das disciplinas |
---|---|---|---|
Disciplinas obrigatórias | 2445 | 47 | Matérias obrigatórias |
Orientação acadêmica/profissional | 600 | 9 | Seminário de educação, Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão (NEPE) e Estágios |
Disciplinas optativas | 360 | 6 ou mais (depende da carga horária de cada disciplina escolhida) |
Matérias optativas |
Horas complementares | 200 | Não são disciplinas e sua quantidade irá variar conforme a carga horária de cada atividade realizada |
Atividades extracurriculares - cursos livres, cursos de extensão, monitorias etc. |
Atividade Acadêmica Específica | 120 | 2 | Monografia 1 e 2 |
Fonte: Produção do autor baseado nos dados da matriz curricular de 2013.1 disponível no site da UFRRJ.
O curso possui cinquenta e oito componentes curriculares obrigatórios (quarenta e sete disciplinas obrigatórias, nove atividades de orientação acadêmica/profissional e duas atividades acadêmicas específicas) e cinquenta e duas opções de disciplinas optativas. No entanto, dentre as disciplinas optativas, apenas vinte e cinco disciplinas são específicas do curso de Educação Física. Dentre essas disciplinas optativas específicas, como já relatado, seis não abrem turma atualmente. Restando assim, dezenove opções de disciplinas específicas.
Destarte, verifica-se algumas falhas nas ementas e programas analíticos que o DEFD disponibiliza. Nelas, não constam todas as disciplinas optativas que o curso dispõe, além disto, há erros de digitação, de código, repetição de ementa, ementa de disciplinas optativas que não constam na matriz de 2013.1 e muitas disciplinas com referencial desatualizado. Ainda há duas disciplinas, que mencionam coisas que já não fazem parte do aprendizado atual como, por exemplo, “Introdução à Computação” que menciona ensinar a utilizar o disquete e “Bioquímica para Alimentação e Nutrição” que enfatiza seu conteúdo na formação do economista doméstico, curso extinto da instituição em 2014 (UFRRJ, 2022).
As disciplinas de modalidades esportivas obrigatórias possuem viés tanto desportivo quanto pedagógico. Estas disciplinas, trabalham em seus objetivos, a aplicabilidade de seu conhecimento dentro dos espaços formais (escolas) e informais (esporte, treinamento etc.). Apesar de nem todas as disciplinas de modalidades esportivas obrigatórias possuírem uma segunda versão optativa (aquelas que possuem, são majoritariamente voltadas para os ambientes informais). Contudo, faz-se necessário salientar que a descrição da ementa de uma disciplina não reverbera a sua prática, posto que há uma grande distinção entre currículo prescrito e currículo vivido.
As disciplinas criadas no decorrer das mudanças de matrizes curriculares, são todas de natureza pedagógica. Com a inclusão das disciplinas “LIBRAS” e “Educação e Relações Etnicorraciais na Escola”, a matriz curricular de 2013 traz discussões e conhecimentos comumente negligenciados, voltados para populações marginalizadas, como os deficientes, negros e indígenas. Quanto às disciplinas que deixaram de ser ofertadas, estas deixaram de existir por seu foco na biodinâmica ou foram compiladas, como no caso da “Ginástica Infantil”, que deixou de existir e seu conteúdo foi inserido na disciplina “Ginástica Artística”.
Para além das disciplinas extinguidas da matriz curricular, existem seis disciplinas que não abrem turma. Apesar de isto acontecer devido ao viés da maioria delas ser a biodinâmica, dentre elas, há uma disciplina que poderia trazer grandes benefícios à formação docente no viés que intentamos ressaltar: a Capoeira. Com uma ementa atualizada, seria capaz de trabalhar situações e temáticas como: o histórico de seu surgimento no Brasil, envolvendo o processo de escravização, dando conta daquilo que está previsto na Lei Federal nº 10.639/2003. Os movimentos da capoeira tanto podem ser trabalhados como luta e como dança, fomentando o aprendizado de cantigas, a utilização de instrumentos como o berimbau, etc. Embora a ementa da disciplina Capoeira esteja desatualizada, é contraditório ver que um curso de licenciatura em Educação Física não a disponibiliza, mas abre turmas para as disciplinas “Musculação I e II”, “Ginástica de Academia”, “Treinamento Personalizado I e II”, dentre outras.
