1 INTRODUÇÃO
Houve um tempo em que a escola especial era entendida como substituta da escola comum no atendimento a alunos com deficiência. Com o advento da inclusão escolar, a Educação Especial passa a atuar de maneira articulada com o ensino comum, integrado à proposta pedagógica da escola regular (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008). Um dos objetivos do atendimento educacional especializado é promover ações para melhor atender às especificidades dos alunos com deficiência, complementando a educação escolar e apoiando o desenvolvimento dos estudantes (Batista, 2006). Esse é também um dos objetivos da escola onde aconteceu esta pesquisa. O estudo teve origem em um programa de formação continuada para professores de uma escola de Educação Básica - Educação Infantil/Modalidade Especial em Curitiba, Paraná, desenvolvido pelo grupo de pesquisa Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada, do Programa Stricto Sensu em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Esta escola é conveniada à Secretaria de Estado da Educação (SEED) visando a oferta da Educação Básica, na modalidade de Educação Especial, para alunos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento.
A partir dos encontros com os discentes, surgiu a seguinte questão: Quais as concepções epistemológicas sobre aprendizagem que perpassam os discursos dos professores da escola de Educação Especial? A definição para concepções epistemológicas aproxima-se do sentido proposto por Tardif (2013), em que expressam modelos do pensamento educacional sobre o entendimento que se tem da aprendizagem, que, por sua vez, embasam efetivamente a prática dos professores. Esse conceito atribui um estatuto epistemológico para as representações que os professores têm a respeito da aprendizagem. Essas representações atuam como conhecimentos prévios que regulam as ações e os resultados no espaço de trabalho cotidiano. Nesse sentido, a Teoria das Representações Sociais, como propôs Moscovici (1978), atua como um recurso teórico e metodológico que auxilia a análise deste trabalho.
De acordo com o psicólogo social francês Moscovici (1978, p. 26), "[...] a representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos". Para ele, as representações sociais são elaboradas a partir de dois processos, objetivação e ancoragem; dois conceitos fundamentais para a compreensão de sua teoria. O processo de objetivação, segundo o autor, une aquilo que não é familiar à realidade da pessoa. Para tanto, passa por descobrir a qualidade icônica de uma ideia ou reproduzir um conceito em uma imagem. A objetivação é uma atividade representativa que constrói a forma de um conhecimento (Alves-Mazzotti, 2008). A ancoragem é o processo pelo qual o sujeito classifica e nomeia alguma coisa; assim, escolhe um dos paradigmas estocados em sua memória e estabelece uma relação positiva ou negativa com ele (Moscovici, 2003).
Jodelet (2001) explica que as representações sociais formam um sistema, com versões da realidade encarnadas por imagens ou condensadas por palavras, estando carregadas de significações. Elas têm como função interpretar aspectos da realidade diária, permitindo ao sujeito tomar decisões, partir para a ação e, eventualmente, posicionar-se frente a alguma situação de forma defensiva. As representações sociais ultrapassam o âmbito do individual, sendo, ao mesmo tempo, uma representação de alguém e de alguma coisa. É sempre uma relação entre o sujeito e o objeto (S↔O) (Moscovici, 1978). Assim, segundo a teoria das representações sociais, o sistema de interpretação da realidade pelos professores vai determinar seus comportamentos e suas práticas na escola. E é por meio dos processos de objetivação e ancoragem que se pretende ter acesso a esse sistema de pré-codificação da realidade (Abric, 2000), composto por antecipações e expectativas de ações pelos professores.
No decorrer da construção das teorias sobre o conhecimento humano, é possível distinguir três concepções epistemológicas envolvidas no entendimento do processo de aprendizagem: o inatismo, o empirismo e o interacionismo. Cada qual influenciada por um pensamento filosófico e originária de teorias sobre a aprendizagem. Antes, porém, a fim de elucidar os significados das palavras "conhecimento" e "aprendizagem" tomados neste texto, entende-se por conhecimento o ato ou efeito de conhecer, do latim cognoscere. O conhecimento é o resultado da aprendizagem, consiste no que se aprende. Segundo Pozo (2002), é o que muda como consequência da aprendizagem a partir das características anteriores do sujeito - por exemplo, o conhecimento sobre os três estados físicos da água na natureza ou o conhecimento que advém das vivências perceptuais, como as emoções associadas ao ouvir uma música. Por aprendizagem, ainda segundo Pozo (2002), entende-se como se produzem mudanças a partir das características anteriores do sujeito, mediante mecanismos cognitivos - a aprendizagem é a atividade mental da pessoa enquanto está em ação, como a atenção, o raciocínio ou a percepção.