Nas ementas analisadas, não constam esportes ou atividades físicas radicais ou de aventura. Com a modificação do padrão de comportamento dos jovens e adolescentes ao redor do mundo, até mesmo os Jogos Olímpicos precisaram repensar as modalidades desportivas que o compõem. Nos Jogos Olímpicos de 2020 em Tóquio, por exemplo, foram acrescentados o Surfe, Caratê, Escalada esportiva, Skate e Baisebol/softbol (IOC, 2022).
No documento disponibilizado pelo DEFD, pode-se analisar como a temática corpo é evidenciada no curso. Embora sua carga horária total tenha sofrido aumento, algumas temáticas continuam pouco discutidas e incluídas no período formativo dos futuros docentes. Assim, para estabelecer uma possível conexão com diferentes aspectos do diálogo sobre o corpo, determinadas palavras foram procuradas nas ementas e programas analíticos (documento em PDF de 177 páginas). Os termos encontrados e a quantidade de vezes que eles aparecem na busca são apresentadas a seguir: “corpo” - 95 utilizações; “social” - 55; “cultura” - 47; “gênero” - 15; “diversidade” - 6; “negro” - 3; “inclusão” - 5; “indígena” - 3; “deficiência” - 11; “deficiente” - 2; “sexualidade” - 3; e “bullying” - 1.
O quantitativo exposto acima evidencia que algumas temáticas ainda são negligenciadas ou trabalhadas de modo secundário durante o período formativo do discente. Considerando que as palavras podem estar repetidas na ementa de uma mesma disciplina ou podem estar no referencial teórico, este panorama se torna ainda mais preocupante.
A mudança de perfil das matrizes foi essencial para a readequação do curso às novas demandas e necessidades da sociedade. Entretanto, quando se trata do corpo, a estrutura organizacional do curso ainda possui uma quantidade expressiva de disciplinas focadas no rendimento físico, no trabalho de aptidões físicas dos indivíduos. Apesar da matriz curricular estar bem diferente das matrizes de décadas atrás, as questões sociais, culturais, econômicas, de inclusão etc. poderiam ser divididas de forma mais igualitária entre todas as disciplinas, que poderiam, ao menos, fazer menções ou trazer acontecimentos que envolvessem seu conteúdo para essas questões, como as disciplinas de anatomia ou fisiologia falarem sobre a participação das mulheres na ciência, dentre outras coisas. Disciplinas práticas (modalidades específicas) que poderiam inserir destaques a participação da mulher, negro, deficientes e indígenas nos esportes etc.
Quando apenas algumas disciplinas ficam encarregadas de trabalhar temas transversais, tabus ou populações marginalizadas, estas sobrecarregam-se. São tantos assuntos e áreas tratados de forma mais rápida e superficial que poderiam causar um grande impacto social e reflexivo na vida, visão e formação dos discentes. O exemplo mais claro da matriz curricular atual reside nas temáticas da população negra e indígena, que são somente citadas em uma disciplina (Educação e Relações Etnicorraciais na Escola).
Temáticas como gênero, sexualidade, cor/ raça (negro, indígena), IST’s, e deficiente também são secundarizadas. Estas temáticas geralmente ficam a cargo de apenas uma ou outra disciplina. Defendemos que conteúdos relacionados ao público deficiente, por exemplo, poderiam ser parcialmente tratados nas disciplinas esportivas, que ao menos poderiam incluir em sua grade, a versão da sua modalidade adaptada a realidade dos deficientes (muitas delas já possuem, sendo até mesmo esportes paraolímpicos, como o vôlei sentado, tênis em cadeira de rodas etc.). Consequência disto é a sobrecarrega de disciplinas específicas sobre estas temáticas, principalmente as que possuem apenas dois créditos, como “Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS” e “História da Educação Física”.
Estas temáticas fazem parte do cotidiano e necessitam de mais atenção em sua tratativa, pois não somente a aptidão física influencia diretamente a percepção de si mesmo, como também os aspectos socioeconômicos e culturais, uma vez que o acesso e o conhecimento de outras culturas e espaços colaboram para uma melhor percepção de si e dos outros (SMOUTER, COUTINHO e MASCARENHAS, 2019).
De acordo com Silva et al (2022) o sexo influencia diretamente na percepção de si mesmo. Em seu estudo, verificou que a insatisfação com o próprio corpo possui níveis diferentes quando se compara os sexos feminino e masculino. Neste bojo, Altmann et al (2018) ao pesquisarem sobre a prática de atividade física por meninos e meninas, verificaram que os meninos são mais ativos que as meninas. Ao tratarem esta disparidade mais profundamente, notaram que as meninas são menos incentivadas a praticar atividade física, tanto pelos seus familiares quanto pelos seus pares. Por isso, as meninas acabam por valorizar menos a prática de atividade física, pois se percebem menos competentes. Estes fatores influenciam suas escolhas de atividades físicas, dando preferência a atividades menos complexas.
Além da desigualdade já incentivada socialmente entre meninos e meninas, Da Silva Júnior e Caetano (2017) discutem, por meio de narrativas docentes, como o ambiente escolar também propaga esta desigualdade. Para os autores, o funcionamento e estrutura da escola não ocorre de forma igualitária entre os sexos. Por exemplo, com a quadra no intervalo dominada pelos meninos, as meninas ficam a margem fazendo o que o espaço lhes permite (caso insistam em praticar alguma atividade) e a problemática ainda é maior para o retorno às salas de aula. Como os banheiros femininos e masculinos costumam ter o mesmo tamanho, possuem consequentemente o mesmo número de cabines, levando as meninas a uma desvantagem estrutural e perca de tempo de lazer.
Adentrando ao campo dos materiais didáticos, Machado, Abílio e Lacerda (2019) realizaram uma análise nos livros didáticos de Biologia e de Ciências publicados no período de 2002 a 2012 em busca de informações sobre corpo e ISTs, verificaram tanto desinformação quanto informações incompletas. As consequências da falta de informações suficientes e corretas sobre o corpo atingem a ambos, meninos e meninas, mas um agravo maior ao público feminino, que possui tantos assuntos tabus na adolescência, tais como menstruação, sexo, gravidez, crescimento dos seios etc.
Quanto a análises de livros didáticos na área da Educação Física, González-Palomares, Altmann e Rey-Cao (2015) notaram que no Brasil há uma reprodução de estereótipos. Ao analisarem 929 fotografias em livros didáticos de Educação Física destinados a estudantes do ensino fundamental e médio, publicados entre os anos 2006 e 2012, as autoras verificaram uma associação distinta entre homens e mulheres, onde homens eram vinculados a prática de esportes e mulheres a área do fitness e condicionamento físico.
A escola não pode ser reprodutora de desigualdade e desinformação. Para isto, sua base e seus professores precisam estar preparados para lidar com as temáticas necessárias à formação de cidadãos aptos a viver em sociedade, conhecedores de seus direitos e deveres, mas também com certa base de conhecimento sobre si mesmos: sobre o seu corpo, suas necessidades básicas, suas características específicas. Para isto, os professores precisam ter uma base sólida em sua formação que os instiguem a estarem atentos as necessidades dos discentes e que os permita intervir de forma assertiva.
A escola, segundo Bourdieu e Passeron (1975), sempre esteve pautada nos interesses da classe dominante, disseminando práticas pedagógicas que retroalimentam o sistema capitalista vigente, fortalecendo essa mesma elite. Com um sistema educacional voltado para a promoção e manutenção dos padrões e comportamentos da classe social dominante, não seria incomum que a Educação Física escolar também fosse utilizada neste processo.
Uma das estratégias de retroalimentação deste sistema é a massiva utilização dos esportes sem a efetuação das modificações necessárias à sua utilização. Não é que os discentes não estejam aprendendo a se movimentar ou efetuar uma atividade física de fato, mas o aprendizado da importância da prática de atividade física rotineiramente, quando perpassa somente o conteúdo esporte, sem quaisquer adaptações à realidade dos estudantes, torna a sua prática limitante.