O conhecimento foi inicialmente discutido pelos filósofos na busca por explicações verdadeiras para as coisas, e essas teorias filosóficas repercutiram na evolução de teorias sobre a aprendizagem, chegando a três concepções epistemológicas de aprendizagem que permeiam os discursos dos professores. A primeira concepção, inatista, de acordo com Porto (2006), tem origem no idealismo filosófico, fundado por Platão (1997) e, posteriormente, influenciando Santo Agostinho (1996), filósofo e teólogo medieval. O idealismo defende que o conhecimento não está assentado na experiência sensível, que é transitória e, por isso, não oferece certeza sobre o conhecimento. Para Platão (1997), o acesso à realidade ocorre por ideias e não pelo caráter sensível das coisas. Essas explicações embasam a concepção inatista da aprendizagem, que sustenta que os indivíduos naturalmente carregam aptidões, habilidades, conhecimentos e qualidades em sua constituição biológica e hereditária. A exemplo dessa concepção, a fala de um professor participante da pesquisa, quando este diz que aprendeu por si mesmo os conhecimentos para sua atuação, ou que já nasceu professor, a qual parte de uma concepção inatista para justificar sua prática ou a opção de carreira.
Becker (1993) aponta que o suporte dessa concepção tem como fundamentação epistemológica a ideia do apriorismo - que o sujeito já traz consigo as condições de aprendizagem e conhecimento, independentemente da sua experiência. Essa relação epistemológica pode ser representada por S ? O, em que "S" é o sujeito e "O", o objeto de conhecimento. A seta partindo do sujeito em direção ao objeto representa a ação para chegar ao conhecimento, que é exclusividade do sujeito, da qual o meio não participa. Em consequência da concepção inatista, um professor pode atribuir o sucesso ou fracasso escolar à condição biológica ou hereditária de um aluno, podendo argumentar que ele não aprende devido ao seu laudo médico, por ter nascido com alguma deficiência ou transtorno. Argumentos desse tipo causam a impossibilidade de o aluno desenvolver-se devido à postura passiva do professor que se vê de mãos atadas diante da condição prévia para a aprendizagem da criança.
A concepção contrária ao inatismo é o empirismo. Segundo Porto (2006), o empirismo propõe uma regra para diferenciar a concepção imaginária da concepção real do mundo, o teste da experiência sensível. Para os empiristas, todo o conhecimento procede da experiência, pelas informações captadas pelos sentidos no meio exterior. Entre os filósofos modernos, Locke (1999) afirma que não há ideias inatas, visto que não existe um consenso universal sobre elas, e tampouco estão presentes nas crianças. Pela concepção empirista, a mente é definida como uma tábula rasa, um espaço vazio a ser preenchido que, segundo Becker (1993), anula a habilidade criativa dos indivíduos, entendidos como meros receptores do conhecimento. Como exemplo dessa concepção: as falas dos professores participantes da pesquisa quando afirmam aprender com a vida o que sabem, ou aprender porque tiveram um professor que explicava bem os conceitos para a sala, ou mesmo aprender observando. Essas falas traduzem a concepção empirista para se chegar ao conhecimento, aplicadas ao modo de compreensão da sua própria aprendizagem. Pode-se representar essa relação por: S ? O, em que a seta muda de direção, vai do objeto para o sujeito. O conhecimento viria do mundo do objeto (material ou social) determinando o sujeito. Essa concepção, aplicada à prática do professor, considera o aluno um sujeito passivo na relação pedagógica, receptor dos conteúdos transmitidos pelo professor ou pelo ambiente. O professor não considera a ação do sujeito como geradora de modificações no ambiente e capaz de alterar seu meio para a aprendizagem, o professor anula a criança nessa relação pedagógica.