Outra questão é que através dos esportes, a Educação Física escolar emprega padrões e comportamentos pré-definidos. Dentre os conteúdos abarcados, os esportes, por terem regras sólidas e bem estabelecidas, além de serem estimulados através da exposição midiática, aproximam e facilitam os discentes dos conhecimentos necessários a prática da modalidade. Quando os esportes são o conteúdo das aulas, os discentes já possuem ideia, ao menos visual, de como seriam determinados movimentos, além de entender basicamente os seus objetivos e dinâmica. Logo, o planejamento das aulas se torna menos extenuante e mais prático, uma vez que menos explicação do conteúdo será necessária e também devido à grande quantidade de informações disponibilizadas em livros e na internet.
Todavia, há uma diferença entre esporte na escola (o esporte convencional, com suas regras etc. sendo aplicado em sua integralidade) e esporte da escola (o esporte que pertence a escola, que ela transmite, sob seus ideais e propostas). Caso o/a professor(a) utilize o esporte na escola, suas regras acabam por limitar adaptações, modificações e criatividade, assim como tendem a não trabalhar aspectos locais, já que os esportes tradicionais são importados de outros países, outras culturas.
O estimulo à promoção de atividade física precisa ser focado no movimento, na prática física, seja ela qual for. A Educação Física escolar precisa focar no ensino de se lidar com o próprio corpo, de entender suas necessidades básicas na sua comunidade e fora dela. Quando a fase de planejamento não visa as características da população que se pretende intervir, bem como o meio em que vive, se negligencia não somente os conhecimentos, costumes e necessidades, mas sua identidade cultural. Este planejamento, portanto, está mais propenso ao apagamento das nuances locais.
Para que a dinâmica das aulas de Educação Física se modifique, faz-se necessária uma formação decolonizada, descentralizada do poder eurocêntrico. Faz-se necessário transpor os motivos pelos quais os cursos foram criados, ou quais atividades físicas são mais televisionadas, pois diferentes temáticas e contextos precisam estar presentes na formação docente, para que os futuros professores estejam aptos a trabalhar o conteúdo de sua disciplina de uma forma mais direcionada a realidade plural dos seus discentes.
Para melhor vislumbrar como a realidade local é trabalhada na formação docente do curso de Educação Física da UFRRJ, buscou-se, nas ementas disponibilizadas pelo DEFD, as palavras “local”, “cultura”’ “regional”, “costume”, “hábito” e “comportamento”.
As palavras “regional”, “costume” e “hábito” não aparecem em nenhum momento nas ementas. A palavra “local” aparece duas vezes na disciplina “Dança III”, onde elenca a importância de considerar os aspectos socioculturais do local para a criação da coreografia, bem como a situação econômica da escola e dos discentes na criação do cenário e figurino.
A palavra “comportamento” aparece cinco vezes e em cinco disciplinas distintas. Na disciplina de “Aprendizagem Motora”, a palavra aparece relacionada à parte motora (comportamento motor); em “Fisiologia do Exercício”, aparece relacionada à prática ou ausência de exercício, a fim de entender o comportamento do organismo; na disciplina de “Basquetebol I”, aparece relacionada às formas de avaliação; Em “Basquetebol II”, trata do comportamento do técnico; e por fim, em “Judô II”, a palavra aparece na bibliografia da disciplina, que tematiza o comportamento do consumidor de judô.
A palavra “cultura” foi encontrada vinte e seis vezes, em quatorze disciplinas diferentes. Na disciplina “Antropologia Social”, com seis registros, três estão na bibliografia (referentes a explicação do que seria cultura) e três na descrição do seu conteúdo (refere-se a particularidades da cultura brasileira, abordagens e sobre a distinção cultura x natureza); Em “Sociologia da Educação”, a palavra aparece uma vez, em referência a história da educação; enquanto na disciplina “NEPE I”, aparece somente no seu nome. Em “Educação Física para a Saúde”, aparece na bibliografia, onde o título relaciona cultura a saúde e doenças; Aparece duas vezes na bibliografia da disciplina “Educação e Relações Étnicorraciais na Escola”, onde trabalha a história e cultura Afro-brasileira e Africana; e em “LIBRAS” aparece três vezes, todas relacionadas a cultura surda; Já em “Dança II”, aparece uma vez, onde relaciona dança à cultura.