De acordo com Porto (2006), a tentativa de superação da dicotomia inatismo/empirismo aparece na filosofia kantiana e em São Tomás de Aquino, influenciado pelo pensamento de Aristóteles. O autor adota o termo transcendental para designar as ideias filosóficas que oferecem uma alternativa ao idealismo platônico e ao empirismo, a concepção transcendental entende que o fundamento para o conhecimento está em princípios que coordenam a aquisição do conhecimento, aceitando a evidência dos sentidos e, ao mesmo tempo, estabelecendo as condições requeridas pela experiência. No século 20, Piaget (1987) desenvolveu a epistemologia genética, uma teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano, superando as concepções anteriores sobre a origem do conhecimento (inatista e empirista). Em seus estudos, Piaget (1987, p. 389) conclui que:
[...] a assimilação e a acomodação, inicialmente antagônicas, na medida em que a primeira permanece egocêntrica e em que a segunda é simplesmente imposta pelo meio exterior, completam-se mutuamente na medida em que se diferenciam, sendo os progressos da acomodação favorecidos pela coordenação dos esquemas de assimilação e reciprocamente. Assim é que, a partir do plano sensório-motor, a inteligência supõe uma união sempre estreita da experiência e da dedução, união essa de que o rigor e fecundidade da razão serão, um dia, o duplo produto.
Assim, o autor explica a origem do conhecimento em um duplo sentido: o mundo do objeto propicia o conteúdo (assimilação), e o sujeito cria novas formas de organização (acomodação) desse conteúdo. As estruturas de conhecimento são resultado de um processo de interação entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto. Becker (1993) representa esse modelo epistemológico por S ? O, em que a seta representa o duplo sentido na relação sujeito/objeto. Essa relação pretende uma interação entre o sujeito, que em sua ação para conhecer acaba por alterar o ambiente, e entre o objeto de conhecimento, que, ao ser apreendido pelo sujeito, ocasiona mudanças e, também, altera o modo de o sujeito compreender o mundo. Essa relação dialética entre sujeito e objeto de conhecimento propicia a concepção interacionista da aprendizagem, que aplicada à atuação do professor leva a compreender o aluno como um sujeito ativo, atuante em seu processo de conhecimento, e o professor como mediador desse processo, que intervém em momentos oportunos para alavancar o potencial de aprendizagem de seus alunos.
As três concepções de aprendizagem, a saber: o inatismo, o empirismo e o interacionismo, coexistem na sociedade contemporânea, sobretudo na escola, na maneira como o conhecimento é apresentado, na metodologia adotada em sala de aula e nas avaliações da aprendizagem. Essas três concepções podem ser organizadas de maneiras diferentes nas representações sociais e embasar efetivamente a prática do professor.
Ao realizar uma revisão na literatura sobre as representações sociais de professores sobre a aprendizagem de alunos com deficiência, constatou-se poucos estudos. Os critérios adotados na revisão foram os termos: representações sociais, professores, aprendizagem e deficiência. Foram consideradas as pesquisas, teses e dissertações dos últimos 10 anos publicadas na biblioteca digital Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Apenas foram inclusas pesquisas realizadas na língua portuguesa, pois, como sistema simbólico, o idioma pode ser um diferenciador das representações sociais dos participantes.
O estudo de Barbosa (2014) aproxima-se dos objetivos desta pesquisa, pois propôs-se analisar as representações sociais de professores dos anos finais do Ensino Fundamental sobre a aprendizagem de estudantes com deficiência em escolas inclusivas. A autora concluiu que as representações sociais dos docentes estavam ancoradas em concepções sobre a deficiência, entendida como algo limitador, associada à ideia de "falta" e "ausência" de alguma coisa ou capacidade. Entretanto, os professores também abordaram a aprendizagem como um processo, ressaltando o potencial do aluno com deficiência.
Essa coexistência e alternância de concepções sobre a aprendizagem também pode ser constatada no estudo de Fragoso e Casal (2012). Em Portugal, os autores pesquisaram as representações sociais dos educadores de infância em relação à inclusão de crianças com deficiência nas escolas regulares e concluíram que, em geral, os docentes são favoráveis ao processo de inclusão, com ideais de promoção da igualdade de oportunidades e da ajuda mútua. Porém, também observaram a discriminação das crianças com deficiência, devido à falta de informação, de educação, à classe social e nível econômico, a questões sobre a higiene, a dificuldades de aceitação da diferença e das limitações físicas das escolas.
Por fim, o estudo de Musis e Carvalho (2010), que, assim como o de Fragoso e Casal (2012), objetivou investigar as representações sociais dos professores a respeito da inclusão do aluno com deficiência no ensino regular, constatou que a percepção do docente sobre aluno com deficiência está ancorada em uma representação hegemônica da normalidade. Assim, a prática do professor é influencida pelo desejo de que os alunos correspondam a uma configuração física e a um comportamento intelectual considerado padrão médio pré-estabelecido pela sociedade.
As pesquisas de Barbosa (2014), Fragoso e Casal (2012) e Musis e Carvalho (2010) apresentam ideias ou pensamentos sobre a deficiência que reportam a concepções de aprendizagem pelos professores. O presente artigo buscou uma análise mais profunda e objetivou evidenciar, nas falas dos professores da escola de Educação Especial, as representações sociais sobre a aprendizagem e identificar as concepções epistemológicas em que estão ancoradas.
2 MÉTODO
2.1 PARTICIPANTES
Fizeram parte da pesquisa uma amostra não probabilística de 12 professores participantes de um programa de formação continuada de uma escola de Educação Básica Modalidade Especial em Curitiba/PR. Todos os participantes eram mulheres, com média de idade de 44 anos, variando entre 23 e 58 anos. A média de tempo de atuação na profissão (levando-se em conta o período de atuação antes do trabalho na escola onde foi desenvolvida a pesquisa) foi de 16 anos. O tempo de atuação desses professores somente na escola onde se desenvolveu a pesquisa variou entre 10 meses a 16 anos.
Quanto à formação, em sua maioria, os professores realizaram Graduação em Pedagogia, com exceção de três professores, P2, P3 e P7, que fizeram Licenciatura em História, Educação Física e Letras, respectivamente. Quase todos os professores relataram ter curso ou estar matriculado em curso de Pós-Graduação em Educação Especial, apenas dois deles não fizeram especialização nessa área: P6 e P12.
2.2 MATERIAL
A cada encontro do programa de formação continuada, dois observadores/pesquisadores realizavam o registro da temática e da dinâmica do grupo durante as tarefas propostas. Para tanto, utilizaram-se do Protocolo de Observação dos encontros, onde registraram a temática (o que era dito no grupo) e a dinâmica (a movimentação do grupo). Os registros deram origem aos textos com as falas dos professores no decorrer do programa de formação continuada.
Para a análise dos textos produzidos a partir dos registros dos encontros, utilizou-se o software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), um programa informático gratuito, que se ancora no software R e permite diferentes formas de análises estatísticas sobre corpus textuais.
2.3 PROCEDIMENTOS
As concepções epistemológicas de aprendizagem dos professores foram apreendidas por meio de suas narrativas nos oito encontros reflexivos do programa de formação continuada desenvolvido na escola de Educação Básica, modalidade Especial. Decorrendo de considerações éticas garantidas pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos sob o número 205.177, com data da relatoria em 20 de fevereiro de 2013. As informações coletadas nos encontros tiveram o consentimento de todos os participantes e todos os dados que permitem a identificação dos participantes foram alterados.
O programa de formação continuada para a escola de Educação Básica, modalidade Especial, foi desenvolvido em oito encontros com duração de duas horas cada. Esses encontros aconteceram aos sábados pela manhã na biblioteca da escola. A estrutura e a organização dos encontros foi fundamentada pela teoria de Grupos Operativos proposta por Pichon-Rivière (2009), que teve como objetivo mobilizar o grupo de professores para a resolução de tarefas. Os temas dos encontros foram: 1) apresentação da proposta do programa de formação continuada ao grupo; 2) profissionalização docente e a formação continuada do professor; 3) intervir e interferir; 4) aprender e ensinar de modo especial; 5) estilos e estratégias de aprendizagem; 6) estilos de ensino; 7) ambiente educativo; 8) avaliação e registro na atuação do professor. Todos os encontros foram registrados por dois observadores/pesquisadores (de temática e de dinâmica) no decorrer das tarefas e das rodas de conversa.