A palavra “cultura” ainda aparece uma vez na bibliografia de “Metodologia da Consciência Corporal” e “Educação Física Escolar II”, onde trabalha a cultura corporal; Também trabalham a palavra sob a perspectiva da cultura corporal do movimento, as disciplinas “Dança I” (uma aparição) e “Introdução à Educação Física” (três aparições). Em “Introdução à Biologia”, cultura está relacionada ao conglomerado de células; Também aparece uma vez na bibliografia de “Recreação”, tratando sobre lazer e cultura popular; e por fim, aparece três vezes em “Introdução à Sociologia”, retratando o indivíduo na estrutura social e nas relações com a sociedade, a cultura e a dinâmica social.
Apesar do número expressivo de aparições de algumas das palavras pesquisadas nas ementas do DEFD, ao aprofundar a leitura das ementas das disciplinas onde foram encontradas, vê-se que sua relação com os conhecimentos locais não demonstra a mesma expressividade. Das quatorze disciplinas encontradas, seis (cinco - cultura e uma - comportamento) só apareceram porque estavam presentes na bibliografia. Das trinta e duas disciplinas onde alguma das palavras foi encontrada, apenas nove relacionam-se, mesmo que de forma abrangente, à importância dos conhecimentos de um determinado grupo. Neste bojo, apenas três disciplinas (“Dança II”, “Dança III” e “Recreação”) parecem dar foco mais específico à cultura da comunidade escolar em que se pretende intervir.
Os dados anteriores constatam quão importante é rever a formação do futuro docente em Educação Física da UFRRJ. Formar indivíduos que não são estimulados a atentar-se para fatores primários, como os conhecimentos e características do local e população que se pretende intervir, corrobora indubitavelmente para incorporação do externo, para a importação de valores, costumes e hábitos. A formação dos discentes de Educação Física da UFRRJ precisa abranger mais aspectos relacionados a cidade em que se situa. Um exemplo claro disto, é o calor de Seropédica, cidade onde a universidade se encontra, e seu impacto nas aulas em escolas com quadras sem cobertura.
Comumente a o professor de Educação Física precisa ter um plano de aula “reserva”, para dias de chuva, para que não seja pego desprevenido. Mas será que existe a prerrogativa de se preparar planos de aula reservas para dias muito quentes? Esta é uma característica do município de Seropédica e teoricamente deveria estar prevista nas discussões acadêmicas da Instituição. Em 9 de setembro de 1997, segundo o site Seropédica Online (2022), foi registrada a temperatura mais alta que o município já teve (42,6°C), desde que as análises se iniciaram, em 1963. Além das altas temperaturas, Seropédica não é próxima do mar e dias com temperaturas próximas a maior temperatura já registrada ou bem abafados não são incomuns no município. Se levar em consideração que os horários de maior radiação solar se situam entre as 10 horas e 16 horas, horários estes onde o risco de surgimento de queimaduras e manchas na pele aumentam exponencialmente (PURIM e LEITE, 2010), o dilema da prática de atividade física na cidade se intensifica, já que isto compreende grande parte dos horários onde ocorrem aulas de Educação Física.
Para além das questões climáticas, quanto mais ativa fisicamente é uma população, maior a tendência de ela requerer espaços voltados para a promoção de saúde e lazer, ou ao menos, melhoria dos mesmos. O município de Seropédica não detém muitos espaços de lazer, sendo o espaço mais utilizado, o território da UFRRJ, que infelizmente não está próximo a toda a população do município.
Estas e outras questões fulcrais à atuação do professor de Educação Física no município em que a instituição está inserida, deveria fazer parte da formação docente, não somente porque a universidade situa-se em Seropédica, mas como estímulo e incentivo a considerar fatores não só estruturais, mas climáticos e culturais no momento do planejamento do ensino.
A Educação Física utiliza o movimento humano para ensinar e é através do ensino do movimento, e pelo movimento, que ela propicia aprendizado. Considerando que a sociedade imprime juízo de valor aos comportamentos e movimentos dos indivíduos, indicando determinadas classificações como de “rico ou pobre”, “homem ou mulher”, “educado ou mal-educado”, ela tem o papel de decolonizar a realidade escolar, de indagar sua existência, origem e o porquê de sua permanência. A Educação Física deve primar pelas “culturas corporais” de movimento, por suas diferentes formas, origens, possibilidades.
O olhar para o campo do movimento precisa ser amplo e descentralizado. Se o objetivo da Educação Física é promover saúde, educar indivíduos a terem uma noção básica sobre o funcionamento do seu corpo tanto biológico, quanto psicológico e social, seu conteúdo precisa ser desprendido de padrões eurocêntricos. Porquanto somente através da “descriminalização” de conteúdos não eurocêntricos na escola, que o ensino passará a ser de fato por todos e para todos.
Aplicar conteúdos diversificados, de origens distintas, demanda não somente conhecimento, mas comprometimento dos agentes educacionais. Os pais precisam entender a necessidade de se trabalhar determinados assuntos, os demais professores, coordenadores pedagógicos e a direção precisam ter uma imagem clara e bem definida da importância dessas temáticas no desenvolvimento dos seus educandos, pois somente uma disciplina não fará o trabalho capaz de realmente gerar inclusão, transformação e aceitação. A Educação Física foi vista por muitos anos como uma disciplina escolar prática, sem conteúdo, de cunho recreativo. Esta imagem precisa primeiro ser modificada entre os profissionais da área, para depois ocorrer entre os demais profissionais, alcançando então os pais e finalmente as crianças, adolescentes e jovens, o foco da formação docente.
A sociedade é complexa, diversificada e plural, isto não pode ser abnegado na escola ou em suas disciplinas, posto que sua função é preparar seus alunos para a vida em sociedade.
Considerações finais
Para decolonizar a Educação Física é preciso mais do que levantar pautas socioculturais na escola, é preciso modificar a base que a sustenta, sua estrutura. Para isto, a formação do professor precisa ser ampla, abarcar diferentes temas e conceitos, aproximar o estudante da população, das necessidades básicas da comunidade em que está inserido. Não há como decolonizar sem criticar, questionar, conhecer e descentralizar o conhecimento tradicionalmente incorporado.
O curso de Licenciatura em Educação Física da UFRRJ, apesar de situado em um município de características rurais e ser em uma universidade rural, não insere essas questões em sua formação. Este deveria ser um ponto muito explorado, já que isto é uma das principais diferenças que o curso possui em relação a outras universidades no Brasil. Explorar esportes radicais e de aventura, corridas orientadas, ultramaratonas, benefícios e utilização dos recursos naturais ao estimulo e prática de atividade física, além de ser um diferencial entre os demais cursos do país, poderia trazer profundas reflexões e conhecimentos que auxiliariam em intervenções interdisciplinares tanto na escola como fora dela.
Quando se analisa as ementas do curso de Educação Física da UFRRJ, nota-se ainda uma forte presença da licenciatura plena (bacharelado e licenciatura). O currículo, que continua sendo de licenciatura, atenuou com a reforma o caráter esportivista herdado da função do curso no período da ditadura e hoje assume um viés da saúde biológica, que atende a interesses do corpo docente e a pressão midiática pela formação de profissionais para o campo do fitness.
Com uma quantidade ainda expressiva de disciplinas voltadas para o ambiente não escolar (bacharelado), o curso acaba por destinar menos espaço a questões críticas sobre o corpo ou mais recorrentes na Educação Física escolar, como a presença e participação de deficientes nas aulas, discussões de gênero, racismo, questões psicológicas e mentais, assim como a percepção e ação dos professores perante estes temas. Quando se trata de decolonização, os assuntos abordados no curso aportam no debate descentralizado da realidade local.