O método qualitativo adotado, hermenêutico fenomenológico, contou com cinco etapas: 1) coleta dos dados verbais e não verbais; 2) leitura dos dados; 3) divisão dos dados em categorias - para tanto, contou-se com o auxílio do software IRAMUTEQ. Os dados analisados pelo software foram os registros das transcrições das falas dos professores no decorrer do programa; 4) organização dos dados brutos na linguagem da pesquisa, ou seja, a partir do vocabulário das teorias de aprendizagem que fundamentam a pesquisa; e 5) síntese dos resultados para a comunicação à comunidade científica (Giorgi, 2008).
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir dos registros da temática realizados nos oito encontros do programa de formação continuada, foi construído um corpo textual composto por todos os registros das falas dos professores no decorrer dos encontros. Após a organização de todos os registros da temática dos oito encontros, cada fala do professor foi identificada com uma linha de comando para que o software IRAMUTEQ pudesse identificar seu emissor. Foram retiradas as falas da coordenadora do grupo para constar apenas os dados referentes aos sujeitos da pesquisa.
Esse corpo textual foi submetido, em primeiro lugar, à análise de similitude, baseada na teoria dos grafos. Essa análise identifica as partes vetorizadas de discursos que compartilham o mesmo vocabulário e os interpreta semanticamente próximos uns dos outros (Chartier & Meunier, 2011). A análise de similitude dos oito encontros identificou a palavra GENTE com maior relevância no corpo textual, em 168 segmentos do texto. Voltando-se aos registros originais dos encontros, verificou-se que, nos segmentos em que a palavra GENTE foi utilizada, os professores estavam se referindo a eles mesmos. Como nos trechos: "a gente não pula etapa. A gente procura outras alternativas. Como a gente aprende mais" (P7). "A gente está aprendendo. A gente faz o possível" (P3). Assim, todas as palavras GENTE foram substituídas pela palavra PROFESSOR, dando origem a um novo corpo textual. A substituição das palavras foi utilizada como uma estratégia para identificar as falas em que os professores se auto referenciavam.
Após a substituição da palavra GENTE pelo vocábulo PROFESSOR, houve um acréscimo de 74 segmentos, em um total de 242 segmentos do texto em que os professores se referenciavam a eles mesmos em suas narrativas. A árvore da análise de similitude (Figura 1) mostra a palavra PROFESSOR como núcleo das discussões ocorridas nos encontros. Ao redor desse núcleo, estão dispostas relações significativas entre as palavras: QUERER (85 segmentos), DAR (76 segmentos), FALAR (76 segmentos), DIZER (75 segmentos), ALUNO (73 segmentos), VER (67 segmentos), ESCOLA (58 segmentos), FICAR (54 segmentos), VEZ (49 segmentos), APRENDER (47 segmentos), VIR (46 segmentos), SÓ (46 segmentos) e MÃE (45 segmentos). Há, em especial, uma forte relação com a palavra CRIANÇA (122 segmentos), pertencente a um campo mais distante do núcleo PROFESSOR.
Em consonância ao objetivo deste trabalho, optou-se por descrever as palavras que apresentaram frequência total (eff. total) igual ou superior a 45 ocorrências no texto e, a partir de seus sentidos nos campos textuais, tinham maior relevância para as representações sociais sobre a aprendizagem, como apresentado na Tabela 1.
Palavras | Eff |
---|---|
Professor | 242 |
Criança | 122 |
Querer | 85 |
Dar | 76 |
Aluno | 73 |
Aprender | 47 |
Mãe | 45 |
Fonte: Elaboração própria.
As palavras da Tabela 1 deram origem a categorias de análise, que assumiram como títulos as mesmas palavras identificadas pelo sistema.
Outra maneira de analisar o corpo textual pelo software IRAMUTEQ é por meio da nuvem de palavras (Figura 2), uma análise que agrupa e organiza graficamente as palavras-chave em função da sua frequência.
Por meio da Figura 2, é possível observar que a categoria PROFESSOR esteve no centro das discussões do grupo no decorrer dos oito encontros do programa de formação. As demais categorias derivam da categoria PROFESSOR, que diz respeito ao sujeito professor e ao seu quadro referencial. Quando os professores discutiam sobre a criança, o aluno, a mãe, o aprender, falavam a partir da própria perspectiva, demonstrando pouca reciprocidade (Claxton, 2005), não fazendo o movimento de se colocar no lugar do outro para relativizar seus conhecimentos. Na relação de ensino aprendizagem, a pouca reciprocidade também pode influenciar decisões centradas no professor.
A próxima categoria, CRIANÇA, refere-se à criança com deficiência. Os professores referem-se às crianças como sendo diferentes das de outras escolas, falam sobre os cuidados com limpeza, roupas e alimentação das crianças. Como nas falas: "a criança vem sujinha, que dó, ou vem chorando muito" (P3); "esta semana teve uma criança que gritava, se batia, chorava, e no final era fome, só que ela não sabia falar" (P7); "as escolas não aceitam nossas crianças" (P3); "escolas naturalistas juntam crianças de um ano, de três anos, de seis anos, mas são crianças normais, e eles conseguem se virar sozinhos, a nossa escola é diferente, tem um que bate a cabeça e um que se morde" (P7); "a criança especial não é pronta, mas é feliz e, às vezes, traz a resposta do que você estava precisando na sua aula" (P3); "para tentar atingir as nossas crianças que são especiais" - professor (P3) ao falar sobre os estilos de ensino.
A categoria CRIANÇA na árvore de similitude (Figura 1) está localizada em um vetor diferente do vetor da categoria ALUNO, e não compartilham do mesmo sentido, como será visto adiante. A categoria CRIANÇA tem o sentido de criança com deficiência. Os professores referem-se à criança como uma falha, pois precisa de atenção especial, tem a fala ruim ou sequer falam, precisam de banho e roupas limpas, sua capacidade de aprendizagem é deficitária. Para os professores, as crianças da escola de Educação Básica, modalidade Especial, são diferentes das demais, correspondendo ao processo de segregação da criança com deficiência.
Os sentidos atribuídos à categoria CRIANÇA estão vinculados à ideia do sujeito como uma tábula rasa a ser preenchida pela experiência (concepção empirista da aprendizagem), como na fala do professor P3: "a criança especial não é pronta, mas é feliz", resultando no processo de educabilidade da criança com deficiência. Como afirma Pozo (2002), todo ensino baseia-se em uma concepção de aprendizagem, na maioria das vezes de forma implícita. A concepção empirista da aprendizagem pode desencadear ações de integração e não de inclusão efetiva da criança com deficiência na sociedade (Aranha, 2003).
A categoria QUERER assume mais de um sentido nas falas dos professores. Ao se referirem à família dos alunos, o QUERER aparece como um desejo de mudança da condição física ou especial dos filhos, como nos trechos: "a mãe queria um diagnóstico" (P4); "os pais querem uma palavra de otimismo" (P3); "na verdade ela queria que falassem que ele não era autista" (P12). Essas falas traduzem um pedido de ajuda dos pais aos professores diante da condição especial dos filhos. No entanto, esse pedido não foi compreendido pelos professores, que trouxeram as falas dos pais como uma queixa em relação à família. Quando os professores se referem ao aluno ou à criança, a categoria QUERER é relacionada a ações ou a necessidades fisiológicas como comer, morder, sair, abraçar. Os professores referenciam-se à criança com deficiência como um organismo com necessidades fisiológicas, como nos trechos: "você chega na sala, prepara uma atividade e ela [a criança] vem chorando, ela não quer saber de atividade, ela quer comer" (P3); "tem o aluno que quer morder, eu chamo atenção" (P5); "a A., por exemplo, é uma PC [criança com paralisia cerebral], quer comer sozinha, se suja muito, demora" (P10); "ele [o aluno] está muito agressivo, ele quer abraçar, mas ele machuca" (P3); "eu não sei o que fazer com esse aluno, eu tenho mais vinte [alunos], e, quando chega, os alunos têm medo dele, a mãe põe em um monte de atividades, e ele, quando chega às quatro horas, está insuportável querendo morder" (P3). A visão organicista, biológica ou médica da criança com deficiência presente nas falas dos professores parece reforçar a concepção empirista da aprendizagem, ocasionando a anulação da criança na relação pedagógica professor/aluno.