Como uma Universidade Federal Rural, situada na Baixada Fluminense, suas pautas poderiam ser mais voltadas às características do seu público mais próximo. Não basta parar de importar conhecimento, também é preciso parar de importar os tipos de discentes e locais de trabalho. É preciso, além de decolonizar o conhecimento, decolonizar o ideal de discente e local que os docentes trabalharão, aproximando assim a teoria com a realidade.
As características do local onde a escola está situada influenciam diretamente no seu planejamento de ensino. Apesar de ter diretrizes, de ter uma base para se direcionar, a educação não se limita a um passo a passo, pois tem liberdade para adaptar-se à comunidade, às suas características, a fim de propagar e incentivar a cultura e história local. Os diferentes níveis de urbanização geram diferentes relações de poder, diferentes entendimentos de si e do outro, já que uma escola de zona rural, por exemplo, pode ter indivíduos que supervalorizam o urbano e menosprezam o rural. Rejeitam sem reflexão e debate sua identidade cultural, suas características, seu conhecimento e vivências.
As escolas são diferentes, as comunidades escolares são diferentes, pois as pessoas são diferentes. O papel do professor é intermediar o conhecimento, guiar os discentes para o aprimoramento e descoberta das informações corretas, cuja fonte seja segura. Este deve ajudá -los a criticar, instigar a curiosidade, dialogar com a informação. Por que isto foi escrito? Para quem foi escrito? Quando foi escrito? Isto ainda é a informação mais recente que se tem sobre este tópico? Como isto se aplica a minha realidade? Será que eu poderia adaptar isto? É preciso questionar, é preciso ensinar que aprender não é apenas deter conhecimento, mas saber usá-lo e aplicá-lo no dia-a-dia. Para isto, é necessário entender os porquês e para que e quem estamos ensinando.
Na realização desta pesquisa, muitos foram os entraves enfrentados para dar prosseguimento ao que se pretendia analisar. Em primeiro plano, encontramos as adversidades provindas da pandemia causada pelo COVID-19, que nos forçou a modificar a metodologia de pesquisa algumas vezes. No entanto, os maiores entraves enfrentados foram de cunho burocrático de setores da instituição. O DEFD não possui registros históricos do curso, bem como não possui arquivadas as matrizes curriculares anteriores ou suas ementas. Quando questionados, funcionários do DEFD e coordenador do curso disseram que estes registros ficam a cargo da Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD). No entanto, ao entrar em contato com eles, tanto por e-mail quanto presencialmente, nenhum documento foi disponibilizado.
No site da universidade, não encontramos informações suficientes sobre o curso de Educação Física. Foi demasiadamente difícil levantar dados suficientes sobre o curso, destinando dias de pesquisa para que encontrasse algo pertinente sobre sua matriz curricular e histórico. Além do mais, apesar do DEFD disponibilizar a matriz curricular do curso como sendo do ano de 2013, há indícios de que ela já seja mais atual, visto que existe referências posteriores a esta data, o que leva a crer que estas são as ementas de uma matriz posterior.
O acesso às informações, assim como os documentos arquivados na instituição, precisa ser mais claro e eficiente. Faz-se necessário disponibilizar os documentos que fazem parte da história da instituição e seus cursos de maneira mais acessível, posto que são informações importantes e valiosas para pesquisas e levantamento do desenvolvimento e aprimoramento da universidade frente as mudanças na educação e desenvolvimento do país.
A presente pesquisa desvela uma situação preocupante na formação acadêmica do professor de Educação Física da UFRRJ, que necessita abarcar com maior ênfase a decolonialidade do seu saber. Isto gerou inquietações sobre possíveis pesquisas que abordem como o corpo é tratado dentro do ambiente escolar.
Refletir sobre uma possível decolonização da Educação Física escolar nos abre um campo vasto de debates e desafios. Que estes breves apontamentos possam incentivar, impulsionando não só a produção de conhecimento, mas a geração de transformação social, formando indivíduos críticos e conscientes da importância do seu arcabouço cultural parte de uma Educação Física comprometida com a realidade.