A categoria DAR está relacionada ao fazer do professor na sala de aula, como a expressão "dar aula" no sentido de realizar uma ação ou cumprir, efetivar, executar a ação de dar aula. Como pode ser observado nos trechos: "a professora diz: você não vai dar atividade?" (P5); "não é simplesmente dar o conteúdo" (P2); "vinham professores que davam aula por dar, mas também existiam professores que adaptavam sua didática com o estilo dos alunos" (P8).
A categoria DAR também aparece em contextos sobre queixas dos professores em relação à falta de tempo, à impossibilidade de concluir ou alcançar objetivos e ao estado emocional do professor em relação à essas situações. Como nos trechos: "[a criança] já pegou a caneta, já mordeu o outro, não dá tempo" (P3); "porque o professor tem que dar conta do conteúdo, e a direção vai em cima, porque o aluno não aprendeu" (P3); "no final do ano nós temos uma avaliação para dar conta, todo mundo tem, é [nosso] papel" - professor P3 ao falar sobre a avaliação obrigatória que realiza com os alunos; "às vezes o cheiro está forte em sala de aula, quase não dá pra aguentar, mas vamos lá mesmo assim, eu não consegui trabalhar na educação regular, só com crianças especiais" (P5); "ele me dá uma canseira no parquinho" - professor P5 ao falar sobre o aluno quando sai para brincar. As falas dos professores trouxeram muitas queixas em relação ao trabalho, porém com poucos momentos de reflexão em grupo ou autorreflexão que possibilitassem diminuir a angústia vivenciada diante das impossibilidades das crianças e do trabalho, que remete às dificuldades do próprio professor.
Na categoria DAR, houve quatro referências à autonomia do aluno, nos trechos: "nós não podemos ser os únicos agentes do saber, [temos que] ver o que a criança está fazendo para dar autonomia para ela" (P8); "devemos dar oportunidade para a criança mostrar seu potencial" (P2); "ela [a professora] está sempre dando oportunidade ao aluno, fica arrumando ele na cadeira ou com uma caixa para ficarem confortáveis" (P2); "o professor tem que dar oportunidade para ele [o aluno] mostrar o que ele sabe" (P7). Ao serem instigados a refletir sobre a autonomia do aluno, os professores utilizaram a expressão "dar oportunidade", mantendo a relação professor/aluno centrada no professor, pois é por deliberação dele [o professor] que a criança pode agir com certa autonomia. A categoria DAR foi fortemente relacionada à categoria PROFESSOR no sentido de sua ação prática. As expressões da categoria DAR trouxeram a concepção da aprendizagem por transferência de algo na ação educativa, na direção do professor para o aluno, fundamentadas na concepção empirista de aprendizagem.
A categoria ALUNO refere-se à criança que está na escola ou na sala de aula. A palavra aluno recorrentemente aparece associada aos pronomes possessivos meu, teus, nossos, dando sentido de pertença a uma escola, a uma turma ou a um professor. Como nos trechos: "você vai avaliar os teus alunos com outros juntos, que nem são teus" - professor P5 ao se referir à dificuldade na avaliação dos alunos; "a partir do momento que você vem para a escola você não é aluno da professora, mas da instituição" (P12); "mesmo não sendo o meu aluno, mas sendo o aluno do outro, talvez o que eu ensine ali vai refletir na sala do outro profissional" (P2). O aluno é aquele que recebe instrução ou educação na instituição de ensino ou por alguém, é diferente da categoria CRIANÇA, pois não evidencia a característica com deficiência. A categoria ALUNO é menos recorrente do que a categoria CRIANÇA, ocasionando menos referências à relação de ensino formal pelos professores.
A categoria APRENDER, ao se referir à criança ou aluno, não traduz a ideia de processo, mas a de polaridade sim ou não, aprende ou não aprende, quer ou não quer aprender, e a necessidade ou importância do aprender. Como revelam os trechos das falas a seguir: "você medeia a criança e ela aprende ou não aprende" (P7); "tem que nivelar a turma, separar os que querem daqueles que não querem aprender, e não tem problema mental nenhum" (P7); "é diferente uma criança que tem potencial, mas que não quer aprender" (P7). As falas dos professores traduzem a concepção inatista de aprendizagem que, segundo Becker (1993), sustenta que o sujeito já traz consigo as condições de aprendizagem e conhecimento, independentemente da sua experiência, justificando o sucesso ou fracasso escolar à condição biológica ou hereditária de um aluno.
A categoria MÃE traduz a relação mãe/professor. Como nos trechos: "como o professor vai questionar a mãe para que a criança chegue limpa e tenha um ambiente acolhedor?" (P3); "a mãe fala que a professora está fora da casinha, como você vai contestar esta mãe?" (P3); "a mãe diz que a professora está errada" (P3); "a mãe pergunta para as estagiárias sem disfarçar: eles tratam bem aqui?" (P4); "a mãe reclamou que a roupa estava suja de chocolate [...], mas elas querem vestir bem para mostrar que as crianças são bem tratadas" (P3). A figura da mãe aparece como aquela que desconfia, que não compreende o trabalho do professor, que reclama, não faz parceria com o professor para dar continuidade às ações fora da escola, e não cuida da higiene do filho. A forte conexão na árvore de similitude (Figura 1) entre as categorias PROFESSOR e MÃE pode ser interpretada como uma relação conflituosa e, por isso, é muito referenciada nas falas do grupo. Em momentos, os pais parecem ser destituídos de sua função, e é esperado serem co-professores dos filhos ou cuidadores no sentido da assistência à higiene, à alimentação e aos cuidados básicos. Ao passo que, aos pais caberia estabelecer um vínculo positivo e sadio com o filho, amando-o e aceitando-o com suas diferenças (Schmidt, 2003). Essa categoria evidencia a necessidade de espaços para reflexão dos professores e preparo da equipe para atender à demanda subjetiva que a família apresenta.
Em suma, as representações sociais dos professores da escola de Educação Básica, modalidade Especial, estão ancoradas nas concepções inatista e empirista da aprendizagem, que calibram as experiências práticas dos professores, ocasionando a anulação do aluno ou responsabilizando-o pelo sucesso ou fracasso no processo de aprendizagem.
4 CONCLUSÃO
As representações sociais e concepções de aprendizagem dos professores da escola de Educação Básica, modalidade Especial pesquisada, opõem-se ao objetivo da instituição, que é promover a independência, a socialização e a inclusão sócio educacional das crianças. Do mesmo modo que os estudos de Barbosa (2014), Fragoso e Casal (2012) e Musis e Carvalho (2010), as representações sociais dos professores pesquisados estão carregadas de significações sobre a deficiência, concebida como limitadora, negativa, determinante; sobre a ausência, o diferente (em comparação a um padrão normal), aquilo que anula o outro e é regida por explicações médicas.
Em conclusão, as concepções de aprendizagem inatista e ambientalista coexistem nas falas dos professores pesquisados e reforçam as ações de integração da criança com deficiência na sociedade, ou seja, aquela que investe na promoção de mudanças na criança, na direção de sua normalização. No entanto, as ações de inclusão, segundo Aranha (2003), são aquelas que investem no processo de desenvolvimento da criança, criando condições imediatas para o acesso e a participação na vida comunitária, possibilitando sua manifestação com relação aos seus desejos e às suas necessidades, por meio de suportes físicos, psicológicos, sociais e instrumentais.
Um trabalho de forma integrada à equipe terapêutica da escola parece ser uma alternativa para o professor, que poderia discutir os casos em grupo e elaborar um projeto conjunto objetivando atender às necessidades educativas de cada criança, compartilhar conhecimentos e incertezas. Além disso, programas de formação continuada que questionem o domínio do saber específico, como cursos e especializações em Educação Especial, que possivelmente tornaria o professor apto a trabalhar de forma adequada com o aluno com deficiência. E, também, incluir nessas formações espaços de reflexão constante entre professores e equipe pedagógica, buscando diminuir a angústia vivenciada diante dos desafios diários no trabalho.